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sábado, 16 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27124: Os nossos seres, saberes e lazeres (696): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (217): Nenhum museu tem tanta História de Portugal como este – 2 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Junho 2025:

Queridos amigos,
Bem vistas as coisas, este museu organizado no que foi o Palácio Alvor tem um impressionante património que justificaria um conjunto de visitas e dezenas de textos e ilustrações em conformidade com a vastidão das coleções. Tudo começou com a extinção dos conventos, juntaram-se as peças provenientes do espólio da rainha Carlota Joaquina vendido em hasta pública, como consequência da derrota miguelista, há as peças adquiridas com as verbas oferecidas pelos reis D. Fernando II e D. Luís, também as peças adquiridas pela Academia de Belas-Artes, peças adquiridas em leilões, peças provenientes de vários legados; depois da implantação da República, uma nova leva de peças provenientes dos palácios reais, bem como das sés e palácio episcoais, peças depositadas (caso das 1500 esculturas da coleção Vilhena), doações relevantes como as feitas por Calouste Gulbenkian. É impressionante o acervo de arte religiosa, da pintura portuguesa, recorde-se Frei Carlos, os mestres flamengos, Hans Holbein, Lucas Cranach, Dürer, Bosch, Velásquez... E grande escultura, desde o Torso de Apolo, a peça mais antiga do museu, passando por Rodin, alfaias religiosas, a Custódia de Belém, a Baixela Germain, mobiliário ímpar, como o hindoportuguês, os trabalhos escultóricos de Benim, loiça Ming, os biombos Namban. Enfim, comprometo-me a voltar.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (217):
Nenhum museu tem tanta História de Portugal como este – 2


Mário Beja Santos

Que o leitor me desculpe, finda uma pausa lancei-me ao trabalho, voltei à escadaria principal, gosto muito destas linhas dinâmicas que nos levam até à escultura religiosa, é a partir daqui que vou a deambular sem preocupações de roteiro quanto às escolas europeias, nada de catalogar cronologicamente o que vai do pré-românico ao oitocentismo, ainda tive o impulso de parar diante dos painéis de São Vicente que há quem garanta a pés juntos que foram pintados por Nuno Gonçalves, embora não haja nenhuma certeza documental.
O meu amigo José Luís Porfírio, que dirigiu esta casa e que dela foi conservador dedicadíssimo, escreveu com a chancela da Editorial Verbo, em 1977, no belo livro dedicado a este museu nacional:
“Se quiséssemos ser polémicos, poderíamos dizer que a pintura portuguesa começa e acaba aqui, nestas seis tábuas com cerca de 60 figuras, num tipo de expressão que, salvo duas ou três aproximações com tábuas da mesma época, desapareceu da pintura feita em Portugal sem deixar grandes vestígios, assim como pouco se conhece em Portugal ou no resto da Europa que possa servir de preparação ou de introdução a esta pintura. Não, evidentemente que se não se possa estabelecer analogias com o Sul da Espanha, ou com a composição das tapeçarias borgonhesas; não, também, que na pintura portuguesa do século seguinte se não possa detetar uma linha de atenção ao concreto, muito especialmente no retrato, que possa aqui ter origem. No entanto, esta pintura, se acaba alguma coisa, não sabemos o que acaba, e não foi, certamente, o princípio de coisa nenhuma; trata-se, antes de mais, de uma das numerosas sendas perdidas na arte europeia do século XV, experiência sem seguimento, ainda que cheia de possibilidades, tal como aconteceu noutros centros marginais ou marginalizados da cultura europeia da época. Descobertas em 1882, cerca de quatro séculos depois de pintadas e quase outro tanto de esquecidas, estas seis tábuas viriam a transformar-se no caso, ou na questão, da história da arte portuguesa. Têm estas seis tábuas praticamente mais literatura escrita sobre elas do que toda a restante pintura portuguesa junta”.
Vou passar adiante deste mistério dos painéis de São Vicente, vamos então ver outras obras de inquestionável valor.


A imponente escadaria da entrada principal que permite ao visitante ir direto à escultura medieval, tendo à esquerda uma pintura icónica, o Ecce Homo.
Fonte bicéfala, em calcário, 1510-1525, oficina ativa em Lisboa
Biombos Namban, produzido entre 1570 e 1616. Os biombos eram utilizados para dividir espaços, e normalmente eram realizados de dois em dois. O tema mais recorrente no século XVI eram as cenas do cotidiano. Nos biombos do museu vê-se a chegada festiva dos portugueses no barco negro, ao que os japoneses chamavam de a chegada dos namban jin, ou bárbaros do Sul, isto é, os Portugueses e, mais tarde, os Espanhóis. Os namban eram homens de grandes narizes, de olhos negros e estranhos, usando uma indumentária singular onde se evidenciavam as calças tufadas e os chapéus de copa redonda. É assim que os nossos capitães e marinheiros surgem retratados nos biombos, executados sempre aos pares e reportando-se a cenas de aportagem e desembarque da nau de comércio e há o desfile pelas povoações.
Pormenor da chegada dos portugueses ao Japão nos biombos Namban
Arte muçulmana vinda de Damasco, o esplendor do azulejo
Continuação do esplendor do azulejo muçulmano
Paisagem de inverno (Neve), por Gustave Courbet, 1868
Santo Agostinho, Piero della Francesca, c. 1465. Um santo, um bispo, impõe a sua figura contra uma balaustrada e o céu azul, segura um báculo com cabo de cristal e enverga uma capa que narra a história de Cristo. Aqui, nesta narração, em cada uma das suas cenas, está um dos grandes motivos de interesse desta pintura, não só porque são réplicas de pinturas, conhecida uma, outras perdidas, da oficina do pintor, mas também pela conceção espacial que propõem.
Danaide (A Fonte), por Auguste Rodin e Pierre, o seu ajudante, 1893. Esta deusa aquática, de uma tradição literária e figurativa que remonta à própria Grécia, ao mesmo tempo emerge e regressa ao seu reino do incerto e da mudança constante, reino que também é o da relatividade e não o da certeza sacral. Com Rodin está acabando um grande ciclo da escultura. Este regresso ao material anuncia de certo modo os monólitos do século XX.
Interior de taberna, autor não identificado, 1664 (?)
Homem cozinhando, Jan Steen, c. 1650 (?)
Obras de misericórdia, Bruegel, o Moço, depois de 1564/65-1637/38. A família Bruegel criou uma firma de reputação europeia. Bruegel, o Moço, imitador do seu pai, e também conhecido como especialista de infernos, numa tradição boschiana, produzidos em série para um público numeroso e não muito exigente. Este quadro Obras de Misericórdia é uma curiosa descrição da vida e da miséria da Flandres, aponta para um novo tipo de pintura que o século XVII vai desenvolver e cultivar: a pintura de género, ou seja, a representação de cenas da vida quotidiana, burguesa e popular, de grande divulgação e permanente consumo até ao nosso tempo.
Pormenor do tríptico das Tentações de Santo Antão, Jheronimus Bosch, c. 1500. É, porventura, o mais procurado quadro de autor não português (neste caso, um tríptico) tanto por visitantes nacionais como estrangeiros. Toda a pintura de Bosch foi produzida numa obscura cidadezinha da Flandres, acaba por se apresentar como o último grande inventário da Idade Média. Inventário de conhecimentos, de imagens, de espetáculos, de espetáculos e procissões de rua, inventário de medos passeando-se, reunindo-se, dispersando-se como as ideias confusas do espírito, no espaço poderosamente unificado das três tábuas. Mesmo que os contemplemos até à exaustão, fica-nos uma inquietante certeza: o sonho, a imaginação, o inconsciente, são também uma realidade.
Anjo da Anunciação (fragmento), autor flamengo desconhecido, c. 1500
Rei Mago Baltasar, século XVIII, oficina de Joaquim Machado de Castro
Presépio Kamenesky, século XVIII, c. 1783, por Faustino José Rodrigues
Milagre de Santo Eusébio de Cremona, por Rafael Sanzio, 1502-1503

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 9 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27103: Os nossos seres, saberes e lazeres (695): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (216): Nenhum museu tem tanta História de Portugal como este – 1 (Mário Beja Santos)

sábado, 9 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27103: Os nossos seres, saberes e lazeres (695): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (216): Nenhum museu tem tanta História de Portugal como este – 1 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Junho 2025:

Queridos amigos,
Pode parecer um tanto espetacular, e rebarbativo, crismar este museu de uma casa da extensa História de Portugal, mas a verdade é que o acervo de pintura medieval, a qualidade da escultura gótica, a pintura tardo-gótica, e indo por aí fora até ao século XIX, com remissões para a arte europeia de primeira ordem, impressiona quem quer que o visite, os biombos japoneses, a custódia de Belém, o extenso mobiliário, as preciosidades da arte flamenga e tudo mais justificam visitas regulares ao antigo palácio dos condes de Alvor e do Convento das Albertas, a museologia e a museografia que é hoje possível desfrutar não tem qualquer termo de comparação com as visitas que ali fiz na meninice, estou a ver a minha mãe a mostrar-me orgulhosa a Baixela Germain e eu a interrogá-la se não havia dinheiro para limpar as pratas, como é que uma Baixela tão valiosa se apresentava tão enegrecida... Isto para já não falar nos tapetes puídos e na falta de boa iluminação. Deixa-se aqui dois apontamentos, sugere-se ao potencial visitante que leia previamente uma publicação alusiva ao museu para desfrutar da sua memorável itinerância.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (216):
Nenhum museu tem tanta História de Portugal como este – 1


Mário Beja Santos

Sem nenhuma preparação prévia, naquela manhã de sábado em que tinha pensado em limpar o meu escritório, arranjei-me e tomei a decisão: vou visitar o Museu Nacional de Arte Antiga, nada tem de custoso, apanho o metro até ao Cais do Sodré, são inúmeros os transportes daqui até ao velho Palácio dos Condes de Alvor. Muni-me de uma obra escrita pelo meu amigo José Luís Porfírio, que foi diretor e conservador do museu, fui selecionando o que mais me interessava ver, mas sempre aberto a imprevisto. Recordo-me que a primeira vez que ali entrei, levado pela minha mãe, fiquei intrigado pelo desconsolo da decoração, e quando a minha progenitora me apontou, ufana, para a Baixela Germain, perguntei-lhe se não havia dinheiro para limpar as pratas, estava tudo enegrecido.

Hoje, dá gosto percorrer todas aquelas salas, independentemente de haver ciclos e escolas que não desfazem bater o coração. Mas o Museu das Janelas Verdes, instalado num antigo palácio do século XVIII, e completado com um anexo de 1940, que ocupa o que foi o antigo Convento das Albertas, tem sido alvo de muita atenção, alvo de intervenções qualificadas, e, como muitos outros, é um filho direto da revolução liberal. D. Maria II, e porventura o marido, quiseram preservar o que de melhor havia no acervo nos conventos extintos em 1834, magnífico recheio que foi colocado em depósito no Convento de S. Francisco, aquele quarteirão onde está hoje o Museu do Chiado e no lado oposto a Academia de Belas Artes.

O Museu Nacional das Belas Artes ganhou notoriedade em 1882 com a célebre Exposição de Arte Ornamental, vieram peças de Espanha e do Reino Unido, o museu intitulava-se então Museu Nacional de Belas Artes e Arqueologia e mudou de título em 1911 para Museu Nacional de Arte Antiga. O seu património excede o que veio da extinção dos conventos, temos peças provenientes do espólio da rainha Carlota Joaquina, peças adquiridas pelos reis D. Fernando II e D. Luís, peças adquiridas pela Academia das Belas Artes, peças provenientes de vários legados, como, por exemplo o visconde de Valmor ou as peças depositadas como as 1500 esculturas da Coleção Ernesto Vilhena.

Se o visitante começar a sua visita no andar superior, tem pintura portuguesa e estrangeira do século XIV, adiante irá demorar-se junto dos painéis de S. Vicente, verdadeiramente polémicos quanto ao seu autor e lugar de proveniência, há quem jure a pés juntos que o seu autor é Nuno Gonçalves, permito-me duvidar, o que há de Nuno Gonçalves neste museu tem pouco a ver com o conjunto destas seis tábuas, e não conheço nenhum políptico destinado a uma igreja com pescadores e cavaleiros, naturalmente que me rendo ao assombro deste conjunto, não desmerecendo que está ali o retrato da nascente epopeia portuguesa dos Descobrimentos.

Mudando de posição, vou defrontar-me com obras que muito me impressionam, caso do Santo Agostinho pintado por Piero della Francesca, a Virgem e o Menino de Hans Memling, passo um tanto como cão por vinha vindimada por muita arte religiosa para ir desfrutar do quadro intitulado Chegada das Relíquias de Santa Auta ao Mosteiro da Madre de Deus, pelo chamado mestre do retábulo de Santa Auta, gosto muito de apreciar a Anunciação de Frei Carlos e daqui passo para retratos de grande qualidade como o de D. Leonor de Áustria, pintado por Joos van Cleve ou o rei D. Sebastião pintado por Cristóvão de Morais. Suspendo aqui a visita para ir tomar um cafezinho no belo jardim do museu com uma parte do porto de Lisboa pela frente, mas só depois de me demorar diante de S. Jerónimo, pintado por Albrecht Dürer.

São João Evangelista, 1301-1350, oficina ativa na Península Ibérica
Retrato de um cavaleiro da Ordem de Cristo, 1525-1550 (?), escola portuguesa, estilo de Gregório Lopes. Durante muito tempo pensava tratar-se de Vasco da Gama, com os elementos do quadro, a começar pelos óculos, é totalmente inadmissível.
O Inferno, 1510-1520, escola portuguesa
Virgem Maria (de Calvário) e São João Evangelista (de Calvário), 1501-1525, oficina flamenga ativa em Portugal
Martírio de São Sebastião, Gregório Lopes, 1536-1539
Santo António pregando aos peixes, Garcia Fernandes, 1535-1540
D. João III e São João Batista, oficina de Cristóvão Lopes (?), depois de 1564
Natureza-morta com caixas, vidros e pote de barro, por Josefa d’Ayala, dita Josefa de Óbidos, cerca de 1660-1670
Retrato de senhora, mestre desconhecido, 1625-1650
Presépio de Santa Teresa de Carnide, de António Ferreira, cerca 1701-25, exposto no Museu Nacional de Arte Antiga
Vista do Mosteiro e Praça de Belém, Filipe Lobo, 1657
São Jerónimo, pintado por Albrecht Dürer, 1521

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 2 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27080: Os nossos seres, saberes e lazeres (694): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (215): Casal de S. Bernardo, Alcainça, gratas lembranças do Filipe de Sousa – 2 (Mário Beja Santos)

sábado, 2 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27080: Os nossos seres, saberes e lazeres (694): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (215): Casal de S. Bernardo, Alcainça, gratas lembranças do Filipe de Sousa – 2 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Junho 2025:

Queridos amigos,
Havia que completar o quadro da visita à casa que o maestro e compositor Filipe de Sousa sonhou pôr de pé durante tantos anos, para ela transferiu belíssimas obras de arte, uma opulenta biblioteca, a decoração continua a ser assombrosa, tudo se conjuga bem desde o património dos séculos XVIII e XIX até à arte contemporânea, é um diálogo perfeito neste ponto de Alcainça onde eu não vinha há mais de vinte anos, sempre com uma ranchada de amigos do Filipe, aqui se repetia o espírito da tertúlia que ele instituíra em pleno Chiado, na tal Mandíbula d'Aço, de saudosa memória. Na viagem de regresso dei comigo a pensar quais as funcionalidades que se podem dar às casas-museu, para elas se manterem vivas, mas bem conservadas, sem serem alvo de danos e depredações, mas concomitantemente receberem em residência artistas e cientistas de diversa ordem. Uma casa-museu pode ser um bom bico de obra, em segurança e conservação, e até com poucos visitantes. É um daqueles problemas, perdoe-se-me a presunção, para a qual não tenho resposta satisfatória.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (215):
Casal de S. Bernardo, Alcainça, gratas lembranças do Filipe de Sousa – 2


Mário Beja Santos

Na suposição de que o leitor não andou aqui pelo blogue no passado sábado, uma curta explicação. Foi graças a um grande amigo, Carlos Miguel de Araújo, que recebi um dia um convite do maestro e compositor Filipe de Sousa para ir almoçar à Mandibula d’Aço, a única tertúlia que naqueles anos 1990 funcionava no Chiado. Filipe de Sousa herdara de um tio uma empresa altamente prestigiada, a Casa Souza, na Rua Garrett, em frente ao estabelecimento, num 4.º andar, funcionavam os escritórios, o refeitório dos trabalhadores e criara-se um espaço de sala de jantar onde o proprietário acolhia amigos, era esta a Mandibula d’Aço. Assim se foi constituindo a nossa amizade, guardo recordações inesquecíveis de alguns desses almoços com escritores, compositores, intérpretes do bel canto, entre outros. Um dia em 1994, fomos em romagem até Alcainça, seguia-se pela velha estrada em direção a Mafra, havia um desvio e dava-se com duas entradas, uma era a casa do gravador David Almeida, a outra o Casal de S. Bernardo, a casa do Filipe, que ele mandara construir de raiz, assombrou-me a decoração. O Filipe de Sousa faleceu em 2006, não voltei a Alcainça. O meu professor de ginástica de manutenção vive em S. Pedro da Cadeira, concelho de Mafra, todos os anos organiza um almoço para três turmas, um grupo dos seus alunos, onde me incluo, prepara uma pequena viagem cultural, antes de atacarmos o bacalhau, o pato e a doçaria. Este ano ninguém sugeria um itinerário, lembrei-me de contactar a Fundação Jorge Álvares, a quem o Filipe de Sousa ofereceu o seu património, deu-se a visita e foi muito tocante para mim encontrar a governanta da casa, D. Maria do Rosário, que conheci nesses anos 1990 e 2000 a trabalhar na Mandibula d’Aço.
O que aqui se mostra são imagens complementares às que se publicaram no passado sábado, a Fundação mantém o espírito da casa, no início da visita entreguei à D. Maria do Rosário a fotografia em que estou com Carlos Miguel de Araújo e Filipe de Sousa. Vamos então continuar a visita.

Filipe de Sousa, Carlos Miguel de Araújo e eu, havia sempre novidades no património do Filipe e ele gostava de partilhar impressões com os seus amigos. Era um homem profundamente generoso, recordo que depois de um almoço na Mandibula d’Aço, ele fez questão de me deixar na Praça do Saldanha, onde eu trabalhava, antes de irmos engravatara-se, fiz-lhe um comentário de elogio à gravata, "pois se gosta muito, é sua”.
Aqui me demorei para desfrutar desta singeleza, a harmonia das formas de um requintado armário sobrepujado por arte oriental e um fundo de arte contemporânea.
Lembranças dos clássicos na sala de jantar, recordei instantaneamente aquela terrina Vista Alegre, fiquei com a sensação que estivera aqui na véspera.
Fez-se agora uma pausa, a Maria do Rosário abriu as portas viradas para o jardim, veio mostrar-nos os seus trabalhos de jardinagem e como se aplica a fundo a tratar o melhor possível os hectares da propriedade. Já não me recordo do nome que tinha esta escultura, parece ser a de um santo, a envolvente vegetal do Casal de S. Bernardo é muito repousante.
Outra excecional gravura de David Almeida. O David Almeida foi testamenteiro do Filipe, era uma admiração recíproca, não surpreende ver imensas obras deste gravador que para mim foi o mais importante da segunda metade do século XX, depois de Bartolomeu Cid dos Santos.
Uma tapeçaria de Cruzeiro Seixas. Sempre que visitei Alcainça passava uns bons minutos em êxtase diante desta beleza.
Trata-se de uma serigrafia de um dos mais geniais artistas de todo o século XX, Francis Bacon, o que me empolga é como este prodigioso artista de origem irlandesa torce e retorce as formas permitindo-nos, contudo, percecionar o conteúdo reformulado. Estive vaivém para deitar fora esta imagem, apareço descaradamente a tirar a fotografia, mas não tenho outra do Francis Bacon em casa do Filipe de Sousa, e a obra é de tirar o chapéu.
O piano do maestro e compositor, e sempre estantes de livros
Beneficiei da generosidade do Filipe quando se passou do vinil para o CD, uma vez combinámos ir à Gulbenkian ir ouvir um intérprete de génio ao piano, então o jovem Evgeny Kissin, no final do concerto o Filipe disse-me que ia pôr em casa pois havia ali um saco muito pesado para mim. À porta de casa entregou-me um saco com uns bons quilos de boa música clássica, mas eu também me estava a despedir do vinil… A coleção do Filipe em CDs era de nos deixar de boca aberta, desde o barroco ao dodecafonismo serial não faltava nada, o que se vê é uma pálida amostra.
Fiquei petrificado, não me lembrava absolutamente nada desta tapeçaria do Carlos Botelho, nada destas formas tinha a ver com aquela cidade poliédrica que foi construído ao longo de décadas, em que o Terreiro do Paço anda de paredes meias com a Igreja de S. Miguel de Alfama, e aqui parece que o grande pintor pretendeu mostrar-nos que sabia ir muito mais longe do que aquela arte figurativa com que marcou presença na sua contemporaneidade.
Mais um recanto com bela decoração e uma associação primorosa entre a pintura, a escultura e ornamento.
Os jardins mantêm-se primorosamente tratados, é D. Maria do Rosário quem responde pela jardinagem.
É a despedida, já estamos todos a caminho do carro, voltei atrás, imaginei que estas esculturas me estavam a dizer adeus, agradecendo a visita, toda esta construção idealizada pelo Filipe de Sousa, um sonho que ele concretizou, aqui está mantido e tive o privilégio de aqui regressar cerca de vinte anos depois.
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Notas do editor:

Vd. post da 26 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27056: Os nossos seres, saberes e lazeres (691): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (214): Casal de S. Bernardo, Alcainça, gratas lembranças do Filipe de Sousa – 1 (Mário Beja Santos)

Último post da série de 1 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27077: Os nossos seres, saberes e lazeres (693): Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu) - Parte XIII: Visita de um delegação militar portuguesa, chefiada pelo general da FAP., Conceição e Silva (1933-2021)

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27077: Os nossos seres, saberes e lazeres (693): Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu) - Parte XIII: Visita de um delegação militar portuguesa, chefiada pelo general da FAP., Conceição e Silva (1933-2021)




República Popular da China > Pequim > s/d (c. 1977/83) > O António Graça de Abreu
na praça Tianamen [ou Praça da Paz Celestial]


Foto (e legenda): © António Graça de Abreu (2008 ). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Grça & Camaradas da Guiné]


1. Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu, ex-alf mil, CAOP1, Teixeira Pinto / Canchungo, Mansoa e Cufar, junho de 1972/abril de 1974; sinólogo, escritor, poeta, tradutor; tem mais dde 375 referências no blogue; texto enviado em 26 de julho de 2025, 18:12)


Pequim, 20 de Maio de 1981 > Visita de um delegação militar portuguesa

por António Graça de Abreu


Está cá uma delegação de militares portugueses. Visitam a China e uns tantos aquartelamentos modelo a convite do Exército Popular chinês. 

Entre os nossos, vem um tenente-coronel da Fábrica Militar de Braço de Prata com um dossiê na busca de contactos e negócios da China. Mais militares portugueses, no fundo das malas trazem catálogos sobre venda de armamento made in Portugal

Tenho sérias dúvidas de que se consiga vender uma só munição aos chineses que estão entre os maiores fabricantes de armas do mundo. Este convite terá talvez mais a ver com a intenção chinesa de conhecer o que se faz em Portugal e de serem eles a vender-nos armas, e não a comprar.

Hoje fui ao Hotel Pequim almoçar com os nossos oito militares. Conversa entusiasmante e inteligente, até meteu as Guerras do Ultramar, em que todos participámos, eu como alferes n
a Guiné- Bissau, 1972/74.

Fiquei sentado ao lado do general Conceição e Silva  [1933-2021], da  Força Aérea e
chefe da delegação militar portuguesa. 

Rodeando a nossa mesa redonda com nove lugares, as empregadas de mesa desdobravam-se em cuidados para nos servir. Traziam travessas de comida fragrante e colorida, rodopiavam, enchiam delicadamente os copos. Pedi uma garrafa de Maotai [ou Moutai],  a aguardente de sorgo mais famosa da China que do alto dos seus 53 graus de álcool inebria e faz flutuar qualquer simples mortal.

Alguns dos militares lusitanos deglutiam em pequenos sorvos o Maotai e bebiam com os olhos as moçoilas chinesas, entrapadas numas rígidas fardetas brancas. 

Disse ao general Conceição e Silva:

− Ah, estas mulheres são lindas! Bem vestidinhas, eram uma maravilha!

O general, que não estava interessado em roupas e adereços, respondeu de imediato: 

− Bem vestidinhas?... Bem despidinhas, meu caro amigo!.

(Revisão / fixação de texto, título, parênteses retos, negritos, links: LG)

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quinta-feira, 31 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P27075: Os nossos seres, saberes e lazeres (692): Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu) - Parte XII: Gegen Tala, Mongólia Interior, 11 de maio de 1981





República Popular da China > Gegen Tala, Mongólia Interior > Aldeia de Xilinhot >  11 de maio de 1981 > O autor, à direita,  com uma família mongol

Foto (e legenda): © António Graça de Abreu (2025 ). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Grça & Camaradas da Guiné]


1. Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu, ex-alf mil, CAOP1, Teixeira Pinto / Canchungo, Mansoa e Cufar, junho de 1972/abril de 1974; sinólogo, escritor, poeta, tradutor; tem mais dde 375 referências no blogue;
texto enviado em 26 de julho de 2025, 18:12)


Excertos do meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983 >  
Gegen Tala, Mongólia Interior, 11 de maio de 1981

por António Graça de Abreu

Uma semana viajando. Primeiro num Antonov velhíssimo, pouco maior do que os nossos DC 3 que conheci na Guiné, voando de Pequim para Huhote, a capital da Mongólia interior chinesa. 

Depois, de jipe, mais 250 quilómetros de estrada (?) algum alcatrão e, de seguida, por caminhos de cabras e de camelos, aproveitando-se as pistas dos leitos secos dos rios até estas paragens isoladas de Gegan Tala, a pradaria distante, já muito próxima da fronteira com a república da Mongólia. 

As terras mongóis em estado puro, a aldeia de Xilinhot onde fico,  tem iurtas de verdade e casas de adobe, existem rebanhos, camelos e cavalos, e até um pequeno mas extraordinário -- pelo seus murais e pequenos budas --, templo lamaísta tibetano-mongol. 

Fui almoçar a casa de uma família mongol, só a
filha mais velha falava mandarim e serviu de intérprete.  
Gente perdida, surreal, real, nas estepes dos confins do mundo. Não os vou esquecer imortalizados em fotografia comigo. Reparem no pormenor das galochas do rapazinho, gente pobre de uma enorme dignidade.

Escrevi:

Depois da Grande Muralha e da Manchúria,
eis a Mongólia!
Viajo no início do Verão por estradas de terra
e caminhos agrestes no leito seco de rios,
chego no fim da manhã à aldeia de Xilinhot.
As iurtas brancas
suspensas no castanho e verde do horizonte,
casas dispersas, um templo budista,
a erva ainda molhada pelo orvalho da noite,
o ar leve e fino,
silêncios cinzentos de chumbo,
a terra fresca, a pradaria imensa.

Monto um cavalo de vento
e parto à desfilada,
sem sela,
sem rédeas,
sem destino.

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Nota do editor:

Último poste da série > 26 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27056: Os nossos seres, saberes e lazeres (691): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (214): Casal de S. Bernardo, Alcainça, gratas lembranças do Filipe de Sousa – 1 (Mário Beja Santos)