sexta-feira, 18 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22294: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (57): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Junho de 2021:

Queridos amigos,
Paulo Guilherme andava derribado, insone, anormalmente irritável, deu manifestos sinais de agressividade, o médico estava atento, encontrou uma solução, mandou-o com guia de marcha para Bissau, a pretexto de umas consultas, um outro médico e seu amigo, David Payne, meteu-o lá em casa e deu-lhe umas mezinhas consistentes para repor o bom humor e regressar ao sono satisfatório. Foi de avião algemado a um prisioneiro. Ou perdeu a chave das algemas ou partiu sem chave, o sargento que os recebeu no aeroporto levou-os emparelhados e recorreu a uma gazua, quem via a cena deve tê-la achado um tanto desconcertante. Dormiu que se fartou, tinha autorização para sair de casa a meio da tarde, foi um memorável sistema de cama e mesa, medicamentos e roupa lavada, tratamento mais económico não podia haver. É Annette quem conta a história, chega a Bambadinca, todo pimpão, prontamente o major de operações o convoca, amanhã de manhã parto para a operação Topázio Valioso, se alguém duvida que qualquer cenário de guerra é um mistério por decifrar ou um oceano de surpresas, nestas histórias tem bom enredo para desencantar.

Um abraço do
Mário


Rua do Eclipse (57): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Mon trésor, mil anos que eu vivesse jamais esqueceria o orgulho com que te ouvi dissertar sobre a presença portuguesa na Bélgica, posso imaginar o trabalho que te deve ter dado a organizar aquelas largas dezenas de slides em que descreveste o relacionamento efetivo desde a Idade Média entre o reino de Portugal e a Borgonha e a Flandres até chegares à independência da Bélgica, e apreciei muito a forma suave como abordaste as relações entre os dois países no período das independências africanas e como as relações luso-belgas se têm vindo a estreitar desde a adesão de Portugal à Comunidade Europeia. Gostei muito de ver o Espaço Senghor altamente composto, tiveste uma boa parte da comunidade portuguesa bem representada, e participaram muitas organizações que apelam ao mais estreito relacionamento entre os povos europeus. Um dado curioso foi ter visto e até ter conversado com alguns desses participantes que eu conheço da minha vida profissional, caso de gente ligada às cooperativas de consumo, às organizações de saúde, às associações de consumidores, de famílias e sindicatos, não é raro encontrá-los nas reuniões das instituições europeias. Um dado curioso é que tinha estado na véspera com Emílio Bottignini e Paolo Adurno do Comité Socioeconómico Europeu, fiz interpretação do italiano para neerlandês, e encontrei-os no Espaço Senghor, deve ser gente que te aprecia bastante.

Começo por esta exultação, e não sei como registo a esconder o meu pesar de teres estado tão pouco tempo comigo, é egoísmo meu, bem sei, não sei como arranjas tempo para tanta diversificação de tarefas, sabia de antemão que vinhas por muito pouco tempo, tens muita coisa a fazer em Lisboa nos próximos dias, sossega-me o coração saber que depois vêm as férias, mas não quero disfarçar como custa muito, depois de receber tão intenso afeto teu, levar-te para o aeroporto, ainda por cima fui logo arrumar o carro no parque de estacionamento, duas horas depois de tu partires viajei para Dublin, era uma reunião internacional sobre as condições de trabalho. Como te disse, falando-te dos meus filhos, Noémie tem trabalho seguro, é comprovadamente competente no que faz no chamado planeamento urbano, Luc, o seu companheiro, trabalha numa empresa de créditos, vivem com remunerações curtas, lançaram-se na compra da casa em Woluwe-Saint-Pierre, claro que eu ajudo, não hesito em partilhar o que tenho com estes dois filhos, mas há uma certa ansiedade quanto ao modo de viver de Jules, ele é pouco previdente, se bem que generoso na defesa da causa dos imigrantes, custa-me ir lá a casa e ver que a sua companheira, Isabelle, está muito pouco interessada em procurar empregos estáveis, o que não deixa de ser intrigante para quem como ela tirou um curso de secretariado. Não quero intervir, mas não estar regularmente a desembolsar para não ver o meu filho e a sua companheira a passarem extremas dificuldades. Tu não me escondes que tens problemas idênticos com um dos teus filhos, sei perfeitamente como os ajudas. Pergunto-me se tu não queres fazer umas férias económicas, sonhas em conhecer com alguma profundidade a maior parte das localidades à volta de Bruxelas, deixaste cá em casa o Guia Michelin com muitas anotações desses lugares que gostavas de visitar, aqui fica a minha sugestão fazermos passeios diários e permanecermos na Rua do Eclipse. Dá-me a tua opinião.

Volto agora à Guiné e ao meu dossiê, cada vez mais túrgido. Estamos em janeiro de 1970, andas com os nervos em franja, o médico insiste que faças um repouso, seria bom que permanecesses aí uma semana em Bissau a tomar uma medicação que te restituísse um bom sono e a alegria de viver, assim que ele ouviu dizer que o teu pelotão passaria uma semana na segurança da ponte de Undunduma e a fazer patrulhamentos e vigilância dos Nhabijões, sugeriu ao comandante que tu seguias com uma guia de marcha para várias consultas médicas, ele aprovou, conversou-se com o David Payne e ele aceitou de bom grado que tu fosses para Bissau dormir sossegadamente graças ao Vesperax e outra batelada de comprimidos. Tenho aqui um apontamento teu deste período, dizes que chegaste a dormir 15 horas por dia, praticamente não davas trabalho a ninguém, saías a meio da tarde para dar um passeio e à procura de um ou outro livro, voltaste a jantar com o médico oftalmologista, de nome Botelho de Melo, passado oito dias acabaram as insónias, voltou o bom humor, pediste para regressar, pedido deferido. Houve uma nuvem muito escura no horizonte, alguém te informou que o segundo comandante do batalhão, pessoa que tu muito apreciavas, escreveste major Ângelo da Cunha Ribeiro, sofrera um horrível desastre na rampa de Bambadinca, vinha num jipe, seguia à frente um camião que recuou inesperadamente, dispararam da caixa as rachas de cibe que voaram como setas para o interior do jipe, que desceu a rampa aos trambolhões, o condutor teve oportunidade de fugir, o mesmo não sucedeu com o major que foi retirado dos ferros retorcidos com múltiplas fraturas, contusões graves e hemorragias. Tu irás visitá-lo na véspera do regresso a Bambadinca, jazia engessado e enfaixado, não perdera uma pitada de humor e contava algumas pilhérias sobre o que via no hospital.

Cher Paulo, desatei a rir com a folha que me mandaste sobre a tua partida para Bissau. Tu escreveste: “No início do ano, numa operação no Xitole, de nome A Navalha Polida, foi feito um prisioneiro em Satecuta, e trazido para Bissau. Quando me disseram que podia aproveitar a boleia de uma avioneta que vinha buscar este prisioneiro, partimos os dois algemados, ele para ser interrogado, eu para fazer tratamento às minhas insónias. Havia um transporte à espera do prisioneiro em Bissalanca, começo a afligir-me porque não encontro a chave das algemas, o sargento que me aguarda e acompanhado por outros militares armados diz para eu não me preocupar, seguiremos algemados, alguém há de desenrascar a situação, há gazuas para tudo, depois levam-me até ao hospital, tenho que restituir as algemas em Bambadinca. Felizmente que tudo correu bem, conversei amenamente durante a viagem com o prisioneiro, não me passou pela cabeça dar-lhe qualquer sugestão que o estava a interrogar, quando ele me disse que era da etnia Futa-Fula, contei-lhe o que tinha lido sobre o Futa-Djalon e as grandes batalhas em que os Fulas tinham estado envolvidos no século XIX com os Mandingas e com os Beafadas. Quando nos desalgemaram, até parece que nos despedimos como bons amigos”.

Estou agora a juntar os papéis do teu regresso, tu dás muitos pormenores de pessoas que encontraste com quem conversaste, dos livros comprados no Centro Cultural da Guiné Portuguesa, da satisfação que tiveste quando chegaste a Bambadinca, estava um céu límpido e um dia quente e as crianças rodopiavam e gralhavam no recreio, conheceste o novo comandante do pelotão Daimler, convocaste os teus homens para anunciar a chegada e é nisto que o impedido do comandante, de nome Bala, que tu dizes ser uma figura inesquecível pelo seu sorriso aberto mostrando muitos dentes de ouro, te anunciou que o major das operações te chamava com urgência. Entraste no gabinete, houve uma troca rápida de cumprimentos e ele anunciou-te: “Espero que venha recuperado, parte amanhã para o Xime, vai participar numa batida à volta do rio Burontoni, é a Operação Topázio Valioso”. Fiquei estarrecida, cher Paulo, como é possível uma pessoa vir de um tratamento para melhorar o sistema nervoso do sono e imediatamente ter um cenário de guerra? Fico-me por aqui. Escreve-me muito, dá-me notícias, telefona-me, bem logo que possas, a tua charmante Annette, como tu me chamas, não sabes viver sem a tua presença, os teus afagos, o teu amor verdadeiro. Bisous mil, infinitamente, Annette.

(continua)

Centre Culturel d'Etterbeek, Espace Senghor
Cher Paulo, fiquei agora a conhecer os teus militares com que irias para a Guiné caso não tivesses sido classificado como “ideologicamente inapto para a guerra de contraguerrilha, mormente no Ultramar Português”. Contaste-me que ajudaste a promover um encontro dessa unidade militar, a CCAÇ 2402, em Figueiró dos Vinhos, foi para ti emocionante, mais de 30 anos depois, rever gente com quem já tinhas estabelecido uma relação tão afetuosa. Ocorre-me um truísmo: são coisas da vida.
Muito obrigado por este bilhete-postal, sei que Les Halles de St. Géry são do teu pleno agrado, e eu acompanho-te. Lembras-te, mon amoureux, de termos visto aí uma exposição da arquitetura de Bruxelas nos anos 1950? Sinto-me sempre muito feliz quando estou ao teu lado e poder partilhar a devoção que tu sentes por esta cidade que tu tratas como tua.
Que surpresa! Até fiquei na dúvida de quem me olha nesta fotografia, encontrei parecenças evidentes, sei agora que é uma fotografia do teu pai, a trabalhar no seu laboratório fotográfico. Não te esqueças de me mandar imagens de outros familiares, tenho uma grande curiosidade sobretudo sobre os teus ancestrais, falaste-me na tua mãe em Angola, quando tiveres tempo fala-me dela, já percebi que ela teve um papel determinante na tua vida.
Eras então assim dez anos antes de eu te conhecer. E contaste-me que estavas em pleno trabalho “europeu”, era a presidência portuguesa de 1992, coubera-te estar na organização da Conferência Europeia do Acesso dos Consumidores à Justiça, a maior satisfação, disseste-me tu, foi ter conseguido levar a custo zero ao Teatro Nacional de São Carlos para ver a ópera Così fan tutte de Mozart, os convidados estrangeiros, récita extraordinária, orquestra conduzida por John Eliot Gardiner.
Reconheci-te perfeitamente, é um dos teus hábitos de conversares com as pessoas e pores as mãos como se tivesses em oração, gesto a confirmar a palavra. Registei o que deixaste escrito no verso da imagem: Madrid, 1987, Congresso Mundial dos Consumidores, conversa com a chefe da delegação cubana, dás-lhe conta do quadro legislativo existente em Portugal para a proteção dos consumidores.
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Nota do editor

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2 comentários:

Fernando Ribeiro disse...

Os nomes das operações são hilariantes! "Topázio Valioso" e "Navalha Polida" são nomes que se deem a operações militares? Ahahahah! Na Guiné elas tinham todas nomes assim?! Quem é que os escolhia? Devia ter um grande sentido de humor.

As operações feitas pelo meu batalhão em Angola tinham que ter um nome começado pela letra A. Porquê, não sei. Era assim. Então, bastava abrir um dicionário na letra A e escolher entre centenas de palavras. "Operação Águia", "Operação Asa", "Operação Alcance", "Operação Ardor" e por aí fora. Eram nomes que não tinham graça nenhuma.

Valdemar Silva disse...

Quer o nome das operações militares quer o das senhas e contra-senhas em serviços de vigia e prevenção, julgo haver alguma norma na escolha dos nomes e no caso da senha e contra-senha terá de ser utilizado nomes antagónicos e sem relacionamento ex.: Lisboa - Pinheiro Bravo.
Como curiosidade e nunca mais esqueci, quando Salazar caiu da cadeira eu estava a dar instrução a recrutas no RI10, em Aveiro, e entramos de prevenção. Dessa vez a senha ALGARVE e a contra-senha PRAIA DA ROCHA, nada antagónico e de relacionamento lógico.

Valdemar Queiroz