sábado, 20 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22732: (Ex)citações (396): A maldição da canoa papel está ainda na cabeça daqueles guineenses, etnocêntricos e xenófobos, que continuam a ter muita dificuldade em aceitar a unidade na diversidade (Cherno Baldé, Bissau)



Guiné > Bissau > s/d [. c 1960/70] > "Praça Honório Barreto e Hotel Portugal"... Bilhete postal, nº 130, Edição "Foto Serra" (Colecção "Guiné Portuguesa") (Detalhe).... Colecção: Agostinho Gaspar / Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2010).

A Praça, com o nome do "colonialista" e "esclavagista" Honório Barreto (1813-1859) (um guineense, de mãe guineense e pai cabo-verdiano, que foi governador do território, ou nelhor, capitão-mor do Cacheu, e também de Bissau,  por diversas vezes, e que como tal defendeu a integralidade da terra que é hoje a Guiné-Bissau, o que não impediu de, um século depois depois, ter sido diabolizado pelo PAIGC), seria rebatizada, em 1975, como Praça Che Guevara, um "internacionalista revolucionário", de origem argentina, e herói da revolução cubana,  que nunca pôs os pés na Guiné... 

E era aqui, neste sítio da  Bissauvelha,  onde, dizia a lenda, estaria enterrada a canoa papel...  Recorde-se a maldição lançada pelos balobeiros papéis: "Quando os estrangeiros se forem embora, esta canoa tem que ser desenterrada, e feita uma cerimónia para acabar com esta maldição, senão nunca mais haverá paz e felicidade na Guiné, por isso os pais têm que passar estas palavras para os seus filhos. Não se podem esquecer de fazer a cerimónia!" (*)
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Foto (e legenda): © Luís Graça (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. A propósito de "a lenda da canoa papel", aqui (re)contada, no  Poste P22726 (*), comentou o Cherno Baldé:


 [ Cherno Baldé: nosso colaborador permanente, e nosso especialista em questões etno-linguísticas, nasceu no chão fula, e é muçulmano; tem formação universitária tirada na antiga União Soviética e em Portugal; é e um acérrimo crítico dos "demónios étnicos" que estão longe de ter sido esconjurados e expulsos do seu país;  além disso, é  membro da nossa Tabanca Grande desde 16/8/2009; com mais de 235  referências no nosso blogue, é autor da notável série "Memórias do Chico, menino e moço"]

Pudera que fosse só uma lenda como todas as lendas do mundo, mas na realidade trata-se de uma maldição com contornos reais na vida politica e social do nosso país e que impregnou fortemente o núcleo da ideologia e dos dirigentes do Paigc que dirigiram o país com mão de ferro. 

Inclusive a própria constituição está contaminada com os resquícios desta xenofobia anti-alienígena que pode constituir um forte obstáculo a construção dos fundamentos da unidade nacional. O ambiente politico e social na Guiné-Bissau ainda respira este sentimento que está associado as origens e a manutenção da lenda da canoa papel.

A lenda dá enfâse ao nome de N'tsinha Té, ou Intchinate,  que conseguiu vencer os rivais e ocupar o lugar do conhecido rei Papel, Bacampoló Có, quem, na realidade, teria concedido o terreno para instalação dos portugueses. Todavia o N'tsinha Té ter-se-ia notabilizado devido ao seu temperamento belicoso que criou sérios problemas na construção do forte, arrastando-se ao longo do tempo desde o séc. XVII.

Também é preciso dizer que, entre os "indígenas" da Guiné não existiam os conceitos de compra e venda quando se tratava da terra, pois que. não sendo seus reais detentores, de forma alguma podiam alienar um bem colectivo (comunitário) à guarda dos espíritos (Irãs). Esta incompreensão criou mal-entendidos e gerou muitos conflitos, mormente na Guiné, dita portuguesa.

Se há uma característa que particulariza os povos do litoral (ditos animistas) em relação  aos do interior (muçulmanos) é o forte espírito de ligação ao seu Chão (o solo) e o sentido patrimonialista que os leva, não raras vezes, a ostracizar os seus próprios compatriotas oriundos de outros Chãos do mesmo país. E isto reflecte-se imenso nas disputas políticas, eleitorais o que, muitas vezes, empresta o modo étnico-tribal como as diferentes comunidades e grupos sociais se posicionam no terreno político-partidário. 

O Paigc, designadamente, apesar do discurso aparentemente apaziguador e unitário nunca foi seguido de uma prática de justiça e de governação unificadoras, dai o desnorte e cacofonias actuais.

No âmbito da politica de reconstrução pós-independência empreendida pelo partido único, fui professor voluntário, na regiāo de Biombo, de 1981/85, e só muito tardiamente constatei que era visto e tratado como um estrangeiro e, sempre que prestava um serviço ou fazia um favor a alguém, no fundo, era percebido como uma obrigação, o pagamento do direito que me concediam pelo direito de viver no seu Chão, igual ao 'Dacha" que exigiam aos portugueses que viviam nas suas terras. 

Esse é o espírito patrimonialista típico do guineense e que, porventura, pode ser muito mais acentuado nos grupos do litoral, designadamente entre os Papéis de Bissau, e quiçá da região de Biombo.

Para terminar, quero confirmar que, efectivamente foram feitas escavações na rotunda Che-Guevara (antiga praça Honório Barreto),  após o golpe de 14 de Novembro de 1980 e foi um desperdício de tempo e dinheiro. A canoa que buscavam no interior da terra, na realidade, estava na cabeça das pessoas que têm dificuldades enormes em aceitar a unidade na diversidade que é a maior riqueza da Guiné-Bissau e a única via para a construção de uma nação forte e unida.(**)

Com um abraço amigo, Cherno Baldé (***)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste da série > 18 de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22726: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte VIII: A lenda da canoa papel (...ou a maldição da pátria de Cabral)

(**) Vd. também postes de :


6 comentários:

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Aquela de andar a escavar no centro da cidade à procura da canoa enterrado não lembra ao "careca", para não dizer pior.
Como já disse, não são contas do meu rosário", mas este tipo de comportamentos das guineenses que sempre os impedirão da sair da cepa torta, não é próprio de povos adultos. Felizmente Portugal fica perto e pode-se fugir para lá, com facilidade, desta barafunda política-religiosa-tribal que nunca desaparecerá.

Repito que sou português e, por mais curiosa que seja a história da canoa papel, ela nunca passará de uma lenda. Tomá-la à letra é... vocês sabem o que eu quero dizer e não escrevi.

Um Ab. e bom FdS.
António J. P. Costa

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Escreveu Beja Santos, na recensão do livro “Guiné-Bissau: Um caso de democratização difícil (1998-2008)”, por Álvaro Nóbrega; Coleção Estudos Políticos e Sociais, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 2015:

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2020/07/guine-6174-p21202-notas-de-leitura-1295.html

(...) O autor interroga-se se não é mais apropriado falar de população guineense do que de povo guineense. E há um elemento tradicional insuperável: o “Tchon”. A Guiné atual provém da Pequena Senegâmbia, das compras de Honório Pereira Barreto, da questão de Bolama, da convenção luso-francesa de 1886. Era o espaço físico territorial que interessava definir, daí o desinteresse prestado ao mar, que é uma das maiores riquezas da Guiné. Desde a origem do novo Estado pairam estas ambiguidades e não se encontra receita para uma solução eficaz no curto e médio prazo: existe o Estado, mas ele está ausente em grande parte do país; o governo é frágil e precário, está sujeito a inúmeras contingências que mais adiante serão analisadas e o povo orienta-se pelos usos e costumes do local onde tem berço, o “Tchon”, local da identidade, dos valores e dos princípios.(...)

Anónimo disse...

Esta é uma importante achega sobre o que É a Guiné. Muito clara a explicação do Cherno Baldé.

V Briote
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Antº Rosinha disse...

O Cherno fala que em 81/85 era tratado como estrangeiro na região do Biombo.

Pois em em 1980, desde Quinhamel até ao extremo dessa estrada (picada) que terminava numa pequena e muito bonita praia de areia branca, naquele lugar as pessoas de facto viviam como se não existisse qualquer outra ordem que não fosse a ordem deles.

Quem de fora quisesse frequentar aquela praia era imediatamente rodeado por gente que morava perto dessa praia, jovens e crianças, e se as pessoas quisessem usufruir da praia, tinham que pagar algum tributo, fosse ele qual fosse.

Ou fosse dinheiro, depois de conferenciarem podiam pedir alguma roupa e podiam voltar e lembrarem-se de exigir algum alimento do farnel que o estranho levasse.

Ou seja, nitidamente a terra era deles e o estranho tinha que pagar para ali permanecer, e com algum ar nitidamente ameaçador.

Ali nem os antigos brancos ou o actual PAIGC, não tiveram nem tinham nada a ver com eles.

Isto em 1980, 6 anos após o 25 de Abril.

Podemos fazer ideia o que teria sido a construção da fortaleza de Bissau no meio de tantos Papeis.

Talvez por essa animosidade a capital ficou tantos isolada em Bolama.

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Eu ia comentar, mas desisti... Senão ainda faziam queixa de mim ao "Berlok de Esguelha".
Salvo melhor opinião, estamos na situação da rã que quer ser boi.
Têm a mania que são os únicos à superfície do globo? Ora fiquem que eu fico aqui.
Não há dúvida: civilização e independência é isto mesmo.

Um Ab.
António J. P. Costa

Valdemar Silva disse...

Rosinha
Noutro comentário questionava como seria contada a lenda em 1945, por ser o ano em que nasci.
Mas, foi só para arranjar um exemplo e saber como é que funcionava a lenda, na prática, ao longo dos séculos.
Então, como os papeis nunca deixaram os portugueses "tomar conta" da sua terra não seria bem assim a "extensão" do Portugal do Minho a Timor.
Afinal, bem podia o PAIGC ter declarado a independência para os lados de Biombo que, assim como assim, já existia um local de zona libertada/nunca ocupada e desnecessária a questão da exata localização. 'Tá bem nem o PAIGC lá conseguia entrar.

Há cada uma!

Abraço e saúde
Valdemar Queiroz