sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22730: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (79): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Novembro de 2021

Queridos amigos,
São os derradeiros episódios em Bambadinca, ou quase. Porque umas boas décadas depois Cherno Suane encarregou-se de me revelar as suas recordações destes últimos tempos da minha comissão, por portas e travessas meteu férias e veio ter comigo a Bissau, que eu não esquecesse que era guarda-costas para toda a vida, como veio a acontecer. Contei a uma fascinada Annette a visita que ele me fez na primeira operação à L4, no Hospital de Santo António dos Capuchos. Apareceu-me com três garrafas de 1,5 L de água e aquilo que me pareceu um cacho de bananas, e quando protestei logo comentou que a água sempre faz falta e que a banana engana a fome, eu estava mesmo com aspecto de que andava a passar fominha, talvez exigências da operação, a banana tudo remedeia. Mas voltando àqueles acontecimentos, diluiu-se aquele primeiro choque da chegada do meu substituto e do protesto da tropa, foi no fundo a última manifestação a que assisti dos graves problemas raciais que não iludiam que a apregoada unidade Guiné-Cabo Verde não passava de um expediente de ocasião. Annette lá vai organizando metodicamente o final da comissão mas já por duas vezes perguntou a Paulo o depois, o que aconteceu depois, aquelas amizades inquebrantáveis, aquele fascínio pela Guiné era impossível extinguir-se. Paulo, meio a sorrir, perguntou-lhe se ela queria exercer o papel de Sherazade, fazer umas mil e uma noites de um afeto interminável e ela prontamente respondeu que se há amores para toda a vida eles merecem ser registados.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (79): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Annette, mon adorée infiniment, de posse do último alinhamento que fizeste para aqueles últimos tempos de Bambadinca, imagina tu que me ocorreram, inopinadamente, imagens dolorosas da derradeira visita que fiz àquele local onde vivi em permanência de novembro de 1969 a agosto de 1970, o aquartelamento, incluindo a capela, a escola, a mãe de água, a residência do administrador, a messe e o refeitório dos soldados, a rampa para o rio, o edifício dos CTT onde até conseguia telefonar para Lisboa, o estanco do Rendeiro, o estanco do Zé Maria Tavares, onde se realizou o meu almoço de despedida com os meus soldados na véspera de partir para Bissau. Imagens dolorosas, explico porquê. Não vinha à espera de encontrar as instalações cuidadas que tinham sido as dos oficiais e sargentos, mas era um equipamento tão funcional que para mim era inimaginável encontrá-lo em derrocada, ainda por cima estava ocupado por uma unidade militar. Houve um coronel que fez questão de me acompanhar na visita, penso que este senhor a certa altura julgou que eu ia ter um enfarte, foi crescendo uma lancinante crise de choro, soltaram-se impropérios, uns quase uivos ao presenciar aquela inusitada degradação de que trouxe fotografias que te enviei, casas de banho destruídas, canalizações roubadas, a messe e a cozinha em estado escalavrado, toda a ira se avermelhou de cólera no meu rosto, era inacreditável ter-se votado ao abandalhamento um espaço que era aprazível, quartos dignos, boas salas e a comodidade higiénica que dava aquela casa-de-banho. Era uma memória um tanto diacrónica, eu estava a rever aquelas imagens de destruição e a recordar as instalações em que vivi, o quanto suspirava chegar do fornecimento de munições a Taibatá e Demba Taco e ter este aconchego à minha espera, ou do regresso de uma coluna ao Xitole, e depois de termos levado à arrecadação os cunhetes das munições poder limpar a pele e vestir roupa lavada.

E a memória ainda foi mais longe, naquele fim de julho, quando regressei de algures a Bambadinca e alguém me anunciou que chegara o substituto e qual o meu espanto quando encontrei no quarto um jovial cabo-verdiano que não deve ter percebido muito bem a minha inquietação, seguiram-se aqueles momentos que já descrevi, a gente guineense em fúria, propagara-se como rastilho a notícia de quem me vinha substituir, depois de mudar de roupa desci a rampa do quartel e fui com o Nelson Wahnon Reis até à loja do Rendeiro, ali ficámos a bebericar um uísque e a formular as primeiras perguntas e a receber com avidez as primeiras respostas. Era um homem de formação europeia, quis saber quem iria comandar e eu fiz-lhe o gosto, não regateando que iria ter pela frente homens destemidos, a primeira água do valor militar. Tal como eu, tinha estudos interrompidos, quis depois saber o tipo de atividades que nos estavam destinadas, ouviu atentamente os tais destacamentos que havia no Cuor, os aquartelamentos do Xitole e do Xime e Mansambo, desfiei o nome das tabancas em autodefesa, as idas a locais que davam pelo nome de Samba Juli ou Sinchã Mamajã ou Saré Adè, regulados como o Cossé ou Badora, havia também as emboscadas no Bambadincazinho, as noites na ponte do rio Undunduma e as vigilâncias nos Nhabijões e, claro está, de vez em quando uma operação dentro deste vasto setor.

Ouvia-me atentamente, com leveza e discrição levantei o véu dos problemas raciais e ele respondeu com gentileza: “Gostaria muito de ser bem recebido, vê se me podes ajudar junto do pelotão, procurarei fazer o meu melhor, sabendo que há desconfiança da minha origem. Tenho que aceitar a decisão de me terem posto aqui. O que não tem remédio, remediado está”. Seguiu-se mais um uísque, era para desejarmos as maiores felicidades um ao outro. Irei acompanhar nos primeiros meses da nossa separação a vida daquela minha gente. Foram para Fá, não era propriamente um merecido descanso, ali ao lado formavam-se fornadas de Comandos africanos, havia que lhes prestar segurança. Escrevi várias vezes ao Nelson, fez-me a vontade de um pedido especial, que festejasse o Natal, foi cumpridor, enviou mesmo fotografia, enviei-te com o último maço de documentos. Conseguiu-se quebrar naquela última semana de sobreposição o pior das reticências dos soldados, pelas informações colhidas acabaram por se dar bem embora em março de 1971 por razões que nunca alguém me explicou, o Nelson partiu de Fá, com paradeiro incerto.

Adorada Annette, segue também uma folha com uma visita que ocorreu, eu penso que a 24 ou 25 de julho, apareceram em Bambadinca deputados da Assembleia Nacional, quando entrei no bar estava ali sentado e com um copo na mão José Pedro Pinto Leite que eu tinha conhecido nas minhas andanças da Juventude Universitária Católica. A sala completamente vazia, pediu-me para eu me sentar e responder a algumas questões. Com frontalidade, disse-me que queria absoluta franqueza, o governador dera-lhe conta da gravidade da situação, pedia o meu ponto de vista sobre a guerra em curso, falei-lhe do que tinha vivido, lembro-me que até quis saber se havia por ali regiões libertadas, pedi licença e fui buscar vários mapas, mostrei-lhe em concreto onde vivia a população e atuavam as milícias e a tropa da PAIGC na região de Madina e Belel, bem como a partir da mata do Poidom e descendo o Corubal era impensável desalojar civis e guerrilheiros daqueles pontos para nós quase inatingíveis, uma coisa era chegar àqueles abarrancamentos e deitar-lhes fogo, outra coisa ali estacionar, esta era a lógica da guerrilha; e o que me parecia mais grave é que se via perfeitamente que aqueles guerrilheiros não quebravam e que tinham cada vez mais armamento sofisticado.

Agradeceu-me as informações, por duas vezes me deu a saber que iria informar o Presidente do Conselho da gravidade de tudo quanto lhe fora dado ver. Dias depois, veio a notícia da sua morte, seguia num helicóptero que foi tombado por um tornado sobre o rio Mansoa, morreu ele e outros deputados. E tens aí a narrativa de tudo quanto aconteceu nessa última semana, sempre ao lado do Nelson Reis houve um pouco de tudo em patrulhamentos, visitas a tabancas, vigilâncias. Do novo comandante de Bambadinca recebi a anuência de louvar alguns dos meus bravos, guardo os louvores que me saíram do punho e que foram dados a Benjamim Lopes da Costa, Domingos da Silva, Queta Baldé, Manuel da Costa Victória, Quebá Sissé, Cibo Indjai, António da Silva Queirós, minha adorada, enviei-os também num maço de documentos, para meu orgulho impante vieram todos a ser dados por oficiais-generais.

Rememorando todos estes aspetos da sobreposição, fiquei felicíssimo, como disse atrás, por se ter quebrado tão rapidamente o gelo entre os soldados e o futuro comandante, fiz todo o possível durante essa semana em que andámos todos juntos em apresentar um por um as praças e os sargentos ao Nelson. E assim chegou aquela noite da inevitável despedida, já me foi entregue uma guia de marcha, no princípio da tarde do dia seguinte tomarei a lancha Alfange no Xime. Enternecido, ouvirei cumprimentos de despedida e numa curta cerimónia o segundo comandante leu uma proposta de louvor que seguia para Bissau, ouvi tudo de cabeça baixa e as lágrimas a dançarem-me nos olhos. Tens aí a fotografia daquele jovem, Mamadu Soncó, filho do antigo guia e picador Quebá Soncó, há semanas que montou tenda no nosso quarto-camarata, estranhei não ter havido nenhuma queixa dos outros alferes, creio que eles se aperceberam que o jovem estava plenamente convencido que eu o traria para Lisboa, o Mamadu já conversava com toda a gente, era um dado adquirido que o nosso alfero cumpria as suas obrigações com a família Soncó, a que se vinculara.

Na derradeira manhã em Bambadinca passei o termo de responsabilidade para o Nelson, assinámos a papelada necessária, o mesmo fiz na secretaria. E na hora aprazada a coluna saiu de Bambadinca, já me despedira das famílias dos meus soldados, daquela gentil professora primária que tanto apreciava conversar comigo sobre o passado recente da Guiné, ela fora professora no Cuor, quando me dirijo para a coluna vejo o insólito de levar a bandeira portuguesa hasteada, toda a gente fardada num brinco, tudo solicitude, vieram ao quarto buscar as caixas e as malas que transportarei comigo. Haverá muitos acenos pelo caminho, os que estão na ponte do rio Undunduma exigem abraços, o régulo de Amedalai, toda a milícia, um ror de população, veio cumprimentar-me. O mesmo acontecerá no Xime, estou emocionalmente dividido, a guerra acabou, está a entrar por uma nesga da minha alma a saudade inextinguível, despeço-me de todos, noto que o meu guarda-costas desapareceu e explicam-me que ele está em grande sofrimento, o seu maior amigo vai desaparecer da sua vida, nós, os africanos, nosso alfero, não quero que nos vejam a sofrer e muito menos a chorar. Tomo o meu lugar na Alfange, é o último aceno para terra, a lancha começa a viagem, estou terrivelmente só, espacialmente perdido entre aquele passado turbilhonante, a inquietação do presente, os sonhos ardentes do futuro.

Minha adorada, vou agora contar-te um encontro que tive com o Cherno Suane aqui há uns dias atrás, perto do local onde ele trabalha, almoçámos na Pérola de São Paulo, o Cherno fez-me uma surpresa de ter passado a escrito aqueles últimos tempos em Bambadinca, espero que fiques maravilhada com as recordações deste homem que eu amo como um irmão.

Parto dentro de três dias, estou ansioso por saber o que o destino nos reserva, sem qualquer ponta de exagero acho que merecemos que esta oportunidade de trabalhar em Bruxelas se concretize, a despeito da multitude de problemas que tenho para resolver em Lisboa, só que tu, e a felicidade dos meus filhos, se sobrepõem a estes pequenos obstáculos. Vou telefonar esta noite, para te dizer que sonho viver contigo e, quando tu quiseres, casarmos. Un quilomètre de bisous, Paulo.


Aqui houve o bar da messe de oficiais, estamos em Bambadinca
Aqui houve uma cozinha equipada
Aqui funcionou no espaço da cozinha a zona dos fogões
Imagem do corredor que ligava a entrada para os quartos e que se prolongava até à messe dos oficiais
Aqui houve chuveiros e uma casa-de-banho perfeitamente equipada
Foi neste lugar, no início de agosto de 1970, no estanco do Zé Maria Tavares, que ofereci o almoço de despedida aos bravos do pelotão
Rua Oliveira Salazar. Bilhete Postal, Coleção "Guiné Portuguesa, 135". (Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal, Imprimarte, SARL)
Outra imagem do Bissau Velho, quase na atualidade
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Nota do editor

Último poste da série de 12 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22712: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (78): A funda que arremessa para o fundo da memória

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