Queridos amigos,
Trata-se de um acontecimento cultural relevante, um conteúdo organizado num espaço onde os núcleos dialogam ora entre si ora exprimem a diferença das épocas e o peso das respetivas mentalidades. Mas todas elas representações do mesmo povo, o que foge do invasor francês e come a sopa em Arroios, então à entrada da cidade, o estereotipado Zé Povinho, umas vezes sujeito à canga, outras vezes veemente no seu manguito para quem dele usa e abusa; e atravessamos os campos da Reforma Agrária, o mundo piscatório de Matosinhos, a dolorosa aprendizagem dos jovens vidreiros da Marinha Grande até chegarmos à mulher transmontana, de vigorosa sabedoria. A exposição intitula-se Representações do Povo, a sua coordenadora é Raquel Henriques da Silva, nome indispensável da historiografia de arte, e diretora científica do Museu do Neo-Realismo. Está patente até abril do próximo ano, é excecional, recomenda-se que não se perca estas representações do povo, numa apresentação original e credoras de um catálogo de imperdível leitura.
Abraço do
Mário
De visita obrigatória: exposição Representações do Povo, Museu do Neo-Realismo
Mário Beja Santos
É irrefutável que o povo só passa a ser uma presença obrigatória na obra de arte depois do Século das Luzes, aufere os seus galões nos movimentos revolucionários, a industrialização, os movimentos estéticos realistas e as ideias socialistas deram razão de ser às representações do povo, designadamente na pintura, na fotografia, no desenho (na literatura seguirá os seus rumos, bem distintos). A exposição Representações do Povo, coordenada por Raquel Henriques da Silva, que permanecerá no Museu do Neorrealismo até abril de 2022, é um acontecimento cultural pelas abordagens apresentadas, o desafio à resposta O que é o povo?. Escolheram-se obras concretas, algumas de extraordinário valor, mas o aliciante da organização do espaço expositivo é o diálogo entre essas mesmas representações onde cabem uma gravura de Domingos António Sequeira, A Sopa dos Pobres em Arroios, um tributo ao macerado povo alentejano, um quadro a óleo de Jorge Pinheiro que nos leva ao assassinato de dois cooperantes alentejanos no ciclo final da Reforma Agrária, intervém o génio de Rafael Bordalo Pinheiro com um ícone que jamais saiu de cena, o Zé Povinho, com o seu manguito e a sua albarda; e vamos a Matosinhos, onde Augusto Gomes nos revela os pescadores da sua terra natal na sua impressionante qualidade, tema popular que se confronta com outro, o povo dos vidreiros da Marinha Grande, da autoria de Teresa Arriaga; e assim chegamos ao último núcleo, da autoria de Graça Morais que nos apresenta as mulheres de Vieiro, aldeia transmontana onde nasceu. Como escreve Raquel Henriques da Silva na introdução do magnífico catálogo que o visitante não deve dispensar: “O nosso objetivo foi dar continuidade à linha expositiva do Museu do Neo-Realismo que valoriza os contextos sociais, políticos e culturais da produção artística. Trata-se de um repto estimulante, pouco praticado nos museus de arte que, ao longo do século XX, foram afirmando uma expografia centrada na capacidade falante do objeto artístico e da sua autonomia em relação aos contextos produtivos. Há casos em que assim é, mas há muitos outros, como acontece com os autores aqui expostos, que na totalidade das suas obras, ou em parte delas, assumem, como motivação, a narrativa da História (…) O povo destes artistas é a representação dos fundamentos de uma nação (…) O que muitos artistas têm feito, em ciclos longos e muito diversificados, é representar essa humanidade menorizada, dando-lhes uma simbólica aura, pressentindo que ela é o fundamento de uma cultura regida por ritmos antiquíssimos, talvez mais afins da biologia do que de frágeis conceitos de História”. Assim nasceu o desafio de pôr o século XIX em franco diálogo com o século XX, o povo no palco da História. E o desafio do projeto triunfou, a exposição é magnífica, vamos visitá-la.
Sugere-se ao visitante que comece por contemplar no bar os azulejos de Querubim Lapa, datam da inauguração do museu, 2007, ali estão vibrantes, geométricos e buliçosos, melhor acicate ou tónico para entrar no museu duvida-se que pudesse haver.
Para quê estar a apregoar a ousadia de linhas de Alcino Soutinho? A disposição das formas garante a leveza, luminosidade, apetece subir e descer e descobrir ângulos recônditos, há para ali uma escadaria flutuante que faz medrar ilusões óticas pelas subtis combinações matéricas, e tal leveza – deverá ter sido esse o móbil do arquiteto – põe todo este interior museológico a conversar entre paredes e estimular o visitante a subir e descer, sem pressa nenhuma, pois as obras de arte que visita estão transfiguradas pela obra de arte que as encerra. E ponto final.
Tudo aconteceu em 27 de setembro de 1979, António Maria do Pomar Casquinha, 17 anos, e João Geraldo “Caravela”, 57 anos, foram mortos pela GNR, na Herdade do Vale do Nobre, perto de Montemor-O-Novo, durante uma devolução de terras ao seu proprietário. Houve quem fotografasse na hora própria, há obras de arte alusivas, mas este impressionante quadro de Jorge Pinheiro intitulado Ao Povo Alentejano catapulta-nos para os valores simbólicos, usados com uma simplicidade que atrai quem contempla a obra de arte: as papoilas e as espigas convocam o pão; quem está morto e quase transfigurado em todo aquele planejamento que se assemelha a um sudário evoca a indignidade de quem morreu e queria ganhar a vida com o suor do seu rosto, é como se uma força revolucionária dali emanasse para abalar a consciência.
Bendito aquele que na organização das exposições se lembrou de aqui trazer uma das mais impressionantes gravuras que se fizeram em Portugal, a Sopa dos Pobres em Arroios, é preciso recorrer aos estudiosos para se saber que estamos em plena Praça do Chile, lá para cima se vai pela Almirante reis até ao Areeiro e em frente está um convento, hoje um escombro que parece destinados a um futuro hotel de luxo. O espetador é atraído por essa torrente humana constituída por milhares de refugiados da Beira e da Estremadura que fogem das tropas de Napoleão, neste caso comandadas pelo marechal André Masséna, estamos em 1810. Domingos Sequeira foi sublime no esquema cenográfico, desloca para primeiro plano o drama humanitário que se desenrola na calçada, deixa os militares a meio, obriga-nos a olhar uma encruzilhada de caminhos que têm o condão de alavancar a animação de tudo quanto se representa. Escreve-se no catálogo: “Em primeiro plano, várias figuras, sobretudo mulheres cobertas com xailes e lenços, comem a sopa em pé, junto de mulas sobrecarregadas com os volumes dos haveres que os camponeses conseguiram trazer de casa. Mas o destaque vai para o numeroso grupo de jovens mulheres que dão de comer ou acompanham bebés e crianças, sorvendo alguns a sopa das málagas. A ausência masculina só reforça a ideia de um país em guerra”. Que tal darmos um elucidativo texto sobre esta topografia, e o autor alude a algo que eventualmente nos possa escapar: Sequeira terá querido veicular uma mensagem que pretendia universal. O povo que Sequeira apresenta nesta gravura não representaria somente uma comunidade nacional e numa leitura atual se pode dizer que o episódio retratado pode ser visto como um exemplo de defesa dos direitos humanos.
O mais genial artista do século XIX fez aparecer o Zé Povinho em 1875. “Veste um traje rústico e remendado, usa barba à passa-piolho e apresenta um riso alvar, ingénuo. É de salientar a escolha do seu nome, composto por dois diminutivos, a partir de José, nome próprio comum em Portugal, e de Povo, identificado com a Nação, mas reduzido ao seu estrato mais baixo e de espetro alargado. Que não sendo ninguém em particular é toda a gente”. O visitante vai encontrar no precioso catálogo ou elementos necessários para conhecer a história desta figura e como ela mantém uma popularidade que nenhuma outra iconografia de representação do povo consegue superar, nos dias de hoje.
Alguém fala das representações destes vidreiros da Marinha Grande, saídos do punho de Teresa Arriaga como sudários do vidro. Esta artista comunista foi professora na Marinha Grande, na escola industrial. Vale a pena ler o documento, conhecer o trabalho do vidro e chegarmos à compreensão e ao testemunho destes jovens vidreiros. “Os aprendizes entravam na fábrica ainda meninos. As tarefas que desempenhavam variavam consoante a tipologia de produção, abrangendo o fechamento e abertura dos moldes, o transporte das peças para as arcas de tempero, galerias normalmente contíguas aos fornos, onde arrefeciam lentamente, a limpeza do espaço de trabalho, dos moldes e dos utensílios”. Chegam a ser pungentes os depoimentos que o catálogo recolhe e este quadro que aqui vemos tem a ver com a obragem. “O trabalho decorre num estrado que organiza o espaço pictórico em diagonal, estruturando a tela de grandes dimensões e disposta ao alto. Os cinco operários movimentam-se neste corredor estreito e enegrecido, exclusivamente iluminado pelas duas bocas de forno, pelas duas peras de vidro incandescente e pela peça que o oficial tem em acabamento. É uma composição centrada na operação que se desenrola e não nas personagens. Nenhuma delas foi individualizada. Teresa não reintroduziu na tela os retratos que tão intensamente desenhara sete anos antes”. E o visitante tem à sua disposição não só esse rol de desenhos como outros retratos.
Numa entrevista a Maria Antónia Palla disse Augusto Gomes: “Muitas vezes se afirma que sou um neorrealista. Eu diria que a minha pintura é populista. Na verdade, não pretendia fazer uma arte de luta. Pintava temas populares por gosto, porque me sinto próximo dessas figuras". O artista teve a sua vida sempre ligada a Matosinhos, o Litoral está sempre permanente nas suas obras de arte, convoca o mundo da pesca, recorde-se que Matosinhos foi durante a primeira metade do século XX um dos principais portos piscatórios portugueses e mundiais. É impressionante este quadro intitulado Família de Pescadores. “É uma pintura com gente triste, mas não é exatamente uma pintura sentimental, há nela uma combinação entre desânimo e solenidade”. Podemos situar este quadro nos finais dos anos 40, foi uma encomenda da Junta de Freguesia de Matosinhos, após um acontecimento trágico, um naufrágio que ocorreu em 2 de dezembro de 1947, em que morreram 152 pescadores e 4 traineiras. Augusto Gomes dizia-se atraído pela pintura clássica e há de facto um aspeto de sagrada família neste grupo e apresentado como uma estrutura do tipo piramidal: a representação da mãe e do filho, há ali uma evocação de uma Virgem com o Menino, não se pode ignorar uma certa influência da pintura italiana do século XV. Contempla-se, e fica-se esmagado pela força da representação.
Graça Morais representa mulheres transmontanas, sabemo-las que são camponesas com variadas lides, as domésticas e as da terra, a própria artista tece comentários como estes: “Têm o poder da maternidade, um poder fortíssimo. E os homens sabem disso, sabem que as mulheres têm sempre uma grande ligação com os filhos”. O que aqui vemos é algo que se prende ao processo de envelhecimento e da acumulação de saberes, elas aparecem aqui representadas como uma força motriz ancestral que trabalha, garantindo a vitalidade da terra e do ser humano, é obrigatório ler o que se escreve sobre estas Marias transmontanas, que Graça Morais imortalizou.
Convém não sair do edifício desenhado por Alcino Soutinho sem visitar a exposição dedicada a Júlio Pomar e à sua obra gráfica. Trata-se de uma coleção privada onde ganha realce a obra em gravura do grande artista, nas décadas de 1950 e 1960, veja-se o potencial revolucionário do almoço do trolha, da fase puramente neorrealista de Pomar, mas o visitante tem outros núcleos à espera, intitulados Tigres, Índios da Amazónia, Retratos Míticos, Animália, Mitologias, Figuras do Povo, Tauromaquias, Eróticas. Uma excelente oportunidade para conhecer esta obra gráfica de um dos mais significativos artistas portugueses da segunda metade do século XX que foi pioneiro do neorrealismo pictórico.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 12 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22276: Os nossos seres, saberes e lazeres (455): Na Sertã, no dia em que aqui recebi a primeira dose da vacina (2) (Mário Beja Santos)