segunda-feira, 26 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P913: Empada 1969 ou as duas Guinés (Zé Teixeira, CCAÇ 2381)

Guiné-Bissau > Região de Quínara > Empada > 2005 > O reencontro do Zé Teixeira com o Keba (à esquerda)... À direita, o Xico Allen, com quem o Zé Teixeira viajou em 2005, e que também tinha estado em Empada, embora já nais tarde (1972/74). De óculos, e vestido de azul, o Braima, que foi ajudante de enfermeiro do Zé Teixeira. A guerra dividiu a família do Kebá. Ele tinha 3 mulheres com vários filhos. Duas ficaram da banda de lá. Ele fixou-se em Empada com a outra esposa. Em dada altura fugiu para o mato e tentou, em vão, recuperá-las... Viveu o resto da guerra num pesadelo. (LG)

Foto: © José Teixeira (2006)


Texto enviado pelo José Teixeira (ex-1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70):

Luís

Saúde, paz e felicidade para ti e para os teus.

Fui buscar um texto à história da minha Companhia que, creio, poderá dar uma visão realista da situação política, social e económica da Guiné resultante da evolução da guerra, no ano de 1969.

Os dados populacionais referenciados foram possíveis, creio eu, devido ao facto de os militares da minha Companhia se terem revoltado contra o Chefe de Posto, por este ter castigado o Kebá, por falta de pagamento de imposto do "pé descalço" e ter sido substituido pelo Comandante da Companhia, Capitão Moutinho Santos. (História já aqui contada no blogue) (1). Houve assim acesso aos dados registados sobre a população civil.

Um antigo combatente que viveu o drama de Guileje falava-me há tempos das zonas vermelhas, isto é, das áreas marcadas no mapa a vermelho, onde era vedada a penetração das nossas forças e, se por acaso ou erro lá fossem parar, deviam de imediato avisar o Comando-Chefe, pois o risco de serem considerados IN era elevado.
Situação resultante da partilha do terreno nos primeiros tempos da guerra, em que os régulos eram convidados a aderir às nossas posições ou a tornarem-se IN com as consequências que adivinhamos.

Quer dizer, havia duas Guinés, a nossa e a dos outros. Quem está de acordo comigo ?
Já agora gostaria que alguém me explicasse melhor esta história.

Um abraço
Zé Teixeira
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INIMIGO

Para melhor se compreender a actual [fins de 1969] situação do IN na região de Empada, torna-se necessário, ainda que sucintamente, estudar a evolução do desenvolvimento da subversão desde o seu início, até hoje. Para isso foi lida e estudada toda a documentação existente na Unidade, além de serem ouvidos os elementos da população de há muito radicados em Empada e que foram protagonistas ou pelo menos testemunhas dos factos.

Assim, logo que eclodiu o terrorismo através de vicissitudes e peripécias várias - destruição de nossa parte, das tabancas que apoiavam o IN; destruição das tabancas que nos apoiavam, por parte do IN - , os campos foram–se a pouco e pouco extremando, refugiando-se a população que nos era favorável em Empada e arrebantando o inimigo para fora do nosso alcance as restantes populações, as quais se refugiaram e organizaram nas zonas da Península da Pobreza, Dassalame, Aidará, Cã Beafada, e Cã Balanta.

Constatando-se que a área do sub-sector coincide em linhas gerais, com a do posto Administrativo de Empada, fácil nos é apreciar, recorrendo aos arrolamentos existentes, antes da subversão, verificar a situação desfavorável em que ficamos.

Assim, segundo dados de 1963 o número de contribuintes era de 2.388 e o total de habitantes com mais de 16 anos era de 8.827. Actualmente existem do nosso lado 437 contribuintes, sendo o número de habitantes, das condições anteriorenente expressas, de 1.354. Verificamos assim que apenas 1/7 dos contribuintes e 1/7 da população ficaram controladas por nós. Por outro lado, embora a área efectivamente patrulhada pela Unidade seja de 1/3 da área total, verifica-se que o IN, se refugiou nas zonas agricolamente ricas e onde pode facilmente subsistir e apoiar outras regiões.

Numa segunda fase, coincidente com a estadia da CCAÇ 1423, o IN procurou a todo o custo desalojar a população que apoiava a tropa (1) forçando-a, ou ir para o mato, ou a procurar refúgio em Bolama ou Bissau. Os ataques de grande violência sucediam-se causando vítimas entre a população civil que chegou a pedir às autoridades para se refugiar em Bolama.

Num dos ataques chegou a penetrar na povoação, sendo repelido com duas perdas. Para isso muito contribuiu um 1º cabo que com a bazooka calou 3 metralhadoras ligeiras. Num outro ataque o IN apresentou-se com canhões sem recuo, morteiros médios, metralhadoras de 12.7 mm, metralhadoras pesadas e ligeiras em grande profusão, cercando a povoação a cerca de 100 m do arame farpado, tendo sido repelido com perdas, embora tivesse causado danos consideráveis.

Simultaneamente com estes ataques e flagelações constantes a Empada, o IN organizou-se fortemente nas regiões já referidas, criando uma organização politica-administrativa suficientemente forte para controlar totalmente a população, doutriná-la e mentalizá-la, enquanto abria escolas, embora de nível baixo, e procurava dar à população uns rudimentos de assistência sanitária, com estabelecimento de enfermarias que, embora de fraco valor intrínseco, não deixavam de constituir elementos preponderantes de uma propaganda insidiosa.
Para melhor compeensão do grau de doutrinação alcançado pelo IN sobre a população, transcreve-se passagens do relatório da Operação Tipóia, realizada em Abril de 1966, última em que à zona de Pobreza foi mandada apenas a Companhia de Empada [ CCAÇ 1423, 1966/68 ?], reforçada com a milícia, tendo sido cercada, deixado um morto não recuperado e só conseguindo regressar graças a appoio aéreo:
(i) A princípio, 4 elementos inimigos atacaram com pistola metralhadora, avançando a peito descoberto;
(ii) depois de mais tiros de P.M. por parte do IN, ainda mais próximos pelo cantar e bater de palmas, concluimos que o cadáver do nosso soldado devia estar nas mãos dos bandoleiros;
(iii) o In foi calculado em cerca de 100 elementos, divididos em grupos que actuavam em diferentes posições;
(IV) o IN insultou sempre as NT com a frase "Tuga - filhos da p...;
(v) pareceu-nos que o IN em Ianguê se encontrava preso de um forte e estranho fanatismo que o leva a lançar-se contra as NT sem qualquer receo da morte.


Fonte: Extractos de HU - História da Unidade: CCAçÇ 2381 -Os Maiorais [ Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70]. Cap. II. Pag. 29-30.
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Nota do J.T.:

(1) A história do Kebá que revi em 2005 é um exemplo concreto. Tinha 3 mulheres com vários filhos. Duas ficaram da banda de lá. Ele fixou-se em Empada com a outra esposa. Em dada altura fugiu para o mato e tentou recuperar as outras duas e seus filhos, mas estas não quiseram vir com ele, pelo que ele voltou e vivia num pesadelo. Era meu ajudante na enfermaria, mas recusava-se a sair para o mato, aliás, nunca aceitou pertencer à Milícia.

Vd. post de 12 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXII: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (18): Empada, Novembro/Dezembro de 1969
Comentário de L.G:
Houve muitos dramas parecidos com o do Kebá no início da guerra. Há tempos, um médico guineense também me relatou uma história parecida, que envolveu um seu tio materno, de etnia beafada, que vivia justamente em Empada: a esposa ficou do "outro lado", ou seja, na zona controlada pelo PAIGC; ele ficou do "lado de cá", ou seja, na zona controlada pelos tugas... Acabou por arranjar outra família; o mesmo se passou com a sua esposa... Curiosamente, e por razões compreensíveis, nunca quis ser milícia, tal como o Kebá...

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