sábado, 1 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P930: O Relim não é um Poema (a propósito da Op Tigre Vadio) (Luís Graça)

1. Extractos de : História da Unidade: BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70). Bambadinca: Batalhão de Caçadores 2852. 1970. Cap. II. 145-146.

Op Tigre Vadio

Iniciada em 30 [de Março de 1970], às 7h00, com a duração de 2 dias, para fazer um patrulhamento conjugado com emboscadas e batida na região do Cuor/Madina.

Tomaram parte na operação os seguintes destacamentos:

Dest A: CCAÇ 2636 a 2 Gr Com, reforçada pelo Pel Caç Nat 52

Dest B: CCAÇ 12 a 3 Gr Comb

Dest C: Pel Caç Nat 54 + 1 Esq Mort 81 / Pel Mort 2106

Relim:

Op Tigre Vadio terminou 1 [de Abril], 13h00. Regresso quartéis terminado 1, 16h30. Aproximação dificultada partir 31, 8h00 queimada linear feita IN. 31, 14h00, detectado acampamento região Belel (Mambonco 7I4-97) oito moranças com colmo sete adobo.

IN reagiu PPSH e RGPG-2 cerca de 2 minutos, sofrendo 15 (quinze) mortos confirmados, vestígios sangue 10 (dez) feridos graves. Verificado após incêndio acampamento 6 PPSH queimadas.

Destruídos meios vida. NT sofreram 2 feridos ligeiros. Batida Mort 81 mata (Mambonco 8H5- 17) ouvidos muitos gritos de dor. Fuga IN direcção (Mambonco 8G6 -32).

31 [de Março], 17h00 encontrada cadeira vigia e 2 granadas RPG-2 (Bambadinca 1A8-95). Gr[upo] IN estimado 6/8 elementos emboscou NT 2 LGFog, RPG-2 e PPSH cerca de 5 minutos.

IN fugiu reacção NT impossibilitadas perseguição virtude forte ataque abelhas causou diminuição física bastantes elementos. NT tiveram 1 ferido ligeiro e 1 ferido grave, 1 doente grave esgotamento.


Transcrição MSG 1404/C Com-Chefe (Oper): COMCHEFE MANIFESTA SEU AGRADO REALIZAÇÃO RESULTADOS OBTIDOS OP TIGRE VADIO.


2. Comentário de L.G.:


Relim não é poema

Participei nesta operação,
a Operação Tigre Vadio,
que era pressuposto durar dois dias.
Um passeio a Madina/Belel.
Um patrulhamento ofensivo,
a travessia de um rio,
uma excursão a um santuário da guerrilha,
uma visita de cortesia,
aos homens do mato,
ali tão perto,
para retribuição de outras visitas de cortesia
que eles nos faziam,
aos destacamentos de Missirá e de Finete,
e à navegação do Geba Estreito.
Em boa verdade,
só te faltou o autocarro autopulman,
com ar condicionado
e bar aberto.

Éramos só tropa-macaca,
como convinha,
sempre era mais barato:
pretos de primeira da CCAÇ 12
e do Pel Caç Nat 52,
mais alguns brancos de segunda,
os açoreanos
da vinte e seis trinta e seis.
Levámos dois cantis de água por cada G-3 (...).

O que é que um gajo pensa,
aos vinte três anos,
de Missirá a Salá
e daqui a Sancorlá,
em bicha de pirilau,
escuro como breu,
a alma tensa,
o corpo lasso,
o capim mais alto
que as searas de trigo da tua terra,
a fustigar-te as trombas ?
Um gajo não pensa nada,
não tem tesão
para pensar,
apenas para sobreviver
a mais um operação...

Era pressuposto haver um reabastecimento
no dia seguinte,
como manda o mais elementar bom senso
e a experiência operacional do passado
(vd. Operação Lança Afiada
em que um em cada seis foi evacuado).

Caminhámos toda noite.
Penosamente.
Era pressuposto a guerra parar
às dez horas da manhã.
Às dez em ponto.
Porque o clima é quem mais ordena,
e não o relógio do comandante.
Cortaram-nos as voltas.
Os tipos do PAIGC
(não me apetece dizer IN)
cercaram-nos pelo fogo.
E quanto a Deus
e às abelhas selvagens da Guiné,
a gente nunca sabia exactamente
de que lado estavam.

Temerariamente,
decidimos brincar ao gato e ao rato.
catorze horas, no píncaro do dia,
com uma temperatura brutal
e os cantis vazios...
Havia ali uma dúzia de casas
de colmo e de adobe,
mesmo a jeito ou por azar,
para a gente despejar
as nossas granadas de bazuca
e de morteiro oitenta e um.

Nós, quem ?
O major da Dornier, do PCV,
a quem as casas estragavam a vista
nos seus passeios matinais
pelo corredor do Oio.
Ainda não havia os Strellas,
a temível arma dos arsenais
do inimido,
que haveriam de pôr o homem
borrado de medo
e definitivamente em terra.

Alguém puxou dos galões
e decidiu fazer um golpe de mão.
Ou melhor: mandar fazer,
que eu nunca vi nenhum cão grande,
de capitão para cima,
andar cá em baixo,
com a tropa-macaca,
com a puta da canhota nas mãos.

A escassas semanas de acabar a comissão.
P'ra ficar bem na fotografia.
E para pôr no curriculum vitae
e impressionar o Caco...
Um senhor major qualquer
do BCAÇ 2852,
que gostava de andar de Dornier
e que queria chegar a tenenente-coronel.
Um herói de opereta.

Quem ?
Quem é que manda nesta merda,
quem comanda esta tropa-macaca ?
É uma imensa cobra
que se desloca nas terras do Infali Soncó,
espantando os bichos e os irãs,
destruindo tudo à sua passagem.
Não se lhe vê nem o rabo
nem a cabeça.

Entretanto, já alguém,
o Beja Santos,
o nosso tigre de Missirá,
tinha ido buscar, de heli,
o reabasteciemnto de água
a Bambadinca.
Não voltou.
Alguém dos nossos (?!) terá,
intencional ou inadvertidamente,
disparado uma rajada que atingiu o heli
(soube isto agora,
pelo relato dramático do Beja Santos) (1).
O heli foi para Bissau, para a oficina,
e o Beja Santos ficou retido no Xime.

A verdade é esta:
O PCV falhou, o heli falhou.
O cadeia de comando quebrou-se.
Ou porventura alguém quis matar
o tigre de Missirá.
O ataque de abelhas fez o resto,
enquanto o cabrão do comandante do PCV
foi bater a sesta em Bambadinca.

No regresso ao Enxalé,
sofremos brutalmente.
Eu sofri,
que a dor não para dá
para partilhar.
Sofri brutalmente a desidratação,
o esgotamento físico.
A insolação.
O absurdo.
A desumanidade.
Tive miragens.
Bebi o próprio mijo,
esgotado o soro.
Mastiguei as ervas do orvalho,
esgotada a água.
Desesperei,
perdida a esperança.
Bebi sofregamente a água choca dos charcos.
Amparei os mais desgraçados do que eu.
Transportei os nossos feridos.
Consolei os mais desesperados.
Fiz as minhas obras de misericórdia,
segundo o Evangelho de São Mateus.
Não deu nenhum tiro de misericórdia
porque nunca dei nenhum tiro em combate.
Mesmo cristãmente,
odiei o PCV,
Bambadinca,
as fardas, os galões,
a tropa, a guerra,
Herr Spnínola,
a Guiné.

Um homem,
mesmo o cristão que eu não sou,
tem que odiar
para sobreviver.

Amigos e camaradas,
depois de tantos anos,
releio o relim
e há qualquer coisa que mexe em mim.
O relim não é um poema.
Um poema épico ou dramático.
É sim, tão apenas,
Um esquema telegráfico
da guerra
para os senhores que estão em terra.

O relim faz economia
dos quilos de merda
que destilaste,
que destilámos.
Das miríades de abelhas kamikazes
que arrancastes do cachaço.

Dos gritos de dor
que ecoaram pelas matas de Madina/Belel.
Dos teus gritos
e dos gritos dos desgraçados elementos pop
que morreram à hora da sua sesta.
Das paredes do estômago
coladas uma à outra pela fome, a sede.
A lassidão do corpo, a tensão da alma,
sem um colchão
para te estirares,
sem um ombro amigo
para morderes de raiva.

Não, nunca mais irei esquecer Madina/Belel.
Eu e mais 250 homens combatentes
(oito grupos de combate),
fora um número indeterminado de civis, nativos,
contratados ou arrebanhados
como carregadores
(para transporte p à cabeça,
como no tempo do Teixeira Pinto,
de granadas de morteiro,
de bazuca,
de jericãs de água, etc.).
E que largaram tudo,
ao primeiro ataque
do exército das abelhas do Cuor,
quiçá treinadas na China.

Ah, esqueci-me de mencionar o médico
da CCS do BCAÇ 2852,
o Alferes Miliciano Médico
Saraiva (tinha esquecido o nome),
que o Beja Santos
deve ter conseguido aliciar
à última hora,
face aos casos graves de desidratação,
insolação,
intoxicação...
O pobre do doutor
(ninguém tratava ninguém por doutor
lá no cu do mundo,
longe do Vietname)
ficou em terra,
perdeu a boleia do heli
e conheceu o inferno do Cuor.

Meus senhores,
o Relim não é um poema,
é um exercício de economia,
um tratado
de estética,
um compêndio de gramática,
um fait-divers com que se brinca,
um escarro na cara do Zé Soldado,
entre duas partidas de King
na messe dos oficiais de Bambadinca.

Que nos valha, ao menos, o RDM,
o Regulamento de Disciplina Militar,
é mais grosso,
tem mais papel,
é coisa que se vê
e que em último caso serve
para limpar... o cu.

Fonte:
Extractos do Diário de um Tuga.
Abril de 1970 / Julho de 2006
_______

Nota de L.G.

(1) Vd. posts de:

29 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P924: SPM 3778 ou estórias de Missirá (4): cão vadio disfarçado de tigre (Beja Santos)

27 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P918: Operação Tigre Vadio (Março de 1970): uma dramática incursão a Madina/Belel (CAÇ 12, Pel Caç Nat 52 e outras forças)

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