Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Estrada Finete-Missirá > 1969 > O Fur Mil Reis (à esquerda) e o Alf Mil Carlão (à direita), do 2º Gr Comb da CCAÇ 12 examinam o estado em que ficou a viatura (Unimog 404) em que seguia o Alf Mil Beja Santos, comandante do Pel Caç Nat 52, quando accionou uma mina anticarro, no dia 16 de Outubro de 1969, por volta das 18h00, na zona de Canturé. O accionamento da mina foi seguido de emboscada. A NT, que seguiam em coluna de reabastecimento ao destacamento de Missirá, sofreram um morto (sold condutor Manuel Guerreiro Jorge, da CCS do NCAÇ 2852) e quatro feridos (1º cabo Alcino Barbosa e o sold Cherno Suabe, ambos do Pel Caç Nat 52; 2º Sarg Milícia Albino Mamadu Baldé, do Pel Mil 101; Sold Trms Arlindo Guiomar Bairrada, do Pel Mort 2106/CCS do BCAÇ 2852).O Pel Caç Nat 52 foi depois transferido para Bambadinca, sendo substituído, em Novembro de 1969, pelo Pel Caç Nat 54, comandado pelo Alf Mil Correia, devido ao grande desgaste a que tinha estado sujeito nos últimos meses.
Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
© Humberto Reis (2006)
Carta a Alcino Barbosa, com muita intranquilidade
Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70)
Alcino, esta carta está escrita no meu coração desde o dia 16 de Outubro de 1969, quando tu passaste a ser sinistrado de guerra. Até então, tu eras o 1º cabo a quem eu confiava a manutenção da dispensa, a preparação das escalas dos turnos da noite, a limpeza das metralhadoras nos abrigos, a elaboração da lista das munições que traríamos do batalhão.
Enviaram-me agora uma fotografia da Capela de Bambadinca, e a minha primeira recordação foi para ti. Um dia, regressava eu de um coluna do Xime, e alguém da secretaria me informou da tua chegada. Recordo um jovem transido, a olhar-me apavorado. Devem ter dito de mim cobras e lagartos, que ias para o inferno de Missirá sob o comando de um louco que andava permanentemente na mata. Tu vinhas substituir o Raposo, a quem apliquei 10 dias de prisão por ter adormecido no posto de sentinela. Apanhaste a fase épica da reconstrução do quartel, depois dos incêndios de Março, que devoraram as moranças, abrigos, depósitos. Ajudaste-me imenso. Eras reservado, o meu irmão mais novo a quem eu entregava aspectos de logística que me enfastiavam. Sei que adoeceste um dia que recebeste uma carta, sabe-se lá que calúnias ou suspeitas infundiram sobre o teu ânimo. Mas eu continuo a ver-te a tremer junto à Capela de Bambadinca, assombrado com a guerra que se aproximava. Eras um camponês, e ao longo destes anos eu interrogo-me sobre o que tens feito na vida, coxeando na tua fractura de calcâneo. Ora eu sou inteiramente responsável por tudo quanto se passou em Ganturé, pelas 18 horas de 15 de Outubro, e tu uma das minhas vítimas. Segue a minha confissão.
Os meses de Agosto e Setembro foram tumultosos, com operações, patrulhamentos diários a Mato Cão, a montar a vigilância às lanchas que navegavam até ao porto de Bambadinca. Tu deves estar recordado que em Agosto, entraste afogueado no meu abrigo aos gritos:
- O Furriel Casanova diz que vai matar toda a gente!.
Quando cheguei à porta do abrigo, de facto o Casanova andava de metralhadora em punho a ameaçar toda a gente de morte, caso lhe desobedecessem. Alguns soldados riam, pensando que se tratava de uma paródia. Mas não. Os nervos do Casanova tinham cedido. Demorei meia hora a avançar para ele, ele gritava:
- Não se mexa, mais um passo e dou-lhe um tiro na cara!
Quando lhe tirei a arma pelo tapa-chamas, ele caiu redondo no chão da parada. Como te recordas, foi evacuado e não mais voltou. Era assim a nossa guerra, eu via-te triste, penso que tu estavas muito distante, mordido de saudades da tua gente.
A 15 de Outubro devíamos ter regressado mais cedo. O Comandante local do PAIGC, Corca Só, já me tinha ameaçado de morte, tendo mesmo deixado um bilhete na estrada. Saímos tardíssimo de Finete, o sol a cair a pique, como acontece nos trópicos.
Mandava o bom senso que eu desse ouvidos ao nosso condutor, Manuel Guerreiro Jorge, que me pediu insistentemente que ficássemos em Finete. O Unimog 404 vinha carregado de combustível, rolos de arame farpado, munições e alimentos. E em Ganturé a roda dianteira do lado do condutor pisou a mina anti-carro que desfez completamente a frente da viatura.
Os minutos que se seguiram foram de apocalipse e caos, à altura daquela guerra. Saí com a G3 na mão e foi o que me valeu. O Cherno, que seguia no guincho, desapareceu, isto quando o guincho ficou completamente retorcido. O Cherno apareceu a dezenas de metros de distância, feito num Cristo, felizmente andou pelos ares e aterrou num morro de baga-baga. O desastre maior foi mesmo o Manuel Guerreiro Jorge que ficou desfeito da cintura para baixo e já chegou morto a Finete. Estou neste momento com a carta que o pai dele me escreveu quando regressei a Portugal, pedindo-me para o ir visitar ao Monte da Cabrita, Santana da Serra, concelho de Ourique. Prometi ao Sr Jesuíno Inácio Jorge ir visitá-lo em breve, o que nunca aconteceu.
De acordo com o relatório que fiz sobre esta emboscada e accionamento da mina anti-carro, tu ficaste ferido, bem como o Comandante da Milícia de Missirá, Albino Mamadu Baldé e o soldado Arlindo Bairrada. Imagina tu que o Bairrada foi ferido com estilhaços num saco lacrimal, andou com um olho pensado durante semanas e recompôs-se rapidamente. Também perdi o rasto do Bairrada.
Não sei se deva contar como foi a nossa retirada até Finete, para vir buscar reforços. Os soldados válidos ficaram a tomar conta dos feridos. Retirei com crianças, com uma granada em cada mão. Em Bambadinca, encontrei a solidariedade do costume, regressei a Finete com o médico, David Payne (já falecido) e com o Alferes Reis, o sapador (nunca se recompôs da guerra, aparece-me no meu trabalho de vez em quando, sofre da mania da perseguição) e no dia seguinte, após a vossa evacuação por helicóptero, regressei a Missirá. Era minha intenção escrever-te, e depois visitar-te no Hospital Militar.
Escrevo-te agora pedindo-te perdão pelo meu silêncio e pela minha ausência. É legítimo que tu nunca me perdoes a minha incúria naquela guerra demencial, onde eu arriscava tudo, esquecendo-me que comandava homens, jovens da minha idade. Devia ter-te procurado. E de vez em quando sinto-me intranquilo sabendo que tu, meu caríssimo Alcino, merecias que te tivesse procurado, dado companhia e confirmado a amizade que sempre senti por ti.
Não sei exactamente porque te estou a escrever hoje. Creio que o detonador foi a tal fotografia da Capela de Bambadinca, onde muito perto te conheci. Estamos numa idade em que não vale a pena guardar rancores e só me resta ter pena deste meu estúpido silêncio que alivio agora com esta confissão. A ver se ganho coragem para descobrir onde tu paras e tentar dar força à nossa amizade.
E se acaso leres esta carta, tal como nós dizíamos nos aerogramas, espero que a mesma te encontre cheio de saúde e prosperidade.
Teu, Mário Beja Santos.
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