A lenda da canoa papel: ilustrações do pintor guineense Lemos Djata (pp. 55 e 57): Lemos Mamadjã Hipólito Djatá, de seu nome completo, conquistou a Medalha de Ouro para a Guiné-Bissau em Paris, França, numa exposição coletiva organizada pela “Associação da Amizade e das Artes Galego Portuguesa”, que decorreu na capital francesa entre os dias 5, 6 e 7 de Outubro 2018, na sala de exposições do "Carrousel du Louvre".
Nascido em Bafatá, em 1981, filho de Hipólito Djata e de Mariama Foli Baldé. é licenciado em Línguas Estrangeiras Aplicadas, pela Universidade de Évora. Só em 2000 é que descobre o seu talento artístico. É pintor e escultor.
1. Transcrição das págs. 55-57 do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau", com a devida autorização do autor (*)
J. Carlos M. Fortunato >
Lendas e contos da Guiné-Bissau
O autor, Carlos Fortunato, ex-fur mil arm pes inf, MA,
CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71, é o presidente da direcção da ONGD Ajuda Amiga
Capa do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017. - 102 p. : il. ; 24 cm. - ISBN 978-989-8661-68-5
A lenda da canoa papel
(pp. 55/57)
Segundo reza a lenda transmitida oralmente pelos papéis, quando os portugueses chegaram à Guiné, os contactos que estabeleceram com os papéis da ilha de Bissau foram amigáveis e estes até lhes cederam um terreno para se poderem instalar e negociar.
– Podem ficar com este terreno – disse o Rei Insinhate (31).
Nesse terreno está hoje o Forte da Amura, mas naquele tempo era um antigo curral, o que serviu para os papéis se divertirem, fazendo troça dos novos moradores.
Com o tempo, o poder dos portugueses foi crescendo, e começaram a exercer o seu domínio sobre todas as terras circundantes (32). Os papéis ficaram revoltados, porque os estrangeiros diziam que agora era tudo deles, e decidiram partir para a guerra.
– Os estrangeiros querem roubar o nosso chão, querem cobrar impostos, temos que os expulsar! – diziam os papéis.
Travaram-se muitas batalhas, mas nelas os papéis perceberam que nunca conseguiriam vencer pelas armas o inimigo. Então os papéis recorreram aos espíritos para os expulsarem, e dirigiram-se aos baloberos (33), pedindo auxílio.
Os baloberos responderam:
–Podemos lançar uma maldição, que irá lançar a infelicidade nas terras da Guiné, e os estrangeiros ir-se-ão embora.
Mas acrescentaram:
– Cuidado, porque não haverá mais paz nem prosperidade na Guiné, enquanto os estrangeiros não se forem embora e não for feita uma cerimónia para acabar com esta maldição. Será tanta a desgraça, que ninguém aqui quererá viver, mas vocês têm que aguentar o sacrifício, se querem a vossa terra de volta.
– Nós aguentamos, façam a cerimónia para expulsar os estrangeiros – responderam os papéis.
Foi feita uma canoa em madeira, e os baloberos, reunidos em cerimónia, invocaram todos os espíritos malignos, fazendo-os entrar na canoa. A seguir enterraram a mesma. Na altura a canoa foi enterrada no mato, mas nesse mesmo local foi mais tarde construído o palácio do Governador, sendo presentemente o palácio da Presidência da República. O local preciso onde a canoa foi enterrada, foi mesmo em frente do Palácio, no local onde está o monumento aos heróis.
Depois da cerimónia do enterro da canoa, os baloberos lembraram mais uma vez:
– Quando os estrangeiros se forem embora, esta canoa tem que ser desenterrada, e feita uma cerimónia para acabar com esta maldição, senão nunca mais haverá paz e felicidade na Guiné, por isso os pais têm que passar estas palavras para os seus filhos. Não se podem esquecer de fazer a cerimónia!
Os baloberos ainda acrescentaram:
– Esta canoa anda debaixo de terra. O poder dos espíritos é muito forte, ele faz a canoa mover-se debaixo da terra espalhando o mal por todo o lado. Só nós conseguiremos saber onde ela está.
Quando Portugal reconheceu a independência da Guiné-Bissau, e retirou as suas tropas, os papéis correram a chamar os baloberos, pois chegara a hora de desenterrar a canoa, mas os baloberos disseram:
- Os estrangeiros ainda não foram todos embora, o Presidente da Guiné-Bissau é Luís Cabral, um estrangeiro, um cabo-verdiano.
A 14 de Novembro de 1980, o Presidente Luís Cabral é derrubado por um golpe de Estado encabeçado, pelo mítico comandante militar do PAIGC, o papel João Bernardo Vieira, mais conhecido pelo seu nome de guerra 'Nino' Vieira.
'Nino' Vieira suspende a Constituição e fica a liderar o país à frente do Conselho Militar da Revolução, com nove membros. Os papéis rejubilaram, a canoa tinha expulsado os portugueses dando-lhes a independência, e agora expulsava os cabo-verdianos; todos os estrangeiros tinham sido afastados, e agora era um papel que detinha o poder.
Tinha chegado a hora de desenterrar a canoa e anular a maldição, e os papéis correram novamente pedindo a intervenção dos baloberos. Poucos dias depois os papéis reuniram-se no centro de Bissau, na Praça A Lenda a Canoa Papel / 'Che' Guevara, pois era ali que os baloberos diziam que estava a mítica canoa.
Juntou-se uma multidão à volta da praça, e asfalto, cimento, tudo foi arrancado, sendo aberto um buraco enorme em forma de canoa, mas para desespero dos papéis nenhuma canoa apareceu.
Os papéis, desiludidos com os baloberos, esqueceram a canoa e deixaram de contar esta história aos seus filhos. O Presidente 'Nino' Vieira seria assassinado a 2 de Março de 2009. Perdida e esquecida, será que a canoa papel continua a navegar debaixo do chão, espalhando a sua maldição?
Esta é lenda da canoa papel.
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Notas de Carlos Fortunato:
(31) Insinhate – O rei Insinhate deu autorização para construção de uma fortaleza e vendeu o chão para a sua construção, conforme documento celebrado a 2 de Janeiro de 1697, do livro “A Guiné do século XVII ao século XIX”, pag.76.
(32) Ocupação da Guiné – Portugal, à semelhança das restantes potências europeias, decide impor a sua soberania às suas possessões, pois sem uma ocupação real corre o risco de perder os seus territórios em África, é uma intervenção de difícil realização para Portugal face aos
poucos recursos de que dispõe, e que exige alianças locais, capacidade de comando e muita coragem.
A divisão da África pelas diferentes potências tem o seu ponto alto na Conferência de Berlim (1884-1885), e leva a uma maior intervenção das potências europeias nas suas colónias. Os papéis nunca aceitarão o domínio estrangeiro, e os seus ataques serão frequentes, infringindo várias derrotas ao exército colonial. Apenas com a derrota imposta a 20 de Julho de 1915 por Teixeira Pinto, Portugal consegue o domínio total sobre a ilha de Bissau (História
da Guiné II - René Pélissier, pag. 176).
(33) Baloberos –é a designação dada em crioulo aos sacerdotes animistas que realizam cerimónias nos locais sagrados, as balobas. Cada balobero coloca o seu pote com água na baloba, junto ao poilão sagrado,
para receber os poderes do mesmo e a poder usar nas cerimónias que
realiza. (**)
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Notas do editor:
(*) Último poste da série > 28 de setembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22577: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte VII: A lenda de Alfa Moló
(**) Vd. poste de 11 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20228: Guiné-Bissau, hoje: factos e números (3): em bom crioulo nos entendemos (ou não ?): mandjidu, kansaré, muro, djambacu, baloba, balobeiro, ferradia, tarbeçado, doença de badjudeca, rónia irã... O Cherno Baldé, nosso especialista em questões etnolinguísticas, explica para a gente...
7 comentários:
balobeiro Guiné-Bissau
ba.lo.bei.robɐloˈbɐjru
nome masculino
1.RELIGIÃO: pessoa responsável pelo cumprimento ou pela direção das práticas rituais;
2.RELIGIÃO: pessoa que serve de intermediário, pelas suas práticas, entre os crentes, com as suas inquietações, e a(s) divindade(s).
Do crioulo guineense balobero, «idem», a partir de baloba.
Fonte: Infopédia | Dicionários Porto Editora
https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/balobeiro
baloba
baloba | n. f.
ba·lo·ba |ô|
nome feminino
Cabana que, na Guiné, serve de templo ao deus principal dos indígenas.
"baloba", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/baloba [consultado em 18-11-2021].
Espero que os guineenses (e os papéis de Bissau, em particular) não contem mais esta lenda aos seus filhos... Há maldições...malditas! Por outro lado, a lenda da canoa papel fomenta a xenofobia... Afinal, quem não é "estrangeiro" ou "descendente de estrangeiros" na nossa terra ?... Descobrir a nossa árvore genealógica é abrir a "caixinha de Pandora"...
Atenção: não há aqui, por nossa parte, nenhuma tentativa de "branquear", "esquecer" ou "ignorar" o colonialismo europeu, em geral, e português, em particular... Parece-me é que este não é o caminho para os guineenses reforçarem o seu sentido de pertença, identidade, coesão... Embora este conto faça (e bem) parte da memória da comunidade papel...
Lendas são histórias contadas sobre acontecimentos (antigos) muito duvidosos, e vão sendo adaptadas por quem muito bem lhe apetecer.
Gostava conhecer esta lenda contada/registo no ano de 1945, por ser o ano em que nasci.
E mais interessante seria como era contada no séc. XVII, mas será muito difícil encontrar registos.
Abraço e saúde
Valdemar Queiroz
Caros amigos,
Pudera que fosse só uma lenda como todas as lendas do mundo, mas na realidade trata-se de uma maldição com contornos reais na vida politica e social do nosso país e que impregnou fortemente o núcleo da ideologia e dos dirigentes do Paigc que dirigiram o país com mão de ferro. Inclusive a própria constituição está contaminada com os resquícios desta xenofobia anti-alienígena que pode constituir um forte obstáculo a construção dos fundamentos da unidade nacional. O ambiente politico e social na Guiné-Bissau ainda respira este sentimento que está associado as origens e a manutenção da lenda da canoa papel.
A lenda dá enfâse ao nome de (N'tsinha Té) Intchinate que conseguiu vencer os rivais e ocupar o lugar do conhecido rei Papel, Bacampoló Có, quem, na realidade, teria concedido o terreno para instalação dos portugueses. Todavia o N'tsinha Té ter-se-ia notabilizado devido ao seu temperamento belicoso que criou sérios problemas na construção do forte, arrastando-se ao longo do tempo desde o séc. XVII.
Também é preciso dizer que, entre os "indígenas" da Guiné não existiam os conceitos de compra e venda quando se tratava da terra, pois que. não sendo seus reais detentores, de forma alguma podiam alienar um bem colectivo (comunitário) a guarda dos espíritos (Irãs). Esta incompreensão criou mal-entendidos e gerou muitos conflitos, mormente na Guiné, dita portuguesa.
Se há uma característa que particulariza os povos do litoral (ditos animistas) com os do interior (muçulmanos) é o forte espírito de ligação ao seu Chão (o solo) e o sentido patrimonialista que os leva, não raras vezes, a ostracizar os seus próprios compatriotas oriundos de outros Chãos do mesmo país. E isto reflecte-se imenso nas disputas políticas, eleitorais o que, muitas vezes, empresta o modo étnico-tribal como as diferentes comunidades e grupos sociais se posicionam no terreno político-partidário. O Paigc, designadamente, apesar do discurso aparentemente apaziguador e unitário nunca foi seguido de uma prática de justiça e de governação unificadoras, dai o desnorte e cacofonias actuais.
No âmbito da politica de reconstrução pós-independência empreendida pelo partido único, fui professor voluntário, na regiāo Dr Biombo de 1981/85, e só muito tardiamente constatei que era visto e tratado como um estrangeiro e sempre que prestava um serviço ou fazia um favor a alguém. no fumdo, era percebido como uma obrigação, o pagamento do direito que me concediam pelo direito de viver no seu Chão, igual ao 'Dacha" que exigiam aos portugueses que viviam nas suas terras. Esse é o espírito patrimonialista típico do guineense e que, por ventura, pode ser muito mais acentuado nos grupos do litoral, designadamente entre os Papeis de Bissau quiça da região de Biombo.
Para terminar, quero confirmar que, efectivamente foram feitas escavações na rotunda Che-Guevara (antigo Honório Barreto?) após o golpe de 14 de Novembro de 1980 e foi um desperdício de tempo e dinheiro. A canoa que buscavam no interior da terra, na realidade, estava na cabeça das pessoas que têm dificuldades enormes em aceitar a unidade na diversidade que é a maior riqueza da Guiné-Bissau e a única via para a construção de uma nação fortee unida.
Com um abraço amigo,
Cherno Baldé
Magnífico comentário. Vou publicar como poste.
Também concordo contigo, Cherno, que o melhor que a Guiné-Bissau tem é a sua diversidade (humana, cultural, natural...). Os nossos amigos guineenses irão conseguir, contra a maldição da "lenda da canoa papel", encontrar os caminhos que levam à praça da unidade, da harmonia, da paz e do desenvolvimento sustentado e sustentável, juntando as mãos, os chãos, os talentos, as inteligências, os corações... Unidade não significa perda de diversidade. Diversidade não é individualismo. É riqueza, quando o todo é maior que a soma das partes. Eu vejo aqui tanta gente da Guiné, em Lisboa, que mostra os seus talentos nas mais diveras áreas, medicina, música, pintura, literatura...
Exatamente!
O Patrício tem-nos vindo a proporcionar o conhecimento destas "lendas e narrativas" e isso é de louvar.
Assim podemos perceber que em termos de "cultura popular" não somos assim tão diferentes dos guineenses, já que por cá, por Portugal , também existem muitas "lendas e narrativas", muitas delas totalmente inverosímeis e outras também "trabalhadas", embora com algum fundo de verdade.
O que o Cherno nos transmite é de alto valor social, pelo que, com a promessa de transformar o comentário em post, logo terei oportunidade de então o comentar especificamente, sendo claro que concordo com o que é apresentado.
Deste modo, o comentário do Luís Graça é perfeitamente certeiro.
Tudo o que escreves nele é um "programa" para se abordar o tema.
É minha convicção de que a diversidade portuguesa resultante de tantos cruzamentos é um (já não digo "o", para não ser redutor) dos trunfos que podemos apresentar. Mas o desenvolvimento desta ideia fica para o comentário aos post.
Hélder Sousa
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