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quarta-feira, 14 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24398: Historiografia da presença portuguesa em África (372): Revista de História, n.º 13, Janeiro-Março, Ano IV, 1953 - Um texto fundamental para o estudo da História da Guiné: Fontes quatrocentistas para a geografia e economia do Saara e da Guiné (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Novembro de 2022:

Queridos amigos,
Sem qualquer rebuço, escrevo insistentemente que a minha dívida com a Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa não tem preço. Ali me ajudam a encontrar textos de enorme valia para o estudo da História da Guiné. Ando eu à procura de uma arrumação sobre os textos fundamentais do século XV para o livro que estou a preparar Guiné, Bilhete de Identidade e concluo, depois de ler este admirável ensaio de Vitorino Magalhães Godinho que só é novo aquilo que se esqueceu ou se desconhece (em tantos casos, entenda-se, a genialidade da inovação também comanda a vida). Aquele que terá sido o maior historiador português do século XX, deixa bem claro que a obra de Zurara teve contributos de outrem, que Cadamosto era naturalmente um homem experiente e revelou-se um notável relator de viagens de grande importância para o futuro do conhecimento da costa ocidental africana; e que o Esmeraldo, de Duarte Pacheco Pereira marca a passagem de um cultura baseada no "ouvir dizer" para uma visão e um sentido da precisão e exatidão, é o pontapé de saída para um conhecimento científico na alvorada do Renascimento.

Um abraço do
Mário



Um texto fundamental para o estudo da História da Guiné:
Fontes quatrocentistas para a geografia e economia do Saara e da Guiné


Mário Beja Santos

Foi uma manhã abençoada, daquelas em que mudamos a rotação do olhar, basta embrenharmo-nos na leitura do ensaio para entender como há cerca de 70 anos, aquele que já era a grande promessa da historiografia portuguesa, Vitorino Magalhães Godinho, então a trabalhar no Centre National de la Recherche Scientifique, em Paris, já tinha esboçado o estudo das fontes matriciais que permitem o conhecimento que detínhamos da geografia e gentes da Guiné. Trata-se de um trabalho publicado numa publicação brasileira, Revista de História, n.º 13, Janeiro-Março, Ano IV, 1953. Revista de grande prestígio editada em São Paulo, nela irão colaborar outras importantes figuras da cultura portuguesa, como Joel Serrão ou Barradas de Carvalho.

O artigo intitula-se Fontes Quatrocentistas para a Geografia e Economia do Saara e Guiné. Vejamos sumariamente a argumentação do eminente historiador. Os cronistas marcam no Cabo Não o termo inicial dos Descobrimentos portugueses. Para o sul do Cabo Não pode dizer-se que não se realizaram conquistas e ocupações permanentes, no século XV e primeira metade do século XVI. Os intrusos lanceiam mouros, azenegues e negros, assaltam aldeias, roubam o que podem – como em Marrocos; mas descem do navio à praia, internam-se e regressam ao mar. Não são cavaleiros e escudeiros, instalados em praças fortes; são homens de bordo que ocasionalmente calcorreiam os caminhos de terra.

Há relatos, testemunhos dos próprios navegadores e mercadores onde perpassa um espírito muito diferentes do que anima as crónicas. Têm a frescura da visão direta que o cronista não pode dar. Atenda-se às fontes, as dos cronistas, as dos viajantes, mercadores, nautas.

A primeira das fontes é a Crónica dos Feitos da Guiné. O investigador Costa Pimpão, em resultado da análise que efetuou à obra, considera que se trata da cerzidura de duas obras diferentes: uma, a Crónica dos Feitos da Guiné propriamente dita, e a outra uma Crónica ou Livro dos Feitos do Infante D. Henrique, trabalho que terá sido efetuado, segundo Duarte Leite, pelo próprio Zurara. E o historiador põe na mesa a argumentação de diferentes especulações com o nome de Afonso de Cerveira como o primeiro autor da Crónica da Guiné. Tudo leva a querer que a questão é insolúvel. A perda da crónica de Cerveira, presumivelmente fonte quase exclusiva da obra de Zurara, fere irremediavelmente incerteza o valor da Crónica dos Feitos da Guiné que até nós chegou.

E o historiador enuncia as conclusões de Duarte Leite quanto ao valor da Crónica de Zurara: destina-se a narrar os feitos dos portugueses em África, quer dizer, a ser uma crónica de ações guerreiras, não é uma crónica dos Descobrimentos; as distâncias que aponta estão todas erradas por forte excesso; raras vezes apresenta as distâncias; omite frequentemente as datas de partida das viagens e nunca refere as datas de regresso; é muito pobre de informações no que respeita à maneira como se organizavam as expedições, etc., etc. Temos de reconhecer que as perplexidades se amontoam ao pretendermos utilizar a Crónica da Guiné para estabelecer o estudo económico e social das populações com quem os portugueses entraram em contacto.

Quando transitamos para a segunda em data das fontes que se reportam ao descobrimento da Guiné, o panorama muda integralmente. As Navegações de Alvise de Cadamosto são obras de um navegador e mercador que as escreveu em 1456 (ano da sua segunda viagem) e 1483 (ano presumível da sua morte). É muito natural que as Navegações se baseiem em apontamentos de bordo. Cadamosto não é o conservador de um arquivo, não é um homem de biblioteca, é o homem que viajou largamente, conhece a Itália, o Egito, Creta, o Norte de África, a Flandres, Portugal, a Guiné. É certo que em 1455 embarcou numa caravela, fez escala pelas ilhas de Porto Santo e Madeira e arquipélago das Canárias, navegou para o Sul, passando o Cabo Branco e ilha de Arguim, visitou a foz do rio Senegal e o país de Budomel, dobrou o Cabo Verde, chegou à Gâmbia. No ano seguinte, na companhia de Antoniotto Uso di Mare teriam descoberto Cabo Verde, teriam chegado ao rio Geba e aos Bijagós. Podemos ficar com uma quase certeza de que Cadamosto escreveu sobre o que viu, dispunha de uma atitude mental de curiosidade pela flora e fauna, pelos costumes, crenças e formas de organização dos povos que não encontramos nessa data para além dele em Portugal.

A conclusão análoga chegaríamos se comparássemos as Navegações de Cadamosto com as de Pedro de Sintra. As de Pedro de Sintra são muito mais concisas e mais pobres em dados sobre a natureza e os indígenas, é uma quase seca enumeração dos lugares percorridos por aquele navegador até 1462. Seja como for, a Navegação de Pedro Sintra é obra escrita ou ditada por um escrivão da época henriquina e, como tal, um excelente padrão dos diários de bordo, ao começar a segunda metade do século XV. A Navegação de Pedro Sintra descreve-nos a costa africana desde o Geba até à mata de Santa Maria.

Numa coletânea de obras sobre a expansão portuguesa, compilada por Valentim Fernandes entre 1506 e 1507, vêm insertos três textos latinos; trata-se de uma relação do descobrimento da Guiné redigida em latim sobre o relato (oral ou escrito?) que lhe fez Diogo Gomes. O que na Relação é de facto do antigo navegador e o que de imputar-se ao alemão não é fácil descriminar. Na enumeração e narrativa das navegações até 1448, há evidentes discrepâncias entre o relato de Diogo Gomes e o de Martinho da Boémia.

Apensado ao Itinerário do Dr. Jerónimo Munzer, anda uma Relação por ele redigida. Não se tem prestado atenção a esta obra, considerando-se geralmente que não passa da reprodução da de Diogo Gomes – Martinho da Boémia, foi escrita a D. João II, sugerindo-lhe um plano para atingir a Índia pelo Ocidente. A Relação de Munzer divide-se claramente em duas partes: a primeira, narra os Descobrimentos realizados em vida do Infante D. Henrique; a segunda, informa-nos acerca do clima e mar, flora e fauna, produções e comércio, guerras e religião da Guiné, bem como acerca das ilhas de São Tomé, Madeira e Açores.

O mais rico repositório de informações etnográficas sobre a África Ocidental setentrional é a coletânea de Valentim Fernandes, o Alemão. Valentim Fernandes não é navegador ou comerciantes, mas também não é cronista oficial, mas está em relações com todos estes meios. O chamado Manuscrito Valentim Fernandes constitui uma justaposição, quando não amálgama, de fontes heterogéneas que o alemão compilou, resumiu e redigiu sem qualquer perfeição ou sequer preocupação arquitetónica.

Temos ainda os relatos de João Fernandes e Álvaro Velho, cobrem todo o Saara Ocidental e a parte central e mesmo a Guiné ou Terra dos Negros, no sentido clássico do termo. As suas descrições não encerram qualquer elemento de maravilhoso ou sequer fantasia. Muito minuciosas, confirmaram, ou são confirmadas pelas fontes muçulmanas. São mais ricas mesmo, sobretudo para a Guiné Ocidental do que a obra Da África, Terceira Parte do Mundo, de João Leão, dito o africano. Uns 20 anos mais tarde, Duarte Pacheco Pereira principiará outro roteiro, o Esmeraldo de situ orbis (isto é, do sítio verde ou marítimo do orbe). O Esmeraldo é simultaneamente um compêndio de cosmografia e náutica astronómica que apresenta soluções novas e práticas, um roteiro muito completo no feixe de indicações de rumos, distâncias, enfim, é um compêndio de geografia comercial com elementos de geografia histórica. Mas o seu interesse e importância não reside somente na conexão das matérias que sistematicamente expõe, reside acima de tudo no espírito que o informa. Não é ainda o espírito científico, mas perpassa por toda a obra de Duarte Pacheco a ânsia da precisão, de mostrar pela experiência, há mesmo escrúpulo rigoroso na recolha dos dados. Escrito de 1505 a 1508, o Esmeraldo representa uma revolução cultural, de que não é aliás o único motor nem indício: a passagem de uma cultura sem sentido do possível e do impossível, baseada no “mais ou menos assim” e no “ouvir dizer” para o que poderíamos chamar o humanismo técnico: o sentido da precisão e exatidão, a preocupação pela medida, a busca de provas verificáveis.

Um notável artigo, até prova em contrário arruma as fontes quatrocentistas e estabelece o quadro informativo do que vínhamos a saber daquela costa ocidental africana, peça fundamental do projeto henriquino que abriu portas para o desencravamento do mundo.

Vitorino Magalhães Godinho (1918-2011)
Estátua de Zurara no pedestal do Monumento a Luís Vaz de Camões, de Victor Bastos
Mapa do rio Gâmbia e área limítrofes, c. 1732
Retrato de um africano, por Albrecht Dürer, 1508
Navegações de Cadamosto, nas suas duas viagens
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Nota do editor

Último poste da série de 7 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24375: Historiografia da presença portuguesa em África (371): As campanhas de pacificação na Guiné no livro "História do Exército Português", pelo General Ferreira Martins; Editorial Inquérito, 1945 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23480: Nota de leitura (1470): Como nasceram as fronteiras da Guiné-Bissau (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
É bem interessante o contexto histórico em que ocorreu a definição das fronteiras da Guiné. A presença portuguesa era praticamente inexpressiva, a diplomacia portuguesa queria o apoio de Paris para reconhecer a legitimidade dos nossos interesses nos territórios entre Angola e Moçambique. Foi dolorosa a perda do Casamansa, nem os comerciantes nem os autóctones desejaram o domínio francês, e ninguém na época ia supor que todo o Casamansa seria um pomo de discórdia quando se fundou o Senegal. Já aqui se divulgaram as notas de um brioso oficial da Marinha que foi até à região de Cacine e Kandiafará, nesta região havia mercado e não havia autoridades portuguesas. O artigo de Armando Tavares da Silva, que anda muito próximo do conteúdo do seu livro "A presença portuguesa na Guiné", descreve todas as peripécias que levarão à fixação das fronteiras, fazendo ver a todos esses apóstolos de hoje que batem a mão no peito sobre a nossa presença de cinco séculos a grande ilusão que se montou para se falar numa Guiné onde mal existiu o sopro de um verdadeiro colonialismo.

Um abraço do
Mário



Como nasceram as fronteiras da Guiné-Bissau

Mário Beja Santos

Armando Tavares da Silva, autor do livro "A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926", Caminhos Romanos, 2016, assina no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa aqui referido, o artigo A fixação das fronteiras da Guiné pela Convenção Luso-Francesa, texto que acompanha com grande proximidade o que ele publica no seu livro entre as páginas 127 e 148. Tratando-se de matéria de elevado interesse histórico, intenta-se um resumo das várias questões tratadas, visto que a partir de maio de 1886 houve em definitivo a definição de um território que até então conhecera inúmeras designações e de que se desconheciam todos os contornos.

A questão ganha premência com a crescente presença francesa na região do Casamansa, a Norte, e na região de Compony, a Sul, os franceses queriam alargar os seus domínios, não estavam satisfeitos em ficar à entrada do rio Casamansa, e queriam fazer recuar a presença portuguesa para lá de Cacine. Quem representava os interesses portugueses agia lentamente, num vai-e-vem de exposições e respostas diplomáticas que só nos prejudicava. Honório Pereira Barreto assistia ao perigo crescente e informou o Governador de Cabo Verde em maio de 1837. Novo vai-e-vem diplomático, a França invocava razões históricas para ali estar. É então que o visconde da Carreira se dirige ao Ministro dos Negócios Estrangeiros da França com as nossas provas históricas, dando ênfase à Crónica da Conquista da Guiné, de Zurara.

Armando Tavares da Silva repertoria um conjunto de incidentes na região do Casamansa, ora tira ora põe bandeira portuguesa ou francesa, caso dos incidentes de Adiana e Sindão. Recorde-se que a região Sul também estava sob cobiça, os franceses pretendiam comprimir a presença portuguesa para cima do rio Cacine, resta dizer que a presença de autoridades portuguesas era nula na região.

Depois de várias pressões da diplomacia francesa, e tendo já terminado a Conferência de Berlim, o governo de Paris manifesta disposição para negociar fronteiras não só na Senegâmbia como também sobre o litoral do Congo. O governo de Lisboa tenta separar a questão do Casamansa e de Cacine com a pretensão francesa da posse do território de Massabi. Certo e seguro, as negociações entre Portugal e a França irão ter lugar em 1885, a França insiste então não nos seus direitos históricos e utiliza uma expressão subtil: “em nós penetra a ideia que a solução para ser prática deve ser procurada mais nos factos do que nos arquivos”, evitando-se complicar a obtenção do acordo “por discussões onde cada um se acharia a produzir títulos históricos sem que eles possam conduzir a comissão a qualquer conclusão, uma vez que nós não teríamos qualidade para concluir, o que é desde já uma razão para os pôr de parte”.

Seguem-se propostas e contrapropostas, a diplomacia portuguesa dá sinais de transigência quanto às fronteiras da Guiné desde que se retire qualquer reivindicação francesa sobre o Massabi. E chega-se a uma sessão em 11 de janeiro de 1886 em que a questão dos rios Cacine e Compony vem à baila, a França não esconde que pretende um recuo da fronteira da possessão portuguesa para lá de Cacine, está muito interessada em conservar a posse da ilha Tristão na embocadura do Compony.

O governo de Lisboa, e continuamos em janeiro de 1886, declara abertamente que não pode aceitar o abandono dos territórios na margem esquerda do Massabi (ou Loema). No mês seguinte, a França insiste na posse da margem esquerda do Loema. Depois de algumas vicissitudes, entre elas a queda do governo de Lisboa, Portugal sacrifica o seu direito histórico no Casamansa e no rio Nuno. O político Barros Gomes escreve: “Para nenhuma das regiões além-mar poderia Portugal ostentar melhores títulos de posse do que para as regiões banhadas pelo Casamansa. Descoberta, conquista, ocupação efetiva, tratados celebrados com os potentados indígenas, convénios diplomáticos com as nações da Europa, remontando alguns ao século XV, tudo quanto pode constituir um direito e justificar a soberania, tudo pode ser alegado em favor do domínio de Portugal naqueles territórios, tudo tende a acentuar o sacrifício consumado com o seu abandono".

Perdia-se o Casamansa, lutava-se por uma fronteira mais folgada no Sul. A França deixa de insistir na sua presença no Massabi. E assim se chega ao projeto de convenção apresentado pela França, onde esta faz o reconhecimento do direito de Portugal exercer a sua influência nos territórios que separavam as possessões portuguesas de Angola e Moçambique, era uma vaga e inconsequente declaração formal, não terá qualquer peso face ao Ultimato. Durante as negociações, Portugal pretendeu que se mencionassem os limites dos territórios entre Angola e Moçambique, a França opôs-se liminarmente, fez reconhecimento “sob reserva dos direitos anteriormente adquiridos por outras potências”. A Convenção Luso-Francesa foi aprovada na Câmara dos Deputados a 2 de julho de 1887 e aprovada na Câmara dos Pares a 18 seguinte.

Em 25 de agosto de 1887 a Convenção foi assinada pelo rei D. Luís. Armando Tavares da Silva regista a extensa apreciação que a comissão de negócios externos da Câmara fez do projeto de lei, dava-se como as cedências no Casamansa compensadas tanto pelo rio Cacine como pelo reconhecimento que a França fazia de quase todo o território do Massabi e o da zona de exploração entre a província de Angola e Moçambique: “O rio Cacine e os territórios de uma e outra margem foram com efeito uma cessão a troca de outra, porque, embora as nossas descobertas e as nossas pretensões a domínio se estendessem ainda mais para o Sul, é certo que a posse efetiva pertencia à França”.

Estavam consumadas as fronteiras. Segue-se um período de tentativas de ocupação que só serão coroadas de êxito com as campanhas de Teixeira Pinto, é a partir daí que a administração portuguesa, de forma mínima, se irá internando até ao Gabú, descendo à península de Cacine e ao arquipélago dos Bijagós, finalmente submetido em 1936, com a capitulação do régulo de Canhambaque.

Monumento alusivo às campanhas do Canhambaque, imagem de Francisco Nogueira, publicada na obra "Bijagós, Património Arquitetónico", Edições Tinta da China, 2016, com a devida vénia.
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de Julho de 2022 > Guiné 61/74 - P23470: Nota de leitura (1469): Sobre Graça Falcão, a melhor fonte será porventura "A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926", de Armando Tavares da Silva; Caminhos Romanos, 2016 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 30 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23310: Notas de leitura (1450): “Viagens”, de Luís de Cadamosto, introdução e notas de Augusto Reis Machado, na Biblioteca das Grandes Viagens, Portugália Editora, sem data (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Setembro de 2019:

Queridos amigos,
Dispomos felizmente de uma riquíssima literatura de viagens em torno da chegada à Senegâmbia onde relevam nomes como Lemos Coelho, Duarte Pacheco Pereira, André Alvares d'Almada, André Donelha, Valentim Fernandes, entre outros, a que se podem adicionar leituras adicionais como a "Crónica da Guiné" de Zurara. Cadamosto não esconde ao que vem, quer fazer fortuna, procura ouro e comércio lucrativo. Põe-se ao serviço do Infante D. Henrique e aceita o mote de ir mais avante. Mas a sua narrativa é colorida, vivacíssima, revela um homem experiente e não só nas coisas do marear e comerciar. Sabe ver e comentar, é extremamente feliz nos retratos que nos deixa dos homens pardos e dos homens negros. Os historiadores apontam-lhe lacunas e incorreções, o que parece ser verdade, mas não desmerece do perfil das gentes, da sua economia, práticas religiosas. Sabe que está numa das fronteiras do império do Mali e que aqueles soberanos africanos são profundamente déspotas, tratam-se como semideuses. Todos temos a ganhar em conhecer as navegações deste veneziano que depois da morte do Infante ainda se coroou de êxitos entre Veneza, a Dalmácia e Alexandria.

Um abraço do
Mário


Viagens de Luís de Cadamosto e Pedro de Sintra:
Relatos incontornáveis e de alto nível da literatura de viagens (2)


Beja Santos

De Cadamosto e Pedro de Sintra já aqui se fez larga referência ao trabalho do professor Damião Peres na Academia das Ciências, em 1948. Procura-se agora cotejar alguns aspetos essenciais de uma obra de divulgação que estranhamente não se reeditou, intitulada “Viagens”, de Luís de Cadamosto, introdução e notas de Augusto Reis Machado, na Biblioteca das Grandes Viagens, Portugália Editora, sem data. Esta obra de divulgação foi extraída da Coleção de Notícias para a História e Geografia das Nações Ultramarinas que vivem nos Domínios Portugueses, tomo organizado pelo académico Sebastião Francisco de Mendo Trigoso (1773-1821). Figura nas anteriores edições com o título de “Navegações”.

Estamos ainda na primeira viagem, passou-se o Cabo Branco, foram referenciados os Azenegues e chegou-se ao Senegal, cujas caraterísticas de produção Cadamosto comenta do seguinte modo: “Neste reino do Senegal, e dele para diante, em terra nenhuma da negraria, nasce trigo, nem centeio, nem cevada, nem aveia, nem uvas, e isto porque o país é tão quente que não tem chuvas nove meses do ano; e por causa deste grande calor não se pode dar o trigo, tendo experimentado semeá-lo daquele que nós os cristãos lhe temos levado, porque o trigo quer terra temperada e muitas vezes chuva; e assim o seu pão é feito de milho de diversas castas, têm favas e feijões que nascem e se criam os mais belos e grandes do mundo; o feijão é grosso como uma avelã grande das nossas cultivadas. A fava é larga, chata e vermelha, de uma cor viva. Lavram as terras, semeiam e colhem no tempo de três meses. São péssimos lavradores e homens que se não querem cansar a semear, senão quando lhes basta para comer todo o ano escassamente”.

É largo nos elogios aos prodígios da natureza: “Têm frutos de diversas qualidades semelhantes aos nossos, e ainda que não sejam cultivados como aqueles, são bons; e eles os comem sendo de floresta, isto é: silvestres e não fechados em pomares; penso, porém que se os tratassem como nós fazemos e cultivassem, criariam frutos bons e perfeitos, porque a qualidade do ar e do terreno é boa, sendo todo o país de campina capaz para produzir. Há bons pastos com infinitas árvores grandes e belíssimas, mas por nós não conhecidas, e também muitos lagos de água doce, não muito grandes mas profundíssimos”. Cadamosto é um observador atentíssimo, sente-se atraído pela fauna e deixa-nos um relato admirável sobre os elefantes, mas não esquece as aves, veio para fazer negócio e tece comentários sobre o funcionamento dos mercados, nunca deixando de referir que o ouro é pouco, que tudo se permuta, dinheiro é coisa que não existe.

Um dos pontos altos desta literatura de viagens é vê-lo a descrever os seres humanos:
“As mulheres deste país são muito jucundas e alegres, cantam e bailam de bom grado, principalmente as moças, mas não bailam senão à noite à claridade da lua. De muitas das nossas coisas se maravilham estes negros, principalmente do modo de ferir das nossas bestas e ainda mais das bombardas, porque alguns negros vieram ao navio e fazendo-lhes eu disparar uma bombarda podia matar mais de cem homens de uma vez, com o que se maravilharam dizendo que era coisa do diabo. Também se maravilhavam do som de uma dessas gaitas de foles que eu fiz tocar ao marinheiro meu, e vendo-a vestida de cores e com franjas à roda pensavam que era algum animal vivo que assim cantava com diversas vozes (…). Também se admiravam de ver arder de noite uma vela sobre um castiçal, pois naquele país não sabem fazer outra luz senão a do fogo ordinário e vendo uma vela acesa lhes pareceu uma invenção bela, e porque aqui se acha mel, e por conseguinte cera, logo que têm o dito mel o chupam com a boca e deitam a cera fora. Pelo que tendo eu comprado a um deles uns poucos favos lhes ensinei como se extraía o mel da cera; e depois lhes perguntei se sabiam que coisa era aquela que restava do favo, ao que me responderam que era coisa que não valia nada. Então na sua presença lhes fiz algumas velas e lhas acendi, vendo o que ficaram muito admirados, dizendo que todo o saber das coisas estava em nós, os cristãos. Neste país não se usam instrumentos músicos senão de duas qualidades, uns são atabales mouriscos, os outros uma espécie de violetas, daquelas que nós tocamos com arco, mas não têm senão duas cordas e tocam-na com um dedo de um modo simples grosseiro e que nada vale”.

Cadamosto relata o seu encontro com António de Nola, genovês, pois despediu-se do Sr. Budomel, passou cabo Verde, queria descobrir países novos e provar a sua ventura, dirigiu-se ao reino da Gâmbia, constava-lhe que havia ali grande quantidade de ouro. É em pleno mar que se encontra com António de Nola e com outra embarcação com alguns escudeiros do infante D. Henrique. E dá-nos um pequeno relato deste cabo Verde:
“Chamava-se assim porque os primeiros que o descobriram, que foram portugueses, em 1445, o acharam todo verde pelas grandes árvores que ali se conservam viçosas; por todo o ano, e por esta causa, lhe foi posto o sobredito nome assim como o de cabo Branco àquele de que antes falámos, que foi achado todo arenoso e branco. Este cabo é muito belo e tem sobre a ponta duas lombadas, isto é, dois montículos, e mete-se bastante pelo mar dentro; sobre ele e à roda estão muitas habitações de negros e casas de palha todas juntas à marinha e à vista dos que passam; e estes negros são ainda do sobredito reino do Senegal”.

E não menos interessante é o que ele nos vai descrever sobre os negros Barbacinos e Serreres, negros mas não sujeitos ao rei do Senegal. Aqui a hierarquia social é outra, não querem ter rei e especula: “talvez para que não lhes sejam tiradas as mulheres e filhos e vendidos por escravos, como fazem os reis e senhores dos outros países negros”. E dá-nos um retrato detalhado: “São grandes idólatras, não têm religião alguma e são homens cruelíssimos. Usam de arco com frechas, mais do que nenhuma outra arma, e atiram com elas envenenadas de modo que, tocando a carne, logo que fazem sangue, morre o ferido imediatamente. São negríssimos e bem encorpados; o seu país é muito cheio de bosques e abundante de lagos e de água; por isso se têm por muito seguros porque nele se não pode entrar senão por paços estreitos, e assim não temem nenhum senhor circunvizinho”. E partem para a Gâmbia, veremos a seguir o que ele nos narra até regressar a Lisboa, teremos depois a segunda viagem.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 27 de Maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23299: Notas de leitura (1449): “Viagens”, de Luís de Cadamosto, introdução e notas de Augusto Reis Machado, na Biblioteca das Grandes Viagens, Portugália Editora, sem data (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 27 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23299: Notas de leitura (1449): “Viagens”, de Luís de Cadamosto, introdução e notas de Augusto Reis Machado, na Biblioteca das Grandes Viagens, Portugália Editora, sem data (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Setembro de 2019:

Queridos amigos,
Luís de Cadamosto, veneziano, pôs-se ao serviço do Infante D. Henrique entre 1455 até 1457. Falecido o Infante, regressou a Veneza, terá altas incumbências, na Dalmácia, no comando de galeras armadas para o comércio de Alexandria. Este vívido relato, cheio de sol e pormenor, dá-nos a conhecer (ou a confirmar) o que era o projeto henriquino, o que se pretendia conhecer, Cadamosto vai chegar à costa da Senegâmbia e tudo quanto ele escreve supre lacunas sobre a crónica da Guiné de Zurara. Os historiadores puseram objeções ao rigor do que ele escreve, mas inquestionavelmente as viagens são uma obra histórica. É incompreensível como obras de divulgação como esta não chegam às mãos das novas gerações, com ortografia atualizada é inegável tratar-se de um documento vibrante e que nos faz entender o conhecimento da costa africana entre territórios povoados de árabes até se entrar na terra dos negros, será aí que se irá firmar a Senegâmbia e dentro dela a Senegâmbia Portuguesa.

Um abraço do
Mário



Viagens de Luís de Cadamosto e Pedro de Sintra:
Relatos incontornáveis e de alto nível da literatura de viagens (1)


Beja Santos

De Cadamosto e Pedro de Sintra já aqui se fez larga referência ao trabalho do professor Damião Peres na Academia das Ciências, em 1948. Procura-se agora cotejar alguns aspetos essenciais de uma obra de divulgação que estranhamente não se reeditou, intitulada “Viagens”, de Luís de Cadamosto, introdução e notas de Augusto Reis Machado, na Biblioteca das Grandes Viagens, Portugália Editora, sem data. Esta obra de divulgação foi extraída da Coleção de Notícias para a História e Geografia das Nações Ultramarinas que vivem nos Domínios Portugueses, tomo organizado pelo académico Sebastião Francisco de Mendo Trigoso (1773-1821). Figura nas anteriores edições com o título de “Navegações”. Estas viagens foram publicadas em Itália pela primeira vez em 1507. Tornaram-se numa peça fundamental da historiografia dos Descobrimentos para se falar do projeto henriquino com a propriedade de lhe conhecer os fundamentos e de revelar um viajante de primeira grandeza, capaz de registar fauna e flora, usos e costumes, o poder dos reinos africanos, o que se comerciava. Acresce a fluidez que timbra toda a narrativa de Cadamosto, do princípio ao fim. Saiu de Veneza, atravessou Gibraltar resolvido a navegar no mar Oceano, encontrou-se com o Infante D. Henrique, dá conta dos sonhos do príncipe, dos seus propósitos em avançar mais avante.

Encontrou-se com o Infante no Algarve, numa povoação chamada Raposeira, ali se acordou que ele iria viajar explorando a costa africana:
“Tendo eu ficado no Cabo de S. Vicente, o Senhor Infante mostrou com isso grande prazer e me fez muito agasalho e mandou armar uma caravela nova, de lote de 45 toneladas, da qual era Patrão um Vicente Dias, natural de Lagos, que é uma povoação a 16 milhas de distância do Cabo S. Vicente. E abastecido de todo o necessário, partimos do sobredito Cabo de S. Vicente aos 22 de março de 1445, o nosso rumo para a ilha da Madeira”. Fala das Canárias, de Porto Santo, da Madeira, e depois rumam do Cabo Branco da Etiópia (não esquecer que era conceito da época de que se estava a avançar para a Baixa Etiópia ou Etiópia Menor, e quando se chegou ao rio Senegal pensava-se, por falta de informação geográfica rigorosa, que se estava nas proximidades dos rios Níger e Nilo). Enquanto se percorre à distância terras dos mouros, a quem ele chama a costa da Barbaria, e todo o Sara Ocidental, chega-se aos negros da Etiópia, passa-se pelo Golfo de Arguim e informa-se que o Infante tinha feito na ilha de Arguim um contrato com o qual ninguém pudesse entrar naquele golfo para traficar com os árabes, salvo aqueles que entrassem no contrato e teriam então direito de comerciar na feitoria, economia de troca, quem chegava recebia negros como escravos e recebia panos, tecidos, prata e trigo. Tem algo de fantástico o que os Azenegues (berberes) julgaram ser os Portugueses: “Posso certificar que quando viram as primeiras velas creram que fossem pássaros grandes com asas brancas que voassem, alguns deles pensaram que fossem peixes, outros diziam que eram fantasmas que andavam de noite. E diziam isto, porque, às vezes, no princípio da noite eram assaltados em um lugar e naquela mesma noite pela madrugada acontecia o mesmo cem milhas adiante pela costa, outras vezes mais atrás, segundo ordenavam os das caravelas; e diziam entre si: se fossem criaturas humanas como poderiam fazer tanto caminho em uma noite quanto nós não poderíamos andar em três dias?”.

Iniciam-se as atividades comerciais e fala-se no império dos negros, menciona-se Tombuctu. Antes de chegar à terra dos negros, e sempre falando da Barbaria ou terra de alarves, diz que naquela terra não se bate moeda alguma, todo o tráfico é trocar coisa por coisa ou duas coisas por uma, são pardos. Passado o Cabo Branco, navegou-se à vista até ao rio do Senegal, passado o deserto chegou-se ao país dos negros, a primeira descrição daquela região lacustre é como se tivessem chegado a um paraíso terrestre e então Luís de Cadamosto refere o reino do Senegal e os seus limites:
“O primeiro reino de negros da Baixa Etiópia é este que fica sobre o rio do Senegal. Os povos que habitam as suas margens chamam-se Jalofos, e toda esta costa e país acima declarados é terra baixa até Cabo Verde (entenda-se, ponto continental, não tem nada a ver com o arquipélago) que é a terra mais alta de toda aquela costa. Segundo eu pude perceber, este reino do Senegal confina pela terra da parte do Sul com o reino da Gâmbia, do poente com o mar Oceano e do nascente com o reino acima dito, que extrema os amulatados destes primeiros negros”.

É interessantíssima a sua narrativa sobre a eleição dos reis do Senegal, costumes, família, crenças, os seus trajes, as guerras que faziam e as armas que utilizavam. E assim se chegou ao país de Budomel, “povoação distante do rio Senegal coisa de oitocentas milhas pela costa, a qual nesta extensão é toda baixa e sem montes. Este nome Budomel é título do senhor e não nome próprio do lugar”. A região já fora visitada por outros navegadores, Cadamosto tinha consigo alguns cavalos de Espanha, “que eram boa mercadoria no país dos negros, não obstante de ter muitas outras coisas, como panos de lã e peças de seda mourisca, e outras mercadorias, determinei provar com ele (Budomel) a minha fortuna”. Budomel veio ao seu encontro, recebeu-o com grande festa, Cadamosto deu-lhe os cavalos e foi convidado a ir a casa de Budomel. Outra narrativa espantosa, a estadia em terras do senhor Budomel e do seu neto chamado Bisboror.

Ficamos a conhecer um cerimonial do tipo de Rei Sol, Budomel é praticamente um Rei Deus: “Homem algum teria atrevimento de vir falar-lhe sem que primeiro se tivesse despido todo, salvo as bragas de cor, que conservavam, estando daquela maneira um bom espaço de tempo, deitando areia para cima de si; depois não se tornavam a levantar, mas, arrastando-se com os joelhos e pernas pelo chão, se iam avizinhando ao senhor, e, quando estavam a coisa de dois passos de distância paravam para falar e dizer o seu negócio, não cessando entretanto de deitar areia para trás, com a cabeça baixa em sinal de grandessíssimo acatamento”. E depois deste espetáculo descreve o modo terrífico como comem: “Comem no chão bestialmente, sem nenhum preparo: e com eles não come ninguém, salvo aqueles mouros que lhe ensinam a lei e um ou dois negros dos principais. Toda a gente miúda come a dez ou doze juntos, põem um grande cesto de carnes no meio, e todos metem a mão dentro; comem muito pouco de cada vez, porém muitas vezes, isto é: quatro ou cinco cada dia”.

Carta náutica de Lázaro Luís, 1563, Academia das Ciências, Lisboa.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23285: Notas de leitura (1448): “Guerra Colonial – Uma História por Contar”, trabalho dos alunos do Externato Infante D. Henrique (Ruílhe-Braga) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 18 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23178: Notas de leitura (1438): “A Balada do Níger e Outras Estórias de África”, por Amílcar Correia, Civilização Editora, 2007 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
Amílcar Correia é Diretor-Adjunto do Público e responsável pela sua edição online. "A Balada do Níger e Outras Estórias de África" é o seu primeiro livro. O mínimo que se pode dizer é que é uma reportagem empolgante, partiu bem preparado e disponível para confirmar com os olhos as impressões que passou à escrita. Rumou em primeiro lugar para Tombuctu e não esqueceu o que havia subjacente ao projeto henriquino, entrar em contacto com outras gentes. Recorde-se que nas primeiras navegações fizeram-se apostas erradas dos lugares onde aportaram, imaginaram o Nilo, a Etiópia menor, iam espicaçados com o sonho de atingir a Rota do Ouro, aquele mesmo ouro que chegava ao Norte de África, uma das razões pelas quais possuíamos fortalezas que só foram abandonadas no reinado de D. João III. De Tombuctu, Amílcar Correia viaja para a Mauritânia, lugar do vastíssimo Sara. Ele não o diz, mas dali vieram e vêm os comerciantes influentes dos mercados guineenses, as lojas dos mauritanos, como soe dizer-se. É uma viagem por África numa reportagem de grande qualidade, sob um olhar percuciente, culto, que nos captura desde a primeira página.

Um abraço do
Mário



Ali para as bandas da Guiné e um pouco por toda a África (1/4)

Beja Santos

“A Balada do Níger e Outras Estórias de África”, por Amílcar Correia, Civilização Editora, 2007, é um livro de cambanças, o jornalista e viajante começa por se pôr ao caminho em direção a Tombuctu, aproveita para refletir um pouco sobre a magia daquele lugar, que tanto empolgou os portugueses logo no século XV: “Até meados do século XI, enquanto o deserto era para a África mediterrânica um obstáculo tão temível quanto as terríveis tempestades do Atlântico, a região a sul do Sara era, para os europeus, uma terra habitada pelos monstros mais horríveis e as pessoas mais pavorosas. Alguns dos principais Estados islamizados em África (Mali, Songai ou Gana) desenvolveram-se nesta região, entre 800 e 1300, como consequência da inevitável ascensão muçulmana. O Império Mandinga do Mali, fundado por Sundiata (1230-1255), converteu-se ao Islão a partir do século XIII, mas os Árabes conheceram melhor Mansa Mussa (1307-1332). Numa peregrinação a Meca com 60 mil criados e escravos, Mansa Mussa distribuiu tanto ouro que fez baixar em 10% a sua cotação nos mercados do Cairo. Mas ninguém terá contribuído tanto para que a cidade de Tombuctu, onde, no regresso, mandou erigir uma mesquita, a maior da cidade, fosse celebrizada como o El Dorado do deserto”. Amílcar Correia não esquece João Fernandes que terá partido de Lisboa em 1443 ou 1444, numa das duas caravelas da expedição de Antão Gonçalves, com destino à costa ocidental africana. Foi recebido pelos Azenegues, viajou de camelo e sob a orientação do vento e do voo das aves.

Muitos meses depois foi encontrado na costa. Zurara garante que os Árabes choraram quando João Fernandes embarcou. Não se sabe se Fernandes chegou a Tombuctu. Ao longo dos séculos outros ocidentais procuraram esse ponto mágico. Robert Adams, depois de muitas peripécias, escreveu um livro referindo-se a Tombuctu como uma cidade aborrecida, suja e nada atrativa. A veracidade do seu testemunho continua a ser posta em causa. Ibn Batuta, um reputadíssimo geógrafo e viajante árabe, protegido por Leão X, visitara e descrevera Tombuctu: “Trazemos para esta cidade livros escritos à mão que se vendem muito bem, de tal forma que obtemos mais lucros do que com qualquer outra mercadoria que possamos vender”. Suspeitava-se que Tombuctu albergava tesouros infinitos, muitos procuraram atingir a cidade e Amílcar Correia dá-nos dessas peregrinações um magnífico relato. Como bom viajante, releva as coordenadas e não minimiza o poder da geografia: “No Mali, termina o deserto e começa a savana; termina o Norte de África e inicia-se a África transariana. Tombuctu é o ponto de encontro entre os agricultores da Savana e os nómadas do Sara, entre as pirogas e as caravanas de camelos, entre nomadismo e sedentarismo”.

E o viajante entra em Tombuctu e deixa-nos as suas impressões:
“As suas ruas de areia não conservam nenhum outro esplendor que não o do mistério que a celebrizou. São poucos os vestígios do passado glorioso da cidade interdita. O mistério não se vê nas ruas de Tombuctu; respira-se. Ameaçada pelo constante avanço das areias, a cidade é hoje habitada por 25 mil a 35 mil pessoas, quando, no século XVI, aqui residiam cerca de 100 mil, um quinto das quais estudava Direito e Teologia, ou não fosse este um local de concentração de universidades corânicas.
Em redor da mesquita de Djinguereber, trava-se o avanço das areias com pesadas lajes de cimento, deverão ser colocadas por todo o centro histórico. Ao lado da mesquita, uma criança retira areia do interior de casa com a ajuda de um prato. Tuaregues passeiam pelas ruas de turbante e túnica azul, olhos amendoados e artesanato em ‘prata tuaregue’ para vender.
Como em outras cidades africanas, as crianças pululam e pedem um cadeau. As moscas mordem a carne nos talhos de rua, as t-shirts das crianças imitam as ramificações do Níger, as mulheres povoam os seus mercados com frutas, legumes ou peixe ressequido, os pneus esventrados e o lixo acumulam-se em certas ruas e a poeira é uma constante diária. A pobreza é evidente. O esplendor de há cinco séculos não. Terá de ser encontrado nas portas de influência marroquina, na paisagem de tetos lisos, nas suas casas feitas em banco ou calcário, nas suas bibliotecas com milhares de manuscritos em árabe.
É natural que Tombuctu desiluda quem transporta mitos e desconhecimento sobre a sua história e o seu mistério. A sua nova imagem realista e triste não substitui, porém, a sua antiga. Tombuctu conserva uma aura de mistério e de inacessibilidade.”


E o viajante segue para a Mauritânia, chega à capital deste país despovoado e coberto de areia, Nouakchott. Dá-nos conta das suas observações locais: “O número de nómadas que cruzam os desertos deste país com o dobro do tamanho da França tem vindo a diminuir. A seca, a desflorestação e a força centrífuga do Sara têm arrastado as populações do deserto para as cidades. Atualmente, a percentagem de nómadas não atinge os 10% da população, ao passo que, na década de 1960, ultrapassava os 80%. Praticamente um terço dos 3 milhões de habitantes da Mauritânia habita em Nouakchott”. Fala de cidades, de gafanhotos que esbarram no jipe, de uma importante cordilheira e não esquece um cientista que percorreu cuidadosamente a região: “Théodore Monod, o turista mais antigo do país, passou mais de setenta anos a percorrer a pé e de camelo o deserto do Sara. Diz a lenda que Monod, com 98 anos, repartia o seu tempo entre o deserto, o Museu de História Natural de Paris e os seus escritos, que abordavam arqueologia, flora, fauna, geologia e o modo de vida dos habitantes do Sara. A travessia do deserto era, para Monod, uma espécie de busca do Santo Graal. Entre ser pastor protestante e naturalista, optou pela segunda hipótese. Começou, em 1922, por estudar a fauna marinha do país e lançou-se, posteriormente, na sua primeira travessia da Mauritânia Ocidental. Para o naturalista, o deserto ‘é uma escola que nos obriga a deitar fora a quinquilharia dos pensamentos, a fortalecer-nos’. Em suma, diz Monod, ‘o deserto não é complacente. Ele esculpe a alma e escurece o corpo’.

Segue para Chinguetti, velha cidade da Mauritânia, a sétima cidade santa do Islão sunita e antiga capital muçulmana. Aqui terá nascido a primeira biblioteca do mundo islâmico. Os velhos manuscritos destas bibliotecas foram considerados Património da Humanidade em 1989. Por ali anda Amílcar Correia, e deixa uma nota final: “Como o país só se passou a chamar Mauritânia no princípio do século XX, houve tempos em que o nome da cidade se confundia com o nome de uma enorme região. Daí se ter usado, durante muito tempo, e há ainda quem o faça com um gozo evidente, a expressão país de Chinguetti. Para quem vive no meio do vazio e longe dessa capital do deserto que é Nouakchott, a expressão adquire uma descarada ironia. Em Chinguetti, a neve de areia tudo cobre e não há limpa-areias que impeça o Sara de crescer”.

(continua)


A ler no telhado da Mesquita de Djinguereber, Tombuctu
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Nota do editor

Último poste da série de 15 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23171: Notas de leitura (1437): "Os Forjanenses e a Guerra Colonial", organização de Luís G. Coutinho de Almeida e Carlos M. Gomes de Sá; edição da Junta de Freguesia de Forjães, 2018 (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23041: Notas de leitura (1424): "Portugal no Mundo"; Publicações Alfa - Um pouco da Guiné na obra de Luís de Albuquerque (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Junho de 2019:

Queridos amigos,
É vasta a linhagem de grandes historiadores que se debruçaram sobre os Descobrimentos, basta pensar em Duarte Leite, Damião Peres, Fontoura da Costa, Teixeira da Mota, Vitorino de Magalhães Godinho e Luís de Albuquerque. O trabalho de cúpula deste último foi um conjunto de seus volumes intitulado "Portugal no Mundo", editado pelas Publicações Alfa poucos anos antes do seu passamento. Faz-se aqui referência ao segundo volume deste importantíssimo trabalho, pedindo a atenção do leitor para as viagens de reconhecimento de Fernão Gomes e os primeiros contactos com os povos da Guiné, historiograficamente ainda há muitos pontos em dúvida mas parece claro que depois de um período de puro assalto e captura, que acarretou uma profunda hostilidade dos autóctones, o Infante D. Henrique e os seus sucessores entenderam que a única via era a negociação com os potentados, o que aconteceu e assim se lançaram as bases da presença portuguesa na costa ocidental africana.

Um abraço do
Mário


Um pouco da Guiné na obra de Luís de Albuquerque (1)

Beja Santos

Em 1989, as Publicações Alfa deram à estampa o maior empreendimento editorial da responsabilidade desse grande historiador dos Descobrimentos que foi Luís de Albuquerque, falecido em 1992. Foram seis volumes que abonam a sapiência deste investigador e revelam a sua portentosa capacidade de coordenar projetos científicos de grande envergadura. É precisamente no segundo volume que Luís de Albuquerque e prestigiados colaboradores referem a contextualização histórica do primeiro período da presença portuguesa na Senegâmbia. Começa por dar especial relevo ao arrendamento do comércio da costa ocidental africana ao mercador Fernão Gomes, enquanto as viagens prosseguem para Sul. E escreve: 

“Dá-se por apurado, mas não é seguro, que entre 1462 e o contrato assinado pela Coroa com Fernão Gomes, em 1469, se suspenderam as navegações; isto é tanto mais incrível quanto é certo que então já tinham sido estabelecidos entrepostos comerciais entre a costa atlântica de África, sendo o da feitoria de Arguim um dos mais ativos”.

E, mais adiante: “Este período da colonização portuguesa inicia-se com uma decisão de certo modo estranha: o contrato que entregou o comércio da Guiné a um empresário privado, contra o pagamento de uma determinada renda anual que implicavam atividades marítimas”

E passa a descrever a narrativa das duas viagens de Cadamosto acrescida do relato de uma navegação de Pedro de Sintra, que se realizou entre novembro de 1470 e a segunda metade do ano imediato. Falecido o Infante D. Henrique, sucede-lhe o Infante D. Fernando, filho adotivo do Navegador e seu herdeiro, deu-se o achamento do grupo ocidental das ilhas cabo-verdianas. Há registo de expedições no rio Zâmbia e depois Luís de Albuquerque fala-nos de Fernão Gomes:

“Gomes não era um inexperiente no comércio com a África; na chancelaria de D. Afonso V conserva-se um documento com data de 1457 e já divulgado, em que este cavaleiro é autorizado ‘a mandar as suas mercadorias a Safim e à sua costa’. Quanto ao contrato de 1469, é desconhecido o diploma legal que lhe deu forma jurídica, mas sabe-se por João de Barros o que terá sido estipulado na sua redação inicial e por um instrumento autêntico da chancelaria de D. Afonso V as alterações, decerto vantajosas para os dois contratantes. Que motivos levariam o rei a tomar esta decisão? Não há resposta satisfatória. Esclareça-se que a medida de estabelecer uma área de costa para o comércio exclusivo dos habitantes de Cabo Verde – naturalmente, os habitantes vindos da Europa – foi tomada para incentivar o povoamento e a colonização e deve ter alcançado os resultados pretendidos. Fernão Gomes honrou os seus compromissos, e em particular quanto à cláusula que o obrigava a prosseguir os Descobrimentos"

E elenca o conjunto dessas viagens durante o reinado de D. Afonso V.

Passamos agora para o capítulo “Os primeiros contactos com os povos da Guiné”, também redigido por Luís de Albuquerque. Damos-lhe a palavra:

“Para abrir e depois incentivar as relações com os povos locais, o infante procurou por todos os meios ao seu alcance captar a boa vontade de alguns raros naturais daquelas regiões que decidiram embarcar nos navios portugueses para o visitar. A par deste procedimento, esforçou-se igualmente por motivar alguns dos que se afoitavam a fazer a viagem até à costa da atual Mauritânia. A viagem de rotina realizada por Antão Gonçalves em 1445 foi pouco rendosa em termos materiais. Gonçalves trouxe consigo para o reino um ‘mouro velho’ que manifestara grande vontade de se encontrar com o infante; satisfeito esse desejo, diz Zurara que foi devolvido à sua terra. Além disso, entre os companheiros do navegador contava-se um João Fernandes que andou sete meses pelo interior da África Ocidental, familiarizando-se com os costumes, a língua e o comércio dos seus habitantes, tendo depois regressado ao Reino, e sem dúvida com preciosas notícias. Zurara parece dar a entender que a exploração de João Fernandes foi consequência de uma decisão subitamente tomada pelo aventureiro, mas é mais de crer que ele agisse por indústria de D. Henrique ou de D. Pedro. Não obstante as informações trazidas por este homem, o comércio não recebeu de imediato qualquer impulso notável; os navios henriquinos progrediam para Sul e continuavam a trazer escravos e algumas mercadorias de menor valia (excetua-se, naturalmente, o ouro, que era obtido em pequeníssimas quantidades), mas não se lograva estabelecer entrepostos certos ou relações perenes com mercadores árabes ou azenegues”.

Diz Albuquerque não ilude o problema das fontes dos primeiros contatos dos portugueses na Guiné bem como o limite da costa que deve ser entendida por Guiné. Refere a Crónica de Zuzara, a Relação de Diogo Gomes e o Relato de Luís Cadamosto. Quanto ao entendimento do que era a Guiné, várias respostas são possíveis.

“Para Zurara, o topónimo parece abranger uma vasta área; do mesmo título do seu livro pode-se, sem forçar o seu alcance, inferir que o cronista entendia sobre essa designação toponímica tudo o que fora reconhecido no litoral africano sob a direção de D. Henrique; e como os limites das terras incluídas sob tal nome se não encerram com o falecimento do infante, teríamos assim que a Guiné se estendia desde o Cabo Bojador até ao Cabo Lopo Gonçalves, onde se pode considerar que termina o golfo do mesmo nome; a orla marítima ficaria assim definida pelos reconhecimentos feitos ao longo de quarenta anos (1434-1474), mas resta-nos ainda delimitar a zona da Guiné para o interior, tarefa que consideramos impossível, sem um estudo de fontes geográficas não portuguesas”.

Para Luís de Albuquerque não cabe o direito de restringir o topónimo Guiné ao território e à orla costeira da atual República da Guiné-Bissau e refere o importantíssimo estudo da responsabilidade de Teixeira da Mota sobre a datação do descobrimento da Guiné. O próprio Teixeira da Mota sabia que a palavra Guiné tinha um sentido muito mais vasto. Daí a importância dos trabalhos assinados por Zurara e Cadamosto para se procurar situar esta questão dos limites, Cadamosto é incontornável sobre o território percorrido e o que se pode entender como os seus limites. Trata-se de uma belíssima peça de investigação em que o autor prossegue com a Relação de Diogo Gomes, se bem que esta esteja eivada de defeitos e seja um tanto descosida. 

O historiador esforçou-se por dar ao leitor interessado uma ideia de como os primeiros contatos com os povos da Guiné se processaram, foram muitas vezes recebidos com hostilidade, houve que substituir a rapina à mão-armada e proceder à negociação com os potentados negros. E conclui dizendo que Diogo Gomes e Cadamosto terão sido os grandes diplomatas para a implantação dessa nova maneira de agir. A partir das suas viagens, a costa da Guiné ficava aberta ao comércio português, subia-se o rio Senegal até 800 quilómetros da foz, Diogo Gomes iria da boca do Gâmbia a Cantor, a 400 quilómetros de distância; antes de 1485 atingiram Tombuctu e mais tarde a região do Songo. 

“A vasta área da Guiné abria-se assim, até ao final do século XV, à colonização portuguesa, que foi eficiente durante aproximadamente um século. Depois foram a pouco e pouco chegando os concorrentes e passou-se também a um comércio indiscriminado e indisciplinado, que não olhava a meios para obter lucros”

Em próximo artigo vamos dar atenção a um trabalho de Maria Emília Madeira Santos sobre os “lançados”.

(continua)


Tombuctu
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23029: Notas de leitura (1423): “Pequenos Grandes Navios na Guiné” nos Anais do Clube Militar Naval, número de Janeiro/Março de 1998 (Mário Beja Santos)