Mostrar mensagens com a etiqueta Corão. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Corão. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25459: Notas de leitura (1686): O islamismo na Guiné Portuguesa, de José Júlio Gonçalves, edição de 1961 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Outubro de 2022:

Queridos amigos,
José Júlio Gonçalves escreve este ensaio dardejando um sem número de advertências quanto aos riscos da islamização na Guiné Portuguesa. Não houve trabalho de campo, é uma escrita oficinal de quem conhece bem as publicações do Centro Cultural da Guiné Portuguesa. Compreende-se, no entanto, como a obra se tornou incómoda logo a seguir à sua publicação, foram sobretudo as hostes muçulmanas quem deram maior apoio às forças portuguesas durante a luta armada, a natureza dos perigos que o autor julga estar a visionar diluiu-se completamente, nem o animismo definhou nem o cristianismo colapsou, pelo contrário, tornou-se no quadro das práticas religiosas a força mais atuante pela sua credibilidade no campo da saúde, da educação e até da cultura - veja-se o caso dos dicionários de crioulo e do estudo das lendas e tradições guineenses. Ironias que o pós-Império tece...

Um abraço do
Mário



O islamismo na Guiné Portuguesa, um olhar de há mais de 60 anos

Mário Beja Santos

A obra intitula-se O Islamismo na Guiné Portuguesa, de José Júlio Gonçalves, a edição é de 1961 e mal se começa a ler percebe-se logo como se tornou obra incómoda para a política do Estado Novo, é uma cartilha de doutrinação para fazer recuar o islamismo na Guiné, encontrando adeptos “civilizados” para lhe fazer frente na linha do catolicismo. É uma obra feita de leituras, embora o autor fale em ensaio sociomissionológico, não há trabalho de campo, baseia-se em doutrina alheia, leu atentamente o que se publicou no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa e outros trabalhos alusivos à presença muçulmana na região subsariana. Identifica os métodos catequéticos islâmicos: as escolas corânicas, a pregação através das confrarias religiosas, as prédicas dos chefes religiosos, a identidade dada pela indumentária, o uso da rádio e da imprensa, o aproveitamento da quase completa ausência de missionários europeus, a exploração dos erros da administração europeia.

Falando da indumentária, tece os seguintes comentários:
“Como é que um pobre afro-negro não há-de sentir ganas de se desenraizar, mandar os filhos à mesquita e à escola e tornar-se membro de uma religião que lhe trará elevação social. São impressionantes estes negros atraídos pelo prestígio do balandrau. É vê-los acorrer aos povoados através dos matagais limítrofes; quando se aproximam da povoação aperaltam-se cuidadosamente. Depois entram com solenidade, falsamente aprumados! Lembram algum tanto o ingénuo camponês europeu, quando vai à cidade!”

Adverte quem o lê para os perigos da rádio, a difusão do credo de Mafoma é feita pela rádio Cairo, no fundo estas mensagens acicatam para o nacionalismo, para combater o branco, aguardar a libertação… Estes agentes difusores do Islão infiltram-se através de países fortemente islamizados; e há um inteligente aproveitamento das rivalidades entre os missionários católicos e protestantes; deplora, em linguagem cuidada, a colonização feita por gente iletrada, a sua incapacidade para promover a ocidentalização dos negros-africanos; e, quanto aos erros da administração, elenca a discriminação racial, a manutenção de alguns chefes muçulmanos tendenciosos e a preferência pelos islamizados para servir nas forças públicas.

Procura contextualizar como se tem processado a islamização dos guineenses, faz um enquadramento histórico através do reino de Gana, o império Mandinga e os impérios Songoi e dá seguidamente a relação dos grupos étnicos diferenciados para depois os enquadrar em animistas, animistas ligeiramente islamizados, bastante ou quase completamente islamizados, mostra as resistências dos preponderantes grupos animistas, desde os Felupes aos Bijagós. Temos igualmente um relance sobre a presença do catolicismo a ao papel positivo desempenhado pelos franciscanos a partir de 1932. Diz claramente que não se tem prestado a devida atenção aos problemas religiosos da Guiné Portuguesa, que a presença cabo-verdiana tem sido mal utilizada, eles deviam ser os elementos difusores da cultura portuguesa e do catolicismo. Acha que se devia recorrer a missionários católicos com conhecimentos médicos e outros de idêntica utilidade para os guineenses. Citando Rogado Quintino, acha que é necessário estabelecer um cordão de missões católicas ao longo da linha que separa nitidamente os muçulmanos e os animistas. E não deixa de relevar que cristianizar deve significar aportuguesar. Há para ele um grave perigo com as missões protestantes. A missão que existia ao tempo era anglo-americana, dispondo de amplos fundos e observa que promove uma verdadeira assimilação tecnológica que não se traduz num aportuguesamento. Suspeita dos mouros, vagabundos e comerciantes ambulatórios que percorrem a Guiné Portuguesa, o rosário numa mão, o livro sagrado na outra, infundem respeito e temor, criando em seu proveito uma auréola de prestigiosa admiração. E pior que tudo, mostram-se inimigos irredutíveis da evolução dos guineenses no sentido ocidental.

Discorre com alguma minúcia sobre a ação missionários dos marabus, mouros, jilas, tchernos, almamis, arafãs, entre outros, o papel das confrarias, o trabalho catequético de Fulas e Mandingas, como se desenvolve o seu proselitismo, quando necessário o uso da força, como o Corão influencia as culturas tradicionais, intrometendo-se no próprio direito. É profundamente crítico sobre a influência muçulmana nas artes plásticas guineenses: “O Corão desempenhou um papel preponderante no aviltamento das atividades plásticas dos guineenses, proibiu a representação da figura humana na escultura, até de animais, a escultura é meramente decorativa. Talvez este seja um dos mais evidentes motivos por que a pujante escultura de certos grupos étnicos ditos animistas esmaeceu e só em certos pontos inóspitos ou nas faixas litorálicas e dos arquipélagos costeiros se manteve um pouco mais ao abrigo da forte e operante influência mourisca”. No fundo, as grandes exceções às proibições muçulmanas ainda eram as esculturas Bijagó e Nalu. Mas mesmo assim, observa o autor, a escultura dos Nalus estava em regressão devido à influência dos Fulas e dos Sossos islamizados.

Um tanto fora do contexto, mas sempre com o ar de quem alerta e aconselha os próceres da política ultramarina, lembra os países independentes à volta da Guiné, os apelos do Gana à subversão das elites e das massas da Guiné Portuguesa, enfim, era preciso estar muito atento às provocações e à agitação que estes países independentes iriam suscitar no futuro.

Em jeito de conclusão, parece ao autor que o animismo corre o risco de desaparecer mais cedo ou mais tarde sobre o impacto do Islão; se não houver oposição do cristianismo, o islamismo irá absorver a quase totalidade dos guineenses; impõe-se, pois, ao cristianismo a premência de aumentar a sua ação catequética junto dos animistas. E há delicados problemas políticos, que aparecem aqui enquadrados um tanto paradoxalmente, já que no ensaio não se fez outra coisa do que mostrar os perigos do islamismo na Guiné e agora vem dizer-se que esta corrente pró-muçulmanos colabora amplamente com a administração portuguesa e que o fenómeno independentista não tem tradições na Guiné, não passa de uma inovação de cultura francesa e anglo-saxónica. E como para atenuar o caudal de advertências quanto aos perigos presentes e futuros, parece finalizar com frases tranquilizadoras, dizendo que “O movimento pró-português é, pode dizer-se, desde o século XV, o movimento tradicional das tribos da Guiné Portuguesa que desejaríamos não ver perturbado.”

O rol de contradições que se seguiu à publicação deste ensaio terá contribuído para o relegar às estantes, tais e tantos eram os incómodos que ele poderia suscitar num templo em que as forças islâmicas foram inegavelmente os grandes sustentáculos à luta contra o PAIGC.


Natural de Pampilhosa da Serra, José Júlio Gonçalves nasceu a 19 de janeiro de 1929. Esteve ligado, em 1984, à elaboração da moção da Nova Esperança (de um grupo de figuras do PSD, com Marcelo Rebelo de Sousa, Santana Lopes e Durão Barroso), de alternativa ao grupo de Pinto Balsemão e Mota Amaral. Fez parte do grupo de professores que saíram em divergências com a Universidade Livre e de cuja iniciativa partiu, em 1986 a criação da Universidade Moderna, da qual foi nomeado reitor, tendo sido vogal da Direção no triénio 1991-1993 e Presidente da Direção, no triénio 1997-1999.
Muçulmanos guineenses na reza do Tabaski
Uma mesquita em Bissau
_____________

Nota do editor

Último post da série de 28 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25454: Notas de leitura (1686): Timor Leste, que já foi lugar de desterro e encarceramento (Luís Graça)

sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23656: Notas de leitura (1501): "Ussu de Bissau", por Amadú Dafé; Manufactura, 2019 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Fevereiro de 2020:

Queridos amigos,
Como é evidente, a literatura universal possui relatos de altíssima qualidade sobre crianças que terão passado longos calvários até atingirem a libertação, tudo culminando com o futuro radioso pela frente, basta lembrar Oliver Twist e David Copperfield, de Charles Dickens. Amadu Dafé é cuidadoso, terno, socorre-se de um intenso lirismo e captura o leitor do princípio ao fim pela via mais eficaz da indignação: solta-se a voz da criança espancada e aviltada, em tanto confiante, mal sabendo que caiu numa teia de vis traficantes, e quando se despede do leitor avisa-nos que nada será como dantes, há o saber de experiência feito, Ussu de Bissau fora sujeito a riscos barbários, é hoje um homem livre, está escrito no seu coração. Amadú Dafé é uma grande promessa para a literatura luso-guineense, fica comprovado com este documento literário terno, vibrante, tantas vezes a magoar-nos nas vergastadas e no espezinhamento de uma criança que sonha voltar para casa. Que venha mais boa literatura da tua portentosa imaginação, Amadú Dafé.

Um abraço do
Mário



Um vulto literário emergente na Guiné-Bissau: Amadú Dafé (2)

Mário Beja Santos

Ussu de Bissau, por Amadú Dafé [foto à direita], Manufactura, 2019, é uma inesperada surpresa: encontrar uma criança tão emotivamente registada por um escritor que denuncia, em toda a sua crueza, o tráfico de crianças sujeitas às mais degradantes humilhações e atentados à dignidade humana.

Ussu é recambiado para o Senegal, a mãe conta fazer dele um ser humano que faça pela vida, que ganhe bases culturais, a criança sai da miséria para bater à porta do Inferno, um canalha que parece dirigir uma escola corânica tem dezenas de crianças por sua conta que pedincham pelas feiras, que vivem como animais e são pasto de um negócio de pedófilia.

É neste cosmos de maus tratos que Ussu encontra um oásis, a bondade do tio Lamine e a estima do seu filho Adulai. É nesse contexto que alguém se lhe apresenta como treinador de futebol e ele é despertado para um sonho, prometem-lhe uma madrinha disposta a levá-lo para a Europa para jogar futebol ou estudar. Está sonhador, mas mostra-se hesitante: “Valeu a pena ter vindo para Senegal, pedinchar nas ruas e nos becos, para, no fim, ser compensado com uma madrinha que se propunha levar-me para a Europa! Ou valeria igual se tivesse ficado ao lado da minha mãe, lutando contra os feiticeiros e contra os invejosos? Não sei. Só sei que enquanto a morte não me chega, a minha vida tem de permanecer esperançosa e certa”. Vai dar a boa-nova ao tio Lamine, ele sugere que Ussu estabeleça o contato com a dita senhora. Pelo caminho, prosseguem as vergastadas na escola corânica, os tratamentos torpes, a mendigação.

Se até agora Amadú Dafé usa de uma grande segurança na descrição de todos estes emaranhados de miséria, de sadismo religioso, de exploração infantil, triunfa pela forma delicada com que vai tratar a pedofilia, são parágrafos em que ele discorre a infâmia em cima de uma lâmina afiada, Ussu insurge-se, grita e dá às vilas Diogo, almas caridosas aconchegam-no, Adulai comunica ao tio Lamine o que se está a passar, procura-se então o treinador. Entretanto aguarda-se pela senhora que iria levar Ussu para a Europa, aparece Raja, entra num barco, registam-se estranhas anomalias, vai aparecer a polícia, afinal a dita senhora fazia parte de um gangue de raptores. A narrativa acelera-se, os diálogos são velocíssimos, aquela inocente criança não consegue entender os enredos daquele crime, é na esquadra da polícia que ele é informado de que servira de isco para apanhar a teia de criminosos.

Tem aqui lugar, num momento que o autor intitula Posto, um dos mais belos monólogos desta prodigiosa narrativa:
“A pressão social prefere farsa a sinceridade. Prefere ilusão a realidade. Prefere mentiras e aparências. A minha mãe sujeitou-me a tudo o que passei, não por vontade própria, mas porque se sentia pressionada a fazê-lo para não ser isolada e para não ser vista como incapaz de criar um filho.
Que ganhou ela com isso?
Ou melhor, o que ganharam as pessoas que a pressionavam com tudo o que passei? E se a Raja me tivesse conseguido levar para a Europa? E se tivesse continuado a ir para a horta e a seguir os meus colegas para dar o cu por uma côdea? E se tivesse continuado na escola e apanhado o hábito de mendigar para sobreviver?
A partir do momento em que terminei a conversa com a Fámata, acordei, saí da ilusão, afastei a obscuridade e a falta de determinismo que era a minha vida. Mais ninguém decidirá por mim o que quer que seja, mais ninguém irá ter em suas mãos a minha felicidade e os meus sonhos, nem a minha própria mente, muito menos pressão social alguma.

Ela será apenas um órgão dentro do meu corpo, como os demais, e a sociedade será sempre a comunidade a que pertenço livremente, não o contrário. Tomei totalmente o controlo de tudo e da minha vida particularmente (…) Toda a minha vida foi um drama dramático. Tinha vindo para o Senegal aprender Alcorão. Sim, era esse o propósito e era essa a inequívoca vontade da minha mãe. A minha tia e outros familiares fizeram-na pensar que só longe dela poderia eu ser gente. E no que me tornei depois de tantos anos, era inimaginável.
Formei-me nas ruas, como um rato, e cresci sobrevivendo como um gato. A minha maturidade emancipou-se e a minha formação foi de um gato caçador (…) Tinha ganhado uma vida cheia de experiência e vivência. Tinha-me emancipado e formado em vida. Que mais poderia levar de volta para os meus? Poderia encontrar a morança cheia, mas infelizmente a minha mãe não estava.

‘A tua mãe não se aguentou, Ussu. Ela não se aguentou’, disse-me a minha tia, à porta, choramingada.
Os que encontrei apareceram à porta com abraços, de muitos braços abertos, talvez cheios de saudade. Abraçaram-me, com força que lhes parecia de arrependidos, mas era do coração. Deveria isso bastar para aceitar a ausência da minha mãe? Até porque sinto que ela se tornara numa estrela, a mais brilhante.
Será para sempre o meu sol. Será a minha lua, para me seguir em todas as direções e condições? Irá saber como iluminar o meu caminho.
Pelo menos houve alguém em casa à minha chegada que me serviu água e arroz. Que me consolou e transmitiu as suas últimas palavras”
.

Jamais saberemos como Ussu se fará homem, somos levados a crer que agregou positivamente toda aquela via-sacra de criança traficada, pronta a ser raptada, sujeita à degradação suprema, mas que aprendeu os escaninhos por onde passam os raios da liberdade. Ele escrevera que tinha ganhado uma vida cheia de experiência e vivência, abria-se agora a estrada para que Ussu de Bissau, que embarcara em tantas ilusões, pusesse os seus sonhos em prática, como homem de bem.

____________

Notas do editor

Poste anterior de 26 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23645: Notas de leitura (1498): "Ussu de Bissau", por Amadú Dafé; Manufactura, 2019 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 29 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23653: Notas de leitura (1500): Algumas (breves) notas sobre missionação (III) - Reflexão do Prof. Justino Mendes de Almeida, profundo estudioso da “missionação”, reitor que foi da Universidade Autónoma de Lisboa (Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais)

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23645: Notas de leitura (1498): "Ussu de Bissau", por Amadú Dafé; Manufactura, 2019 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Fevereiro de 2020:

Queridos amigos,
Amadú Dafé, estou seguro, vai ser um grande escritor, este Ussu de Bissau é eloquente comprovativo. Oxalá que ele não perca esta veia esplendorosa de escrita luso-guineense, por onde perpassam feiticeiros e balobas, mufunessas, poilões e bambarans. É uma denúncia vigorosa que ele nos dá nesta narrativa que se lê e relê com gosto, uma denúncia do tráfico de crianças que são exploradas, obrigadas a pedinchar, submetidas a negócios de pedofilia, tudo a pretexto de que frequentam escolas corânicas. Não sei como é que o islamismo reage a tais situações criminosas, a religião e os governos, como é óbvio, o que aqui se conta tem a ver explicitamente com a Guiné-Bissau e o Senegal. A escrita é admirável, é uma brisa de revelação, um escritor de formação universitária que não enjeita os problemas do seu povo humilde, a sofrer toda a casta de infortúnios, Ussu é um porta-bandeira de um crime que precisa de ser mais denunciado e castigado.

Um abraço do
Mário



Um vulto literário emergente na Guiné-Bissau: Amadú Dafé (1)

Mário Beja Santos

Estou absolutamente convicto que Ussu de Bissau, por Amadú Dafé [foto à direita], Manufactura, 2019, vai ficar no pódio das melhores narrativas da novel literatura deste país irmão. Melhor surpresa no arranque deste ano de 2020 não me podia ter sido dada. No dizer do autor temos aqui uma história aficionada de um aluno de escolas corânicas, faz parte daquele pesadelo de milhares de crianças da costa ocidental africana que são sujeitas aos terríveis maus-tratos onde não faltam a mendicidade, o viver nas condições mais abjetas, a escravatura pedófila.

Não é um romance, nem novela nem noveleta, é um relato em que uma criança é entregue a um escritor, ainda muito mal conhecido em Portugal, que esgrime o pensamento dessa criança com intensa vibração, levando-nos, na plenitude, aos recantos da miséria, tudo isto feito numa linguagem em que se desossa o português vernacular posto ao serviço de um idioma específico a que chamamos luso-guineense. Ussu tem uma mãe exigente, que sonha alto, quer este filho lançado na vida, no presente tudo é mais negro para a criança do que a cor da sua pele. É um mundo animista entrelaçado dessa esperança que uma escola corânica possa pôr o menino num patamar mais elevado. São episódios sucessivos dessa história que tem títulos condizentes: despatriado, escolhido, descartado, mendigo, faminto, punido, desperto, prevaricado, evadido, compaixão, suborno, norteado, pasmo, confuso, livre, elucidado, espectro, posto.

Não é só o tráfico de crianças que é denunciado em toda a sua extensão, é um mundo de curandeiros, de uma vertente do islamismo que precisa de ser execrada e perseguida no continente inteiro, por permitir que escroques aufiram dinheiro fingindo que educam crianças, no fundo escravizadas, não muito longe da escravidão antiga, tudo isso aparece posto em causa numa criança que conta a sua saga pelo punho de Amadú Dafé, numa das mais belas escritas que conheço.

Dura é a vida de Ussu, com aquele pai ausente, como se conta:
“Ademais, porque a minha mãe não me devolveu ao meu pai ainda estou por entender. O meu pai parecia ter-me abandonado, não ignorava esse facto, mas não me parecia capaz de me rejeitar caso ela decidisse que eu fosse viver com ele. Tenho memórias dos telefonemas dele e das suas palavras mélicas a perguntarem-me se a minha mãe me tinha sovado. Eu sempre respondi, prontamente, que sim, e nunca o vi fazer nada a esse respeito.
Às tantas achava-o mentiroso e fantoche, e desculpei-o sempre como uma pessoa muito ocupada. Que nem tem tempo de me telefonar sempre tinha, quanto mais de me ir visitar de quando em quando.
Cresci esperando por um convite seu para ir passar uns dias com ele, por uma prenda simples para o eternizar como um pai querido, por um acontecimento memorável por forma a nunca o perder nos meus sonhos. Nunca pude contar com ele e talvez por isso mesmo é que a minha mãe decidiu sempre sozinha tudo sobre a minha vida”
.

Se maus-tratos recebia, se havia sovas e açoites, lá no seu chão de origem, o que o espera do dito mestre corânico, aproxima-se do inferno, o ambiente doméstico é desolador, as crianças que vê cirandar dão-lhe a antevisão do mundo tétrico que o espera:
“As crianças que passavam por mim ali sentado, que entravam e saíam com latas penduradas no pescoço e roupas sujas e retalhadas, não me parecia pertencer à casa. Continuei, porém, sentado no meu cantinho, já não chorava, continuava a não sentir a minha alma, mas o estado de ausência total de mim mesmo não me permitia mais sentir a minha tristeza.
Não sabia se tinha fome, se tinha sono, se estava cansado de tanto andar, se estava desesperado ou se apenas queria a minha mãe de volta. O meu mundo resumia-se à minha vaguidade, ao meu estado leve de alma e à minha perdição. Tudo o que tinha, tudo o que sabia, de tudo o que me lembrava estava ali resumido e refletia-se nos olhos daquelas crianças que entravam e saiam com latas vermelhas e roupas esfarrapadas. Era esse o meu destino, o meu mundo era a minha fome, o meu sono e o meu cansaço. O meu mundo era também o desprezo e a indiferença daquelas pessoas em relação à minha pessoa”
.

Leva pontapés e passa fome, tem que andar na mendicância, leva açoites e vergastadas, e vamos saber como é que se aprende o Alcorão naquele ambiente sórdido:
“O senhor levou-me para a casa, a suposta escola, e mandou-me ficar sentado na rua à espera até o sol levantar-se. Quando os outros alunos começaram a aparecer, mandou-me segui-los para o quintal, onde se encontrava, afinal, a sua escola de Alcorão. Os alunos tomaram lugar em círculo à volta de um empilhado de lenhas e cinzas no centro. Dava para perceber que as lenhas estiveram a arder no dia anterior. Tentei olhar, por forma a fixar a cara de cada um deles, mas não fui capaz de reter nada. Todos tinham quase o mesmo aspeto. Esbranquiçados de pele, roupas esfarrapadas, cabelos encaracolados e empoeirados, corpos magros e olhos fundos de tristeza. Liam em voz alta, cada um levava uma tábua escrita a tinta preta à mão e todos com lições diferentes. Era um caos, uma dessintonia total, como jogo de sortilégio”.

Ussu é chicoteado, vergastado por aqueles jovens à ordem do senhor. E mandado a caminho da feira, vai pedinchar, ai dele se voltar para casa sem dinheiro ou arroz. E Amadú Dafé, no mais belo recorte lírico, dá-nos o estado de alma de Ussu no seu pedinchar:
“Aqui, a minha cama é o meu chão, o meu manto é a areia, a minha casa é a terra. A lua continuava a guiar-me, a correr atrás de mim e a andar ao meu lado em todas as direções e condições, iluminando-me.
Comia o vento enquanto tinha a companhia da lua. Não podia ser mais grato à natureza e a Deus. Às tantas, não queria largar a vida de talibé (aluno), realizava-me de alguma forma. Era uma vida engraçada que aprendi a ter. Ganhei-a à custa das minhas costelas, das minhas lágrimas, sobretudo da minha alma, dura e persistente”
.

E era aquele terror de voltar sem dinheiro ou arroz, o prémio das chibatadas. Tem a felicidade de conhecer Lamine, mas até lá chegar teve que descer ao fundo da existência:
“Meti-me no lixo da feira e procurei, até que encontrei, uma lata vermelha igual à que os meus companheiros portavam no pescoço. Cheirava a caca, mas não me importei, nesta vida, caca é preferível a chibatadas, caca alterna nas refeições”. É neste vórtice da degradação que ele encontrou o tio Lamine, faz-se amigo do seu filho, Adulai, enquanto mendigava o tio Lamine dava-lhe de comer. “Com a barriga cheia era mais fácil pedir esmolas e as forças nas pernas eram maiores para visitar várias lojas e casas da cidade e da feira onde sabíamos que, com sorte, conseguíamos sempre um pouco de arroz ou uma moedinha. No entanto, sempre nos mantínhamos preparados para fugir às ameaças de porrada que nos prometiam, à água quente que nos atiravam, ou às humilhações que nos submetiam”.

Temos aqui a promessa de um grande escritor.

(continua)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 23 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23640: Notas de leitura (1497): "Orgulhosamente Sós - A Diplomacia em Guerra (1962-1974), por Bernardo Futscher Pereira; Publicações D. Quixote, 2022 (2) (Mário Beja Santos)

domingo, 7 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16366: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (14): O padre de Guidaje (imã)

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 1 de Agosto de 2016:

Com votos de saúde, e de boa férias, tomo a liberdade de remeter mais um pequeno texto, que poderá ser inserido no Blogue. 

Aproveito também a oportunidade para mandar ao Dr. Adão Cruz, médico do Batalhão 1887, a que pertenci, UM GRANDE ABRAÇO.

Domingos Gonçalves


MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546

O padre de Guidaje (imã)

O sacerdote da religião muçulmana é, talvez, a pessoa mais importante e mais influente de Guidage. É um homem virtuoso e bom. Para além da actividade religiosa propriamente dita, a que se dedica com muita devoção, ele é também o professor de árabe, que todos os dias vai ensinando à criançada os segredos da língua em que foi escrito o Sagrado Alcorão.

Como seria bom que existisse aqui, também, uma escola e um professor, onde estas crianças pudessem aprender, em simultâneo com o árabe, a língua portuguesa! Mas a nossa administração, infelizmente, nunca se preocupou com isso.

Mas o padre, dá gosto vê-lo, junto da sua casa humilde, rodeado de crianças que seguram nas mãos pequenas tabuinhas, onde vão escrevendo, com uma tinta preta, o alfabeto árabe, ou outros exercícios que, pacientemente, lhes vai ensinando.

Sob a capa de um homem simples, que de facto é, esconde-se uma personagem culta, conhecedora da história do seu povo. Às vezes falo com ele, sempre com muita seriedade, por forma a que das diferenças entre aquilo em que os dois acreditamos, nada surja que o possa magoar.

Recentemente ofereceu-se para me ensinar a língua árabe. Estive tentado a iniciar as lições. Todavia, porque não irei ficar por aqui o tempo suficiente para assimilar seja o que for, preferi não dar início ao estudo. Mas fica-me uma certa pena.

Em conversa recente dizia-me:
- Hoje são os portugueses que estão na Guiné e mandam nesta terra e neste povo. Mas não foi sempre assim. Tempos houve, já muito longínquos, em que foi o meu povo que mandou em Lisboa(1). Foi destas terras que partiu um conquistador poderoso que dominou pela força das armas todas as terras africanas a norte da Guiné, e chegou mesmo a mandar em Lisboa. Foi uma dominação quase que efémera, mas que aconteceu.

Ainda há pouco tempo fui convidado para ser o “padrinho” de uma menina recém nascida. E ele lá estava na cerimónia.

A dado momento, enquanto o sangue de uma galinha decepada jorrava para o chão, perguntaram-me o nome que dava à criança. E eu respondi:
- Quero que se chame Fátima. É um nome muito bonito.

E ele, o padre, respondeu-me:
- Sim! É um nome muito bonito! “Alfero” sabe. É o nome da filha do profeta. Trata-se do nome de uma grande mulher que todos veneramos e por quem temos muito respeito.

E acrescentou:
- O “Alfero”, ao escolher o nome já sabia que o povo ia gostar muito. E a menina, quando crescer, vai sentir-se orgulhosa do nome que o “alfero” lhe deu.

Em conversa recente lamentava-se:
- Quando a guerra começou a tropa dizia-nos que ao fim de três ou quatro anos tudo estaria terminado. Mas isso ainda não aconteceu. Os anos foram-se passando, e a guerra, em vez e terminar, tem continuado cada vez mais implacável e dura. E a paz não se vislumbra ainda no horizonte.

Com uma certa tristeza perguntava-me:
- “Alfero”... Esta guerra quanto tempo mais irá ainda durar? Este povo, quando voltará a ter paz? Todo este sofrimento a que o povo está sujeito, por quanto tempo ainda se prolongará?

Com alguma dificuldade respondi-lhe que esta guerra ainda vai durar muitos anos e que ninguém poderá vaticinar-lhe o fim.

Ele entende que nós, os que estamos aqui, não temos nas mãos o poder que permita decidir seja o que for nesta matéria, assim como ele, e o resto do povo, que também não têm voz activa em nada que respeite à definição do futuro desta terra e desta gente.

Ele entende, e bem, que o futuro de muitos é decidido pelo capricho de uns poucos, que indevidamente assumem e exercem um poder que ninguém lhes confiou. Quer nós, quer os turras, dizemos que é em nome do povo, e para bem do povo, que esta guerra se faz. Mas, ninguém perguntou ao povo o que de facto pretende, que futuro deseja ter. Todos pretendem falar em nome do povo. Todos pretendem actuar e fazer a guerra em nome desse mesmo povo. Todos mobilizam os filhos do povo para a guerra, colocando guinéus contra guinéus.

E o povo, esse, termina por não ter nada daquilo que precisa, destruindo-se mesmo ao lutar de um e do outro lados.

Nota:

(1) - Referia-se, penso eu, às invasões muçulmanas, dos almorávidas, provenientes do Norte de África
____________

 Nota do editor

Último poste da série de 21 de janeiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15648: Memórias da CCAÇ 1546 (1967) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil) (13): Dias 13 e 14 de Dezembro de 1967

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3089: Antropologia (7): As tabuinhas das escolas corânicas: tradutor de árabe, precisa-se (A. Santos / Luís Graça)



As famosas tabuínhas (frente e verso) onde os meninos da Guiné, das etnias islamizadas (fulas, mandingas, beafadas...), aprendiam (e continuam a aprender) a ler (?) ou, pelo menos, a recitar versículos do Corão... Tenho dúvidas sobre a autenticidade da escrita, em árabe...

À força de serem reproduzidas, há erros sistemáticos que passam, de mão em mão, de artesão em artesão... O Beja Santos lembra-se de as ver à venda em Finete, tabanca a norte do Rio Geba, na região do Cuor, tabanca por onde se passava obrigatoriamente quando se queria ir de Bambadinca a Missirá.

Fotos: © António Santops (2008). Direitos reservados


1. Mensagem do nosso querido amigo e camarada António Santos que, célere, respondeu a um pedido muito recente e urgente do nosso editor Luís Graça (1).

Recorde-se que o António foi Sold Trms, Pel Mort 4574/72, Nova Lamego, 1972/74. É membro da nossa Tabanca Grande desde 15 de Maio de 2006. Mora em Caneças, mas é (ou era...) um puto reguila, alfacinha... (2).

Votos de muita saúde para todos.

Claro que estou sempre atento ao blogue, não me escapa nada, 99% dos dias que tem o ano, abro o blogue 2 vezes, só que nem tudo interessa como é natural mas temos meia dúzia de camaradas que é um prazer lê-los, coisa que não perco.

Tudo isto para responder ao camarada Luís Graça que apôs uma nota no post 3081 (1), que fala dos miúdos à volta da fogueira e das tabuínhas.

Anexo 2 fotos em jpg com as ditas, (frente e verso). Fico atento ao resultado da tradução.

Um alfa bravo.
A. Santos
4574/72
SPM 2558



2. Comentário de L.G.:

António, amigalhão, grande camarada e melhor tertuliano, dedicado, fidelíssimo. Não preciso de fazer mais testes. Vejo que não dormes no teu posto, e que estás atento o que se publica no blogue. São qualidades que se conservam, seguramente, pela vida fora e que vêm do teu tempo de operador de transmissões.

Infelizmente ainda não te arranjei tradutor para as famigeradas tabuínhas. O meu amigo, médico, argelino, ded que te falei, foi à vida. Acabou o curso de medicinado trabalho, anda por aí. Pode ser entretanto que apareça algum especialista em estudos corânicos... Também eu estou, como tu, com curiosidade em saber o que é que os putos recitavam/recitam com tanta (?) devoção, nas escolas corânicas do interior da Guiné... Agradeço-te a 2ª via do documento. Imagino que tenhas obtido estas imagens em Nova Lamego.
__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. poste de 22 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3081: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (4): Os meninos à volta da fogueira...

(...) "Há tempos o António Santos (ex-soldado de transmissões, Pelotão de Morteiros 4574/72, Nova Lamego, 1972/74), mandou-me imagens dessas famosas tabuínhas... Não as localizo, de momento.

"Recordo-me de lhe ter prometido que ia pedir a alguém (um aluno meu, médico, muçulmano, de origem argelina) para as traduzir, o que nunca consegui... Se ele, António, me estiver a ler, que me mande essas imagens em 2ª via" (...).

(2) Vd. postes do A. Santos, publicados no nosso blogue:

31 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2393: Álbum das Glórias (36): O meu Racal TR 28-B2 (António Santos, Pel Mort 4574, Nova Lamego, 1972/74)

7 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1821: Armamento do PAIGG (2): Mísseis terra-terra Katyusha ou foguetões 122 mm (A. Santos)

23 de Maio de 2007> Guiné 63/74 - P1781: Ambulância do PAIGC, de fabrico soviético, capturada pelo Marcelino da Mata, em Copá (A. Santos)

20 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1448: Os quatro comandantes da CCAÇ 2586 (A. Santos)

12 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1422: A derrocada do Leste e a mina que desgraçou o meu amigo de infância André, da CCAV 3864 (A. Santos)

27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1216: A batalha (esquecida) de Canquelifá, em Março de 1974 (A. Santos)

22 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1103: Breve historial do BCAÇ 1911 e do BCAÇ 1912 (A. Santos)

21 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1097: Imagens chocantes do cemitério de Bambadinca (A. Santos)

4 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P934: Da Casa da Mariquinhas do Gabu à Senhora Malária que me atacou seis vezes (A. Santos, Pel Mort 4574)

23 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P900: O 25 de Abril em Nova Lamego (A. Santos, Pel Mort 4574/72)

21 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P892: Memórias de Nova Lamego com o Pel Mort 4574/72 (A. Santos)

29 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXI: Os cagaços de um periquito a caminho do Gabu (A. Santos, Pel Mort 4574/72)

8 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXIV: Nunca digas jamais (António Santos, Pel Mort 4574/72, Nova Lamego)

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2407: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (14): O falso descanso em Bambadinca

Guiné-Bissau > Região Leste > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 (1968/69) > O Alf Mil Beja Santos, ladeado por dois milícias, de etnia fula: à esquerda, o Albino Amadu Baldé, natural do regulado do Corubal, comandande do Pelotão de Milícias 101, de Missirá; a direita, Indrissa Baldé, soldado do Pel Mil 101. Finete era guarnecida pelo Pel Mil 102. Estas subunidades está sob o comando do Alf Mil Beja Santos. E lá ficaram, agora que o ´Beja Santos e o Pel Caç Nat 52 são transferidos para Bambadinca, em meados de Novembro de 1969.

Foto : © Beja Santos (2007). Direitos reservados.


Depois de um interregno de duas semanas, por causa da quadra natalícia e da festa de Ano Novo, retomamos a publicação da série Operação Macaréu à Vista - Parte II, do Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70). O episódio nº 14 foi-me enviado em 12 de Novembro de 2007 (LG):

Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (14):

O DEDO MINDINHO DO FURRIEL PINA

(i) Operação Truta Vivaz com o Pel Caç Nat 54 e a CCAÇ 12


De 14 a 19 de Novembro estou ao serviço de Missirá através do Pel Caç Nat 54 e do Pel Mil 101 que está novamente todo reunido. Com efeito, as duas secções que andavam destacadas regressam a Missirá e, vendo-as chegar a 15, ao alvorecer, interrogo-me se não valeu bem o esforço de me carpir permanentemente em Bambadinca pedindo um contingente compatível com as idas diárias a Mato de Cão, emboscadas, patrulhamentos e um sem número de digressões logísticas e actividades de faxina.

O Alves Correia, [comandante do Pel Caç Nat 54,] veio a 14, quando escurecia e gentes de Madina/Belel fogueavam para dentro do aquartelamento, com um grau de destruição mínima. Trazia instruções do major de Operações para desencadear, no amanhecer de 16, a Operação Truta Vivaz, de colaboração com um grupo de combate da CCAÇ 12. E mostrou-me a ordem de batalha, que me deixou estupefacto: 60 homens iam fazer um patrulhamento ofensivo entre Finete, Sinchã Corubal, São Belchior e Saliquinhé.

De imediato chamei o guia e picador Quebá Soncó, e dei as seguintes sugestões: o Pel Caç Nat 54 encontrar-se-ia com a força da CCAÇ 12 ao amanhecer de 16, em Finete. Seguiriam por Malandim até Gambana, sempre a corta-mato atravessariam o palmeiral de Chicri sobre Mato de Cão e, no caso de não haver quaisquer indícios da presença de gentes de Madina/Belel nas imediações, subiriam até muito perto da antiga tabanca de Sinchã Corubal. A manter-se a falta de indícios, a força em patrulhamento aproveitaria a luz do dia para atravessar o palmeiral junto ao rio de Ganturandim, fazendo o reconhecimento de Iaricunda.

Esclareci o Alves Correia que subir este rio até ficar de frente a Madina fazia correr riscos desaconselháveis para dois pelotões que desconheciam inteiramente o terreno. A única vantagem dessa operação temerária seria a de detectar eventuais novos trilhos, preço que me parecia muito elevado. Sugeria que se reduzissem os riscos emboscando abaixo de Sinchã Corubal, se possível junto de um trilho inimigo, e partindo de manhã cedo para S. Belchior espiolhando as bolanhas até Saliquinhé, em toda a orla do Geba, no intuito de procurar canoas que fizessem a cambança para os Nhabijões.

O Alves Correia aceitou este plano, falei olhos nos olhos com Quebá Soncó, pedindo-lhe para não se desviar um milímetro do que aqui se acordara. A 16, o Pel Caç Nat 54 parte para Finete pelas três da manhã e eu fico a cuidar do quartel com as milícias.

Enquanto decorrem operações de arrumos dos milícias que chegaram, o burrinho vai à fonte de Cancumba e as crianças estão na escola, tenho a minha última conversa com Lânsana. Ele beberrica chá verde enquanto falamos de questões vegetais. Com a sua voz lenta e o seu olhar doce, fala-me dos mangais e as suas palmeiras de azeite, dando como exemplos Mato de Cão e São Belchior.

Respondendo às perguntas que lhe vou fazendo sobre as árvores das florestas, veio comigo até à porta de armas para me falar dos poilões de diferente porte, o tempo que é necessário para um bissilão ficar gigante, mostrou-me o pau-conta e falou do pau-incenso e do pau-veludo, bem como da farroba e do pau-bicho e da calabaceira que existiam para lá de Cancumba, sim, era possível encontrá-las, por exemplo entre Sancorlã e Salá. Lembrou-me também que a paisagem da savana pode ter bambu, cibe, tambacumba e poilão-forro. Quando regressámos ao interior de Missirá, Lânsana falou com Bubacar Baldé, o comandante das milícias em exercício, pedindo-lhe que me mostrasse as árvores da savana quando me trouxesse até Finete.

Arrumo todos estes dados no meu caderninho viajante, anoto os temas que quero ainda desenvolver: paludismo, doença do sono, elefantíase; choros e fanados; culturas do arroz e do amendoim, fundo e mandioca; pesca na bolanha. Fecho o caderno e vou falar com Malã, começando por discretamente lhe devolver o anel de Infali Soncó:
- Régulo, o seu filho Quebá é um valoroso guerreiro, um dia vai suceder-lhe é ele quem tem dignidade para usar este anel. Nunca esquecerei a confiança que depositou em mim e os laços de família que me unirão para todo o sempre aos Soncó.

É então que o régulo começou a exaltar Alá como o Deus misericordioso e me perguntou o que é que eu pensava da sua infinita clemência e do que disse o Profeta. Terei respondido algo como isto:
- Régulo, o Deus que orienta as nossas vidas é o amor. O Corão diz claramente que os fiéis, os judeus e os cristãos e todos aqueles que praticam o bem serão recompensados no Juízo Final. O Corão fala de um Deus revelado a Abrãao e às tribos de Israel, e que não há distinção entre este Deus e o Deus dos muçulmanos. Para quê, então, não aceitar as nossas diferenças cantando glórias a Deus, sem nenhuma intolerância?

Malã continuou a falar no Livro de doutrina e de adoração a Deus, abracei-o e pedi-lhe para irmos pela última vez rezar juntos à mesquita. O dia continuou placidamente, tive tempo para fazer termos de juntada em vários autos, de um Boletim Cultural da Guiné Portuguesa que me foi oferecido em Bafatá, de 1952, li o conto “Éguê Baldé”, de Fausto Duarte, que me impressionou muito pelo drama de uma jovem fula que é vendida a um velho e está louca de dor. Fausto Duarte fala de casos de lepra na tabanca, na vergonha e repugnância de Éguê, no espancamento a que a sujeita o pai e de um régulo corrupto de quem não se pode esperar justiça.

Aproveitei também para ler um pequeno ensaio de autoria do Ruy Cinatti intitulado “Tipos de casas timorenses e um rito de consagração”. A dedicatória é muito bela: “Para o Mário olhar para as casas antes de as habitar... Com um pé no pedal e a mão no coração, Ruy”.

Ele descreve a habitação no sudeste da Ásia, revela as distinções, as fases fundamentais da construção e o que se diz na consagração da casa, que tem uma força poética assombrosa. Dizendo que está a transcrever da língua tetun de timorenses construtores de casas rectangulares, sinto perfeitamente o sopro do poeta Ruy Cinatti:

Em terra umbigo, em terra centro,
Em pedra angular, pátio sagrado,
Terra plana, terra nivelada.
A terra alarga-se, a terra rasga-se ...
Passada a primeira fase, cortados os primeiros prumos,
Depois que tudo correu bem,
Fazer como, fazer de que modo?
Ir pedir de novo, suplicar novamente,
Pai Deus, Mãe Deus,

Avós Deus, Impérios Deus,
Agora mesmo fazer como, agir de que maneira?


Isto pode ser um rito de consagração timorense, mas está aqui o halo místico e religioso de um dos maiores poetas do nosso tempo. Fiz a escala de reforços, conversei com os sentinelas, escrevi aerogramas, dormi como um justo.

A Op Truta Vivaz acabou bem, sem encontros nem desencontros, não se deu pela presença do inimigo, as tropas do Alves Correia vêm ensonadas, aproveito para levar as milícias até à ponte do rio Gambiel, despeço-me dos mais lindos palmeirais que já vi em toda a minha vida.

No dia seguinte, vistorio com o Alves Correia tudo quanto está no depósito de víveres, examinamos as metralhadoras e os morteiros. Cá fora, à volta do quartel, depois em Cancumba, em Morocunda e junto a Mato de Madeira conferimos as zonas minadas e armadilhadas pelo Reis sapador. E ainda fomos à Aldeia de Cuor, visitámos as ruínas, mostrei-lhe os carris e as vagonetas ferrugentas.

(ii) Uma despedida emocionada de Missirá e de Finete

Chegou a hora de partir e aproveito a coluna que vai buscar arroz a Bambadinca. Junto todas as minhas forças para esconder a emoção da despedida. O meu espólio foi levado a 14, por Ussumane Baldé, guarda-costas em exercício. Uma multidão silenciosa aguarda-me na porta de armas. Prometo voltar em breve, um Soncó volta sempre. Peço para ir a pé, quero despedir-me do Cuor captando-o em todo o seu esplendor: paro em Cansonco junto da destilaria do açoriano, olho os ferros dos alambiques e os despojos da maquinaria apodrecida, o que resta das paredes do que terá sido uma bela construção de carácter colonial; na estrada para Canturé, observo o caminho que dá para Gã Joaquim, depois Gã Gémeos, vejo os laranjais, os imensos morros de baga-baga, os limoeiros e os cajueiros em flor, em Canturé ajoelho-me e rezo ao pé dos destroços do 404, desfeito pela mina anti-carro de 16 de Outubro, mais adiante desço a ladeira íngreme de Finete, cumprimento o chefe de tabanca, os homens e as mulheres grandes, visito Bacari Soncó e recordo-lhe que ele é um irmão muito amado, abraço e beijo o meu querido Abudu Cassamá.

À saída do aquartelamento, procuro reter tudo, como se a vista pudesse empapar-se como um mata-borrão e reter a panorâmica entre Santa Helena, Ponta Nova, até Malandim, só falta a bola de fogo do fim de dia tropical. Junto ao Geba, antes de embarcar na canoa e me despedir de Mufali Iafai, olho pela última vez o meu Cuor, sinto que algumas lágrimas me bailam nos olhos. Volto as costas, subo a rampa de Bambadinca, começa neste instante uma nova etapa na minha vida.


(iii) Uma nova (!) vida... Bambadinca, sede do BCAÇ 2852 (1968/70)


A minha habituação não vai ser fácil. Fiquei num quarto de quatro camas, os outroslocatários em permanência são o Abel [foto à esquerda] e o Moreira [foto à direita, a seguir, ladeado pelo Reis e pelo Levezinho], ambos da CCAÇ 12. Desenvolverei com eles, nos próximos dez meses, uma excelente relação. Mas tudo aquilo me confunde, a gritaria dos corredores, as portas que se abrem e fecham subitamente, o estar longe dos soldados, o ter confirmado à chegada as diferentes condenações sem apelo nem agravo que nos esperam:
- ir ás tabancas fazer psico;
- montar segurança nos Nhabijões, onde está uma equipa coordenada pelo alferes Carlão;
- passar noites em desespero numa alfurja que dá pelo nome dos abrigos do rio Udunduma;
- fazer emboscadas na missão do sono, no Bambadincazinho;
- ir levar e buscar correio a Bafatá;
- patrulhar a estrada entre o rio Udunduma e Amedalai, patrulhando também junto ao Geba para dissuadir as cambanças dos que vêm de Madina;
- fazer colunas ao Xitole;
- colaborar em todas as operações dentro do sector, com forte incidência nas regiões do Xime e Mansambo...

Várias vezes o Queta Baldé termina as reuniões que temos para recordar ao múltiplos episódios que vivemos juntos desabafando:
-Vínhamos à espera de encontrar descanso em Bambadinca, estávamos estafados, logo ficámos rebentados, nunca mais houve um dia de descanso, a montar segurança, a ir a Madina Bonco, aquele rio Udunduma era o Inferno. Quero que o nosso alfero saiba que ficámos bem arrependidos por ter pedido para ir para Bambadinca!”.

(iv) Na estrada para o Xime, o furriel Pina mete o dedo na G3


A 20, estreei-me como oficial de dia e à noite fui montar uma emboscada para a estrada do Xime. No dia seguinte escrevi à Cristina:
- Tu não vais acreditar neste episódio burlesco: saímos depois do jantar para uma emboscada decidida pelo major de Operações, a caminho do Udunduma, em ataque anterior a Bambadinca foi aqui que os rebeldes puseram os canhões sem recuo e morteiros. Estava uma noite serena, saí com duas secções, acompanhou-me o Pina, o Pires tem agora trabalho numa terra aqui perto chamada Sinchã Mamajai. Teríamos feito um quilómetro por um caminho saibroso, e subitamente um grito medonho atravessou a noite, logo me apercebi que não era nem emboscada nem mina. Fui ao local da gritaria e dei com o Pina estatelado no chão a gritar com um dedo mínimo dentro do cano da espingarda. Tentei tirar-lhe o dedo, impossível. Ele escorregara no saibro e acontecera aquela coisa impensável. Imagina o que é regressar a Bambadinca com o Pina lívido, um soldado a segurar-lhe a arma, ele a gemer com o seu dedo esfanicado lá dentro. À cautela, retirei-lhe o carregador para evitar acidentes. Fomos para a enfermaria, ele sentado com a arma em cima da marquesa, com braço estendido. O David ficou embasbacado, o dedo ia inchando, todos os esforços para lhe retirar o dedo resultavam infrutíferos. Em dado momento, o David, com a testa perlada de suor, chegou a admitir a hipótese de lhe cortar o dedo e aí o Pina gritou que não, preferia ter todas as dores necessárias até se encontrar uma solução para ficar com o dedo inteiro. O Reis sapador foi buscar varetas, começou a esgravatar à volta do tapa-chamas, o Pina deu um urro, tal era o sofrimento, o Reis enfureceu-se e enfiou-lhe um tabefe, não sei que é que ele se julgava, se feiticeiro ou a desmontar uma mina, pedi ao David para lhe dar uma injecção ao Pina que o deixasse a dormir... Lembrei-me então que tínhamos desempanadores e pedi para falar com o Alexandre. O primeiro cabo desempanador Alexandre conhecia perfeitamente Missirá, dizendo que sempre que a visitara fora recebido à morteirada. Foi ele quem conseguiu desatarraxar o tapa-chamas, o dedo tinha a falangeta quebrada, com fractura exposta, lá se deu um calmante ao Pina (que foi na manhã seguinte evacuado para Bissau) e eu regressei para os mosquitos na emboscada (2).

(v) O novo médico do batalhão, Joaquim Vidal Saraiva

Os tempos que vêm são de duros para me aclimatar a esta atmosfera de sede de batalhão, viver aqui em permanência. Na manhã seguinte, volto a Bafatá, por causa do correio, compro na Casa Teixeira uma História da Filosofia, de Nicola Abbagnano, dos pré-socráticos a Aristóteles.


Cap do romance policial A Mulher Fantasma, de W William Irish. Lisboa: Livros do Brasil, s/d. (Colecção Vamprio, 38). Capa de Cândido Costa Pinto.


Voltamos por Galomaro para entregar caixas de armas. De Bambadinca vou a Afiá buscar doentes que vão ser vistos na enfermaria pelo David. Começou a minha vida nova, à tarde vou para os Nhabijões, à noite novamente para uma emboscada. O correio que recebo é cada vez mais doloroso. Amanhã volto a Bafatá e vou buscar a procuração para o casamento civil.

Ao almoço, na messe de oficiais, Jovelino Corte Real [, comdante do BCAÇ 2852,] apresenta-nos o novo médico, Joaquim Vidal Saraiva, que veio de Guileje. O David Payne parte para Bissau, manteremos sempre o contacto, ele irá ajudar-me imenso quando em Janeiro eu passar uma semana a dormir graças ao Vesperax e outras drogas.

O Vidal Saraiva (3) vai ser um grande amigo, estou a vê-lo desesperado a tentar salvar Uam Sambu, ao amanhecer de 1 de Janeiro de 1970.

(vi) O Arco do Triunfo, de Erich Maria Remarque


Estou empanzinado de bons policiais. Primeiro, li A mulher fantasma, de William Irish. É hoje um clássico: um casal à beira da rotura, o marido sai de casa depois de uma discussão conjugal, janta e vai a um espectáculo de variedades com uma estranha que encontrara num bar. Quando regressa a casa, a mulher fora assassinada, ele é preso, apresenta um álibi que ninguém confirma, sim, ninguém se recorda se ele estava acompanhado, no bar, no jantar, no espectáculo de variedades. Condenado à morte, recorre à ajuda de um amigo para procurar desesperadamente aquela mulher e vão suceder-se mais mortes. Um polícia desconfiado reabre o processo e irá prender o verdadeiro criminoso. Scott Henderson, o falso assassino, é inesquecível pela vontade indómita em que se esclareça a verdade. Os capítulos começam sempre assim: O centésimo quinquagésimo dia antes da execução, o vigésimo primeiro dia antes da execução, um dia após o dia da execução... Um suspense bem equilibrado, perfis psicológicos bem desenhados, uma atmosfera de angústia devidamente condimentada.

O Caso Benson, de S.S. Van Dine, traz a apresentação de Philo Vance, esse superculto e aristocrático detective. Van Dine excede-se no barroquismo do seu retrato, depois de exaltar o método analítico e interpretativo que ele aplicou nas investigações criminais: coleccionador sofisticado de arte, rodeado de primitivos italianos, de Cézanne e Matisse, desenhos de Miguel Ângelo e Picasso, gravuras chinesas, ânforas romanas, vasos coríntios, estatuetas Ming, marfins e tesouros egípcios. Vance pratica desporto, desde esgrima ao golfe. É rico, bem parecido, viajado, é inteligente e quer descobrir criminosos.

O Caso Benson foi uma estreia feliz, com Philo Vance a decifrar a estatura do assassino de Alvin Benson, a não dar importância a sinais que apontavam para uma mulher que visitara Alvin na noite do homicídio, induzindo o criminoso a estar tranquilo até à revelação final. Sempre gostei muito deste Philo Vance, às vezes canastrão, e tenho já aqui outros livros dele para me deliciar.

Capa do romance de Ercih Maria remarque, Arco de Triunfo. Lisboa: Livros do Brasil, s/d. (Colecção Dois Mundos, 6). Capa de Bernardo Marques.


Mas o prato de substância da semana foi o Arco do Triunfo, de Erich Maria Remarque. Estamos nas vésperas da Segunda Guerra Mundial, vamos conhecer o drama dos refugiados que vivem em Paris. Ravic é um médico alemão que conseguiu fugir às garras da Gestapo e sobretudo ao seu algoz, Haake. O romance começa com o encontro entre Ravic e Joan Madou, haverá uma história de amor e uma separação triste. Ravic descobre Haake em Paris e mata-o. Joan é morta numa cena de ciúmes, por um apaixonado de ocasião. Vem a guerra, os refugiados, políticos e judeus, vão todos para um campo de concentração francês. São páginas memoráveis, registo uma frase que ainda hoje me persegue: “O destino nunca é mais forte do que a serena coragem com que o enfrentamos”.

Antes de entrar no camião que o leva para o campo de concentração, Ravic despede-se do seu amigo Boris Morozow e dizem: “ - Encontrá-lo-ei, depois da guerra, no Fouquet. - De que lado? Campos Elíseos ou George V? - George V”. E separam-se. E assim termina o romance: “ O veiculo seguiu ao longo da Avenida Wagram, ingressando na Praça da Étoile. Não havia luz em parte alguma. A praça estava imersa em trevas. Tão escuro que nem se via o Arco do Triunfo”.

Deitado na minha cama, na minha nova morada, fecho o livro e recordo o filme com Charles Boyer a interpretar Ravic, Ingrid Bergman esplendorosa em Joan Madou e Charles Laughton quase sublime no tenebroso carrasco Haake. Mal sabia eu que dentro de dias vou ver cinema em Bambadinca, uma Ford T a cheirar a gasóleo, a resfolegar ruidosamente a correia de transmissão. Há uma bobine que se projecta sobre uma tela, ouvem-se muitos tiros e há muita acção para divertir militares na guerra. O primeiro filme chamar-se-á Hércules contra Ciclope, com Steve Reeves no protagonista.

__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 14 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2349: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (13): Na despedida de Missirá, em que me tornei um Soncó

(2) O Fur Mil Pina também integrou, posteriormente, o Pel Caç Nat 63, na altura comandado pelo Alf Mil Jorge Cabral.

(3) Contacto actual:

JOAQUIM VIDAL SARAIVA, Dr. (ex-Alf Mil Médico, CCS do BCAÇ 2852)
Esplanada Fernando Ermida,
284405-335 S. FÉLIX DA MARINHA
Telf 227810206 / 227624167

Vd. post de 21 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1773: Lista do pessoal de Bambadinca (1968/71) (Letras C / Z) (Humberto Reis)

No nosso blogue temos, pelo menos, duas referências ao Alf Mil Médico Saraiva (de quem me lembro bastante bem, mas que não sabia que tinha vindo de Guileje; fizemos juntos a Op Tigre Vadio):

1 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P930: O Relim não é um Poema (a propósito da Op Tigre Vadio) (Luís Graça)

29 de Junho de 2006

Guiné 63/74 - P924: SPM 3778 ou estórias de Missirá (4): cão vadio disfarçado de tigre (Beja Santos)

(...) Nota de L.G.:

(...) O médico da CCS do BCAÇ 2852 (que teve vários, entre eles o David Payne Rodrigues Pereira, psiquiatra), na altura, o Alf Mil médico Saraiva (que reside em Vila Nova de Gaia, segundo preciosa informação do nosso camarada Humberto Reis), veio no helicóptero de reabastecimento com o Beja Santos, para prestar assistência médica aos casos mais graves de intoxicação (devido ao ataque de abelhas) e de desidratação... Acabou por ficar em terra uma vez o que o helicóptero, danificado, já não voltou... Deixou o Beja Santos no Xime e zarpou para Bissau...

O Dr. Saraiva acabou por aguentar, de pé firme, o resto do dia e toda a noite e toda a manhã, acompanhando-nos na nossa extremamente penosa vaigem de regresso, até ao aquartelamento do Enxalé. Onde quer que ele esteja, daqui vai um abraço para ele. Era muito raro um médico ir para o mato. O mesmo acontecendo com os furriéis enfermeiros...

O Zé Luís Vacas de Carvalho, que foi comandante, em Bambadinca, do Pelotão Daimler 2046, lembra-se bem dele: "Estivémos com ele`há 2 anos em Ferreira do Zêzere. Penso que é médico (ainda) em Gaia. Lembro-me uma vez que o Piça, entornou um jipe cheio de gaiatos e, como eu queria ir para medicina, estive a ajudá-lo a fazer curativos"... Se alguém souber do seu paradeiro, que entre em contacto connosco... Gostaríamos de conhecer a sua versão dos acontecimentos: por certo que nunca mais terá esquecido a Op Tigre Vadio... (LG)