sábado, 24 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P904: SPM 3778 ou estórias de Missirá (3): carta a Alcino Barbosa, com muita intranquilidade (Beja Santos)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Estrada Finete-Missirá > 1969 > O Fur Mil Reis (à esquerda) e o Alf Mil Carlão (à direita), do 2º Gr Comb da CCAÇ 12 examinam o estado em que ficou a viatura (Unimog 404) em que seguia o Alf Mil Beja Santos, comandante do Pel Caç Nat 52, quando accionou uma mina anticarro, no dia 16 de Outubro de 1969, por volta das 18h00, na zona de Canturé. O accionamento da mina foi seguido de emboscada. A NT, que seguiam em coluna de reabastecimento ao destacamento de Missirá, sofreram um morto (sold condutor Manuel Guerreiro Jorge, da CCS do NCAÇ 2852) e quatro feridos (1º cabo Alcino Barbosa e o sold Cherno Suabe, ambos do Pel Caç Nat 52; 2º Sarg Milícia Albino Mamadu Baldé, do Pel Mil 101; Sold Trms Arlindo Guiomar Bairrada, do Pel Mort 2106/CCS do BCAÇ 2852).

O Pel Caç Nat 52 foi depois transferido para Bambadinca, sendo substituído, em Novembro de 1969, pelo Pel Caç Nat 54, comandado pelo Alf Mil Correia, devido ao grande desgaste a que tinha estado sujeito nos últimos meses.

Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

© Humberto Reis (2006)

Carta a Alcino Barbosa, com muita intranquilidade

Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70)

Alcino, esta carta está escrita no meu coração desde o dia 16 de Outubro de 1969, quando tu passaste a ser sinistrado de guerra. Até então, tu eras o 1º cabo a quem eu confiava a manutenção da dispensa, a preparação das escalas dos turnos da noite, a limpeza das metralhadoras nos abrigos, a elaboração da lista das munições que traríamos do batalhão.

Enviaram-me agora uma fotografia da Capela de Bambadinca, e a minha primeira recordação foi para ti. Um dia, regressava eu de um coluna do Xime, e alguém da secretaria me informou da tua chegada. Recordo um jovem transido, a olhar-me apavorado. Devem ter dito de mim cobras e lagartos, que ias para o inferno de Missirá sob o comando de um louco que andava permanentemente na mata. Tu vinhas substituir o Raposo, a quem apliquei 10 dias de prisão por ter adormecido no posto de sentinela. Apanhaste a fase épica da reconstrução do quartel, depois dos incêndios de Março, que devoraram as moranças, abrigos, depósitos. Ajudaste-me imenso. Eras reservado, o meu irmão mais novo a quem eu entregava aspectos de logística que me enfastiavam. Sei que adoeceste um dia que recebeste uma carta, sabe-se lá que calúnias ou suspeitas infundiram sobre o teu ânimo. Mas eu continuo a ver-te a tremer junto à Capela de Bambadinca, assombrado com a guerra que se aproximava. Eras um camponês, e ao longo destes anos eu interrogo-me sobre o que tens feito na vida, coxeando na tua fractura de calcâneo. Ora eu sou inteiramente responsável por tudo quanto se passou em Ganturé, pelas 18 horas de 15 de Outubro, e tu uma das minhas vítimas. Segue a minha confissão.

Os meses de Agosto e Setembro foram tumultosos, com operações, patrulhamentos diários a Mato Cão, a montar a vigilância às lanchas que navegavam até ao porto de Bambadinca. Tu deves estar recordado que em Agosto, entraste afogueado no meu abrigo aos gritos:
- O Furriel Casanova diz que vai matar toda a gente!.

Quando cheguei à porta do abrigo, de facto o Casanova andava de metralhadora em punho a ameaçar toda a gente de morte, caso lhe desobedecessem. Alguns soldados riam, pensando que se tratava de uma paródia. Mas não. Os nervos do Casanova tinham cedido. Demorei meia hora a avançar para ele, ele gritava:
- Não se mexa, mais um passo e dou-lhe um tiro na cara!

Quando lhe tirei a arma pelo tapa-chamas, ele caiu redondo no chão da parada. Como te recordas, foi evacuado e não mais voltou. Era assim a nossa guerra, eu via-te triste, penso que tu estavas muito distante, mordido de saudades da tua gente.

A 15 de Outubro devíamos ter regressado mais cedo. O Comandante local do PAIGC, Corca Só, já me tinha ameaçado de morte, tendo mesmo deixado um bilhete na estrada. Saímos tardíssimo de Finete, o sol a cair a pique, como acontece nos trópicos.

Mandava o bom senso que eu desse ouvidos ao nosso condutor, Manuel Guerreiro Jorge, que me pediu insistentemente que ficássemos em Finete. O Unimog 404 vinha carregado de combustível, rolos de arame farpado, munições e alimentos. E em Ganturé a roda dianteira do lado do condutor pisou a mina anti-carro que desfez completamente a frente da viatura.

Os minutos que se seguiram foram de apocalipse e caos, à altura daquela guerra. Saí com a G3 na mão e foi o que me valeu. O Cherno, que seguia no guincho, desapareceu, isto quando o guincho ficou completamente retorcido. O Cherno apareceu a dezenas de metros de distância, feito num Cristo, felizmente andou pelos ares e aterrou num morro de baga-baga. O desastre maior foi mesmo o Manuel Guerreiro Jorge que ficou desfeito da cintura para baixo e já chegou morto a Finete. Estou neste momento com a carta que o pai dele me escreveu quando regressei a Portugal, pedindo-me para o ir visitar ao Monte da Cabrita, Santana da Serra, concelho de Ourique. Prometi ao Sr Jesuíno Inácio Jorge ir visitá-lo em breve, o que nunca aconteceu.

De acordo com o relatório que fiz sobre esta emboscada e accionamento da mina anti-carro, tu ficaste ferido, bem como o Comandante da Milícia de Missirá, Albino Mamadu Baldé e o soldado Arlindo Bairrada. Imagina tu que o Bairrada foi ferido com estilhaços num saco lacrimal, andou com um olho pensado durante semanas e recompôs-se rapidamente. Também perdi o rasto do Bairrada.

Não sei se deva contar como foi a nossa retirada até Finete, para vir buscar reforços. Os soldados válidos ficaram a tomar conta dos feridos. Retirei com crianças, com uma granada em cada mão. Em Bambadinca, encontrei a solidariedade do costume, regressei a Finete com o médico, David Payne (já falecido) e com o Alferes Reis, o sapador (nunca se recompôs da guerra, aparece-me no meu trabalho de vez em quando, sofre da mania da perseguição) e no dia seguinte, após a vossa evacuação por helicóptero, regressei a Missirá. Era minha intenção escrever-te, e depois visitar-te no Hospital Militar.

Escrevo-te agora pedindo-te perdão pelo meu silêncio e pela minha ausência. É legítimo que tu nunca me perdoes a minha incúria naquela guerra demencial, onde eu arriscava tudo, esquecendo-me que comandava homens, jovens da minha idade. Devia ter-te procurado. E de vez em quando sinto-me intranquilo sabendo que tu, meu caríssimo Alcino, merecias que te tivesse procurado, dado companhia e confirmado a amizade que sempre senti por ti.

Não sei exactamente porque te estou a escrever hoje. Creio que o detonador foi a tal fotografia da Capela de Bambadinca, onde muito perto te conheci. Estamos numa idade em que não vale a pena guardar rancores e só me resta ter pena deste meu estúpido silêncio que alivio agora com esta confissão. A ver se ganho coragem para descobrir onde tu paras e tentar dar força à nossa amizade.

E se acaso leres esta carta, tal como nós dizíamos nos aerogramas, espero que a mesma te encontre cheio de saúde e prosperidade.

Teu, Mário Beja Santos.

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