terça-feira, 27 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P917: A nossa caserna virtual (David Guimarães)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bambadinca > 1997 > A nossa antiga caserna... Antigas instalações dos oficiais (à direita) e dos sargentos (à esquerda). A messe de sargentos ao fundo, do lado esquerdo. Eram excelentes instalações hoteleiras, para a época e por comparações com outros outros aquartelamentos. No CTIG, a regra geral era a bunkerização (por ex., Mansambo, Guileje). Por estas novas instalações passaram, pelo menos desde 1968 até 1974, os oficiais e sargentos das CCS de três batalhões - BCAC 2852 (1968/1970), BART 2917 (1970/1972) e BART 3873 (1972/1974)- e diversas unidades adidas, como a CCAÇ 12, o Pel Caç Nat 52, o Pel Caç Nat 53, o Pel Caç Nat 54, o Pel Caç Nat 63, o Pel Daimler 2046, o Pel Daimler 2206, o Pel Mort 1192, o Pel Mort 2106, o Pel Intendência 2189 e tantas outras unidades de que já não tenho registo, além de pessoal em trânsito pela Zona Leste... (LG)

Foto: © Humberto Reis (2005) (com a colaboração do Braima Samá, professor primário local, em 1997)


Um texto do David Guimarães, datado, de vésperas do 10 de Junho, mas que não perde actualidade... Já tinha sido, de resto, divulgado por e-mail através da nossa tertúlia:

Bom dia, camaradas...amigos:

Ai, sim, sim. O Briote tem razão e toda a razão (1)... e o termo será esse mesmo blogueterapia, eu não saberia dizer assim, aprendi o termo, pois vem da área da Saúde e é isto mesmo...

Todos de igual modo fomos tratados numa situação adversa, em tenra idade, por um conflito que não procurámos e aconteceu-nos.... Talvez com quota parte de culpa, talvez, mas as saídas eram poucas... A tua paz será total, Briote, quando conseguires reconciliar-te com um povo que combateste mas muito mais chorando, quem sabe um dia, naquela terra onde sofreste... Mas nunca ao povo lhe quiseste mal no íntimo, nem tu, nem eu e decerto nem ninguém... De tal forma é assim que hoje viajamos para lá de cabeça levantada e lá vemos sorrisos a acolher-nos, os homens que como nós andaram na luta do outro lado de então e a que chamávamos IN...

Duvido que na altura em que lá andávamos, tivéssemos a noção de que lado estava a razão. Fomos demasiadamente enxofrados nas ideias para que a guerra fosse possível. Muitas vezes pensei que estava a defender a Pátria... Um dia destes alguém me dizia:
- Ex combatente, nós éramos todos uns putos a dar ordens uns aos outros...

E é verdade... O objectivo era chegar ao fim da comissão e vir embora: antes de ir só haviam três alternativas: (i) sair de Portugal (sujeito a algo complicado e com duas interpretações: não concordar com a guerra ou fugir à guerra por medo); (ii) ficar e dizer não à guerra (ser preso); (iii) ou então ir e tentar vir vivo...

Todas estas situações se passaram... A maioria foi a última, que foi ir à guerra e regressar com a medalha de "missão cumprida", e quantas vezes comprida demais... Hoje tenho a nítida sensação de que se está noutra fase. Milhares de pessoas bem intencionadas, que viveram e sofreram uma guerra, vão até junto do antigo inimigo fazer jus aos papéis que tantas vezes apanhamos no mato:
- Não lutamos contra o povo Português mas contra o Colonialismo!

Hoje verifica-se isso, pois somos lá de braços abertos recebidos... Eu fui, outros foram e recentemente a expedição à Guiné do Marques Lopes, Allen, Casimiro e companhia novamente pôde testemunhar isso... Foram recebidos de braços abertos e nenhum ódio sobrou de parte a parte (2)...

Tenho só um lamento a fazer, mas é assim a vida: ainda há um ou outro Português - são poucos -, que pensa que teve razão e que hoje julga herói... É pena, mas enfim o direito à opinião é lícito... Aquilo que menos esses Portugueses queriam, era a democracia, esta mesmo lhe dá a possibilidade de falarem alto e dizerem-se extremistas e outros tantos que são racistas... Ainda bem que são poucos, embora jovens, o que é preocupante. Gostaria de pensar que não sejam eles as vozes dos pais : esconfio que se ouvissem um tiro eram capazes de se sujar - mas enfim... até na televisão têm direito a entrevistas e a mostrarem-se guerreiros...

E agora surge-me a pena de estar a 300 Km daquele monumento, em Belém, onde muitos lá estarão, pois é a vida. Estarei aí lado de quem lá estiver em espírito. E segue o abraço bem forte daquele homem que, como vocês, sabe e soube viver em caserna - e mais, até gosta dela mesmo...

Pois no mural [que é o nosso blogue] tantas coisas já estão escritas na ânsia de informar bem, escrever o que se passa e sempre em linguagem simples, contando a verdade e só a verdade sem vanglória nenhuma. Linguagem de caserna que só quem nela viveu e vive entende... Dormimos em beliches, e não há problema que nos banhos se use detergente mais forte... É caserna, a nossa caserna onde embarcamos um dia, uma caserna muito bem arquitectada pelo Luís, que douto - não se esqueceu e bem que ontem era o Furriel Miliciano Henriques da CCAÇ12 - era assim e hoje é assim também na nossa caserna... A caserna que afinal ele tão bem soube arquitectar - disso decerto estamos todos agradecidos... e disso tenho a certeza... A caserna onde todos se conhecem, todos se entendem e de onde já muitos vêm até á parada e convivem...

Perfilho essa ideia: uma reunião desta força, uma companhia serena onde todos se comunicam e onde nos conhecemos pelo verbo, pela fotografia e alguns já pessoalmente... Será um encontro e para outros um reencontro, materializando o verbo, a fotografia e encurtando estes 30 ou 40 onde um dia quiseram que andássemos todos juntos... E sim, quantas vezes descalços já, porque palmilhávamos quilóemtros e quilómetross, utilizávamos as G3 naturalmente e muitas vezes já pronta a disparar com bala na câmara, granadas de mão (defensivas e ofensivas), morteiros, bazucas, peças de artilharia e carros de cavalaria, armadilhávamos, faziamos a logistica às populações, entrávamos nos planos de reordenações, ensinávamos nas escolas e ainda sobrava um tempo para escrever para casa e tomar uma cerveja e fazer as leituras e ouvir as nossas músicas... quantas vezes proibidas...

Bem hajam, e bem hajas, Luís, todos nós por nos lermos uns aos outros e de que maneira. O Luís por, sem tempo enfim, continuar a ser um timoneiro que nos fez a casa e agora, ainda por cima, vai colocando o que escrevemos no mural... Obrigado...

Um abraço,
David Guimarães, em véspera de 10 de Junho
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Notas de L.G.

(1) Vd. pots de 10 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P861: Os nossos (des) encontros do 10 de Junho

(2) Vd. dfe 16 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXI: Do Porto a Bissau (16): Encontro com o IN (A. Marques Lopes)

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