Foto: © Mário Armas de Sousa (2005)
Texto do Beja Santos, novo membro da tertúlia dos Amigos & Camaradas da Guiné, publicada na revista artciencia.com, revista de arte, ciência e comunicação. Trata-se de "uma revista electrónica, trimestral, cujo objectivo é agregar e divulgar trabalhos de investigadores e autores, cujos interesses se situem na intersecção das áreas arte-ciência-comunicação. Os textos podem ser escritos em português, castelhano, italiano, inglês ou francês". O Beja Santos pertence ao respectivo conselho editorial e deu-nos autorização expressa para publicar este texto que nos honra, a todos nós, ex-combatentes. É mais um momento tocante da vida da nossa caserna virtual. É uma história com moral, sobre o valor da solidariedade humana, em tempo de guerra, cruel...
Estranhamente, o episódio aqui evocado não consta da actividade operacional do mês de Dezembro do BCAÇ 2852, a que o Pel Caç Nat 52, comandado pelo Alf Mil Beja Santos, estava adido: vd. História do BCAÇ 2852 (Guiné, 1968/70): Bambadinca: BCAÇ 2852. 1970. Cap II. 13-24. (Documento policopiado, classificado como reservado).
De qualquer modo, este episódio com o diligrama faz-me lembrar um outro já aqui evocado por mim e de que resultou a primeira vítima mortal na minha companhia, a CCAÇ 12 (1) (LG)
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artciência.com (ISSN 1646-3463) Ano I. Número Dois. Fevereiro-Abril 2006
O PRESÉPIO DE CHICRI
Beja Santos
Que bom teres vindo! Feitas as contas, faz hoje 36 anos que nos vimos pela última vez. Graças ao Abudu, descobrimos finalmente o teu primo Álvaro Semedo, e assim chegámos à tua casa na Brandoa. Senta-te. Se não te impressionares, gostava de te contar tudo o que se passou no dia em que todos te julgámos perdido.
A 19 de Dezembro de 1968, decidi que partiríamos a 22 para patrulhar Chicri. Só no fim de Novembro me apercebi da importância estratégica de Missirá e Finete. Os guerrilheiros de Madina do Cuor abasteciam-se atravessando o Geba em dois pontos: Perto de Samba Silate, ao lado de Bambadinca, no Sul, ou em Mero, a Oeste. Mais a Sul, junto ao Xime, o PAIGC transportava a sua artilharia pesada e as suas munições. Eles aterrorizavam-nos, nós tínhamos que pagar com a mesma moeda. Por isso, íamos a Chicri.
Não era a primeira vez que eu lá ia. Era uma terra próspera, abandonada, as madeiras da tabanca ainda espetadas no ar e, olhando ao longe, como num amplo anfiteatro, o Geba refulgia, serpenteando entre o Xime e Bambadinca. Um trilho fino atravessava a tabanca entre estacas calcinadas, restos de paredes de adobe, mais além ficava a construção monumental da destilaria do cabo-verdiano Simão. Chicri fora enorme, povoada por Mandingas e Futafulas.
Tu tinhas-me dito, semanas antes, quando íamos numa operação perto de Madina: "Chicri não parece um presépio?" Recordo-te isto agora porque em vésperas do patrulhamento tu pediste-me para ir a Bafatá comprar figurinhas de barro para o nosso presépio de quartel. Quando me fizeste a proposta, achei estranho. Éramos 150, dos quais só nove cristãos. Eu sabia que tu tinhas sido educado numa missão em Bissau, mas surpreendeu-me a ideia do presépio. E lá foste a Bafatá, com o Teixeira das transmissões e o Barbosa da cantina. O Teixeira vive agora em Darmstadt e o Barbosa, a última vez que falámos, tinha um estabelecimento em Aveiro.
Na madrugada do dia 22, a patrulha abandonou Missirá, deixaras o presépio armado na messe e seguias à frente com a tua arma temível, o dilagrama. Percorremos os lamaçais de Gã Gémeos, depois Ganturé e Mato Madeira. Não sei se te recordas mas não havia vestígios nenhuns de presença humana. Porém, em Maná, topámos com indícios de um trilho recentemente aberto, entre o alto capim que circundava a velha tabanca dos Balantas. Entrámos no trilho. De Maná seguimos para Mato Cão. Na foz do Gambiel, tivermos um percalço com um enxame de abelhas. Vejo como tu estás atento, sinto que te espantas por ter guardado tudo. Seguimos depois para Chicri. Estávamos numa zona de guerrilha. Tinham-se passado 15 horas a andar e a tropa estava derreada.
Regressámos a Missirá para descansar e saímos de novo, na madrugada de 23. Queria regressar a Chicri antes do amanhecer. Tal como na véspera, tu insististe em vir. Eu tinha 23 anos, era o alferes de Missirá e Finete, território encravado nos arrozais, na outra margem de Bambadinca e matas do Ôio. Tinha à minha responsabilidade centena e meia de soldados, e muitas centenas de civis. Guerrilha paga-se com contra-guerrilha, terror com terror. Era o que eu me preparava para fazer.
Tu, lembro-me muito bem, estavas sorridente, tinhas preparado o presépio a um canto da messe, ao lado do armário onde guardávamos os pratos e os talheres. A nossa consoada seria em Missirá. No dia de Natal, iríamos à capela de Bambadinca e almoçaríamos em Finete, com a família do régulo Malâ.
Portanto, eram sete da manhã da antevéspera de Natal quando, em Chicri, 30 homens com uma bazuca e dois morteiros entraram num terreno de combate. Sete horas com muita humidade e o dia a despontar. Havia uma poalha luminosa nos palmeirais. Os indícios avolumavam-se: Encontrámos vestígios de uma fogueira, restos de caju e peixe, uma patorra bem desenhada na areia. Marchávamos silenciosamente, na testa da coluna o picador, depois o guia, a seguir eu e o José Jamanca com o bornal das munições. O mato engolia-nos na sua galeria silenciosa. Lembro-me de ter pedido ao Jamanca para ir chamar o Teixeira e o Campino da bazuca. Tu vieste, também, e o Cibo Indjai, o picador que lia na terra como na palma das mãos e que me avisou que podíamos estar próximos de um acampamento de guerrilha. Deixou-se de fazer a picagem do terreno, progredíamos lentamente. As fardas ensopavam-se nos corpos. Um Sol brutal escoava-se pela ramaria. Quebá Soncó pediu-me o cantil. "Quebá, onde estamos?" Só responderam os seus olhos devorados pelo medo. Era um caminhar sonâmbulo, sem se ouvir o piar das aves, com o estômago revoltado. De relance, vi as horas. Tu pediste-me um cigarro. E, de repente, na curva da picada, guia, picador e Cibo atiram-se para o chão. A pouco mais de cinco metros, um homem fardado de caqui amarelo, um chapéu de cowboy preso por atilhos olha-me estuporado e tão confuso como eu. Num segundo, medimo-nos de alto a baixo. Depois, dois tiros num só eco.
Aquele homem que eu nunca vira levou a mão ao ombro direito, os dedos tintos de sangue. Eu continuei a disparar e ele caiu lentamente como um fardo, a meio da picada. Seguiu-se o tiroteio caótico, gritos, o estoiro das granadas, o desabar das folhas, dos ramos, as armas a cuspir fogo. Os guerrilheiros abandonavam o terreno.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > 1969 ou 1970 > Pessoal do 2º Grupo de Combate da CCAÇ 12 atravessando em coluna apeada a bolanha de Finete na margem direita do Rio Geba.
Foto: © Humberto Reis (2006).
Chegara o momento da caça ao homem. Nós avançámos, tu começaste a usar a tua arma temível. E quando eu estava a avaliar os estragos e a preparar o ataque, ouviu- se um urro medonho, e eu só me lembro de te ver numa rodilha de carne dilacerada, em rios de sangue. Soubemos logo o que aconteceu. Meteras um cartucho de bala real, prepararas a tua condenação. Ergui a tua cabeça e tu disseste-me baixinho: "Alferes, dá-me um tiro para acabar tudo". Afastei-te a espingarda, o Jolá rasgou-te o dólman, tirou-te os restos das botas. Tu estavas muito mal, o braço esquerdo todo rasgado, buracos no peito, estilhaços nas pernas, pensei que tinhas perdido os dois olhos, tal o mar de sangue. À nossa volta, na zona de combate, estava tudo juncado de comida, panos, esteiras, granadas, cartucheiras, tudo o que os guerrilheiros tiveram de abandonar para fugir rapidamente.
Isto passou-se exactamente há 36 anos. Chegou o momento da confidência mais dolorosa: ninguém quis pegar em ti. Não por estares a morrer, mas por seres cabo-verdiano. Nesse dia, eu confirmei na carne quanto pesa um ódio. Tu repetiste: "Não vale a pena, estou perdido. Atira-me na testa". Dizem que é um acorde viril do macho estropiado, pedir a morte quando jorram os intestinos ou se perdem as pernas numa mina. Então, pedi ao Teixeira e ao enfermeiro Sérgio para se porem à frente da coluna e começámos a retirar. O Jau e o Cibo puseram-te às minhas costas. Retirámos aos tombos, eu levava entre os dentes o teu braço esfacelado, e vamos percorrer os quilómetros mais dolorosos da minha vida até chegarmos ao anfiteatro de Chicri. Não sei quanto tempo durou esta viagem alucinante. Finalmente, depositei-te, cheio de ternura, no chão. O Teixeira tentou uma ligação, a ver se conseguia que um helicóptero te viesse buscar. Não se conseguiu a ligação. O Sol estava no zénite. Tomei a decisão de ir a Missirá buscar uma viatura e reforços, improvisou-se uma maca, retirei com seis homens enquanto o resto da coluna seguia para a curva de Ganturé. Nova corrida para o quartel de Missirá. Ainda parámos uns minutos no Gambiel para matarmos a sede. Depois, uma corrida de 10 quilómetros até avistarmos os cajueiros amigos e o arame farpado de Missirá.
Acorria gente de todos os lados. Fez-se um silêncio sepulcral quando me viram, a farda empapada em sangue. Dei ordens. Queria uma viatura, garrafões cheios de água, um colchão, medicamentos. Ao contrário das tragédias gregas, ninguém comentava nem perguntava. Surgiu Malã, sempre resignado, vidente, brumoso. Não foi preciso dizer nada. E partimos, à procura da curva de Ganturé e de um helicóptero bendito.
Tenho outra confissão a fazer-te. Olhando as minhas mãos cheias de sangue, entre a vontade de chegar ao pé de ti e de me atirar para o chão a dormir só me lembrava das figurinhas de barro de um presépio que tu não irias partilhar connosco. Fomos até Bambadinca, onde foste evacuado para o Hospital de Bissau. O médico do Batalhão deu-me poucas esperanças, tinhas perdido muito sangue e era muito grande o estado de choque.
Regressámos a Missirá depois de eu ter feito o relatório dos acontecimentos. Lembras-te do meu abrigo, não lembras? Aquelas centenas de discos e os livros espalhados por toda a parte? Ardeu tudo em Março de 69. Tu rias-te com as minhas óperas e com aquela música, lembras-te?
E assim chegou a noite fria do Natal, fria no meu coração. Perto da meia-noite, o Teixeira veio chamar-me. No nosso refeitório, a um canto, iluminava-se o presépio. Estávamos todos com um nó na garganta. E, então, contei a todos que o teu corpo estropiado iria renascer de tanto sangue inocente derramado.
Estou a falar-te muito devagar, para calar a emoção. Desculpa se estas memórias te ferem. Estamos no Natal, e ter-te aqui, à minha frente, 36 anos depois, é uma grande alegria. Eu sabia que tu ias recuperando, que ficaras cego e aleijado. Depois do 25 de Abril, deram-me notícias de que casaras mas ninguém sabia do teu paradeiro. Esta história de Chicri, eu não sabia o que fazer dela. Receei voltar a ver-te, já que não sabia o que te dizer. Agora, olhando-te de frente, sei que sobreviveste para lembrar aos homens da tua pátria e da minha que houve milhares de presépios de Chicri perdidos ou esquecidos. Mas tenho uma surpresa para ti: as figurinhas de barro que foste comprar a Bafatá estão aqui para as levares.
Como é bom tu teres vindo e trazeres-me o alívio de tantos quilómetros de sangue e sofrimento. Quando vocês bateram à porta, estava precisamente a ler estes versos:
Não seja esta noite, agora e sempre,
Igual às outras noites.
Não seja esta noite, agora e sempre,
Igual às outras noites:
Tumba de carne viva em ódio amortalhada,
Anunciando sangue e pranto e morte.
Não seja esta noite, agora e sempre,
Igual às outras noites.
É bonito, não é? Foram 36 anos de dor que tu vieste hoje apagar. Vamos celebrar, finalmente, um Natal tão adiado. Nunca ninguém poderá saber como é bom poderes estar ao pé de mim!
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Notas de L.G.
(1) Vd. post de 8 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVI: Setembro/69 (Parte I) - Op Pato Rufia ou o primeiro golpe de mão da CCAÇ 12
(2) Chicri: Vd. mapa de Bambadinca. Chicri ficava acima do Mato Cão.
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