terça-feira, 27 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P916: A propósito da carta do Beja Santos a Alcino Barbosa (Carlos Vinhal, CART 2732, Mansabá)

Texto do Carlos Vinhal, ex-Fur Mil Art, de minas e armadilhas, CART 2732, Mansabá (1970/72):

Camaradas,

Depois de ler a Carta a Alcino Barbosa, da autoria do nosso camarada Mário Beja Santos (1), não posso deixar de fazer algumas considerações.

Depois de ler alguns dos os textos que compõem o já valiosíssimo Blogue do nosso Luís, concluo que da guerra da Guiné pouco conheço. Estive 22 meses no mato, mas pelas estórias que me chegam, acho que estive num hotel de 5 estrelas e os contactos que tive com o IN, mais não foram que quezílias entre má vizinhança..

Mais, a guerra vista e sentida por aqueles que fizeram parte de Companhias Nativas (tropas especialistas ou não) foi diferente daqueles que, como eu, fazendo parte de companhias do continente e/ou Ilhas, teve poucos contactos com os autóctones. O carinho com que falais dos vossos nharros é comovedor. A maior parte de vós tem isso em comum e eu sinto-me um pouco estranho.

Não conheci muitos militares tão aguerridos como o camarada Beja Santos, pelo pouco que ainda li dele, mas sei que havia militares graduados (e não só) que, talvez tendo uma visão e percepção particulares daquela guerra, actuavam como se de si próprios dependesse a solução da mesma. Comandar, ou mandar, sempre foi complicado e sempre acarretou responsabilidade e custos de ordem moral. À primeira vista, Beja Santos demonstrou no passado alguma distanciação em relação ao militar Alcino Barbosa, de quem nunca mais soube, e ao senhor Jesuíno Inácio Jorge, a quem nunca visitou. Coisas que ainda pode resolver.

Gostava que o camarada Beja Santos ou algum de nós, com lucidez e distanciamento suficiente, fizesse uma análise ao nosso comportamento colectivo na Guerra Colonial, enquanto jovens militares. Cumprindo o serviço militar obrigatório, foi-nos imposta uma guerra da qual não quisemos ou não conseguimos fugir.

Deixo a minha ideia à consideração geral, principalmente àqueles que, por mais formação ou especialização, lhe queiram dedicar algum tempo.


Carlos Esteves Vinhal

Leça da Palmeira/Matosinhos
Telemóvel 916032220

Comentário de L.G.:

1. Carlos: Obrigado pela tua interessantíssima questão (ou questões).

2. Não há duas guerras nem duas classes de guerreiros: tirando a "guerra do ar condicionado", só havia uma guerra, um único teatro de operações, e todos nós - tropa-macaca, branca ou preta, e tropa especialista - e a fizemos e sofremos, fomos actores e fomos vítimas...

3. Eu tenho muito respeito pelos militares das unidades de quadrícula que viveram 21 meses ou mais em estado de sítio, em muitos casos... Muitos deles têm mais marcas, no corpo e na alma, do que a malta nas unidades ditas de intervenção...

4. A questão que levantas e que pões ao Beja Santos, é um desafio, delicado mas estimulante, e que não uma resposta única: por que é que alguns de nós, muitos de nós, milicianos e soldados do contingente geral, nos batemos galhardamente contra o PAIGC, "contra a nossa própria guerra"... Posta a coisa em termos ainda mais crus: por que é que os oficiais e sargentos milicianos se substituiram, durante muito tempo, aos oficiais e sargentos do quadro permanente...

5. Vamos discutir estas questões, se assim o entenderem, com serenidade e honestidade intelectual, mas sem ressentimentos nem espírito de polémica, porque isto é fracturante... De qualquer modo, não há tabus entre nós, espero bem... (LG)

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Nota de L.G.

(1) Vd. post de 24 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P904: SPM 3778 ou estórias de Missirá (3): carta a Alcino Barbosa, com muita intranquilidade (Beja Santos)

Vd. também posts relacionados com este episódio da mina com emboscada, ocorrido em 16 de Outubro de 1969:

24 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P905: A morte na estrada Finete-Missirá ou um homem com a cabeça a prémio

26 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P911: Uma mina para o 'tigre de Missirá'

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