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domingo, 22 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24780: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXXVII: assalto, da 1ª CCmds Afriicanos, com o cap cav 'cmd' Carlos Matos Gomes como supervisor, ao irã da Caboiana, em outubro de 1972

 

Guiné > s/l > s/d [c. 1973/74] > Da esquerda para a direita, o cap cav 'cmd' Carlos Matos Gomes, e maj inf 'cmd' Raul Folques: o primeiro foi supervisor do BCCmds da Guiné, e o segundo o seu último comandante (entre 28 de julho de 1973 a 30 de abril de 1974). O BCCmds da Guiné integrava, além das 1Ç, 2ª e 3ª CCmds Africanas, a a 35ª CCmds e a 38ª CCmds. Foto dublicada no livro do Amadu Djaló, na pág. 240 (não se indicando a sua origem, presumimos que seja do álbum do Virgínio Briote).
 

1. Continuação da publicação das memórias do Amadu Djaló (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), a partir do manuscrito, digitalizado, do seu livro "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada) (*).

O nosso  camarada e amigo Virgínio Briote, o editor literário ou "copydesk" desta obra,  facultou-nos uma cópia digital. O Amadu Djaló, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem cerca de nove dezenas de referências no nosso blogue.



Capa do livro do Amadu Bailo Djaló,
"Guineense, Comando, Português: I Volume:
Comandos Africanos, 1964 - 1974",
Lisboa, Associação de Comandos,
2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.



O autor, em Bafatá, sua terra natal,
por volta de meados de 1966.
(Foto reproduzida no livro, na pág. 149)

Síntese das partes anteriores:

(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné Conacri, começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii) depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido, por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757;

(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló (Cacine, Catió, 1929 - Tite, 1971)

(ix) depois da formação da companhia (que terminou em meados de 1970), o Amadu Djaló, com 30 anos, integra uma das unidades de elite do CTIG; a 1ª CCmds Africanos, em julho, vai para a região de Gabu, Bajocunda e Pirada, fazendo incursões no Senegal e em setembro anda por Paunca: aqui ouve as previsões agoirentas de um adivinho;

(x) em finais de outubro de 1970, começam os preparativos da invasão anfíbia de Conacri (Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970), na qual ele participaçou, com toda 1ª CCmds, sob o comando do cap graduado comando João Bacar Jaló (pp. 168-183);

(xi) a narrativa é retomada depois do regresso de Conacri, por pouco tempo, a Fá Mandinga, em dezembro de 1970; a companhia é destacada para Cacine [3 pelotões para reforço temporário das guarnições de Gandembel e Guileje, entre dez 1970 e jan 1971]; Amadu Djaló estava de licença de casamento (15 dias), para logo a seguir ser ferido em Jababá Biafada, sector de Tite, em fevereiro de 1971;

(xii) supersticioso, ouve a "profecia" de um velho adivinho que tem "um recado de Deus (...) para dar ao capitão João Bacar Jaló"; este sonha com a sua própria morte, que vai ocorrer no sector de Tite, perto da tabanca de Jufá, em 16 de abril de 1971 (versão contada ao autor pelo soldado 'comando' Abdulai Djaló Cula, texto em itálico no livro, pp.192-195) ,

(xiii) é entretanto transferido para a 2ª CCmds Africanos, agora em formação; 1ª fase de instrução, em Fá Mandinga , sector L1, de 24 de abril a fins de julho de 1971.

(xiv) o final da instrução realizou.se no subsector do Xitole, regulado do Corunal, cim uma incursão ao mítico Galo Corubal.

(xv) com a 2ª CCmds, comandada por Zacarias Saiegh, participa, em outubro e novembro de 1971, participa em duas acções, uma na zona de Bissum Naga e outra na área de Farim;

(xvi) em novembro de 1971, participa na ocupação da península de Gampará (Op  Satélite Dourado, de 11 a 15, e Pérola Amarela, de 24 a 28);

(xvii) 21-24 dezembro de 1971: Op Safira Solitária: "ronco" e "desastre" no coração do Morés, com as 1ª e 2ª CCmds Africanos  (8 morts e 15 feridos graves);

(xviii) Morés, sempre o Morés... 7 de fevereiro de 1972, Op Juventude III;

(xix) o jogo do rato e do gato: de Caboiana a Madina do Boé, por volta de abril de 1972;

(xx)  tem um estranho sonho em Gandembel, onde está emboscado très dias: mais do que um sonho, um pesadelo: é "apanhado por balantas do PAIGC";

(xxi) saída para o subsetor de Mansoa, onde o alf cmd graduado Bubacar Jaló, da 2ª CCmds Africanos, é mortalmente ferido em 16/2/1973 (Op Esmeralda Negra)M

(xxii) assalto ao Irã de Caboiana, com a 1ª CCmds Africanos, e o cap cav 'cmd' Carlos Matos Gomes como supervisor.



Guiné > Região de Cacheu > Carta de Cacheu / São Domingos (1953) > Escala 1/50 mil > Pormenor dos rios Cacheu e seus afluentes: Pequeno de São Domingos (margem norte); Caboi, Caboiana e Churro (margem sul), a montante da vila de Cacheu.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2015).


 Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXXVII:

A 1ª CCmds na mata de Caboiana, em outubro de 1972, com o cap cav 'cmd' Carlos Matos Gomes como supervisor (pp. 239-242)


A nossa 1ª CCmds, comandada pelo tenente Jamanca, recebeu a missão de ir à Caboiana. Havia informações sobre a chegada de mais pessoal do PAIGC, vindo do norte, incluindo cubanos. Acompanhava-nos, como supervisor[1], o capitão Matos Gomes.

Depois de termos passado a noite na mata, saímos cedo do local. Estávamos no fim da colheita de arroz e estávamos a progredir num campo de lavra, cautelosamente, quando subitamente ouvimos duas rajadas curtas, à frente da coluna. O meu grupo fechava a companhia.

Primeiro ficámos amarrados ao chão, depois eu e o meu guarda-costas chegámo-nos à frente, junto do capitão Matos Gomes. Nessa altura, o alferes Sada Candé vinha na nossa direcção, com uma arma na mão e a dizer:
 
− Matei-o! 

− Aonde ?  − perguntei. 

− Debaixo daquela palmeira − respondeu. 

Dirigi-me com todos os cuidados para lá e encontrei um guerrilheiro com a perna partida e os ossos à mostra.

Pouco passava das 15h00 e o Jamanca, depois de falar com o capitão Matos Gomes, pediu a evacuação do ferido do PAIGC.

Quando se estava a fazer a evacuação, caiu uma chuva de morteiros na zona do helicóptero, que atingiu o local onde estávamos e todos os oficiais, menos o capitão Matos Gomes[2] e alguns estilhaços furaram o helicóptero[3]. Ficámos numa situação complicada.

O 1º sargento Braima Baldé, que era o mais antigo, ficou a comandar a companhia. Fizemos novo pedido de evacuação, mas antes de chegarem os helis, a zona de onde estavam a sair as morteiradas foi bombardeada pelos Fiat[4]. 

A evacuação não foi fácil, mas conseguiram levantar rumo a Bissau. Entretanto já era muito tarde para continuarmos a andar, tínhamos perdido muito tempo. O céu estava coberto de nuvens escuras, os relâmpagos e os trovões começaram a surgir, uns atrás dos outros, não estávamos com muita sorte com o tempo, ou então estávamos, nunca se sabe.

A chuva veio de uma vez, caiu toda durante uns minutos, depois parou. Achámos melhor permanecer naquele local da mata[5], até de manhã.

De manhã muito cedo reiniciámos a marcha, com o grupo do Braima à frente, o capitão Matos Gomes[6] no meio e o meu atrás. Caminhámos até às dez horas, mais ou menos, quando vimos um carreiro muito utilizado.

Braima virou à esquerda. Eu estava no grupo da retaguarda e, quando cheguei ao tal carreiro, virei á esquerda também. Tirei a minha carta do bolso, e, sempre a andar, comecei a observar o mapa. Pareceu-me que devíamos ter voltado à direita.

Dirigi-me ao Capitão Matos Gomes.

− Meu capitão, é por aqui?

−  É o Braima que vai à frente! 

Mandou fazer um alto e seguimos os dois ao encontro do Braima.

−É por aqui?  
− perguntou o capitão.

− É por aqui!   
−  espondeu o Braima.

− Não é por aqui, é para o lado contrário 
−  respondi eu.

Ao capitão também lhe parecia que era para a 
direita[7] . Então, voltámos para trás e, a partir deste momento, eu e o capitão passámos para a frente, em direcção ao objectivo.

Progredimos sem qualquer problema, até ouvirmos uns rebentamentos, que nos obrigaram a abrandar a marcha, mas continuámos rumo ao objectivo, a tal mata das cerimónias, o Irã da Caboiana.

Entrámos por um lado e saímos pelo outro. Lá dentro, vimos centenas de garrafas vazias, algumas mesmo muito antigas. Naquele local faziam-se cerimónias, desde muito antes de nós nascermos[8].

A avioneta apareceu e o capitão[9] transmitiu por rádio que a missão estava cumprida e que estávamos dentro do objectivo. Da avioneta pediram para estendermos uma tela para nos localizarem. Então, o coronel Rafael Durão, que era o comandante do CAOP, mandou-nos afastar do local e que procurássemos uma zona para sermos recolhidos. 

Andámos sempre, junto a um rio, que era um afluente da margem esquerda do Cacheu, até que nos afastámos para um local onde fomos recuperados.
____________

Notas do autor ou do editor literário, VB

[1] Nota do editor: as Companhias de Comandos da Guiné tinham um supervisor, um capitão Comando europeu.

[2] Nota do editor: o capitão Matos Gomes, embora atingido na boca, assumiu o comando, dado o facto do tenente Jamanca se encontrar mais incapacitado.

[3] Nota do editor: o helicóptero foi atingido na fuselagem.

[4] Nota do editor: Fiats G.91, que bombardearam e metralharam, muito próximo das forças portuguesas, com grande precisão.

[5] Mata da Cobiana, uma zona húmida entre bolanhas, constituída por palmeiras e árvores de grande porte e tendo por baixo mata densa.

[6] O que restava de um grupo, cerca de 20 homens.

[7] Nós vínhamos a descer a Caboiana, de Norte para Sul., mais ou menos pelo meio. Para a esquerda ficava a bolanha. O Irã da Caboiana, que era o que procurávamos, deveria situar-se no centro, para a direita, era um palpite.

[8] Era o Irã da Caboiana, um dos mais importantes, se não o mais importante da Guiné. Irã é um local onde adoram ídolos, dos que não acreditam em nenhum deus. Eles não adoram Deus, adoram deuses.

[9] Nota do editor: este relato do Amadu Djaló fala da progressão para Sul pelo centro da Caboiana, no primeiro dia. Como ele refere, capturaram um guerrilheiro ferido, e chamaram um heli para o evacuar. E quando estavam a proceder à evacuação, foram atacados violentamente. O  heli foi atingido, os feridos, entre os quais o Jamanca, saltaram para dentro dele, juntamente com a enfermeira paraquedista, mas o aparelho conseguiu levantar, em esforço e às abanadelas, em direcção a Canchungo. Apesar de ferido na boca, sem gravidade, o capitão Matos Gomes assumiu o comando das operações.

[ Seleção / adaptação / revisão / fixação de texto / negritos, para efeitos de publicação deste poste no blogue: L.G.]
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 9 de outubro de  2023 > Guiné 61/74 - P24739: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXXVI: Tocou tambor para Bubacar, em Porto Gole, Op Esmeralda Negra, 13-16 fev 1973

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22726: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte VIII: A lenda da canoa papel (...ou a maldição da pátria de Cabral)




A lenda da canoa papel: 
 ilustrações do   pintor guineense Lemos Djata (pp. 55 e 57): Lemos Mamadjã Hipólito Djatá, de seu nome completo,  conquistou a Medalha de Ouro para a Guiné-Bissau em Paris, França, numa exposição coletiva organizada pela “Associação da Amizade e das Artes Galego Portuguesa”, que decorreu na capital francesa entre os dias 5, 6 e 7 de Outubro 2018, na sala de exposições do "Carrousel du Louvre". 

Nascido em Bafatá, em 1981, filho de Hipólito Djata e de Mariama Foli Baldé. é licenciado em Línguas Estrangeiras Aplicadas, pela  Universidade de Évora. Só em 2000 é que descobre o seu talento artístico. É pintor e escultor.


1. Transcrição das págs. 55-57 do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau", com a devida autorização do autor (*)


J. Carlos M. Fortunato >
Lendas e contos da Guiné-Bissau



O autor, Carlos Fortunato, ex-fur mil arm pes inf, MA,
CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71, é o presidente da direcção da ONGD Ajuda Amiga



Capa do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017. - 102 p. : il. ; 24 cm. - ISBN 978-989-8661-68-5


A lenda da canoa papel  
(pp. 55/57)


Segundo reza a lenda transmitida oralmente pelos papéis, quando os portugueses chegaram à Guiné, os contactos que estabeleceram com os papéis da ilha de Bissau foram amigáveis e estes até lhes cederam um terreno para se poderem instalar e negociar. 
Podem ficar com este terreno  disse o Rei Insinhate (31). 

Nesse terreno está hoje o Forte da Amura, mas naquele tempo era um antigo curral, o que serviu para os papéis se divertirem, fazendo troça dos novos moradores. 

Com o tempo, o poder dos portugueses foi crescendo, e começaram a exercer o seu domínio sobre todas as terras circundantes (32). Os papéis ficaram revoltados, porque os estrangeiros diziam que agora era tudo deles, e decidiram partir para a guerra. 
– Os estrangeiros querem roubar o nosso chão, querem cobrar impostos, temos que os expulsar! – diziam os papéis. 

Travaram-se muitas batalhas, mas nelas os papéis perceberam que nunca conseguiriam vencer pelas armas o inimigo. Então os papéis recorreram aos espíritos para os expulsarem, e dirigiram-se aos baloberos (33),  pedindo auxílio. 

Os baloberos responderam: 
–Podemos lançar uma maldição, que irá lançar a infelicidade nas terras da Guiné, e os estrangeiros ir-se-ão embora. 

Mas acrescentaram: 
– Cuidado, porque não haverá mais paz nem prosperidade na Guiné, enquanto os estrangeiros não se forem embora e não for feita uma cerimónia para acabar com esta maldição. Será tanta a desgraça, que ninguém aqui quererá viver, mas vocês têm que aguentar o sacrifício, se querem a vossa terra de volta.
– Nós aguentamos, façam a cerimónia para expulsar os estrangeiros  responderam os papéis. 

Foi feita uma canoa em madeira, e os baloberos, reunidos em cerimónia, invocaram todos os espíritos malignos, fazendo-os entrar na canoa. A seguir enterraram a mesma. Na altura a canoa foi enterrada no mato, mas nesse mesmo local foi mais tarde construído o palácio do Governador, sendo presentemente o palácio da Presidência da República. O local preciso onde a canoa foi enterrada, foi mesmo em frente do Palácio, no local onde está o monumento aos heróis. 

Depois da cerimónia do enterro da canoa, os baloberos lembraram mais uma vez: 
– Quando os estrangeiros se forem embora, esta canoa tem que ser desenterrada, e feita uma cerimónia para acabar com esta maldição, senão nunca mais haverá paz e felicidade na Guiné, por isso os pais têm que passar estas palavras para os seus filhos. Não se podem esquecer de fazer a cerimónia! 

Os baloberos ainda acrescentaram: 
– Esta canoa anda debaixo de terra. O poder dos espíritos é muito forte, ele faz a canoa mover-se debaixo da terra espalhando o mal por todo o lado. Só nós conseguiremos saber onde ela está. 

Quando Portugal reconheceu a independência da Guiné-Bissau, e retirou as suas tropas, os papéis correram a chamar os baloberos, pois chegara a hora de desenterrar a canoa, mas os baloberos disseram: 
- Os estrangeiros ainda não foram todos embora, o Presidente da Guiné-Bissau é Luís Cabral, um estrangeiro, um cabo-verdiano. 

A 14 de Novembro de 1980, o Presidente Luís Cabral é derrubado por um golpe de Estado encabeçado, pelo mítico comandante militar do PAIGC, o papel João Bernardo Vieira, mais conhecido pelo seu nome de guerra 'Nino' Vieira.

 'Nino' Vieira suspende a Constituição e fica a liderar o país à frente do Conselho Militar da Revolução, com nove membros. Os papéis rejubilaram, a canoa tinha expulsado os portugueses dando-lhes a independência, e agora expulsava os cabo-verdianos; todos os estrangeiros tinham sido afastados, e agora era um papel que detinha o poder. 

Tinha chegado a hora de desenterrar a canoa e anular a maldição, e os papéis correram novamente pedindo a intervenção dos baloberos. Poucos dias depois os papéis reuniram-se no centro de Bissau, na Praça A Lenda a Canoa Papel /  'Che' Guevara, pois era ali que os baloberos diziam que estava a mítica canoa. 

Juntou-se uma multidão à volta da praça, e asfalto, cimento, tudo foi arrancado, sendo aberto um buraco enorme em forma de canoa, mas para desespero dos papéis nenhuma canoa apareceu. 

Os papéis, desiludidos com os baloberos, esqueceram a canoa e deixaram de contar esta história aos seus filhos. O Presidente 'Nino' Vieira seria assassinado a 2 de Março de 2009. Perdida e esquecida, será que a canoa papel continua a navegar debaixo do chão, espalhando a sua maldição? 

Esta é lenda da canoa papel.
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Notas de Carlos Fortunato:

(31) Insinhate – O rei Insinhate deu autorização para construção de uma fortaleza e vendeu o chão para a sua construção, conforme documento celebrado a 2 de Janeiro de 1697, do livro “A Guiné do século XVII ao século XIX”, pag.76.

(32) Ocupação da Guiné  Portugal, à semelhança das restantes potências europeias, decide impor a sua soberania às suas possessões, pois sem uma ocupação real corre o risco de perder os seus territórios em África, é uma intervenção de difícil realização para Portugal face aos
poucos recursos de que dispõe, e que exige alianças locais, capacidade de comando e muita coragem.

A divisão da África pelas diferentes potências tem o seu ponto alto na Conferência de Berlim (1884-1885), e leva a uma maior intervenção das potências europeias nas suas colónias. Os papéis nunca aceitarão o domínio estrangeiro, e os seus ataques serão frequentes, infringindo várias derrotas ao exército colonial. Apenas com a derrota imposta a 20 de Julho de 1915 por Teixeira Pinto, Portugal consegue o domínio total sobre a ilha de Bissau (História
da Guiné II - René Pélissier, pag. 176).

(33) Baloberos é a designação dada em crioulo aos sacerdotes animistas que realizam cerimónias nos locais sagrados, as balobas. Cada balobero  coloca o seu pote com água na baloba, junto ao poilão sagrado, para receber os poderes do mesmo e a poder usar nas cerimónias que realiza. (**)

2. Como ajudar a "Ajuda Amiga" ?

Caro/a leitor/a, podes ajudar a "Ajuda Amiga" (e mais concretamente o Projecto da Escola de Nhenque, que já foi inaugurada dia 8 deste mês, com pompa e circunstância), fazendo uma transferência, em dinheiro, para a Conta da Ajuda Amiga:

NIB 0036 0133 99100025138 26

IBAN PT50 0036 0133 99100025138 26

BIC MPIOPTP


Para saber mais, vê aqui o sítio da ONGD Ajuda Amiga:

http://www.ajudaamiga.com
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quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15556: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (50): Na minha língua materna, o fula, não existe a expressão "Feliz Natal"... Mas felizmente que a Guiné-Bissau é um país de tolerância religiosa, em que as duas religiões monoteístas, Islamismo e Cristianismo, coexistem bem com o animismo


Guiné-Bissau > Bissau >  2004 > Festa do Tabaski (ou do carneiro) (em árabe, Aïd el- Kebir ou Aïd el-Adha) > O nosso grã-tabanqueiro Cherno Baldé com os seus 4 filhos...  A festa do Tabaski (designação corrente nos países de forte tradição muçulmana da África ocidental)  é, a seguir à festa do fim do Ramadão, a mais importante do Islamismo, equivalente ao Natal cristão. A data é variável, em 2015, foi a 24 de setembro.

"Segundo o Islamismo, o filho herdeiro de Abraão foi Ismael e não Isaac. Esta festa é a comemoração do Livramento, do filho de Abraão que foi substituído por um cordeiro no momento exato em que seu pai iria sacrificá-lo, em obediência ao Senhor. Esta providência divina livrando (segundo o Islão) a Ismael, pai da nação árabe e antepassado do profeta, é lembrada anualmente por todo o povo muçulmano, como a Festa do Sacrifício ou a Festa do Cordeiro." (Fonte: Ordidja)

Foto: © Cherno Baldé (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legenda: LG]



Guiné-Bissau > Região de Bissau > Tabatô > 28 de Novembro de 2009 > A cerimónia do Tabaski... em que pela primeira vez participaram três europeus, não-muçulmanos, duas portuguesas e um espanhol... Uma das portuguesas foi a Catarina Meireles, médica, antiga aluna do nosso editor Luís Graça e amiga do nosso grã-tabanqueiro João Graça... Nesta foto temos uma vista geral da assembleia, durante a cerimónia do Tabaski, na aldeia mandinga de Tabatô, a escassos 10 km de Bafatá, na estrada Bafatá-Gabu. É a terra do nosso grã-tabanqueiro Mamadu Baio, ator e músico. (*)

Foto: © Catarina Meireles (2010). Todos os direitos reservados[Edição e legenda: LG]


1. Mensagem, de 29 do corrente, do nosso amigo  Cherno Baldé em resposta a um pedido do nosso editor ("Eh!, Cherno Baldé, aí em Bissau, bom dia!... Como se diz 'Feliz Natal'  na tua língua, em fula ?") (**)

Bom dia, amigo Luis! Que a paz esteja contigo e que tenhas um feliz Natal junto a familia.

Na minha lingua materna (Pullar), não existe a expressão "feliz Natal" porque o Natal é uma invenção recente, histórica e religiosamente falando, pois fosse mais antigo seria aceite e incorporado nas festividades religiosas muçulmanas porque o Profeta Mohamed sempre se via como o Profeta da continuidade das duas grandes religiões monoteistas anteriores e não enveredou pela ruptura, mesmo se os 'Surats' chamados de Medina são muito críticos em relação aos Cristãos e sobretudo aos Judeus que a habitavam e que estavam relutantes em o reconhecer como verdadeiro profeta e acima de tudo unificador.

Mas, ser Guineense significa, de uma certa forma, situar-se um pouco no meio das duas religiões e sobretudo solidarizar-se com os irmãos das outras confissões o que, penso eu,  representa uma particularidade específica da Guiné-Bissau, país onde a maioria muçulmana nunca esteve em confronto com a minoria cristã e onde os adeptos das religioes monoteístas nunca estiveram muito afastados das práticas e cultos animistas.

Esta convivência pacífica, em parte, é uma herançaa e resultou da prática colonial que ao mesmo tempo que promovia a religião cristã no seio dos povos do litoral animista e anti-colonial, era obrigada a colaborar com os muçulmanos por força da sua moderação e aliança no seio do "pacto colonial".

Já deixei os meus contactos para um possível encontro com o João Martel e a Ana Maria Gala [, voluntários na Missão da Cumura].

Para si e a todos os editores, assim como todos os restantes Régulos, Almamis, Conselheiros e Djargas da Tabanca Grande os meus votos de um bom e excelente novo ano, cheio de prosperidade, saúde e longa vida.

Um abraço amigo de muita saudade desde Bissau (Guiné-Bissau).
Cherno A. Baldé, Chico de Fajonquito

PS - Sobre o que disse antes, queria acrescentar o facto amplamente conhecido de que o venerando Cherno Rachid de Quebo (Aldeia Formosa) era um dos mais bem escutados Conselheiros do gen Spínola durante todo o período que esteve na Guiné como Governador e Com-Chefe da Provincia e, certamente os dois se terão influenciado mutuamente, facto que vem reforcar a tese da convivência pacífica.
_____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 8 de julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6695: Memória dos lugares (89): Bafatá, Tabatô, Tabaski 2009: Não há preto nem branco, somos todos irmãos, disse a Fátima de Portugal numa cadeia de união... (Catarina Meireles)

 (**) Último poste da série > 1 de agosto de 2015 >  Guiné 63/74 - P14956: Relativamente ao desaparecimento do Alferes Leite, trata-se de um caso do qual ouvi falar desde a minha infância (Cherno Baldé)

sábado, 9 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11222: Álbum fotográfico do Jorge Canhão (ex-fur mil inf, 3ª CCAÇ / BCAÇ 4612/72, Mansoa e Gadamael, 1972/74) (5): Balantas, mandingas e mansoancas


Foto s/nº - "A morte da árvore"... [Parece ser um poilão sagrado, centenário...]


Foto s/ nº - "Bajudas"... [transportando lenha à cabeça]


Foto s/ nº - "Depois da pesca"... [Mukheres, balantas, que regressam do Rio Mansoa]


Foto s/ nº - "Tabanca 2"


Foto s/ nº - "O pilão"


Foto s/ nº - "Alimentar o almoço" ... [Neste caso, os bacorinhos]



Foto s/ nº - "Transporte do rancho"... [Que ternura de foto!]


Guiné > Região do Oio > Mansoa > 1972/1974 > BCAÇ 4612 (1972/74) >  Legenda do Jorge Canhão:


1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do nosso amigo e camarada Jorge Canhão, que vive em Oeiras (ex-Fur Mil At Inf da 3ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72, Mansoa e Gadamael, 1972/74).

Estas fotos, relativas a Mansoa,  chegaram-nos às mãos através de outro grã-tabanqueiro, o Agostinho Gaspar, ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas, 3.ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72, Mansoa, 1972/74), residente em Leiria. Os nossos especiais agradecimentos aos dois, e muito em especial ao nosso camarada Jorge Canhão, a quem desejamos boa continuação da sua recuperação de um recente problema de saúde.

Não sabemos quem é o autor (ou quem são aos autores) das fotos,,,  Estas fotos constam de um CD, do Agostinho Gaspar, estão sob um ficheiro com a seguinte designação: Jorge Canhão > Vários Batalhão.

Principais grupos humanos do setor (excertos da Históira do BCAÇ 4162, Mansoa, 1972/74, Cap II, pp. 8-11



quarta-feira, 11 de abril de 2012

Guiné 63/74 - P9732: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (35): O Irã animista e o Djinné muçulmano

1. Mensagem do nosso amigo tertuliano Cherno Baldé, com data de 5 de Abril de 2012:

Caro Luis e Carlos Vinhal,
Num comentário ao mais recente Post da minha série de memórias de infancia, o Luis Graça, com a perspicácia que lhe é caracteristico, perguntou-me se, por acaso, havia alguma relação entre o velho Irã dos Poilões sagrados e o Djinné dos muçulmanos.
Nunca tinha pensado no assunto e na tentativa de refletir e encontrar as (des)semelhanças acabei compilando o texto que agora vos envio para vossa apreciação. É um texto de pura curiosidade e criatividade pessoal sem qualquer pretensão de carter sociológico ou etnológico.

Um abraço amigo aos dois e cumprimentos aos demais editores e colaboradores da TG.
Cherno Baldé


Viagem pelas maravilhas da minha terra

O Irã animista e o Djinné muçulmano

Entre o temível e poderoso Irã dos povos animistas das florestas do sul e o Djinné, vizinho ciumento, atrevido e folgazão dos muçulmanos da região Sahelo-Sahariana, coexistem algumas similitudes da mesma forma que se podem observar grandes diferenças, dependendo do ponto de vista de quem observa de fora.


O Irã - onde vive e como se manifesta?

Entre os chamados animistas, o Irã desempenha, por meio de cerimónias, rituais próprios e canais de comunicação específicos, uma importante função reguladora da vida social, económica e politica das comunidades que animam a sua existência, formando um tronco comum cuja base se assenta no culto dos mortos e se reproduz através de mitos fundadores, à volta dos quais se constroem os pilares (a cosmogonia) das sociedades tribais e se processa a ligação essencial entre o mundo visível (dos vivos) e o mundo invisível, ou seja, dos que tendo partido para o além, ainda continuam a influenciar a vida quotidiana dos vivos por meio de sinais e de linguagens que apenas os iniciados, pessoas consagradas, os Djambakôs, podem entender e decifrar.

Falar do Irã é falar da vida que, por sua vez, nos faz retornar a terra, a mãe que gera a vida e que é, ao mesmo tempo, o centro, o umbigo do mundo onde convivem e interagem dois mundos que se afrontam e se completam. A trinómica ligação entre as dimensões: Irã-vida-terra, é tão importante para o funcionamento do culto tradicional como é essencial a manutenção da eterna e fundamental ligação entre o mundo dos vivos e o dos mortos, entre as ideias, a magia e a religião dos homens.

Os Djambakôs, sacerdotes por excelência e intermediários da comunicação entre dois mundos, não usam artefactos alógenos. Os seus pés nus devem estar em contato com a terra, devem ser puros na sua conduta moral e espiritual e fazer uso de uma linguagem simples e genuína.

O Irã pode viver em qualquer sítio porque dotado de poderes e invisível ao olho humano, mas o seu habitat privilegiado são os poilões gigantes de base piramidal e altura imponente das florestas tropicais. Quanto a questão sobre como se desloca e de que se alimenta, os povos animistas, envoltos ainda num espesso nevoeiro de tabus, medos e secretismos não fornecem muitos detalhes a esse respeito, no entanto, sabe-se que a sua característica principal continua a ser o manto sagrado (manifestação do sagrado). O Irã, a imagem e semelhança dos seus seguidores é, acima de tudo, comedido e discreto, sendo também, por acréscimo, nacionalista acérrimo e incansável defensor dos usos e costumes tradicionais.

Local de culto animista

Quanto as cores que usa, no seu dia-a-dia, o Irã tem uma certa preferência pelas cores garridas, em especial a cor vermelha e a rosa, símbolos da vida, da fertilidade e da regeneração natural.

O Irã possui um carácter forte e afoito, tal qual o grau de álcool da sua bebida de eleição, a aguardente. Todavia, não é contra as bebidas mais finas, pois adora o vinho do Porto e não desdenha o uísque ou o conhaque Escocês. Não dispensa, ainda, a água simples e pura, bebedouro das almas penadas. O Irã é, também, um ser profundamente social, com famílias grandes e ruidosas sendo muito exigente quando se trata de zelar pela segurança dos seus bens e a integridade dos membros da sua família, em especial dos filhos.

Divertido, às vezes, sem nunca sair do sério, o Irã é justo nas sentenças que aplica e implacável nas suas represálias. Não esquece uma promessa dada, que pode passar dos avós aos seus bisnetos, de geração em geração, sem mudar a sua essência. As regras que impõe são para cumprir a risca (...)


Djinnégi – vizinhos, admirados e odiados

Quanto ao Djinné dos muçulmanos, qual um rei (Irã) destronado do seu trono de culto, trata-se de um ser ambivalente, dessacralizado, com características que variam entre o ser humano e o ser diabólico, mas sobretudo ele é um ser extraordinário que em certas ocasiões é dotado de super-poderes e noutras não passa de um ser velhaco e oportunista que não hesita em trocar suas pernas tortas e moles com as de uma pobre criança desprotegida.

O Djinné, vizinho admirado e odiado ao mesmo tempo, serve de bode expiatório para justificar as fraquezas do muçulmano assim como todas as frustrações da vida no mundo estreito, obscuro e adverso em que se tenta impor, malgrado a sua crença num Deus Único e Omnisciente. Não estando autorizado a tirar a vida dos homens, uma dádiva de criação divina, ele é, frequentemente, culpado de estar na origem da paralisia infantil e da doença dos pés moles, dos maus-olhados e dos ventos quentes, maléficos das regiões tropicais.

Por vezes tido como profundamente religioso e praticante assíduo, cuja devoção não é valorizada por Deus, Senhor da terra e dos céus, na justa medida da sua dedicação, outras vezes é tido como um alcoólatra incorrigível que estimula a desordem e o caos e atormenta os espíritos mais fracos.

O Djinné, também, habita na natureza, com morada nas grandes árvores, em particular nas mais frondosas e saborosas, a Tabay e a Tambarina. Como as pessoas, em relação aos quais sente inveja e tem ciúmes devidos a benevolência que Deus lhes concedeu em seu detrimento, há Djinnés de todos os tipos e para todos os gostos: homens e mulheres, velhos e jovens, bons e maus. O seu meio de locomoção preferido são os nossos vulgares remoinhos de vento que acompanham o período quente da quaresma tropical.

Regeneração natural > Flor e fruto da bananeira

Assim, os remoinhos concentrados e longilíneos que circundam a aldeia dirigindo-se, calmamente, as bolanhas, junto as nascentes de água, são os mais velhos que vão matar a sede. Os mais novos, quando se deslocam não resistem a tentação de entrar nas aldeias, devastando casas e campos de lavoura, pondo em prática, pelo seu comportamento odioso, as ideias conspiratórias tecidas pelos mais velhos nas conversas de bentém, a sombra das árvores tambarinas e tabay.

Para seu azar, não tem seguidores nem servidores e os seus detratores são numerosos. Às vezes, pondo de parte o terrível ódio da vizinhança, beneficia um ou outro humano, mais perseverante, com a sorte de uma resplandecente e rápida riqueza, mas apesar disso, é ele que carrega a totalidade do fardo da responsabilidade sobre os malefícios humanos na terra.

O Djinné, estando intimamente associado a revelação de fenómenos raros e não controlados pelos humanos, como a riqueza ou o azar que nos invadem sem bater a porta, ele também é considerado um artista e músico de dotes excepcionais. Isto é tão certo que a música que o homem consegue (re)criar para alegrar a sua alma, leviana por natureza, não passa de uma péssima réplica da original e coreográfica Djinnegi ópera.

Mulheres grandes regressando a casa depois do dever cumprido

Por favor Senhor... atende que é uma urgência

Ter a sorte e o dom de assistir à cena de uma concentração desses seres em festa de consagração é o maior espetáculo a que um humano pode ter na sua curta e miserável vida. Mas, como sempre acontece, esta possibilidade, sendo muitíssimo rara, não está isenta de perigos. No mundo fantástico dos Djinnés o riso é um atributo completamente desconhecido e a melodia excepcional saída dos seus instrumentos musicais únicos é acompanhada de uma grotesca e hilariante dança de pés coxos. Assim, aos humanos que foi dado assistir e que não conseguem resistir a tentação do riso são sancionados com a perda imediata das suas pernas a favor daqueles demónios, passando a ornamentar o corpo disforme de um Djinné afortunado, que se vê assim liberto da sua maldita condição, imposta dos Céus, a sua vil, diabólica e Djinnégi raça:

Ao infeliz humano que assim se vê privado dos privilegiados meios de locomoção que Deus, por amor e a sua imagem lhe concedeu, no princípio dos tempos, restará olhar para o céu coberto de nuvens sombrias e marcadas pela fugaz passagem da chuva que demorou a chegar e entoar a cantilena da sua triste sorte nascida no rápido deslize de um (sor)riso humano:

- Nâgghel Nâgghel fêthtu-ferééé!... Ndúunda wyôô kanh-wawymma!!! (1)

É esta a melodia que sai das flautas nómadas dos pastores fulanis e se espalha infinitamente longe no deserto, levada pelo vento e pela brisa quente do Sahara. Cantilena de esperança num mundo em rápida transformação, caminhando firme nos trilhos secos das suas manadas de bovinos, rumo ao sol nascente.

Se é verdadeiro ou falso, desconheço. É esta a mensagem e o ensinamento que nos transmitiram em prolongadas noites de luar africano. A palavra ao seu dono. Quem falou já não está aqui. Enquanto uns vão outros regressam. O fio da vida se tem princípio não tem fim. Tenham boa noite e bons sonhos.

Bissau, Abril de 2012.
Cherno Abdulai Baldé

Notas de Cherno Baldé:
- Djinné - Singular
- Djinnégi - Plural

(1) - “Sol, oh sol amigo, mande a tua luz, intensa, pois as trevas dizem que são mais fortes que tu!!!
Canção de crianças pastores após a passagem das chuvas. Apelo as forças da natureza.

Consulta bibliográfica:
1. Tratado da história das religiões, Edições ASA. 1992 e 1994 de Mircea Eliade.
2. Antropologia: Ciência das sociedades primitivas? De J. Copans, S. Tornay, M. Godelier e C. Backes-Clément. Perspectivas do homem, Edições 70, 1988.

Fotos: © Cherno Baldé (2010). Todos os direitos reservados.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 27 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9671: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (34): Cherno Fanca, aliás Cherno Comando, aliás Cherno Amadu...As peripécias de um jovem fula nos labirintos da guerra colonial

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Guiné 63/74 - P2846: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral (29/2 a 7/3/2008) (Luís Graça) (16): Salvemos o Cantanhez (II)


Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Rio Cacine > Cananima > 2 de Março de 2008 > Concentração dos participantes do Simpósio Internacional de Guileje na praia e porto fluvial de Cananima, frente a Cacine, na margem direita do Rio Cacine (1).

O Cantanhez é delimitado pelos dois rios principais, o Cumbijã e o Cacine. As margens destes rios são constituídas por uma vasto e rico mangal. A bacia do Cumbijã é conhecida por ser (ainda) um dos celeiros de arroz do país (cerca de 13 mil hectares de bolanhas cultivadas em finais da décad de 1990). A actual crise alimentar no mundo está também a afectar a Guiné-Bissau, cujos dirigentes políticos e agentes económicos têm apostado na monocultura do caju, para exportação (seguindo, desgraçadamente, o mau exemplo colonial, da o da monocultura do amendoím), e na importação de arroz estrangeiro que, devido aos preços mais baixos particados pelos grandes produtores mundiais, acaba por ter uma vantagem decisiva em relação ao arroz nacional. É preciso que os guineenses aprendam as sábias lições do Cantanhez. Hoje, mais do que nunca... É preciso salvar as bolanhas. É preciso lutar contra a erosão e a salinização das melhores terras de cultura do arroz... É preciso evitar a sangria dos jovens, atraídos pela miragem da grande cidade... É preciso dar sentido ao futuro, é perciso dar esperança aos guineenses...

O Rio Cacine, por sua vez, é rico em peixe e moluscos. É muito procurado por pescadores da vizinha Guiné-Conacri, concentrados sobretudo na Ilha de Melo, na foz do Rio Cumbijã. As espécies piscícolas mais procuradas são o Djafal, o Bagre e o Tubarão (este apanhado sobretudo como juvenil, o que vem compromter o equilíbrio da fauna marinha, já que é uma espécie que está no topo da cadeia alimentar). Há uma crescente consciente ecológica entre as gentes do Cantanhez, que representa, pela sua biodiversidade, um património riquíssimo que é preciso preservar, proteger e utilizar, numa óptica de custo-benefício, de maneira a tirar partido de todas as suas potencialidades, hoje e sobretudo amanhã.

Segundo a ONG Tiniguena - Esta Terra É Nossa que lançou um belíssimo calendário para 2008 - Matas de Cantanhez: Biodiversidade ao serviço da soberania, com magníficas fotos de Augusta Henriques (sua secretária-geral), Emanuel Ramos, Pierre Campedron, André Barata e Cristina Silva - , um estudo feito junto dos Nalus mostrou que mais de 200 espécies vegetais selvagens são utilizadas regularmente pelas famílias, mais de metade das quais na farmacopeia (produtos medicinais tradicionais) e cerca de 20% na alimentação. "Estes recursos e saberes da biodiversaidade são um valioso património a proteger contra a biopirataria e a preservar para o futuro", diz a Tiniguena.

A floresta também satisfaz a quase totalidade das necessidades da população local, em matéria de energia. A recolha de lenha não é vista como um perigo. Duas das ameaças que pairam sobre o Cantanhez, levando à degradação das suas florestas (que os Nalus consideram sagradas), são a produção de carvão com fins comerciais e as queimadas para fins agrícolas. Por razões históricas e culturais, mas também económicas e sociais, logo, de sobrevivência das gerações futuras, é fundamental salvar o Cantanhez, verdadeiro ex-libris da Guiné-Bissau.


Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > A simpatiquíssima Cadidjatu Candé, da comissão organizadora do Simpósio Internacional de Guileje e colaborada da ONG AD - Acção para o Desenvolvimento, servindo um fabuloso arroz com filetes de peixe do Cacine e óleo de palma local, que tem fama de ser o mais saboroso do país, devido à qualidade da matéria-prima e às técnicas e condições de produção (artesanal). Na imagem, um diplomata português, o nº 2 da Embaixada Portuguesa, que integrou a nossa caravana (e cujo nome, por lapso, não registei, lapso de que peço desculpa).



Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > Um dos pratos que foi servido no almoço de domingo, aos participantes do Simpósio Internacional de Guileje, foi peixe de chabéu, do Rio Cacine, do melhor que comi em África... Durante a guerra colonial, na zona leste, em Bambadinca, só conheci conhecíamos o desgraçado peixe da bolanha....


Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > O nosso camarada Cor Art Nuno Rubim passando revista à logística do Comes & Bebes, da comissão organizadora do Simpósio, e que nos acompanhou desde Iemberém... É obra, isso dar de comer e beber a tanta gente, esfomeada e sedenta...

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > Um outro aspecto da improvisada cozinha que foi montada em Canamima, logo de manhã, e onde se fez o almoço (um prato de carne e outro de peixe) para as dezenas de participantes do Simpósio.



Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > A Francisca Quessangue, uma das mulheres que fez a guerrilha e esteve no ataque a Guileje, como enfermeira.

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > O Luís Graça entre a Francisca , enfermeira, e a senhora Ministra dos Antigos Combatentes da Liberdade da Pátria, Isabel Buscardini.

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > A Catarina Silva, filha do Pepito e da Isabel, que é portuguesa. É formada em psicologia social, pelo ISCTE - Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa. Integrou a nossa caravana e foi sempre uma simpatiquíssima companhia durante este fabuloso fim-de-semana. É também, como o pai e a mãe, uma entusiástica defensora do Cantanhez, da sua fauna, da sua flora, das suas gentes.

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > A Catarina Santos que, juntamente com o Vitor Ramos e o Alfredo Caldeira, representaram (e muito bem!) a Fundação Mário Soares no Simpósio Internacional de Guileje.

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > O famoso óleo de palma do Cantanhez. A sua cor vermelha intensa deve-se às características da variedade do chabéu (termo científico, Elaeis guineenses), que é rico em caroteno.

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > Um médico cubano, ortopedista, cooperante em Bissau, o Dr. Mário. Pelo pouco que conversei com ele, soube que trabalha no Hospital Nacional Simão Mendes é também professor da Faculdade de Medicina de Bissau, criada em 1977 e desactivada no início dos anos 90, tendo o projecto sido relançado mais recentemente com o apoio da cooperação cubana. Cuba é dos países mais activos na cooperação com da Guiné-Bissau, no campo da saúde e da educação.


Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > Em primeiro plano, da direita para a esquerda, a Isabel, a Alice e o Álvaro. De perfil o Pepito, em segundo plano, mais o Sérgio Sousa, um Gringo de Guileje.

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > A Diana Andringa, que registou em vídeo todas ou quase todas as actividdades destes oito dias, com destaque para as comnunicações ao Simpósio. Em segundo plano, a Júlia.

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > A Diana Andringa e o marido, Alfredo Caldeira; em segundo plano, a Júlia e o marido, Nuno Rubim.

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > O Dr. Alfredo Caldeira, chefe da delegação da Fundação Mário Soares...

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > O nosso amigo catalão, Josep Sánchez Cervelló, professor universitário em Tarragona, especialista em história sobre o 25 de Abril e a descolonização portuguesa... Esteve encantado estes dias todos com os tugas...
Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > Uma jovem, da região, que estava grávida, e que tinha o marido em Bissau (se não me engano). Caíu nas boas graças das nossas senhoras, sempre muito maternais: a Júlia, a Alice, a Isabel... Seu nome: Cadi, filha de um antigo guerrilheiro, nalu, da região...

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > Um amostra de conchas do Rio Cacine, reveladoras da riqueza, em moluscos, marisco peixe, deste belíssimo rio do sul da Guiné...

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados.



II. O Turismo na região de Tombali (2) (Continuação)
por Brígida Rocha Brito


(...) 1.2. Os elementos culturais

A população residente na região de Tombali estava estimada em 91.930 habitantes, por referência a 2004 (…), representando 7,1% do total. Do ponto de vista étnico, os grupos principais são Nalu, Fula, Balanta, Tanda e Sosso, encontrando-se grupos secundários como Manjaco, Djakanka, Papel, Bijagó e Mandinga.

Tradicionalmente esta era uma área identificada com os Nalu, etnia caracteristicamente animista, com hábitos enraizados, desenvolvendo práticas culturais ancestrais perpetuadas ao longo do tempo através do costume e da tradição oral, entre as quais os ritos de iniciação e de passagem. Uma parte do território, identificada como as Florestas de Cantanhez, é tradicionalmente conhecida como o Tchon di Nalu (…) ou Terra dos Nalu, apesar de actualmente, e depois de se terem efectuado deslocações internas, se encontrar uma multiplicidade de comunidades com origens étnicas diversas.

Cada grupo étnico apresenta particularidades próprias no que respeita à forma e ao tipo de produção principal, à organização do espaço e materiais utilizados na construção, às práticas rituais e às formas de culto. Apesar da paisagem florestal ser dominante, a influência da diversidade étnica na forma de produzir a terra e de relacionamento com o meio confere à região uma imagem de mosaico marcado pela heterogeneidade.

Dadas as características de toda a zona costeira e fluvial, e tendo presente a importância e a dimensão dos rios e cursos de água, as áreas de mangrove, mangal ou tarrafes, adquirem grande importância, principalmente para os Balanta que aproveitam o solo salinizado para a produção de arroz M'pampam.

A fertilidade do solo, natural ou provocada através da prática de queimadas, tem permitido incrementar a produção frutícola, com destaque para os citrinos e o caju, que tem vindo a ser fortemente explorado pelas potencialidades (*) que o caracterizam. Este tipo de produção, conseguido a partir da desflorestação e das queimadas, é fortemente desenvolvido pelas comunidades de origem Fula, que eram tradicionalmente pastores.

Em maioria, os Nalu são pescadores, agrupando-se muitas vezes em acampamentos temporários e itinerantes, e dedicando-se também à extracção de óleo e vinho de palma ou à produção de culturas agrícolas para consumo directo.

Além da produção para subsistência, as comunidades locais produzem peças de artesanato e utensílios vários, que utilizam no dia-a-dia ou que vendem em mercados locais e lumus (**) . São objectos típicos e fáceis de encontrar para observação aquando das visitas às tabancas, se bem que ainda não se verifique a disponibilidade para aquisição: esculturas e máscaras de madeira produzidas pelos homens Nalu; esteiras e cestos trabalhados pelas mulheres Nalu; potes e recipientes de barro produzidos pelas mulheres Balanta; panos confeccionados pelos homens Manjaco.

Uma grande parte do artesanato produzido, nomeadamente pelos animistas Nalu, tem significado simbólico representando as forças sobrenaturais, havendo a crença de que conferem poderes a quem os usa ou detém. Estes são os caso do Banda, uma máscara que reproduz uma imagem de associação entre o Homem e os animais, como a ave, a cobra, o peixe e o crocodilo, utilizada em momentos festivos; ou do Ninte-Kamatchol [ou Nhinte-Camatchol] (3), uma cabeça de ave com rosto humano, utilizada em ritos de iniciação.

Todas as peças artesanais são susceptíveis de adquirirem interesse turístico, sendo necessária a disponibilização de originais para mostra, exposição e comercialização.

No que respeita às comunidades animistas, é possível encontrar junto de áreas residenciais elementos e locais de culto, nomeadamente pequenos recipientes contendo água para o irã, onde são realizadas práticas de veneração. Além da importância das crenças animistas, na região sul da Guiné-Bissau, o islamismo tem adquirido importância sendo hoje predominante, de tal forma que existem escolas islâmicas com professor próprio, organização e funcionamento autónomo do ensino formal.

A religião e as crenças influenciam ainda os modos de vida das comunidades, no que respeita por exemplo a horários, gastronomia e vestuário: nas tabancas muçulmanas, é habitual o dia iniciar com as orações cantadas pelos homens, que se levantam de madrugada, sendo cuscus marroquino a primeira refeição.

Qualquer uma das práticas exemplificadas reveste interesse turístico no sentido da divulgação e do aprofundamento dos conhecimentos sobre os modos de vida e de organização social das populações autóctones, por serem elementos diferenciadores e conotados com exotismo.


1.3. Os Factores Históricos e Nacionalistas

A região de Tombali, em particular os sectores de Bedanda e de Cacine, fortemente envolvidos pelas Floresta de Cantanhez, é entendida para a maioria do povo guineense como o berço da independência. Esta foi a zona de excelência da luta armada contra a colonização portuguesae o ícone da libertação, tendo albergado alguns dos principais aquartelamentos de tropas portuguesas, como Guiledje, Bedanda, Cacine e Cameconde, mas também os acampamentos da guerrilha, protegidos e apoiados pelas comunidades animistas Balanta e Nalu.

Os Matos de Cantanhez reúnem dois traços que são entendidos como fundamentais para o sucesso das tropas do PAIGC: por um lado, a riqueza dos recursos florestais e as difíceis condições físicas impostas pelo meio denso e fechado, que favoreceram as comunidades locais que detinham conhecimentos únicos propiciados pela vivência directa, adquiridos atravésda experiência ancestral. Por outro lado, a crença no apoio espiritual e na protecção das forças superiores da floresta, o irã, reforçaram a auto-estima e a identidade comunitária, resultando em catalisadores para a concretização da luta.

Os momentos chave da longa guerra colonial foram assim enquadrados pela densidade florestal, desde a fase de organização até às disputas armadas propriamente ditas. Ao longo dos sectores de Bedanda e de Cacine são vários os locais de valor histórico e que representam marcos na História nacional, onde ainda existem partes de aquartelamentos, antigos abrigos, material de guerra, como obuses que se encontram ora espalhados pelo parque florestal, ora amontoados após ter sido efectuada uma primeira recolha, e objectos vários, como pratos e materialde cozinha. Da mesma forma, nas proximidades da tabanca Cassacá, existe um marco de importância extrema para a História da República da Guiné-Bissau: o local onde foi realizado, em 1964, o 1º Congresso do PAIGC, local que Luís Cabral tinha intenção de transformar em cidade pelo simbolismo que representa.

Paralelamente, vivem na região testemunhas vivas da guerra colonial, ex-combatentes que, em maioria, demonstram receptividade para contar e descrever vivências pessoais relacionadas com os momentos mais marcantes, sejam dificuldades ou sucessos, experiências que se transformaram em histórias de vida de uma época que é definida como um dos períodos mais importantes para a Guiné-Bissau e para Portugal.

pp. 35/37
___________

Notas da autora:

(*) O caju é aproveitado como fruta fresca, secando-se a castanha para comercialização, produzido sumo, vinho e aguardente.

(**) O lumu é um mercado local de dimensão alargada e sujeito a uma determinada organização que funciona com uma periodicidade semanal, reunindo comerciantes que se deslocam a partir das diferentes localidades da região.
___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. último poste desta série: 24 de Abril de 2008 >
Guiné 63/4 - P2793: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral (29/2 a 7/3/2008) (Luís Graça) (15): Salvemos o Cantanhez (I)

(2) Vd. publicação disponível, em formato pdf, no sítio do Instituto Marquês de Valle Flôr :Estudo das Potencialidades e dos Constrangimentos do Ecoturismo na Região de Tombali

(3) Vd. poste de 31 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2704: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral (29/2 a 7/3/2008) (Luís Graça) (12): Que o Nhinte-Camatchol te proteja, Guiné-Bissau

quinta-feira, 14 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1071: Historiografia da presença portuguesa em África (3): Mandingas soninqués, animistas, islamizados à força (Paulo Santiago / Beja Santos)




René Pélissier - História da Guiné: Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936. Lisboa: Editorial Estampa. 2 volumes, c. 600 pp. Preço de capa de cada volume: 14,27 € (mais IVA) .

Foto das capas: Editorial Estampa (2006) (com a devida vénia)


1. Mensagem do Paulo Santiago, enviada ao Beja Santos:

Camarada:

Escrevias há dias, no blogue, que estiveste como cooperante na Guiné, com alojamento na Cicer. Assim, deves ter conhecido o meu irmão mais negro, o Domingos Pereira, director daquela cervejeira.

Costumo ler alguns artigos teus na Soberania do Povo (1) que, ultimamente, com as mudanças que teve, está a pasquinizar-se, é a minha opinião.

Como conseguiste pôr Mandingas a cozinhar carne de porco ?

Um abraço

Paulo Santiago
(ex-Alf Mil, Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72)

2. Resposta do Beja Santos, ex- Alf Mil, Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70):


Caro Paulo, obrigado pela tua mensagem. Encurtando razões, fui cooperante em 1991 nos termos de um protocolo entre Portugal e Guiné-Bissau na área do Ambiente e da Defesa do Consumidor. Estive lá cerca de 5 meses na tentativa vã de criar a Comissão Interministerial da Defesa do Consumidor.
Eu estava pago com ajudas de custo como se estivesse em território nacional, pago pelo nosso governo, a Guiné-Bissau dava-me a pernoita e um motorista para as voltas de serviço. Naquele tempo ainda era possível jantar na Pensão da Berta (mesmo ao lado da Sé Catedral) e vir a pé até à Cicer (hoje corre-se o risco de ser esquartejado).

As minhas recordações na Cicer ficaram confinadas ao espaço agradável do meu quarto e aos frequentes cortes de luz quando estava a fazer relatórios ou escrever à família. Juro que não conheci o teu irmão mais negro. Já naquela altura a miséria era pungente e recordo que o guarda me pedia as giletes usadas, restos de sabonete, meias, toalhas...

Ficas a saber que a China Popular ofereceu à Guiné um estádio desportivo modelar que as autoridades não souberam manter e eu passava todas as noites por um gigantesco estádio reduzido ao silêncio e à inoperância (a luz não funcionava, a relva crescia desordenadamente, pilhava-se o vidro das portas...).

Ainda hoje tenho vertigens quando penso que o país que fez mudar a história de Portugal está de cócoras.

Sobre os mandingas islamizados, há muita coisa que nós não sabíamos na Guiné. Se puderes, compra a História da Guiné, por René Pélissier, em dois volumes (Editorial Estampa, 1989) (2). Ali ficarás a saber que os mandingas soninqués (mandingas do Oio ou Oincas) eram profundamente animistas e foram islamizados à força na segunda metade do século XIX. Daí que os meus fulas e mandingas viviam cheios de contradições entre o vinho e a carne de porco.

Mesmo antes de eu chegar, o porco de mato (eles diziam sim-sim) era comprado pelo vagomestre. Não esqueças ainda que só os arranchados é que comiam na Messe (oficial, furriéis, cabos portugueses, malta dos morteiros, desempanadores, etc.) e todos os outros comiam a bianda na tabanca. Que havia bebedeiras, havia pois uma noite um 1º cabo Papel entrou-me no abrigo completamente etilizado e perguntou-me se não queria dançar com ele e as bajudas que estavam no baile...

Espero ter satisfeito a tua curiosidade. Escreve sempre e espero ver-te na tal reunião anual que se prevê ter lugar em Dezembro (3).

Abraços do Tigre [de Missirá].

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Notas de L.G.

(1) Semanário de Águeda, o mais antigo do país, com 126 anos

(2) Vd. post de 7 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P944: Historiografia das guerras de África: colaboradores, precisam-se (Nuno Rubim)

(3) O Beja Santos não poderá estar, em princípio no nosso primeiro encontro, agendado para 14 de Outubro próximo, em Montemor-o-Novo, na Herdade da Ameira, por sugestão e iniciativa do Paulo Raposo. Para ele, o mais conveniente seriam as férias de Natal...