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quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25910: Historiografia da presença portuguesa em África (439): Zurara, o controverso cronista e primeiro historiador da Guiné (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Maio de 2024:

Queridos amigos,
Há na atualidade versões de um português modernizado que podem suscitar a atenção de quem se interessa pela obra daquele que foi o historiador hagiógrafo do Infante D. Henrique e que, com o concurso do testemunho oral, deu um quadro sequencial às navegações do Infante até a um período próximo da sua morte (1460). Um conjunto de historiadores, ao longo do século XX, dão uma leitura prudente de Zurara, ele comete omissões de peso, muito provavelmente aproveitou-se do trabalho de Afonso de Cerveira, habilmente nunca refere essa fonte. Atenda-se às críticas feitas à obra de Zurara por Duarte Leite, Fontoura da Costa, Barradas de Carvalho e Vitorino Magalhães Godinho, entre outros. Mas como diz Rodrigues Lapa há por vezes no trabalho historiográfico de Zurara textos de enorme talento.

Um abraço do
Mário


Zurara, o controverso cronista e primeiro historiador da Guiné

Mário Beja Santos

De há muito que o trabalho historiográfico de Zurara, com a preponderante Crónica dos Feitos da Guiné tem sido alvo de críticas fundamentadas de historiadores de várias gerações, como aqui se tem feito referência. Pego agora na seleção feita pelo eminente estudiosos Rodrigues Lapa para a coleção Textos Literários, um acontecimento cultural de grande peso onde Rodrigues Lapa teve um desempenho determinante. Falando nos dados biográficos de Zurara, sabe-se que só bastante tarde aprendeu as letras, segundo informação que nos é fornecido pelo latinista Mateus de Pisano, mestre de D. Afonso V, que dá a saber que este historiador do Infante D. Henrique aprendeu as letras em idade madura. E Rodrigues Lapa comenta este testemunho:
“Vem confirmar um seu defeito: o seu autodidatismo serôdio criou em Zurara uma vaidade ingénua, que gostava de se expandir em citações de fácil erudição. Não se sabe a ocupação de Zurara até aos 35 ou 40 anos. O mais provável é que enquanto jovem escudeiro fosse empregado no tombo das escrituras, guardadas na Torre do Castelo, e aí auxiliasse, como escrivão, o decrépito e glorioso Fernão Lopes. D. Afonso V encarregou Zurara de continuar a crónica de D. João I e que Fernão Lopes deixara no período de 1411. A Crónica da Tomada de Ceuta deve ter agradado aos círculos da Corte. Zurara, o plebeu engradecido, lisonjeava agora os poderosos, choveram benesses e honrarias, foi promovido a cavaleiro da Casa Real e bibliotecário do Paço e cronista, entrou na Ordem de Cristo como comendador de Alcains, certamente por interceção do Infante D. Henrique. Faltava ainda relatar as navegações ao longo da costa africana e o descobrimento de novas terras. O livro foi rapidamente composto, encarregado de o fazer em 1452, no ano seguinte estava pronta a Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné.”
Questiona-se como foi possível em tão curto espaço de tempo elaborar tal documento. Zurara dava muita importância ao testemunho dos navegadores do tempo. Ainda hoje parece incompreensível como a Crónica da Guiné jazeu durante séculos ignorada, até que em 1841 foi publicada sob um manuscrito existente na Biblioteca Nacional de Paris.

Rodrigues Lapa compara a obra de Zurara com a de Fernão Gomes, que não utilizou o testemunho oral, e que fundamentou o seu trabalho nos documentos escritos. “Temos, pois, em Fernão Lopes e em Zurara duas conceções da história: o primeiro, escrevendo a rogo do racionalista D. Duarte, funda-se no documento escrito; o segundo, escrevendo em instâncias do humanista D. Afonso V, baseia-se sobretudo no testemunho oral. Zurara teve consciência dos perigos do seu método, acresce que escolheu o seu herói, o Infante D. Henrique, a tudo sacrificou a verdade histórica, e comprovadamente foi acusado de ter praticado fraude na Torre do Tombo.” Com todos os seus defeitos e qualidades, Zurara é um apreciável escritor que apresenta na história os novos rumos da nacionalidade. Assegurada a independência do país, faz-se a política de expansão e conquista: a tomada das Praças do Norte de África e a exploração marítima da costa ocidental. Zurara é o historiador dessa época. Fernão Lopes ter-nos-ia dado talvez um quadro diferente; mas Fernão Lopes é um génio excecional, e Zurara foi apenas um cronista aplicado e por vezes talentoso. Acontece, contudo, que uma ou outra vez atinge a verdadeira arte como num quadro dos preparativos da tomada de Ceuta e nas cenas antes do assalto. Aqui chega a emparceirar com Fernão Lopes. Rodrigues Lapa, relativamente à Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné, escolheu o retrato que Zurara dava do Infante D. Henrique, o que se sabia sobre o Mar Tenebroso, a chegada dos cativos de África a Lagos, talvez a mais comovente das suas descrições.

Quem pretenda aprofundar o valor historiográfico de Zurara e conhecer um pouco melhor a Crónica da Guiné, recomenda-se a edição da Livraria Civilização Editora, tem uma prosa mais modernizada e a introdução que José de Bragança fez para a mesma em 1937, aqui se explica como o documento de Zurara foi fundamental para desmontar as mentiras grosseiras que a França apresentava sobre os seus direitos na Costa da Guiné, tinha-se inventado que corsários normandos ali tinham chegado em 1364. O documento da Biblioteca Nacional de Paris também foi importante para o conhecimento do retrato do Infante, alguns peritos atribuíram logo pelos chamados Painéis de S. Vicente a figura do Infante, coberta pelo mesmo chapeirão negro que consta da biblioteca parisiense. Zurara procede à cronologia dos acontecimentos das navegações, relevando a passagem do Cabo Bojador, em 1434, por Gil Eanes. A crónica refere também o Mar Tenebroso, lenda de grande peso na Idade Média. José de Bragança não deixa de observar o sistemático silencio na Crónica da Guiné não só a respeito dos lucros com o tráfico de ouro em pó, das relações comerciais com os povos africanos do interior, mas também quanto às feitorias que o Infante mandou levantar em diferentes pontos da costa, e mesmo o que ele diz sobre o resgate de escravos tem pouca importância na crónica. Isto tudo vem a propósito de como se dele ver com prudência o documento de Zurara. Sabe-se que foi documentação que o Infante D. Henrique só depois da morte do Infante Santo (1443) começou a edificar no extremo ocidente do Algarve uma vila, onde os barcos dos mercadores pudessem encontrar poiso, a sua localização é alvo de opiniões contraditórias, tem mais peso a que atribuiu a Vila do Infante edificada na pequena península de Sagres.

Em termos de divulgação, dá-se relevo ao capítulo VII referente às cinco razões pelas quais o Infante foi movido mandar buscar as terras da Guiné; temos depois os capítulos XXIV, XXV, XXVI e XXVII, o primeiro dedicado ao quadro de sofrimento dos escravos em Lagos, os cativos chorando, todos em alvoroço, o Infante em cima de um poderoso cavalo; como o Infante mandou Gonçalo de Sintra à Guiné e ali morreu, seguiu-se, pelo adiante as viagens dos navegadores até ao Rio do Ouro, isto na edição da Crónica da introdução de José de Bragança, a edição de Rodrigues Lapa foca-se no retrato do infante, no que se pensava sobre o Mar Tenebroso e como o Infante, diz Zurara homem de mui grande autoridade, ouvindo Gil Eanes que trazia algum sinal da terra por onde Arara, encheu de contentamento o terceiro filho de D. João I que logo a seguir mandou armar um pequeno navio de carga onde seguiu Afonso Gonçalves Baldaia. Rodrigues Lapa também destaca a importância do texto sobre os cativos de África em Lagos, e fica-se por aqui, atenda-se que esta coleção de textos literários tinha uma importância primordial para os alunos de Letras no terceiro ciclo dos liceus e mesmo para certos cursos das Faculdades de Letras.
Uma das mais interessantes edições da Crónica da Guiné, com ortografia modernizada e uma interessante introdução de José de Bragança, Livraria Civilização Editora, 1973
Estátua de Zurara num monumento dedicado a Camões, no Chiado
Escultura de Zurara no Padrão dos Descobrimentos
O infante D. Henrique. Página de rosto da Crónica da Guiné, escrita por Gomes Eanes de Zurara, em 1453, ainda em vida do Infante

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Nota do editor

Último post da série de 28 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25890: Historiografia da presença portuguesa em África (438): O anuário turístico da Guiné, 1963-1964 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 31 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25798: Historiografia da presença portuguesa em África (434): Na sua "Memória - Sobre a Prioridade dos Descobrimentos Portugueses na Costa da África Ocidental, Para servir de ilustração À Crónica da Conquista da Guiné de Zurara"; Paris, Livraria Portuguesa de J. -P. Aillaud,1841, o 2.º Visconde de Santarém refuta os falsos argumentos da França sobre a Guiné (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Fevereiro de 2024:

Queridos amigos,
Creio que a chamada Questão do Casamansa tem vindo a ser tratada aqui no blogue com uma certa pertinência. É uma trágica sequela de um período de indiscutível abandono da nossa presença nesta região de África, houvera a formal abolição da escravatura, a França não escondia o seu apetite de estar presente e comerciar em exclusivo no território que corresponde ao Senegal, a Inglaterra também reivindicou a sua presença, forjou a Gâmbia, assentou arraiais na Serra Leoa, a Senegâmbia Portuguesa foi ficando cada vez mais espalmada e sempre disputada, os franceses pretenderam mesmo dominar Bissau, os régulos locais repudiaram-nos, quiseram também o Ilhéu do Rei, deu trabalho a afastá-los; os ingleses tudo fizeram para colonizar Bolama. Em termos de negociações diplomáticas, Paris teve a ousadia de argumentar com a presença dos normandos na região, em meados do século XIV. Vivendo em Paris, onde deixou um legado científico de incalculável valor, o 2.º Visconde de Santarém elaborou uma Memória que deitou por terra a falaciosa justificação francesa para se apoderar do Casamansa. É uma síntese dessa Memória que aqui se faz referência, tenho para mim que é peça fundamental para o estudo da presença portuguesa na Guiné.

Um abraço do
Mário



O 2.º Visconde de Santarém refuta os falsos argumentos da França sobre a Guiné

Mário Beja Santos

O 2.º Visconde de Santarém é uma das mais notáveis figuras da cultura portuguesa da primeira metade do século XIX, investigador distintíssimo na cartografia e nas análises feitas ao período dos Descobrimentos portugueses, mormente na África Ocidental. A sua "Memória - Sobre a Prioridade dos Descobrimentos Portugueses na Costa da África Ocidental, para servir de ilustração à Crónica da Conquista da Guiné de Zurara", publicada em Paris, na Livraria Portuguesa de J. -P. Aillaud, em 1841, é sem margem para dúvidas o documento mais incisivo que serviu para refutar os alegados fundamentos de diplomacia francesa de que este país fora o primeiro a chegar a esta região da costa africana. O Visconde de Santarém, devido à sua fidelidade ao ideário miguelista, exilou-se em Paris depois da Convenção de Évora Monte, não mais voltou a Portugal, recusou o convite que D. Pedro IV lhe fez para regressar. Estudioso emérito, dedicou-se à cartografia, deve-se-lhe a descoberta na Biblioteca Nacional de Paris da Crónica de Zurara onde supostamente se retém a imagem do Infante D. Henrique, e conhecedor da falaciosa argumentação francesa sobre a sua presença anterior à dos portugueses na costa africana, atirou-se ao trabalho, o resultado é esta Memória, peça fundamental para o estudo da presença portuguesa na região.

Veja-se sumariamente a argumentação do investigador, o rigor da sua fundamentação, e como ela pôs cobro às falsidades e devaneios de pretensos historiadores franceses.

Até aos fins do século XVI nenhum escritor estrangeiro nos disputou a prioridade dos nossos Descobrimentos na Costa Ocidental de África, somente no meado do século XVII apresentou um certo Villant de Bellefond, viajante francês, reclamando, sem prova alguma, a prioridade daqueles Descobrimentos a favor dos marítimos de Dieppe, que, segundo ele, tinham fundado estabelecimentos na Guiné, em 1364. Vários escritores o copiaram depois, e posto que os mais sábios geógrafos de todas as nações que escreveram depois de Villant, e mesmo alguns dos franceses, não admitiram aquela suposta prioridade; contudo, três obras importantes, publicadas nestes últimos anos em França, vieram de novo ressuscitar a pretensão da dita suposta prioridade dos Descobrimentos dos marítimos de Dieppe, fundando-se principalmente na relação daquele viajante do meado do século XVII.

Restabelecer, pois, os factos, e mostrar com documentos de indubitável fé que a tal pretendida prioridade dos Descobrimentos dos marítimos de Dieppe do século XIV é insustentável, tal é o objeto da presente Memória.

Fala o autor francês dos navios destes portos de Dieppe que devastaram todos os países desde o Elba ao estreito de Gibraltar, e que estes normandos terão limitado as suas navegações aos confins da Mauritânia.

É um facto histórico de indubitável fé que os peninsulares ibéricos sujeitos aos árabes e cristãos passaram frequentes vezes a África. Não se pode sustentar à vista destes factos que os normandos desde a sua aparição no século IX, onde só apareceram como piratas, pudessem ter estabelecido relações comerciais com África; os portugueses instruíram-se na geografia de África nas escolas árabes que existiam na Península, principalmente durante a dinastia Omíada.

A data publicada pelos autores que referem a presença normanda é de 1365 e o Visconde de Santarém responde:
“Recorremos a documentos autênticos que provam que já antes de 1336 tínhamos começado as nossas navegações além do Cabo Não. Se acaso aqueles supostos estabelecimentos franceses tivessem ali sido fundados em 1385, como eles dizem, teriam sido indicados nas minuciosas cartas feitas imediatamente depois, e pelo menos a parte hidrográfica daquelas costas ali se acharia marcada, mas, pelo contrário, na carta de Piziani de 1367 não se encontra o menor vestígio do conhecimento daquele país.
As reações comerciais de um povo europeu, no estado em que se achava a Europa no século XIV não se podiam ocultar das outras nações, e muito menos a dos marítimos da Normandia se podiam ocultar aos portugueses que naquele século ali comerciavam.”


O Visconde de Santarém vem seguidamente argumentar com o texto da Crónica da Guiné de Zurara e enfatiza a sua argumentação anterior.

Nenhum escritor estrangeiro do século XV e ainda de quase todo o XVI disputou aos portugueses a prioridade dos seus Descobrimentos além do Cabo Bojador e da fundação dos estabelecimentos na Costa da África Ocidental.

Só depois do meado do século XVII, um certo Villant de Bellefond, que fez viagem à Costa da Guiné em 1666 e 1667, cuja relação dedicou a Colbert, julgou propósito, sem citar documento nem prova alguma das que exige a verdade histórica, indicar que os marítimos de Dieppe tinham sido os primeiros descobridores da Guiné, onde haviam fundado estabelecimentos em 1365.

É a parte capital e a mais demolidora da refutação que o aristocrata faz às teses sem pés nem cabeça de quem pretendia uma argumentação a favor da presença francesa, isto para demonstrar como eram legítimas as reivindicações da França para dominar o comércio no Casamansa. Não querendo cansar o leitor, avanço com exemplos dados pelo eminente cartógrafo.

Na carta de África do Atlas inédito feito por João Rotz, natural de Dieppe, e que este cosmógrafo desenhara para o rei de França, como diz na dedicatória, mas que ofereceu depois a Henrique VIII de Inglaterra, Atlas que é datado de 1542, e que é pintado em 18 grandes peles de pergaminho, toda a nomenclatura hidrográfica que se lê na costa de África Ocidental é portuguesa, e não faz menção entre ela do Petit Dieppe ou Lestro de Paris. Em um outro Atlas hidrográfico desenhado em Dieppe em 1547, composto de 15 cartas, por Nicolau Vallard, de Dieppe, o qual pertenceu ao príncipe de Tallyrand, toda a nomenclatura geográfica é portuguesa.

Prosseguindo toda a sua argumentação, o Visconde de Santarém refuta as teses inventadas e que a diplomacia francesa brandia nas conversações com o Governo de Lisboa. Argumentação manhosa em toda a linha, começa-se por dizer que é inquestionável a presença portuguesa em Ziguinchor, funda-se um tanto à sorrelfa uma feitoria, ergue-se Carabane, foi um nunca mais parar de posse do Casamansa, onde lamentavelmente se ia apagando a presença portuguesa. E tudo se consumou com a Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886, a questão do Casamansa voltava-se definitivamente contra nós. E tudo começara com expedientes e mentiras que o Visconde de Santarém denunciou neste seu fabuloso documento editado em 1841, mas que não teve o condão de abrandar a ganância dos franceses.

Gomes Eanes de Zurara, tal como aparece idealizado na estátua de Luís de Camões, no Chiado
Carta hidrográfica da Guiné Portuguesa, 1844
Retrato do 2.º Visconde de Santarém, Manuel Francisco de Barros e Sousa da Mesquita de Macedo de Leitão e Carvalhosa, 1791-1856, na Sociedade de Geografia de Lisboa
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Nota do editor

Último post da série de 24 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25774: Historiografia da presença portuguesa em África (433): Fortunato de Almeida e a Guiné antes de 1920 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 5 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25606: Historiografia da presença portuguesa em África (426): João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (5) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Dezembro de 2023:

Queridos amigos,
Depois de nos dar a sequência dos acontecimentos por si considerados mais relevantes do que se passou na Guiné no século XVIII e em boa parte no século XIX, e de nos ter facultado a lista dos governadores de Cabo Verde e da Guiné até 1879, João Barreto espraia-se pelo papel desempenhado pela região no tráfico de escravos, tem a vincada preocupação de mostrar como este mercado negreiro era antiquíssimo e tolerado em vários continentes, a que a Europa não escapava, e dá-nos conta que tal comércio poucos benefícios mercantis trouxe à economia local e a Portugal, aponta o dedo à principal potência traficcante, a Inglaterra, e ao comércio praticado em larga escala por Espanha, França e Holanda, e apresenta os dados estatisticos conhecidos. Como aqui já se abordou no blogue, a historiografia referente ao tráfico negreiro no império português tem evoluído muito, é credor de novos olhares e apreciações modificadas. E assim entramos no Governo autónomo da Guiné, João Barreto revela-se incansável a falar das questões do Forreá e das sublevações que irão ultrapassar o século XIX, recordará que Bissau estará permanentemente causticada por ataques dos Papéis até 1915.

Um abraço do
Mário



João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (5)

Mário Beja Santos

Data de 1938 a "História da Guiné, 1418-1918", com prefácio do Coronel Leite Magalhães, antigo Governador da Guiné. Barreto foi médico do quadro e durante 12 anos fez serviço na Guiné, fizeram dele cidadão honorário bolamense. Médico, com interesses na Antropologia e obras publicadas sobre doenças tropicais, como adiante se falará.

Concluída a sua apreciação sobre os acontecimentos dominantes do século XVIII, e após nos ter dado a relação dos governadores de Cabo Verde e Guiné até à constituição do Governo autónomo da Guiné, João Barreto aborda o tráfico de escravos na região. Começa por observar que este tráfico, bem como o fenómeno da escravatura, existiu desde os tempos mais remotos da humanidade, os povos islâmicos intensificaram este tráfico, sobretudo na Costa Oriental de África; no Norte de África, os escravos necessários para os trabalhos dos conquistadores árabes provinham uma parte dos povos subjugados e presos de guerra e, outra parte, dos indígenas de raça negra que as caravanas iam comprar na Senegâmbia; os escravos pretos também eram vendidos a comerciante europeus, principalmente italianos, Veneza era um desses expoentes mercantis. O autor observa que as possessões portuguesas de África quase nenhum benefício tiveram deste comércio e dá os seguintes esclarecimentos: “Portugal não produzia os artigos de que os negreiros se utilizavam nas suas transações com os povos africanos: panos de algodão, bugigangas, contas, espelhos, ferro, etc. Era a Inglaterra que tinha por assim dizer o monopólio do fabrico destes artigos, eram os ingleses que maior proveito tiravam do comércio dos negros, sem falar do tráfico que faziam diretamente por conta própria.”

Abordando os escravos saídos da Guiné, e usando os dados do cronista Zurara, João Barreto conclui que nos primeiros oito anos (1441 e 1448) a média dos cativos importados em Portugal não foi além de 116 indivíduos por ano. “Escasseiam elementos de informação sobre as navegações à Costa da Guiné depois do ano de 1448. Sabemos que os indígenas do Senegal se mostravam refratários em entrar em relações com os nossos navegadores e só depois das viagens de Cadamosto e Diogo Gomes, em 1456, é que se resolveram a comerciar com os brancos. A partir de 1461, a exploração da região compreendida entre o Senegal e a Serra Leoa foi entregue aos moradores de Santiago. O número e o valor atribuído aos escravos importados deveriam ser registados no livro do almoxarifado da Ribeira Grande. Estes livros, porém, foram destruídos, escapando apenas os apontamentos relativos aos anos de 1513, 1514 e 1515. Foram enviados para Portugal e Espanha e uma boa parte ficou ao serviço dos cabo-verdianos e uma outra parte foi vendida aos mercadores espanhóis. Pode dizer-se que a escravatura moderna com todas as suas crueldades começou com o século XVI, quando os espanhóis resolveram colonizar as Antilhas, que Colombo acabara de descobrir.”

E, mais adiante, “Podemos concluir que durante o século XVI a média de escravos resgatados na zona da Guiné não foi além de 1500 por ano. Durante a dominação castelhana, o tráfico de escravos tomou considerável incremento. D. Francisco de Moura, antigo Governador de Cabo Verde, calculava em 1622 que só em barcos espanhóis contrabandistas seriam transportados cerca de 3 mil negros na roda do ano. Portugal era dos países que menos lucrava com todo esse tráfico feito de contrabando. A economia e as finanças de Cabo Verde chegaram ao nível mais baixo precisamente numa época que a escravatura atingiu o seu apogeu. Na segunda metade do século XVII, os ingleses encontravam-se instalados nos rios de Gâmbia e Serra Leoa. Nesta última colónia aproveitaram-se das guerras tribais para adquirir serviçais por preços ridículos, visto que os vencidos preferiam entregar-se gratuitamente aos negreiros a serem devorados pelos vencedores antropófagos. Por seu lado, os holandeses, tendo-se apoderados da ilha de Gorêa desde 1617, ficaram com o exclusivo do tráfico da região continental vizinha. E os franceses estabeleciam desde 1635 a Companhia da África Ocidental que, sob diversos nomes e direções, passou a exercer o comércio de escravos em notável escala desde o Cabo Branco até à Serra Leoa. Esta Companhia não só fazia da escravatura o objeto principal da sua atividade, mas até tinha um contrato com o seu Governo para o fornecimento de indígenas às Antilhas francesas e para as tripulações dos navios.”

Neste contexto, Barreto suaviza o papel dos portugueses no tráfico, dá como demonstrado como muito antes da Restauração de 1640 este comércio era liderado por estrangeiros e a atividade nos nossos portos era tão reduzida que os direitos aduaneiros não chegavam para cobrir as modestas despesas da Capitania de Cacheu. Ainda houve um contrato feito pela Nova Espanha com a Companhia de Cacheu e Cabo Verde para o fornecimento de 5 mil serviçais por ano, isto na última década do século XVII, mas a Companhia não pôde satisfazer completamente o serviço, tais e tantas as dificuldades levantadas pelas autoridades eclesiásticas. Nos princípios do século XVIII, segundo a estimativa do gerente da Companhia Francesa do Senegal, não se podiam exportar de Bissau mais de 400 escravos por ano.

Barreto enfatiza o papel primordial que Inglaterra teve neste mercado negreiro, como se processou depois a abolição do tráfico em Portugal, e remata dizendo “Se a escravatura foi um mal, condenável sobretudo nos seus abusos, Portugal teve nele um quinhão pequeno em relação a outros povos coloniais, seja pelo número de cativos de que se utilizou, seja pelos benefícios materiais que auferiu, seja pela forma benévola e paternal com que tratou os seus escravos.” Como aqui já se fez referência, a historiografia portuguesa sobre a escravatura tem tido enormes avanços. Basta lembrar o historiador Arlindo Caldeira e o seu livro "Escravos e Traficantes no Império Português", obra de referência.

E assim chegamos ao Governo autónomo da Guiné, Carta de Lei de 18 de março de 1879, assinam Fontes Pereira de Melo, Serpa Pimentel e Tomaz Ribeiro, determinando: que o território da Guiné Portuguesa formasse uma província independente de qualquer outra; que o seu governo tivesse sede na ilha de Bolama; e estipula vencimentos. Era o Governo autorizado a organizar um batalhão de artilharia e a fazer a aquisição de alguns barcos a vapor, e devia providenciar no sentido de estabelecer comunicações diretas entre a metrópole a nova província ultramarina. Criava-se a organização dos serviços públicos, o governador tinha como auxiliares o Conselho do Governo, a Junta Geral da Província, o Conselho da Província e a Junta de Fazenda Pública. A província da Guiné foi dividida em quatro concelhos: Bolama, Bissau, Cacheu e Buba; foi transferido de Cabo Verde para a Guiné o Batalhão de Caçadores n.º1 que pouco tempo depois provocava um movimento de insubordinação contra o Governador Agostinho Coelho.

E, seguidamente, Barreto centra a sua atenção num sem-número de operações militares e dá-nos conta dos graves acontecimentos do regulado do Forreá.


Trata-se da única fotografia que se conhece do médico João Barreto, imagem que me foi amavelmente concedida pelo historiador Valentino Viegas aquando do lançamento o opúsculo que lhe dedicou o seu neto Aires Barreto
Edifício do Museu da Escravatura e do Tráfico Negreiro em Cacheu, na Guiné-Bissau
Brasão de Fernão Gomes. Livro da Nobreza e Perfeiçam das Armas, de António Godinho, c. de 1516-1528
Comércio transatlântico de escravos (BBC)
Planta da Praça de S. José de Bissau em 1796
Imagem da fortaleza de Cacheu, 2005
Capa do livro de Arlindo Caldeira, Esfera dos Livros, 2013

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 29 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25580: Historiografia da presença portuguesa em África (425): João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (4) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 20 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25290: Historiografia da presença portuguesa em África (415): Cuidados a ter quando se lê a "Crónica dos Feitos da Guiné", de Gomes Eanes de Zurara (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Setembro de 2023:

Queridos amigos,
É facto que tem que se ler a Crónica dos Feitos da Guiné com sérias reservas, é opinião consensual de todos os investigadores da chamada expansão portuguesa. Fica-se ciente que este cronista-mor do reino não dispunha de elementos fundamentais dos relatos das navegações efetuadas no período henriquino, aí o historiador Duarte Leite fez críticas acerbas a erros e omissões, aqueles e estas incontestáveis. Joaquim Barradas de Carvalho lança o seu olhar numa outra dimensão, compara o que escreveu Zurara com o chamado "Manuscrito de Valentim Fernandes", este altamente depurado de considerações que seguramente o seu autor achava desnecessárias ou de duvidosa importância. Isto para dizer que o olhar de uma geração para uma outra anterior, um padrão cultural distinto (Zurara de cultura livresca, Valentim eminentemente pragmático) saldam-se em textos igualmente distintos, e o que Barradas de Carvalho procurava intencionalmente provar é hoje um dado incontestável, escreve-se de acordo com uma mentalidade, está-se marcado pelo tempo. A mim sobra-me a dúvida, vou apresentar Zurara como peça de abertura do meu trabalho ainda com mais reservas das que tinha antes de ler Joaquim Barradas de Carvalho...

Um abraço do
Mário



Cuidados a ter quando se lê a "Crónica dos Feitos da Guiné", de Gomes Eanes de Zurara

Mário Beja Santos

Ando entregue a uma empreitada de alguma dimensão, a antologia de obras imprescindíveis para conhecer a presença portuguesa numa colónia que se chamava Guiné, desde meados do século XV até ao fim da primeira metade do século XX, quando este território, mais do que fronteiras, ganhou organização e passou a ter um projeto consequente para o seu desenvolvimento (no sentido mais amplo), era seu Governador o Comandante Manuel Sarmento Rodrigues, o nome Guiné passara a ser mais do que um ponto das cartas e mapas.

Obviamente que é necessário procurar saber o rigor com que Zurara escreveu a sua crónica panegírico sobre os trabalhos do Infante. Comecei por ler alguns estudos de Vitorino Magalhães Godinho e dou com o ensaio de Joaquim Barradas de Carvalho na Revista de História n.º 15, julho-setembro, 1953, Ano IV, São Paulo, Brasil, publicação científica em que colaboraram alguns jovens historiadores portugueses marcadamente oposicionistas. O trabalho de Barradas de Carvalho é uma comparação entre o que escreveu Zurara e Valentim Fernandes, este um natural da Morávia, que se distinguiu como impressor em Lisboa, onde faleceu. A análise do historiador prende-se com a mentalidade, o tempo e os grupos sociais, é por isso que ele vai fazer o confronto entre os escritos de Zurara e Valentim Fernandes no que toca à "Crónica da Guiné" (o leitor mais interessado tem à sua disposição o texto integral no site: https://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/35728/38444).

Em 1837, na Biblioteca Nacional de Paris, Ferdinand Denis encontrou um manuscrito da "Crónica dos Feitos da Guiné", única obra contemporânea do Infante D. Henrique em que se relatam os seus descobrimentos africanos. A sua impressão ficará a ser devida ao Visconde de Santarém. Em 1847, é descoberto em Munique um códice que viria a ser editado pela Academia Portuguesa de História com o título "O Manuscrito Valentim Fernandes", onde há um texto intitulado “Crónica da Guiné”. Anos depois, em 1879, Ernesto do Canto revela a existência de cópias do manuscrito em Madrid e Munique, que se revelaram ser simplesmente cópias.

A "Crónica da Guiné" é posterior a 1460 (ano do falecimento do Infante), põem-se hipóteses altamente discutíveis quanto à organização do texto de Zurara, admite-se mesmo haver a junção do texto de Zurara com uma hipotética crónica de Afonso Cerveira, já que o texto não é homogéneo, mas o seu autor não faz menção de outros intervenientes. Zurara foi o cronista oficial e Guarda-mor da Torre do Tombo que sucedeu a Fernão Lopes, não se pode dizer que foi pessoa habilitada como investigador. A partir do século XX, os historiadores detetaram erros e deficiências no trabalho de Zurara. Uma das figuras gradas dos estudos da expansão portuguesa, Duarte Leite, identificou que esta crónica é pobre de dados sobre os produtos vindos da Guiné até ao reino, nada comenta do poder dos mouros ao longo do noroeste africano; não ficamos com a mínima ideia da configuração dos litorais, também a nomenclatura dos lugares sucessivamente achados é escassa, mas Duarte Leite não se ficou por aqui. Outro problema posto pelos historiados é conjeturar se a Crónica sofreu ou não censura quanto à política de sigilo, a opinião mais corrente é de que não houve censura, tais e tantas são as referências a estrangeiros que tiveram papel de relevo nestas viagens, como Cadamosto e Usodimare, acresce que se levaram para Veneza cartas de marear, eram relatados para Génova episódios das viagens, escreveram-se descrições como as Navegações de Cadamosto ou o "De prima inuentione Guinee", de Martim Behaim, a partir do relato oral de Diogo Gomes.

Jaime Cortesão, por seu lado, encontra duas espécies de deturpações na Crónica: umas feitas deliberadamente, outras provenientes da política de sigilo. Mas a generalidade dos historiadores considera imaginárias as conjeturas de Cortesão. Feita esta exposição de contextualização, Barradas de Carvalho alude aos quatro géneros de literatura de viagens (crónicas, descrições de viagens e de terras, diários de bordo e roteiros), e vai fixar-se exclusivamente no género crónica para comparar Zurara com o que posteriormente escreveu Valentim Fernandes.

O Manuscrito Valentim Fernandes, disse-se acima, foi descoberto em Munique em 1847. Dentro do acervo de escritos deste manuscrito há uma chamada “Crónica da Guiné”, dizendo o próprio Valentim Fernandes que foi dele autor Zurara. Os investigadores estão divididos quanto à autenticidade de tal manuscrito, há quem admita que é um resumo do códice de Paris ou cópia de Valentim Fernandes de um outro manuscrito. Dias Dinis é de opinião tratar-se de resumo e mutilação feita por Valentim Fernandes da obra de Zurara, Barradas de Carvalho também defende essa postura.

Mas o Estado de diferença dos dois textos de Zurara e Valentim permite observar duas mentalidades distintas: Valentim omite as razões pelas quais o Infante se sentiu movido a buscar as terras da Guiné, Zurara, para além de dar razões que hoje são estudadas como indiscutíveis, fala da astrologia judiciária como a mais importante das razões pelas quais o Infante se sentiu impulsionado às navegações da costa ocidental africana; Valentim não lhe faz uma só referência. Barradas de Carvalho toma posição. O resumo e arranjo da crónica feita por Valentim Fernandes assume um profundo significado. A mentalidade depende dos grupos sociais e depende do tempo. Valentim arranja a seu modo um texto de Zurara, homem que viveu noutro ambiente social e com uma outra experiência social. Há diferenças geracionais inequívocas. Sabemos que Valentim faz ressaltar, releva, no arranjo do texto de Zurara, ou mínima no mesmo texto, aspetos que definem duas intensões, duas valorizações das coisas e dos acontecimentos, dois graus de refinamento da utensilagem mental, haverá mesmo duas utensilagens. E, por isso, pergunta, quem foi Zurara e quem foi Valentim? Zurara foi um cronista palaciano em toda a aceção da palavra, cronista oficial e Guarda-mor da Torre do Tombo, cavaleiro da casa d’El Rei. Valentim, morávio, foi notário dos comerciantes alemães de Lisboa, a partir de 1503. Sabe-se ter sido editor e autor e um dos mais importantes, se não mesmo o mais importante dos impressores portugueses da época. São homens com experiência de vida, situações sociais e profissionais diversas. Valentim omitiu ou depurou textos da Crónica de Zurara, certamente pela simples razão de lhes conferir falta de substância; omitiu igualmente os textos transcritos por Zurara da Vertuosa Benfeytoria do Infante D. Pedro; Valentim substitui a quase totalidade dos algarismos peninsulares ou luso-romanos por algarismo árabes.

Em suma: Zurara era um cronista palaciano de mentalidade livresca e cavalheiresca; Valentim era um homem ligado à vida comercial do tempo, notado de mentalidade prática e com outra visão do mundo e das coisas.

Postas estas considerações sobre o que separava a mentalidade de Zurara de Valentim Fernandes, a mim fica-me uma questão fundamental por resolver e que tem a ver com a essência do escrito de Zurara, mais do que os seus erros este primeiro escrito sobre as navegações impulsionadas pelo Infante deixam-nos omissões de tomo, a despeito de se ficar com a ideia de que o Infante é visto inequivocamente como um senhor do seu tempo, entusiastas de cruzadas, ávido por saber os contornos do mundo desconhecido e ainda dotado de uma mentalidade medieval naquilo que hoje se configuram os direitos humanos.


Gomes Eanes de Zurara no Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa
Marca do impressor Valentim Fernandes
Joaquim Barradas de Carvalho (1920-1980)
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Nota do editor

Último post da série de 13 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25269: Historiografia da presença portuguesa em África (414): A Guiné na Exposição do Mundo Português, 1940, Lisboa (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 14 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24398: Historiografia da presença portuguesa em África (372): Revista de História, n.º 13, Janeiro-Março, Ano IV, 1953 - Um texto fundamental para o estudo da História da Guiné: Fontes quatrocentistas para a geografia e economia do Saara e da Guiné (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Novembro de 2022:

Queridos amigos,
Sem qualquer rebuço, escrevo insistentemente que a minha dívida com a Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa não tem preço. Ali me ajudam a encontrar textos de enorme valia para o estudo da História da Guiné. Ando eu à procura de uma arrumação sobre os textos fundamentais do século XV para o livro que estou a preparar Guiné, Bilhete de Identidade e concluo, depois de ler este admirável ensaio de Vitorino Magalhães Godinho que só é novo aquilo que se esqueceu ou se desconhece (em tantos casos, entenda-se, a genialidade da inovação também comanda a vida). Aquele que terá sido o maior historiador português do século XX, deixa bem claro que a obra de Zurara teve contributos de outrem, que Cadamosto era naturalmente um homem experiente e revelou-se um notável relator de viagens de grande importância para o futuro do conhecimento da costa ocidental africana; e que o Esmeraldo, de Duarte Pacheco Pereira marca a passagem de um cultura baseada no "ouvir dizer" para uma visão e um sentido da precisão e exatidão, é o pontapé de saída para um conhecimento científico na alvorada do Renascimento.

Um abraço do
Mário



Um texto fundamental para o estudo da História da Guiné:
Fontes quatrocentistas para a geografia e economia do Saara e da Guiné


Mário Beja Santos

Foi uma manhã abençoada, daquelas em que mudamos a rotação do olhar, basta embrenharmo-nos na leitura do ensaio para entender como há cerca de 70 anos, aquele que já era a grande promessa da historiografia portuguesa, Vitorino Magalhães Godinho, então a trabalhar no Centre National de la Recherche Scientifique, em Paris, já tinha esboçado o estudo das fontes matriciais que permitem o conhecimento que detínhamos da geografia e gentes da Guiné. Trata-se de um trabalho publicado numa publicação brasileira, Revista de História, n.º 13, Janeiro-Março, Ano IV, 1953. Revista de grande prestígio editada em São Paulo, nela irão colaborar outras importantes figuras da cultura portuguesa, como Joel Serrão ou Barradas de Carvalho.

O artigo intitula-se Fontes Quatrocentistas para a Geografia e Economia do Saara e Guiné. Vejamos sumariamente a argumentação do eminente historiador. Os cronistas marcam no Cabo Não o termo inicial dos Descobrimentos portugueses. Para o sul do Cabo Não pode dizer-se que não se realizaram conquistas e ocupações permanentes, no século XV e primeira metade do século XVI. Os intrusos lanceiam mouros, azenegues e negros, assaltam aldeias, roubam o que podem – como em Marrocos; mas descem do navio à praia, internam-se e regressam ao mar. Não são cavaleiros e escudeiros, instalados em praças fortes; são homens de bordo que ocasionalmente calcorreiam os caminhos de terra.

Há relatos, testemunhos dos próprios navegadores e mercadores onde perpassa um espírito muito diferentes do que anima as crónicas. Têm a frescura da visão direta que o cronista não pode dar. Atenda-se às fontes, as dos cronistas, as dos viajantes, mercadores, nautas.

A primeira das fontes é a Crónica dos Feitos da Guiné. O investigador Costa Pimpão, em resultado da análise que efetuou à obra, considera que se trata da cerzidura de duas obras diferentes: uma, a Crónica dos Feitos da Guiné propriamente dita, e a outra uma Crónica ou Livro dos Feitos do Infante D. Henrique, trabalho que terá sido efetuado, segundo Duarte Leite, pelo próprio Zurara. E o historiador põe na mesa a argumentação de diferentes especulações com o nome de Afonso de Cerveira como o primeiro autor da Crónica da Guiné. Tudo leva a querer que a questão é insolúvel. A perda da crónica de Cerveira, presumivelmente fonte quase exclusiva da obra de Zurara, fere irremediavelmente incerteza o valor da Crónica dos Feitos da Guiné que até nós chegou.

E o historiador enuncia as conclusões de Duarte Leite quanto ao valor da Crónica de Zurara: destina-se a narrar os feitos dos portugueses em África, quer dizer, a ser uma crónica de ações guerreiras, não é uma crónica dos Descobrimentos; as distâncias que aponta estão todas erradas por forte excesso; raras vezes apresenta as distâncias; omite frequentemente as datas de partida das viagens e nunca refere as datas de regresso; é muito pobre de informações no que respeita à maneira como se organizavam as expedições, etc., etc. Temos de reconhecer que as perplexidades se amontoam ao pretendermos utilizar a Crónica da Guiné para estabelecer o estudo económico e social das populações com quem os portugueses entraram em contacto.

Quando transitamos para a segunda em data das fontes que se reportam ao descobrimento da Guiné, o panorama muda integralmente. As Navegações de Alvise de Cadamosto são obras de um navegador e mercador que as escreveu em 1456 (ano da sua segunda viagem) e 1483 (ano presumível da sua morte). É muito natural que as Navegações se baseiem em apontamentos de bordo. Cadamosto não é o conservador de um arquivo, não é um homem de biblioteca, é o homem que viajou largamente, conhece a Itália, o Egito, Creta, o Norte de África, a Flandres, Portugal, a Guiné. É certo que em 1455 embarcou numa caravela, fez escala pelas ilhas de Porto Santo e Madeira e arquipélago das Canárias, navegou para o Sul, passando o Cabo Branco e ilha de Arguim, visitou a foz do rio Senegal e o país de Budomel, dobrou o Cabo Verde, chegou à Gâmbia. No ano seguinte, na companhia de Antoniotto Uso di Mare teriam descoberto Cabo Verde, teriam chegado ao rio Geba e aos Bijagós. Podemos ficar com uma quase certeza de que Cadamosto escreveu sobre o que viu, dispunha de uma atitude mental de curiosidade pela flora e fauna, pelos costumes, crenças e formas de organização dos povos que não encontramos nessa data para além dele em Portugal.

A conclusão análoga chegaríamos se comparássemos as Navegações de Cadamosto com as de Pedro de Sintra. As de Pedro de Sintra são muito mais concisas e mais pobres em dados sobre a natureza e os indígenas, é uma quase seca enumeração dos lugares percorridos por aquele navegador até 1462. Seja como for, a Navegação de Pedro Sintra é obra escrita ou ditada por um escrivão da época henriquina e, como tal, um excelente padrão dos diários de bordo, ao começar a segunda metade do século XV. A Navegação de Pedro Sintra descreve-nos a costa africana desde o Geba até à mata de Santa Maria.

Numa coletânea de obras sobre a expansão portuguesa, compilada por Valentim Fernandes entre 1506 e 1507, vêm insertos três textos latinos; trata-se de uma relação do descobrimento da Guiné redigida em latim sobre o relato (oral ou escrito?) que lhe fez Diogo Gomes. O que na Relação é de facto do antigo navegador e o que de imputar-se ao alemão não é fácil descriminar. Na enumeração e narrativa das navegações até 1448, há evidentes discrepâncias entre o relato de Diogo Gomes e o de Martinho da Boémia.

Apensado ao Itinerário do Dr. Jerónimo Munzer, anda uma Relação por ele redigida. Não se tem prestado atenção a esta obra, considerando-se geralmente que não passa da reprodução da de Diogo Gomes – Martinho da Boémia, foi escrita a D. João II, sugerindo-lhe um plano para atingir a Índia pelo Ocidente. A Relação de Munzer divide-se claramente em duas partes: a primeira, narra os Descobrimentos realizados em vida do Infante D. Henrique; a segunda, informa-nos acerca do clima e mar, flora e fauna, produções e comércio, guerras e religião da Guiné, bem como acerca das ilhas de São Tomé, Madeira e Açores.

O mais rico repositório de informações etnográficas sobre a África Ocidental setentrional é a coletânea de Valentim Fernandes, o Alemão. Valentim Fernandes não é navegador ou comerciantes, mas também não é cronista oficial, mas está em relações com todos estes meios. O chamado Manuscrito Valentim Fernandes constitui uma justaposição, quando não amálgama, de fontes heterogéneas que o alemão compilou, resumiu e redigiu sem qualquer perfeição ou sequer preocupação arquitetónica.

Temos ainda os relatos de João Fernandes e Álvaro Velho, cobrem todo o Saara Ocidental e a parte central e mesmo a Guiné ou Terra dos Negros, no sentido clássico do termo. As suas descrições não encerram qualquer elemento de maravilhoso ou sequer fantasia. Muito minuciosas, confirmaram, ou são confirmadas pelas fontes muçulmanas. São mais ricas mesmo, sobretudo para a Guiné Ocidental do que a obra Da África, Terceira Parte do Mundo, de João Leão, dito o africano. Uns 20 anos mais tarde, Duarte Pacheco Pereira principiará outro roteiro, o Esmeraldo de situ orbis (isto é, do sítio verde ou marítimo do orbe). O Esmeraldo é simultaneamente um compêndio de cosmografia e náutica astronómica que apresenta soluções novas e práticas, um roteiro muito completo no feixe de indicações de rumos, distâncias, enfim, é um compêndio de geografia comercial com elementos de geografia histórica. Mas o seu interesse e importância não reside somente na conexão das matérias que sistematicamente expõe, reside acima de tudo no espírito que o informa. Não é ainda o espírito científico, mas perpassa por toda a obra de Duarte Pacheco a ânsia da precisão, de mostrar pela experiência, há mesmo escrúpulo rigoroso na recolha dos dados. Escrito de 1505 a 1508, o Esmeraldo representa uma revolução cultural, de que não é aliás o único motor nem indício: a passagem de uma cultura sem sentido do possível e do impossível, baseada no “mais ou menos assim” e no “ouvir dizer” para o que poderíamos chamar o humanismo técnico: o sentido da precisão e exatidão, a preocupação pela medida, a busca de provas verificáveis.

Um notável artigo, até prova em contrário arruma as fontes quatrocentistas e estabelece o quadro informativo do que vínhamos a saber daquela costa ocidental africana, peça fundamental do projeto henriquino que abriu portas para o desencravamento do mundo.

Vitorino Magalhães Godinho (1918-2011)
Estátua de Zurara no pedestal do Monumento a Luís Vaz de Camões, de Victor Bastos
Mapa do rio Gâmbia e área limítrofes, c. 1732
Retrato de um africano, por Albrecht Dürer, 1508
Navegações de Cadamosto, nas suas duas viagens
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Nota do editor

Último poste da série de 7 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24375: Historiografia da presença portuguesa em África (371): As campanhas de pacificação na Guiné no livro "História do Exército Português", pelo General Ferreira Martins; Editorial Inquérito, 1945 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23480: Nota de leitura (1470): Como nasceram as fronteiras da Guiné-Bissau (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
É bem interessante o contexto histórico em que ocorreu a definição das fronteiras da Guiné. A presença portuguesa era praticamente inexpressiva, a diplomacia portuguesa queria o apoio de Paris para reconhecer a legitimidade dos nossos interesses nos territórios entre Angola e Moçambique. Foi dolorosa a perda do Casamansa, nem os comerciantes nem os autóctones desejaram o domínio francês, e ninguém na época ia supor que todo o Casamansa seria um pomo de discórdia quando se fundou o Senegal. Já aqui se divulgaram as notas de um brioso oficial da Marinha que foi até à região de Cacine e Kandiafará, nesta região havia mercado e não havia autoridades portuguesas. O artigo de Armando Tavares da Silva, que anda muito próximo do conteúdo do seu livro "A presença portuguesa na Guiné", descreve todas as peripécias que levarão à fixação das fronteiras, fazendo ver a todos esses apóstolos de hoje que batem a mão no peito sobre a nossa presença de cinco séculos a grande ilusão que se montou para se falar numa Guiné onde mal existiu o sopro de um verdadeiro colonialismo.

Um abraço do
Mário



Como nasceram as fronteiras da Guiné-Bissau

Mário Beja Santos

Armando Tavares da Silva, autor do livro "A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926", Caminhos Romanos, 2016, assina no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa aqui referido, o artigo A fixação das fronteiras da Guiné pela Convenção Luso-Francesa, texto que acompanha com grande proximidade o que ele publica no seu livro entre as páginas 127 e 148. Tratando-se de matéria de elevado interesse histórico, intenta-se um resumo das várias questões tratadas, visto que a partir de maio de 1886 houve em definitivo a definição de um território que até então conhecera inúmeras designações e de que se desconheciam todos os contornos.

A questão ganha premência com a crescente presença francesa na região do Casamansa, a Norte, e na região de Compony, a Sul, os franceses queriam alargar os seus domínios, não estavam satisfeitos em ficar à entrada do rio Casamansa, e queriam fazer recuar a presença portuguesa para lá de Cacine. Quem representava os interesses portugueses agia lentamente, num vai-e-vem de exposições e respostas diplomáticas que só nos prejudicava. Honório Pereira Barreto assistia ao perigo crescente e informou o Governador de Cabo Verde em maio de 1837. Novo vai-e-vem diplomático, a França invocava razões históricas para ali estar. É então que o visconde da Carreira se dirige ao Ministro dos Negócios Estrangeiros da França com as nossas provas históricas, dando ênfase à Crónica da Conquista da Guiné, de Zurara.

Armando Tavares da Silva repertoria um conjunto de incidentes na região do Casamansa, ora tira ora põe bandeira portuguesa ou francesa, caso dos incidentes de Adiana e Sindão. Recorde-se que a região Sul também estava sob cobiça, os franceses pretendiam comprimir a presença portuguesa para cima do rio Cacine, resta dizer que a presença de autoridades portuguesas era nula na região.

Depois de várias pressões da diplomacia francesa, e tendo já terminado a Conferência de Berlim, o governo de Paris manifesta disposição para negociar fronteiras não só na Senegâmbia como também sobre o litoral do Congo. O governo de Lisboa tenta separar a questão do Casamansa e de Cacine com a pretensão francesa da posse do território de Massabi. Certo e seguro, as negociações entre Portugal e a França irão ter lugar em 1885, a França insiste então não nos seus direitos históricos e utiliza uma expressão subtil: “em nós penetra a ideia que a solução para ser prática deve ser procurada mais nos factos do que nos arquivos”, evitando-se complicar a obtenção do acordo “por discussões onde cada um se acharia a produzir títulos históricos sem que eles possam conduzir a comissão a qualquer conclusão, uma vez que nós não teríamos qualidade para concluir, o que é desde já uma razão para os pôr de parte”.

Seguem-se propostas e contrapropostas, a diplomacia portuguesa dá sinais de transigência quanto às fronteiras da Guiné desde que se retire qualquer reivindicação francesa sobre o Massabi. E chega-se a uma sessão em 11 de janeiro de 1886 em que a questão dos rios Cacine e Compony vem à baila, a França não esconde que pretende um recuo da fronteira da possessão portuguesa para lá de Cacine, está muito interessada em conservar a posse da ilha Tristão na embocadura do Compony.

O governo de Lisboa, e continuamos em janeiro de 1886, declara abertamente que não pode aceitar o abandono dos territórios na margem esquerda do Massabi (ou Loema). No mês seguinte, a França insiste na posse da margem esquerda do Loema. Depois de algumas vicissitudes, entre elas a queda do governo de Lisboa, Portugal sacrifica o seu direito histórico no Casamansa e no rio Nuno. O político Barros Gomes escreve: “Para nenhuma das regiões além-mar poderia Portugal ostentar melhores títulos de posse do que para as regiões banhadas pelo Casamansa. Descoberta, conquista, ocupação efetiva, tratados celebrados com os potentados indígenas, convénios diplomáticos com as nações da Europa, remontando alguns ao século XV, tudo quanto pode constituir um direito e justificar a soberania, tudo pode ser alegado em favor do domínio de Portugal naqueles territórios, tudo tende a acentuar o sacrifício consumado com o seu abandono".

Perdia-se o Casamansa, lutava-se por uma fronteira mais folgada no Sul. A França deixa de insistir na sua presença no Massabi. E assim se chega ao projeto de convenção apresentado pela França, onde esta faz o reconhecimento do direito de Portugal exercer a sua influência nos territórios que separavam as possessões portuguesas de Angola e Moçambique, era uma vaga e inconsequente declaração formal, não terá qualquer peso face ao Ultimato. Durante as negociações, Portugal pretendeu que se mencionassem os limites dos territórios entre Angola e Moçambique, a França opôs-se liminarmente, fez reconhecimento “sob reserva dos direitos anteriormente adquiridos por outras potências”. A Convenção Luso-Francesa foi aprovada na Câmara dos Deputados a 2 de julho de 1887 e aprovada na Câmara dos Pares a 18 seguinte.

Em 25 de agosto de 1887 a Convenção foi assinada pelo rei D. Luís. Armando Tavares da Silva regista a extensa apreciação que a comissão de negócios externos da Câmara fez do projeto de lei, dava-se como as cedências no Casamansa compensadas tanto pelo rio Cacine como pelo reconhecimento que a França fazia de quase todo o território do Massabi e o da zona de exploração entre a província de Angola e Moçambique: “O rio Cacine e os territórios de uma e outra margem foram com efeito uma cessão a troca de outra, porque, embora as nossas descobertas e as nossas pretensões a domínio se estendessem ainda mais para o Sul, é certo que a posse efetiva pertencia à França”.

Estavam consumadas as fronteiras. Segue-se um período de tentativas de ocupação que só serão coroadas de êxito com as campanhas de Teixeira Pinto, é a partir daí que a administração portuguesa, de forma mínima, se irá internando até ao Gabú, descendo à península de Cacine e ao arquipélago dos Bijagós, finalmente submetido em 1936, com a capitulação do régulo de Canhambaque.

Monumento alusivo às campanhas do Canhambaque, imagem de Francisco Nogueira, publicada na obra "Bijagós, Património Arquitetónico", Edições Tinta da China, 2016, com a devida vénia.
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de Julho de 2022 > Guiné 61/74 - P23470: Nota de leitura (1469): Sobre Graça Falcão, a melhor fonte será porventura "A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926", de Armando Tavares da Silva; Caminhos Romanos, 2016 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 30 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23310: Notas de leitura (1450): “Viagens”, de Luís de Cadamosto, introdução e notas de Augusto Reis Machado, na Biblioteca das Grandes Viagens, Portugália Editora, sem data (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Setembro de 2019:

Queridos amigos,
Dispomos felizmente de uma riquíssima literatura de viagens em torno da chegada à Senegâmbia onde relevam nomes como Lemos Coelho, Duarte Pacheco Pereira, André Alvares d'Almada, André Donelha, Valentim Fernandes, entre outros, a que se podem adicionar leituras adicionais como a "Crónica da Guiné" de Zurara. Cadamosto não esconde ao que vem, quer fazer fortuna, procura ouro e comércio lucrativo. Põe-se ao serviço do Infante D. Henrique e aceita o mote de ir mais avante. Mas a sua narrativa é colorida, vivacíssima, revela um homem experiente e não só nas coisas do marear e comerciar. Sabe ver e comentar, é extremamente feliz nos retratos que nos deixa dos homens pardos e dos homens negros. Os historiadores apontam-lhe lacunas e incorreções, o que parece ser verdade, mas não desmerece do perfil das gentes, da sua economia, práticas religiosas. Sabe que está numa das fronteiras do império do Mali e que aqueles soberanos africanos são profundamente déspotas, tratam-se como semideuses. Todos temos a ganhar em conhecer as navegações deste veneziano que depois da morte do Infante ainda se coroou de êxitos entre Veneza, a Dalmácia e Alexandria.

Um abraço do
Mário


Viagens de Luís de Cadamosto e Pedro de Sintra:
Relatos incontornáveis e de alto nível da literatura de viagens (2)


Beja Santos

De Cadamosto e Pedro de Sintra já aqui se fez larga referência ao trabalho do professor Damião Peres na Academia das Ciências, em 1948. Procura-se agora cotejar alguns aspetos essenciais de uma obra de divulgação que estranhamente não se reeditou, intitulada “Viagens”, de Luís de Cadamosto, introdução e notas de Augusto Reis Machado, na Biblioteca das Grandes Viagens, Portugália Editora, sem data. Esta obra de divulgação foi extraída da Coleção de Notícias para a História e Geografia das Nações Ultramarinas que vivem nos Domínios Portugueses, tomo organizado pelo académico Sebastião Francisco de Mendo Trigoso (1773-1821). Figura nas anteriores edições com o título de “Navegações”.

Estamos ainda na primeira viagem, passou-se o Cabo Branco, foram referenciados os Azenegues e chegou-se ao Senegal, cujas caraterísticas de produção Cadamosto comenta do seguinte modo: “Neste reino do Senegal, e dele para diante, em terra nenhuma da negraria, nasce trigo, nem centeio, nem cevada, nem aveia, nem uvas, e isto porque o país é tão quente que não tem chuvas nove meses do ano; e por causa deste grande calor não se pode dar o trigo, tendo experimentado semeá-lo daquele que nós os cristãos lhe temos levado, porque o trigo quer terra temperada e muitas vezes chuva; e assim o seu pão é feito de milho de diversas castas, têm favas e feijões que nascem e se criam os mais belos e grandes do mundo; o feijão é grosso como uma avelã grande das nossas cultivadas. A fava é larga, chata e vermelha, de uma cor viva. Lavram as terras, semeiam e colhem no tempo de três meses. São péssimos lavradores e homens que se não querem cansar a semear, senão quando lhes basta para comer todo o ano escassamente”.

É largo nos elogios aos prodígios da natureza: “Têm frutos de diversas qualidades semelhantes aos nossos, e ainda que não sejam cultivados como aqueles, são bons; e eles os comem sendo de floresta, isto é: silvestres e não fechados em pomares; penso, porém que se os tratassem como nós fazemos e cultivassem, criariam frutos bons e perfeitos, porque a qualidade do ar e do terreno é boa, sendo todo o país de campina capaz para produzir. Há bons pastos com infinitas árvores grandes e belíssimas, mas por nós não conhecidas, e também muitos lagos de água doce, não muito grandes mas profundíssimos”. Cadamosto é um observador atentíssimo, sente-se atraído pela fauna e deixa-nos um relato admirável sobre os elefantes, mas não esquece as aves, veio para fazer negócio e tece comentários sobre o funcionamento dos mercados, nunca deixando de referir que o ouro é pouco, que tudo se permuta, dinheiro é coisa que não existe.

Um dos pontos altos desta literatura de viagens é vê-lo a descrever os seres humanos:
“As mulheres deste país são muito jucundas e alegres, cantam e bailam de bom grado, principalmente as moças, mas não bailam senão à noite à claridade da lua. De muitas das nossas coisas se maravilham estes negros, principalmente do modo de ferir das nossas bestas e ainda mais das bombardas, porque alguns negros vieram ao navio e fazendo-lhes eu disparar uma bombarda podia matar mais de cem homens de uma vez, com o que se maravilharam dizendo que era coisa do diabo. Também se maravilhavam do som de uma dessas gaitas de foles que eu fiz tocar ao marinheiro meu, e vendo-a vestida de cores e com franjas à roda pensavam que era algum animal vivo que assim cantava com diversas vozes (…). Também se admiravam de ver arder de noite uma vela sobre um castiçal, pois naquele país não sabem fazer outra luz senão a do fogo ordinário e vendo uma vela acesa lhes pareceu uma invenção bela, e porque aqui se acha mel, e por conseguinte cera, logo que têm o dito mel o chupam com a boca e deitam a cera fora. Pelo que tendo eu comprado a um deles uns poucos favos lhes ensinei como se extraía o mel da cera; e depois lhes perguntei se sabiam que coisa era aquela que restava do favo, ao que me responderam que era coisa que não valia nada. Então na sua presença lhes fiz algumas velas e lhas acendi, vendo o que ficaram muito admirados, dizendo que todo o saber das coisas estava em nós, os cristãos. Neste país não se usam instrumentos músicos senão de duas qualidades, uns são atabales mouriscos, os outros uma espécie de violetas, daquelas que nós tocamos com arco, mas não têm senão duas cordas e tocam-na com um dedo de um modo simples grosseiro e que nada vale”.

Cadamosto relata o seu encontro com António de Nola, genovês, pois despediu-se do Sr. Budomel, passou cabo Verde, queria descobrir países novos e provar a sua ventura, dirigiu-se ao reino da Gâmbia, constava-lhe que havia ali grande quantidade de ouro. É em pleno mar que se encontra com António de Nola e com outra embarcação com alguns escudeiros do infante D. Henrique. E dá-nos um pequeno relato deste cabo Verde:
“Chamava-se assim porque os primeiros que o descobriram, que foram portugueses, em 1445, o acharam todo verde pelas grandes árvores que ali se conservam viçosas; por todo o ano, e por esta causa, lhe foi posto o sobredito nome assim como o de cabo Branco àquele de que antes falámos, que foi achado todo arenoso e branco. Este cabo é muito belo e tem sobre a ponta duas lombadas, isto é, dois montículos, e mete-se bastante pelo mar dentro; sobre ele e à roda estão muitas habitações de negros e casas de palha todas juntas à marinha e à vista dos que passam; e estes negros são ainda do sobredito reino do Senegal”.

E não menos interessante é o que ele nos vai descrever sobre os negros Barbacinos e Serreres, negros mas não sujeitos ao rei do Senegal. Aqui a hierarquia social é outra, não querem ter rei e especula: “talvez para que não lhes sejam tiradas as mulheres e filhos e vendidos por escravos, como fazem os reis e senhores dos outros países negros”. E dá-nos um retrato detalhado: “São grandes idólatras, não têm religião alguma e são homens cruelíssimos. Usam de arco com frechas, mais do que nenhuma outra arma, e atiram com elas envenenadas de modo que, tocando a carne, logo que fazem sangue, morre o ferido imediatamente. São negríssimos e bem encorpados; o seu país é muito cheio de bosques e abundante de lagos e de água; por isso se têm por muito seguros porque nele se não pode entrar senão por paços estreitos, e assim não temem nenhum senhor circunvizinho”. E partem para a Gâmbia, veremos a seguir o que ele nos narra até regressar a Lisboa, teremos depois a segunda viagem.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 27 de Maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23299: Notas de leitura (1449): “Viagens”, de Luís de Cadamosto, introdução e notas de Augusto Reis Machado, na Biblioteca das Grandes Viagens, Portugália Editora, sem data (1) (Mário Beja Santos)