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quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26119: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (35): Nunca digas "coragem!", ao ouvido de quem está a morrer e sabe que vai morrer



Contos com mural ao fundo (35) > Nunca digas "coragem!", ao ouvido de quem está a morrer e sabe que vai morrer


por Luís Graça (*)


Estiveste no seu leito de morte. Um fatal cancro dos pulmões, porventura curável nos nossos dias, roubara-lhe a vida, há uns trinta anos atrás. Teria hoje  os seus 80 e tal,  se fosse vivo. Morreu jovem, demasiado jovem.

Era um dos teus heróis da adolescência. Tinha lentamente recuperado a alegria de viver, depois de uma grave crise que ele próprio qualificara de “existencial”.

A origem dessa crise remontaria, pelo menos, a setembro de 1967,  altura em que ele regressara da Guiné, onde havia conhecido a “guerra, pura e dura”.

Era um dos teus amigos, da época  da tua adolescência (que em vão quiseste prolongar: acabou aos 18 anos quando viste o  teu nome na lista do recenseamento militar, no edital camarário). 

Dele, o Doc, guardarás para sempre uma grande saudade, não obstante as vidas de ambas, cruzadas como tantas outras, se terem separado no final da década de 1960.

Nessa altura foste tu para a tropa e estava ele  a retomar, a custo, em Coimbra, os seus estudos de medicina que a vida militar viera interromper abrupta e dramaticamente. 

A imagem mais dolorosa que guardas dele, é a da cama de ferro, de um  anexo de um hospital, em Lisboa, num quarto, minúsculo, ao fundo de um corredor sombrio. Sem janelas. Sozinho como um cão, anichado em posição fetal, a escassas… 48 horas de exalar o seu último suspiro... Como virás a saber mais tarde, pela… telefonista de serviço. Pode ser cruel, mas era assim nesse tempo.

Reconheceu-te só pela voz. Não se moveu nem um centímetro. Estava lúcido, mas já em grande sofrimento, e sob o efeito de drogas.  Só lhe sussurraste, ao ouvido,  um tímido “Olá, Doc”. E acrescentaste, estúpida e desastradamente: 

− Coragem!

As suas únicas (e últimas) palavras, roucas, cavernosas,  inumanas, soaram-te a despedida, irremediável, brutal, sem retorno. Sentiste-as como um punhal cravado no teu peito. Guardaste-as para o resto da tua vida: 

 Ruizinho (tratava-te sempre por Ruizinho), vai-te embora, vai-te embora!

Nunca saberás se era uma súplica, uma ordem ou um grito, uma explosão abafada  de raiva, revolta e impotência!

Trinta anos depois, não te envergonhas de o dizer, essas palavras, as últimas, as únicas, que ele terá proferido, no seu leito de morte, como um urso agonisante na sua toca de hibernação, ainda hoje te martelam a cabeça. E tens pesadelos ao reviver esse momento único.

Sentiste um enorme  sufoco por ver a morte triunfar, impante, sobre a vida, e ao mesmo tempo vergonha  por teres sido incapaz de lhe tocar!... Como se ele já fosse cadáver!... 

Por pudor ou medo atávico da morte, não conseguiste sequer tocar-lhe. Mostrar empatia. Pegar-lhe na mão. Dizer-lhe a palavra  certa, humana,  de consolo, de conforto, de carinho. Não, só uma tímida,  inócua, cobarde,  desastrada palavra, completamente deslocada naquele momento e lugar:

− Coragem! 

Mais tarde, talvez para tranquilizar a tua consciência e não sentir o peso da tua fraqueza e sentimento de culpa, irias interrogar-te sobre o significado que ainda poderia ter o teu gesto de compaixão, no momento mais pungente e solitário da vida de um ser humano… Que é quando agoniza, lúcido mas a sofrer, longe do mundo, já muito longe daqueles que o amaram e que ele amou!...

Em boa verdade, ele não tinha ninguém à sua cabeceira, a não ser talvez o invisível e impávido anjo da morte... Morreria dois dias depois, “sozinho como um cão” (uma expressão que ele próprio usava, nos seus aerogramas, para falar da sua condição de combatente na guerra da Guiné, em 1965/67).  

Morreria sozinho como um cão, aos 48 anos, longe da família, de que, aliás, só restava a irmã, e os sobrinhos que mal o conheciam. Não tinha filhos. Nem ninguém que o tivesse amado como ele merecia.

Tiveste um ataque de choro, convulsivo, enquanto saiste dali, confuso, quase aos trambolhões, daquele corredor estreito e sombrio do anexo hospitalar, sufocado, em busca do ar fresco do pequeno jardim, rodeado de gigantescos ciprestes, sinistros, apontados para o céu, e que circundavam o pavilhão, conhecido como o “terminal da morte”.

Recuando há muitos anos atrás, vêm-te à cabeça as cenas do seu regresso da Guiné. Tu eras o único amigo de que ele se lembrava. Ou melhor, tu eras talvez o único amigo que ele ainda não queria esquecer (pensavas tu, lisonjeado).

Tinha regressado da guerra em 1967, no final do  verão que iria marcar, ironicamente, o fim, político, do homem, o Salazar,  que o mandara defender a Pátria, a milhares de quilómetros de casa. 

Tinha regressado da Guiné e não avisara ninguém da família. Nem sequer a namorada, a Xana. Muito menos os amigos, poucos, que vinham do tempo do liceu e do grupo de teatro amador, como era o teu caso. E tu, seguramente, eras o mais novo.

De facto, nem sequer se dignara escrever-te, a ti,  que eras o seu correspondente e de certo modo confidente. Trocavam correio  enquanto ele esteve na Guiné. E no grupo de teatro fizeste todos os papéis: secretário, produtor, moço de recados, ponto, aderecista,  datilógrafo, figurante, aprendiz de ator, colador de cartazes… De resto, eram amigos e vizinhos de bairro, se bem que tu fosses mais novo do que ele uns bons seis  anos.

Sabias que ele era um pessoa “difícil”, frequentemente “imprevisível e desconcertante”, "irascível e às vezes duro e até cruel, se não mesmo desumano e ingrato”, como escreverá um dos seus "amigos, admiradores mas  críticos", no jornal da cidade, na notícia necrológica. 

Sim, o Doc era bipolar (como a maioria dos seres humanos).  Era uma pessoa de extremos, daí o facto de nunca  ter tido muitos amigos. Mesmo assim, houve gente decente da  terra, que compareceu ao seu funeral, que seria organizado pela sua irmã, professora universitária. 

Não tinha ninguém à sua espera, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa,  nessa manhã de setembro de 1967. De resto, vinha sozinho, como te explicará ele mais tarde. Tu ainda não percebias nada de tropa, mas ficaste a saber, pelos aerogramas que trocavam, que ele era de “rendição individual”: 

− Vim sozinho e regressarei sozinho, no caso  de não lerpar... 

− Lerpar? !... 

− Morrer, Ruizinho, morrer !− explicar-te-á ele, no aerograma seguinte... − Quem vai à guerra, está sujeito a lerpar!... É um jogo de sorte e azar.

E, como tal, não havia regressado no navio com os seus camaradas da última companhia onde estivera, no sul da Guiné, os quais, sendo mais novos, ainda ficaram a cumprir calendário. Ou, como ele te dizia, com sarcasmo, “a cumprir o resto da pena de desterro”.  

Tanto quanto te apercebeste, o Doc tinha receio que a família e a malta do teatro lhe quisessem fazer uma surpresa, indo esperá-lo no cais de desembarque. Seria a última coisa que ele iria aceitar, “a última cena, grotesca, da tragicomédia da tropa e da guerra”. 

Curioso, sendo um “homem do teatro”, tinha um enorme pudor em manifestar em público as suas emoções e sentimentos. Aliás, ele não era propriamente ator mas encenador (e também dramaturgo: escreveu, pelo menos, uma peça para o grupo).  Em boa verdade, tu nunca o viras representar, no palco do teatro (nem no palco da vida). 

Ficaria trancado em casa nos primeiros dias, sem querer ver ninguém. Tu e a Xana terão sido as primeiras pessoas da terra, fora do círculo familiar, que ele condescendeu em receber depois do regresso.  

Para a namorada, seria aliás o fim de um relacionamento que já antes tinha tudo para não dar certo.  Julgas até que ela foi a primeira vítima da sua rutura com o passado.  

Segundo te contou depois a irmã do Doc (a dra. Mena, que tu tratavas com deferência por ser bastante mais velha do que tu e já formada), terão tido uma discussão violenta, acabando tudo entre eles nessa tarde. Para grande desgosto da mãe, que via na Xana a menina prendada, a Cinderela, a alma gémea do seu filho. 

Os inimigos do Doc respiraram fundo, com a notícia do rompimento do impossível namoro entre "a Bela e o Monstro" (sic). (A Xana era um rapariga cobiçada pela sua beleza, talvez a rapariga mais bonita da cidade; acabaste por perder-lhe o rasto, na voragem do tempo.) 

O Doc desabafou contigo, explicando-te que estava a fazer um “cura de sono”… Na altura, em 1967, não havia psiquiatras e psicólogos como há hoje, e tu, na ingenuidade dos teus verdes anos, nem sequer puseste a hipótese de ele estar a passar  por uma “crise de depressão”.  

Na época, não se falava de "saúde mental", falava-se de loucura e de manicómios. E muito menos ainda de “stress pós-traumático de guerra”, nem tu imaginavas sequer o que fosse essa estranha entidade clínica…

− Só as mulheres é que têm depressão pós-parto – dizia o pai dele,  que nestas coisas tinha sempre um certo ar de sobranceria e fazia questão de emitir a opinião arrogante e definitiva do "catedrático da universidade da vida".

As relações pai-filho também não eram as melhores. Aliás, nunca tinham sido boas. Contrariamente à mãe, o pai só lhe terá dito, à chegada, bruto, curto, feio e seco:

 Olá, filho, sê bem vindo… Finalmente, em casa! 

Eram os dois parecidos, pai e filho, em  muita coisa, mas chocavam-se quando, por exemplo, discutiam a “guerra do ultramar” (como dizia o pai) ou a “guerra colonial” (como preferia chamar-lhe o filho). Uma questão terminológica ("mais do que semântica, conceptual!") que lhe punha os cabelos em pé, ao ponto de um dia  o Doc ter arremessado ao  chão  a toalha com a louça posta na mesa  para o jantar.

Mesmo se tivesse “cunhas” (o que não era o caso), o pai nunca  se humilharia perante ninguém para interceder pelo filho, livrando-o do ultramar ou, pelo menos, da Guiné… E depois a tropa e a guerra iriam "fazer dele um homem", como fora o seu caso, que  combatera os alemães, os "boches", em Moçambique na I Grande Guerra.

− Ruizinho, não me leves a mal, mas  não ouças o tonto do meu Velho…

Quando ele desembarcou, a única coisa que ele queria, era chegar a casa, não ver ninguém, não estar com ninguém, fechar as cortinas, enfiar-se na cama… E acrescentou algo que te chocou e perturbou profundamente: 

− Sabes que mais?… Tenho asco a tudo o que é humano! 

Não alcançaste  o que ele queria dizer com aquela estranha expressão. Mas ele insistia que precisava de dormir um “sono reparador”:

− … Dormir um dia inteiro, como um porco, uma semana, um mês… Porventura, um ano ou até o resto da vida… 

Queria poder hibernar o resto da vida. "Como um urso" (sic). Esquecer. Esquecer a tropa, a guerra, a Guiné…

Ainda ensaiaste uma tímida tentativa de diálogo mas ele correu contigo, pondo-te fora do quarto, aos berros… Aí ficaste chocado, assustado, com a sua brutalidade,  mas sobretudo ao ver e rever o seu ar acabrunhado, as olheiras fundas, os olhos vidrados, a cor da pele amarelada,  a barba, de vários dias, por fazer, o ar cadavérico…

Afinal, era um “ataque de paludismo”, tranquilizou-te a pobre mãe que, à força de muitas súplicas e lágrimas, lá o convencera a ser visto pelo médico, amigo da família, e que, sendo de saúde pública, sempre devia perceber alguma coisa de "doenças tropicais"…

Nas costas da mãe e do médico, nesse fim de semana, despejou uma garrafa de uísque.

Na altura, confessarás mais tarde, até pensaste que ele poderia estar com ideias parassuicidárias, como se diz hoje. Ficaste assustado com o estado de saúde, física e mental, do teu amigo. 

E ainda estava fresca, na memória de toda a gente da terra, a morte por enforcamento do pai de um antigo colega teu de escola. Estavas tu de piquete na redação do jornal, fazias os "faits divers", as pequenas ocorrências, os nascimentos, batizados, casamentos e óbitos,  e ainda viste, enquanto se aguardava a chegada da autoridade de saúde, o corpo a baloiçar numa barrote da caldeira onde  trabalhava, nos arredores da cidade. Era o adegueiro.

Reconstituindo o que se passara nessa manhã de neblina, em que desembarcara, no Tejo, de um velho navio, misto, de mercadorias e passageiros, da carreira colonial, agora requisitado para transporte de tropas, o Doc contou-te que durante a viagem e à chegada tinha tido “pensamentos confusos e impulsos contraditórios”. 

Percebeste, por entre as lacónicas frases que ele te ia rosnando, entre dentes, que a viagem de regresso no "barco negreiro" tinha sido um pesadelo.

Logo à saída da gare marítima, chamara um táxi e estendera ao condutor um bocado de papel  com a morada de casa. Pediu para o acordar quando chegasse ao destino. Nem sequer fez questão de perguntar em quanto ficaria o serviço de táxi, sendo para fora de Lisboa. Tinha os bolsos cheios de notas, o “patacão sujo da guerra” (sic). Em Bissau trocara um maço de “pesos” por escudos metropolitanos.

Ao fim de quase quatro horas de viagem (ainda não havia autoestradas nesse tempo), estava na cama, na casa dos seus pais, na região Centro. Na sua cama de solteiro, no seu quarto, com as estantes dos seus livros e discos de vinil, os cartazes de teatro e cinema... Estava tudo como ele tinha deixado há dois anos atrás. Arrumado,  impecável, sem um grão de pó, graças ao desvelo da sua mãezinha que o adorava.

Justamente ia fazer dois anos que não se viam, ele e os pais e a irmã. Ele não viera de férias, por “razões disciplinares”: tinha apanhado uma “porrada” (sic) e, em consequência do castigo, tinha sido transferido para outra companhia, "como mandava o RDM, o regulamento de disciplina militar" (segundo depois te explicou).

Sentiste que esse episódio o marcara muito, mas nunca te deu grandes pormenores. E tu respeitaste a sua revolta e sobretudo o seu silêncio. Era evidente que o assunto o incomodava, não gostando sequer de falar dele.  

Em aerograma que mandara aos pais, terá arranjado uma desculpa esfarrapada para justificar a impossibilidade de comparecer na festa, comemorativa  dos  30 anos de casados, marcada para o verão de 1966. (E se a mãe tanto insistira com ele para reservar as férias para o mês de julho de 1966!). 

A releitura dos seus aerogramas não te permitiu esclarecer cabalmente esta história que lhe sujou a “caderneta militar” (documento, aliás,  a que tu nunca puseste a vista em cima,  se é que ele não o destruiu em vida).

Há dois episódios que poderiam estar na origem  da tal “porrada” ou castigo… Recapitulaste cada um deles, sem  poderes entrar em grandes pormenores por falta de informação. 

primeiro  terá tido a  ver com uma exaltada discussão  com a Polícia Militar, em Bissau, quando ele tirou uns dias para ir ao estomatologista. Traduziu-se numa participação contra ele, tudo por causa de um cena de pugilato com outro militar (de que desconhecias a patente, mas o mais provável era ter sido um 1º cabo).

O teu amigo Doc, que estava numa esplanada, perto da conhecida fortaleza da Amura, quis fazer justiça  pelas suas próprias mãos, contra  um grupo de “velhinhos”, ruidosamente festejando o fim de comissão e a véspera de embarque. Deram-lhes para se meter com os “djubis”, os miúdos que vendiam “mancarra"  (amendoim), nas ruas da Bissau velha, frequentada pela tropa… Aliás, miúdos e miúdas. 

Fizeram-lhes uma série de tropelias, o que começava a incomodar quem estava na esplanada, seguramente todos militares, uns fardados, outros à civil. O Doc interpretou isso como um ato de violência gratuita, se não mesmo racista, para mais sendo as vítimas crianças, indefesas, que tentavam ganhar a vida… Porém, de nada lhe valeu, a ele,  puxar dos galões. O grupo estava sob a euforia dos vapores do álcool e ninguém mediu as consequências dos seus atos. Às tantas generalizou-se a pancadaria, e voaram cadeiras da esplanada, até que chegou a Polícia Militar e restabeleceu a ordem. 

Abreviando a história, houve várias detenções. O Doc foi levado para o quartel da polícia militar. Ficou lá cerca de uma manhã. Mas houve testemunhas que abonaram a seu favor. Pelo menos, um dos  alferes ou furriéis que estavam sentados na esplanada, e que, por cobardia, comodismo ou cautela,  não se quiseram meter ao barulho. 

− Afinal, um militar fardado, para mais oficial,  está ou não está 24 horas por dia de serviço?! − interrogava-se o Doc, em voz alta, a limpar o sangue do sobrolho e ainda a espumar de raiva contra o grupo de arruaceiros.

O segundo episódio prende-se-á com uma situação algo semelhante, em que vem ao de cima o lado “justiceiro” e "solidário" do Doc, mas desta vez envolvendo um oficial superior,  um major,  que terá tratado mal (com insultos e ameaças de porrada) alguns militares de um pelotão de caçadores nativos, adido à  companhia de comando e serviços do batalhão a que pertencia o Doc. 

Eis o essencial da versão do Doc, num dos  aerogramas que ele te  escreveu: 

− Os soldados, todos guineenses, estavam a abrir valas, à volta do perímetro do aquartelamento… À porta do bar... Valas que seriam depois encimadas por bidões cheios de areia, como proteção em caso de ataque...

Calaceiros, mandriões  e outros epítetos ainda mais injuriosos acompanharam as ameaças do  major, 2º  comandante  de batalhão, impaciente com a fraca produtividade dos "nharros", dos "barrotes queimados" e outros "mimos" de semelhante teor,  que o Doc interpretei como sendo grosseiros,  descabidos, inapropriados e despudoradamente racistas...

À hora do bridge, e depois dos uísques do costume, a seguir ao jantar na messe de oficiais, o Doc, que assistira à cena da tarde, à porta do bar, “impotente mas indignado”, caiu na asneira de comentar, em tom subtil mas jocoso, em voz alta, a versão do major sobre o "incidente", ao mesmo tempo que incriminava o alferes, comandante do pelotão em causa, por deixar os seus homens ao deus-dará... 

− Este, cobardolas, branco como a cal da parede,  estava enfiado na cadeira com o rabo entre as pernas...

O Doc terá citado um provérbio popular, muito usado na sua região: "Quando o mar bate na rocha, quem se lixa é o mexilhão"... 

Caiu o  Carmo e a Trindade, na messe de oficiais… O major ficou lívido de raiva, "à beira de um ataque de nervos", era de resto um homem "histérico e irascível". O comandante veio de imediato em defesa dele e da honra do convento, dando ordens ao alferes, ao Doc,  para "se recolher de imediato ao seus aposentos".

O médico do batalhão, que era conhecido do Doc, do tempo de Coimbra e da crise estudantil de 1962, terá ainda, "timidamente", interferido a seu favor, junto do tenente-coronel.  Em vão, ao que parece. 

Não sabes bem o desfecho da história. Mas verdade é que, passado pouco tempo, em maio de 1966, o Doc é transferido de unidade…

O castigo disciplinar, "desproporcionado",  teve consequências graves na sua vida militar na Guiné: perdeu, de imediato, o direito ao gozo da licença de férias, e passou, de uma região  relativamente calma, o Leste, para outra, o Sul,  onde a atividade operacional era mais intensa…  

− Tal como cheguei, sozinho como um cão, assim parti...

Nenhum dos seus camaradas, alferes milicianos, se dignou ir ao bar de sargentos beber um copo de despedida com ele.

− Nem sequer o sacana do médico. Tive apenas, à mesa, dois ou três furriéis que me estimavam... 

E, pior ainda, ele que tinha uma especialidade relativamente burocrática (era oficial de operações e informações), passou a andar no mato, de camuflado e de G3 em punho, como comandante de um grupo de combate numa companhia de caçadores…

Nunca soubeste ao certo por onde ele andou o resto da comissão… Porque nos aerogramas só vinha o SPM, o código do Serviço Postal Militar. E tinha sempre o cuidado de nunca se identificar. Assinava, na correspondência para ti,  como  “o teu amigo Doc”…

Num dos últimos aerogramas que te escreveu, já perto do final da comissão, confidenciara-te:

(...) “Tenho a mania que vou endireitar o mundo. A liberdade de expressão na tropa paga-se caro, com língua de palmo. Nestes quase quinze  meses cá em baixo, na região a que chamam de Tomba...li, já conheci os múltiplos tormentos do inferno desta guerra: a sede, a fome, a insolação, os ataques de abelhas, as formigas carnívoras, a exaustão física e emocional, os tufões e outras intempéries tropicais, a merda que te cobre o corpo, a solidão, a alienação, a desumanidade… Para não te falar do medo das minas e armadilhas, e das emboscadas, mais do que dos ataques e flagelações aos nossos quartéis, onde, apesar de tudo, tens um buraco para enfiar os cornos" (...).

A mãe não conteve o espanto e as lágrimas de alegria quando ele, o Doc,  espavorido, lhe entrou,  de rompante, pela casa dentro, à hora do chá, um hábito colonial que o casal mantinha desde Moçambique… Com duas malas na mão, uma com a roupa e os demais objetos pessoais, e outra com o resto dos seus livros, algumas garrafas de uísque, mais algumas peças de arte africana.

Tu só soubeste da sua chegada da Guiné, passados uns dias. A mãe, quando ia ao velho mercado local, a praça do peixe, frutas e legumes, viu-te de relance, na redação do jornal, parou, espreitou, entrou e disse-te:

− Ruizinho (também te tratava carinhosamente por Ruizinho, como o filho), o teu amigo Doc chegou!... Está vivo e inteiro, graças a Deus. Mas não está nada bom da cabeça, o meu pobre filho!... 

E explicou-te que estava há dias ferrado a dormir, fechado no quarto, dizendo não querer ver ninguém… 

− Passa por lá, no fim de semana, almoças connosco, vou fazer um carilada de camarão com leite de coco, que eu sei que ele gosta e tu também. Pode ser que ele, por ti, se queira levantar e falar um pouco… Só lhe fazia bem...

A dona Domitília Meneses era uma santa senhora. Era professora primária, já reformada.  Tinha sido tua professora da 4.ª classe e do exame de admissão ao liceu. Era moçambicana, de origem goesa, descendente de gente da pequena nobreza local, um dos seus antepassados teria sido vice-rei da Índia em meados do séc. XVIII, "ao tempo do senhor Dom João V".

Já o mesmo não se poderia dizer do marido, também ele professor do ensino primário, velho republicano, maçónico... Tinha mais quinze anos do que ela, e fora aposentado compulsivamente da função pública na sequência, dizia-se,  do apoio à candidatura do general Norton de Matos à Presidência da República em 1949.

Tu conhecia-o mal, era um homem amargurado, pouco sociável, para não dizer misantropo…
 
Na realidade, ele tinha sido  marginalizado,  legal e politicamente  pelo poder  central e socialmente  pela elite local. Passando a ser considerado, ostensivamente, um “oposicionista", um indivíduo "contra a situação", deixara de ser convidado para integrar os corpos sociais das diversas associações locais de que era sócio ou membro  (a filarmónica, os bombeiros, o clube recreativo, desportivo e cultural, o núcleo local da liga dos combatentes, etc.). 

Em boa verdade, fora a sua "morte social". Amargurado,  demitiu-se das suas funções de encenador das récitas e cegadas que na época carnavalesca animavam, alegremente,  o palco do teatro local bem como as ruas da cidade.

Raramente saía à rua, nem mesmo nalgumas efemérides patrióticas, como o 1º de dezembro de 1640 ou o 5 de outubro de 1910. Quando muito dava um salto a  Coimbra, para ir consultar bibliotecas e arquivos públicos. Dedicava-se aos seus livros, era um apaixonado africanista, correspondente da Sociedade de Geografia de Lisboa, interessando-se, muito em particular, pela história da colonização de Moçambique, no tempo da monarquia constitucional e da I República.

O único ponto em que estava de acordo com a política do Estado Novo era na questão da “defesa intransigente do Ultramar”. Tinha estado na sua juventude em Moçambique, primeiro como expedicionário e depois, mais tarde,  como professor. E alí viria a conhecer a mulher em meados dos anos 30. O filho nasceria, na Beira, em 1942. E tivera como ama de leite uma jovem mãe negra. 

Parecidos em muitos aspetos de personalidade, pai e filho, separados por quase cinquenta  anos de diferença, engalfinhavam-se com frequência em discussões, por vezes violentas, sobre o que se estava a passar nos territórios ultramarinos portugueses (mas também na África Austral do "apartheid").

Tinha ideias fixas, o “Velho”, sobre o futuro desses territórios (“possessões ou colónias, como queiras chamar-lhe”, dizia ele ao filho), defendendo todavia o princípio da autodeterminação progressiva, a par da criação de uma "Commonwealth" à portuguesa. Era um admirador incondicional da colonização britânica e da formação de elites locais.

Apoiava o esforço militar do País, contra o “terrorismo internacional” (sic), mas era crítico em relação à vontade e à capacidade de Salazar de enveredar por uma “solução política” para o problema, nomeadamente em relação a Angola e Moçambique, que eram,  para ele,  as verdadeiras “joias da Coroa”, depois de perdida, “miseravelmente” (sic), a Índia Portuguesa.

O teu amigo Doc era, para ti, o irmão mais velho que tu nunca tiveras. Partilhavam  ambos alguns interesses intelectuais, a começar pelo teatro, a poesia, a literatura, a arte e, claro, a política.
 
Nessa época, poucos jovens da tua idade tinham ainda “consciência política” (como então se dizia), porque só uma minoria tinha acesso a um educação de nível superior e a fontes de informação, independentes e credíveis. Vivia-se num regime de partido único, não havia opinião pública, os jornais estavam sujeitos à censura, havia a polícia política, a PIDE, e a única televisão de que o povo podia ver, a RTP, era a voz do dono, tal como a Emissora Nacional… Era o tempo dos 3 FFF: Fátima, Futebol e Fado, três coisas que "tiravam do sério" o teu amigo Doc,,,  

O que é que tu sabias do que se passava em África, no "nosso glorioso Império Colonial", para usar uma expressão irónica do Doc ? Racismo, colonialismo, trabalho forçado,  revoltas nacionalistas…? Não, nunca ouviras falar disso, muito menos da boca da tua querida professora, a  Dona Domitília,  para quem Moçambique era "o paraíso na terra"... 

Só te lembravas, na igreja, terias tu os teus 10 anos, por volta de 1958, de pedirem uma esmola ao teu santo avô para ajudar as missões católicas, o mesmo era dizer, os “pretinhos da Guiné”...

Tu vivias numa pequena cidade da região centro, onde só os mais afortunados iam estudar para Coimbra… A maioria dos jovens da tua geração sabia lá o que se passava em África… Mal sabiam do se passava à sua volta, nos arrozais  e nas fábricas, na frota pesqueira,  nas escolas, nos quartéis, nos hospitais… 

Aliás, o que é que a malta sabia e podia saber? Só o que "eles" queriam que a malta soubesse... 

− Saber ler, escrever e contar acrescentava o teu amigo Doc , o que não quer dizer... saberes pensar pela tua própria cabeça...

Além disso, as  aldeias, vilas e pequenas cidades do interior começavam a ficar envelhecidas, com a saída dos mais jovens, para o ultramar e a emigração (interna e externa). Muitos dos teus colegas de escola nunca mais os viste. Alguns como tu fixaram-se em Lisboa, onde eram maiores e melhores as oportunidades de emprego. Outros foram para França,  "a salto".

Enquanto ele, o Doc, esteve na Guiné, correspondia-se contigo, regularmente, uma ou duas vezes por mês.  Tu  guardaste religiosamente os aerogramas que ele te mandava. Tinhas intenção de os organizar por data e devolvê-los ao remetente, logo que ele chegasse, “são e salvo”, como tu esperavas  que ele chegasse.

Quando o foste visitar, não te deixou sequer falar dos aerogramas, que naturalmente lhe traziam recordações dolorosas da Guiné, e que ele queria extirpar para sempre da memória. A sua resposta, brusca e mal humorada, foi:

− Queima-os, Ruizinho, queima-os!

− É um pedido?

− Não, é uma ordem!

Não lhe fizeste a vontade. Devias tê-lo feito? Continuaram guardados ao teu cuidado. Sempre pensaste que ele poderia, com os anos, mudar de opinião. Era material para uma ou mais peças de teatro... Mas, não, nunca mais quis falar da Guiné e desses "anos de chumbo" em que esteve na tropa e na guerra... E acabaste, afinal,  por entregar os aerogramas à irmã, no dia do seu funeral.  Hoje tens pena de não os ter fotocopiado, limitaste-te a copiar alguns excertos. 

Curiosamente ele nunca te escrevia cartas, mas apenas aerogramas, que eram de borla. 

− Com o dinheiro que poupo nos selos, compro livros, revistas, peças de artesanato e... uísque" − dizia-te ele, a gozar. 

Tu tinhas receio que a correspondência, trocada entre os dois, pudesse um dia ser intercetada pela PIDE. Ele tranquilizou-te a esse respeito. Tinha confiança no SPM (acrónimo de Serviço Postal Militar) que lidava todos os dias com várias toneladas de papel (cartas, aerogramas, encomendas, jornais, revistas. etc.), a circular pelos diversos territórios ultramarinos. 

Por outro lado, e até pelo conhecimento pessoal que ele tinha da PIDE na Guiné, com quem tinha de lidar, a contragosto, na sua qualidade de oficial de informações e operações, ele conhecia relativamente bem os pontos fortes e fracos daquela polícia, a começar pela sua estrutura, a sua organização e a qualidade do seu pessoal… 

Os recursos humanos, dizia-te ele,  deixavam muito a desejar: 

− Fracas habilitações literárias, baixo nível cultural, insuficiente conhecimento de línguas estrangeiras (a começar pelo francês e o inglês), iliteracia política, tacanhez de espírito, sistema de informação artesanal… Até o português escrevem mal e porcamente!... 

Por outro lado, havia alguma rivalidade e até desconfiança em relação à tropa… (e vice-versa). 

− Os gajos eram uns cepos, eram capazes de desconfiar de uma inofensiva bíblia protestante mas passavam por cima de um livro do Franz Fanon, que era dinamite – afiançava o teu amigo. 

− Cepos?!... − duvidaste tu.

− Só não eram maus a torturar, a arrancar informações dos pobres diabos que a gente, o exército, lhes entregava, para eles fazerem o trabalho, sujo,  que lhes competia... 

E sentiu-se na necessidade de te explicar:

− Felizmente, que o meu pelotão de informações e operações não foi treinado para torturar e  eu, por mim, nunca toleraria essas práticas" −  garantiu-te o Doc (a quem um dia perguntaste que raio de especialidade era aquela que lhe haviam atribuído).

Cepos ou não, tu é que não ias na conversa do Doc: com os teus verdes anos, e com os medos  que alguns amigos mais velhos, no liceu, te haviam metido na cabeça, achavas que a PIDE era como Deus, omnipotente, omnisciente e omnipresente. Pelo sim, pelo não, não fosse o diabo tecê-las, era melhor pôr a salvo a correspondência do Doc, para mais sabendo que ele tivera “chatices” na Universidade e, depois, na Guiné.

Sabias que o teu avô, materno,  era da “situação”… Era um bom homem, um "santarrão",  ia à missa, raramente discutia política, e muito menos contigo… Não gostava do Salazar, é verdade, mas tolerava-o. Encolhia os ombros e, às vezes, desabafava com os filhos e netos, quando se jantava lá em casa:

− Meus filhos, hoje o Salazar, amanhã, quem sabe, talvez pior, o diabo em figura de gente…

O teu avô, coitado,  era dos que acreditavam que o Salazar é que tinha livrado os portugueses da II Grande Guerra, com a ajuda da Nossa Senhora de Fátima… Um seu irmão mais novo, que tu não chegaste a conhecer,  tinha sido  expedicionário nos Açores, e tinha regressado a casa, “são e salvo"...,  para morrer, afinal,  uns meses depois, de "doença do peito", de tísica, de tuberculose... Falava-te que nesse tempo tinha tido muito medo, por causa do irmão,  dos submarinos alemães que infestavam o Atlântico Norte… e que chegavam a Cabo Verde. Ele, de resto, ouvia a BBC.

Tinha, por outro lado, a sua tertúlia, os seus amigos, os seus petiscos. Mais importante: o teu avô tinha uma adega, a que chamavam a “adega do povo”, aberta a todos os amigos e vizinhos, embora já fora da cidade… Na adega também tinha o seu escritório e o seu arquivo (pastas e pastas da contabilidade).

O teu avô estava acima de todas as suspeitas. Era um homem respeitado e respeitável, guarda-livros de profissão, conhecia os “podres” das várias famílias importantes da terra… Razão por que todos o estimavam (e temiam), pondo as mãos no lume por ele. Em contrapartida, podiam contar com o seu “silêncio de ouro”.

Tu gostavas muito dele, tinha bonomia e bom humor, nunca se chateava contigo. Dizia-te na brincadeira que era ele, o guarda-livros, quem tinha uma das três chaves do céu…

− Então?... E as outras duas, avô?

− Tem-nas o padre e o médico!...

A pior desgraça que podia acontecer a um guarda-livros era ser despedido (e, nalguns casos, preso) por abuso de confiança:

− Tens a chave do céu mas não podes abrir a porta… E houve casos, meu filho (tratava-me por filho) de gente, nesta profissão, que não soube qual era o seu lugar, na ordem natural das coisas… Olha, um matou-se, o outro foi parar à prisão…


O Doc nunca te deixou publicar nenhuma notícia, a seu respeito, no jornal, um quinzenário, onde tu trabalhavas, como estagiário e, em boa verdade, como “pau para toda a obra”, desde paquete a repórter, embora ainda sem cartão e jornalista (que era emitido pelo sindicato corporativo). Tinham uma secção, “Correio dos Heróis do Ultramar”, onde se publicavam notícias dos filhos da terra a cumprir “missões de soberania além-mar".

O jornal, regionalista, tinha uma orientação editorial que não se coadunava, de todo, com as ideias (políticas, estéticas, éticas e culturais) do teu amigo que, de resto, era conhecido na cidade como filho de um oposicionista, e já teria, ele próprio, ficha na PIDE.

O Doc estava a estudar em Coimbra, na faculdade de medicina, quando foi inesperadamente chamado para a tropa. Na secretaria, explicaram-lhe secamente que, tendo chumbado a uma cadeira, deixava automaticamente de beneficiar do direito ao adiamento da incorporação militar… 

Nunca se chegou a apurar a verdade relativamente à suspeita de ter sido a PIDE a despoletar a questão,  na reitoria ou na direção da faculdade. Enfim, estivera também envolvido na crise académica de 1962, embora fosse um "segunda linha"...

O jornal onde tu trabalhavas (e que foi, de resto, o teu primeiro emprego), "o teu jornal",  estava ligado a uma família local, política, social e economicamente influente. O proprietário era o presidente do Grémio do Comércio.

A filha mais velha, por sinal tua catequista, casara com um “jovem e promissor advogado” que viera de Coimbra, no princípio dos anos 50, e que aqui se fixara.

A tua terra tinha fama de acolher bem “os de fora”. De imediato, esse advogado foi admitido no “seleto clube local” e aí não levou tempo a perceber quem poderia ser a sua futura clientela e, mais do que isso, quem eram as meninas casadoiras… Era ali que estavam as "forças vivas" da terra, aquelas que tinham nome, património, estatuto, influência, charme, poder e... algum dinheiro.

Ora um dos seus primeiros clientes foi justamente a empresa do futuro sogro, grande (para a época e para a terra) armazenista de vinhos que exportava para África, e sobretudo proprietário urbano, “dono de uma rua inteira da cidade” (como se dizia, não sem exagero). O teu futuro patrão, o advogado, teve, como uma das prendas de casamento 
a direção do jornal (a menos valiosa, materialmente falando, mas nem por isso dispicienda para o seu projeto de promoção pessoal, profissional e até polílica). 

Na realidade, era um "jornaleco", um "pasquim" (como lhe chamava o Doc), que todavia se irá tornar, mais tarde, no consulado marcelista,  num influente semanário regionalista com algum prestígio, audiência e até qualidade. 

Dentro de todos os condicionalismos da época (censura, autocensura, ausência de formação profissional e de  regras de deontologia, não dissociação da propriedade e da direção, etc.) foi para ti a a tua escola de jornalismo e de escrita, muito embora o Doc andasse sempre a gozar contigo por causa do teu “jornaleco”… Pensas que ele não gostava sobretudo da pessoa do diretor…


Tu e o teu diretor tinham uma diferença de quase trinta anos.  A ele ficaste a dever alguns favores e até confidências. Por ele soubeste que tinha vivido numa república de estudantes, em Coimbra, acabando por se envolver na política, no MUD Juvenil, o movimento juvenil democrático, constituído em 1945, no rescaldo da guerra…

− Paixões da juventude, coisas de garotos, que às vezes têm um preço alto,  mais tarde – comentou ele, de um modo algo enigmático.

Como diretor do jornal, gostava de acarinhar os “jovens literatos” da terra, onde tu te incluías, gente que tinha saído do liceu, uns, poucos, que haviam entrado na universidade, outros, como tu, que esperavam a “sorte grande” da tropa…

Ele próprio te confessara que, na "Lusa Atenas",  publicara um livro de poemas, de “qualidade sofrível” (sic), na linha estética da revista "Vértice" (ou seja, do neorrealismo, acrescentaste tu, com alguma irreverência e ousadia).

Admirava agora os jovens, da geração 60, que estavam a aparecer, e que tinham até mais talento e cultura literária do que a sua geração… Para esses havia um cantinho no jornal, uma página juvenil… onde poderiam escrever, “sempre era uma melhor alternativa do que andar por aí a dar cabo da vida e da saúde, e a comprometer o seu futuro, em antros imorais e quiçá subversivos" (sic)...


Percebeste o seu "recado" (que, no teu caso, visava as "más companhias" como o teu amigo Doc e o grupinho do teatro amador da cidade)... Mas só mais tarde é que eu vieste a contextualizar  as suas esporádicas conversas na redação do jornal, depois de descobrires que 
 o “teu patrão” se tinha tornado,  rapidamente, um entusiástico defensor do marcelismo...

Mas, voltando ao teu amigo Doc, que nessa altura já estava, de regresso, a Coimbra e em risco de ser suspenso da Universidade, pela segunda vez... A malta do liceu e do teatro sempre o tratara por Doc, a partir do momento em que ele entrou na faculdade de medicina, ou até antes, quando ele começou a manifestar a sua intenção de abraçar a carreira médica… Era uma alcunha carinhosa. E ele não se importava.

Tu, pelo teu lado, ainda estavas longe de saber o querias fazer da tua vida...  Começavas a preocupar-te , isso sim, com a guerra que alastrava em Angola em 1961 e com a mobilização dos teus vizinhos e conhecidos, mais velhos...

Em 1962 houve a crise académica... E em 1964 o Doc foi chamado para a tropa e, em menos de um ano depois, estava na Guiné.

Parte da tua formação intelectual e até literária deves-lha a ele, ao teu amigo Doc. Emprestava-te livros, trazia-me jornais e revistas quando vinha de Coimbra nas férias, incluindo alguns, estrangeiros, franceses, que não chegavam à província, como “Le Monde” ou “Le Nouvel Observateur”…

Depois da sua prolongada “cura de sono” (que passou também por uma clínica de desintoxicação alcoólica, deves acrescentar sem trair a sua memória…), acabou por voltar a Coimbra e à sua “doce boémia”… Com as economias que trouxera da Guiné, conseguiu assegurar a sua independência económica. Fez algumas cadeiras atrasadas no ano letivo de 1968/69. Mas o curso marcava passo.  

Mas foi também a época em que tu deixaste de ver o Doc, com regularidade. Soubeste depois que se tinha incompatibilizado de vez com o pai, por causa das eleições legislativas de 1969, rompendo então, definitivamente, com a sua cidade natal. Há muito que  deixara, de resto, o teatro da cidade, que passara a ter um novo diretor, aquando da sua partida para a Guiné. Enfim, fixou-se de vez em Coimbra.

E tu nessa altura acabavas de chegar à  Guiné, onde votaste em branco nas eleições para a Assembleia Nacional. Ias tendo algumas notícias dele pela sua mãe, sempre extremosa, mas também pela irmã que estava em Lisboa, onde tirara o curso de germânicas, e que não escondia os seus cuidados pela saúde do irmão, mais novo, o seu "caçula". 

Depois tu e o Doc perderam o contacto... Deixaram mesmo de ser "íntimos", se bem que a  amizade entre ambos estivesse para durar até ao fim da vida... Soubeste, por outras vias, que ele se envolvera também na crise de 1969, fora desta vez suspenso por dois anos, e tivera que ir trabalhar na Propaganda Médica (o que terá sido deveras penoso para ele).

Não tens  aerogramas dele do teu tempo de Guiné. Nunca se  corresponderam nesse tempo. E um ou dois que lhe escreveste, não tiveste coragem de os pôr no correio...

Depois do teu regresso à Guiné, e da tua própria "cura de sono", tiveste em Lisboa notícias dele e da família:  a dona Domitília Meneses não sobrevivera a um cancro da mama, uns bons anos antes da morte do filho.

Por seu turno, o marido já tinha morrido antes dela, não sem ter tido, porém, duas alegrias: a de ver o seu filho finalmente formado em medicina, aos 30 e picos anos, e logo a seguir a de ter podido dar vivas à liberdade, no 25 de Abril de 1974. (À boa maneira republicana, lançando o chapéu ao ar, enquanto alguns dos seus tradicionais inimigos políticos se trancavam em casa para ver em que é que paravam as modas.)

A entrada do Spínola para a Junta de Salvação Nacional ainda dera ao pai do Doc algum alento quanto à possibilidade de se organizarem "eleições livres", com vista à autodeterminação de Angola, Guiné e Moçambique... 

Mas os acontecimentos precipitaram-se e a descolonização que se seguiu foi um dor de alma para o "velho republicano e maçónico, admirador do Norton de Matos"; morreu em finais da década de 1970, sem nunca ter podido  realizar o sonho de voltar às terras do Índico, que ele amava de alma e coração.

Por onde andou o Doc, agora médico de pleno direito, depois do 25 de Abril e até morrer, quinze anos depois, no princípio de 1990 ?

Apaixonou-se por Trás-os-Montes, onde fez o Serviço Médico à Periferia, fez medicina do trabalho numa empresa mineira e depois numa empresa da pesca do alto, praticou clínica geral nas caixas de previdência da margem esquerda do Tejo, integrou-se na carreira de clínica geral, criada em 1983, pediu uma licença sem vencimento para se poder alistar como voluntário numa ONG francesa que tinha uma missão médica na Amazónia...

− Enfim, ando por aí  
− como te garantiu ele, da última vez que falaram ao telefone  − a ver se ainda consigo reconciliar-me com a humanidade... 

Mas nunca mais voltou  à Guiné, nem nunca manifestou desejo de o fazer. E nunca sabias ao certo por onde ele parava... Era ele que te costumava telefonar pelos teus anos. Tinha esse gesto bonito para contigo. Gostava, contudo,  de cultivar o mistério de uma certa clandestinidade.

Em tempos tinha-te manifestado o interesse em tirar o curso de medicina do trabalho, queria fazer algo de  "socialmente útil"... E tu ainda o ajudaste a preparar a candidatura. Detestava a "medicina da caixa" que se fazia nesse tempo, por todo o lado... 

Entretanto, deixara de fumar... Tarde demais. O cancro pulmonar começava a cortar-lhe as asas dos seus sonhos de aventura e liberdade, já de si frágeis e erráticos... Teve altos e baixos, euforias e depressões. Tiraram-lhe um pulmão...

Finalmente, foi pela Mena, a irmã, que tu soubeste que ele estava a morrer. No anexo do hospital, num pequeno quarto escuro, ao fim de um corredor sombrio, por ironia a escassas centenas de metros do teu gabinete de trabalho… Um pneumologista,  seu conhecido do tempo de Coimbra, havia-o admitido no seu serviço. Por caridade. Para ali morrer, sozinho como um cão. Sem uma palavra.  Sem um gesto de compaixão. Sem um adeus. 

© Luís Graça (2020). Revisto: 6 de novembro de 2024.

___________________

Nota do editor:

(*) Último poste da série > 21 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26063: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (34): Ciúme patológico

segunda-feira, 15 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24317: Recortes de imprensa (126): O caso do capelão militar Arsénio Puim, expulso do CTIG em 1971 (tal como o Mário de Oliveira em 1968) não foi excecional: o jornalista António Marujo descobriu mais 11 padres "contestatários" (10 da diocese do Porto e 1 de Viseu)... Destaque para o trabalho de investigação publicado na Revista do Expresso, de 12/5/2023

 

Duas páginas do diário do Arsénio Puim que foi apreendido pelas autoridades militares de Bambadinca, em 17 de maio de 1971 (e que serviria depois para o incriminar). Cortesia de António Marujo / Semanário Expresso, 12/5/2023 




Arsénio Chaves Puim, ex-alf graduadocapelão,
CCS/BART 2917 (Bambadinca, maio 1970 / maio 1971)

Foto: © Gualberto Magno Passos Marques (2009). Todos os direitos reservados. 
Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Transcrição: 

"Porto, 19/2/70. 

Continuam a perpassar pela minha consciência, espontaneamente, confrontos e problemas relativamente  à minha situação de capelão militar.

Não nego, evidentemente, a necessidade de assistência religiosa aos militares como parcela que são, frequentemente muito válida do mundo dos homens e mesmo da Igreja. O problema não é esse, mas simplesmente os moldes atuais em que essa assistência é feita.

Penso e tenho constatado que a incorporação do sacerdote, como tal,  no Exército, demais em guerra, com a categoria de oficial, sob as ordens de um comando militar, e a orientação duma cúria castrense, que é uma repartição do Ministério do Exército, escandaliza seriamente muitos homens de hoje, e distorce a sua missão de pregador do Evangelho, e dispensador da graça a todos os homens.

Como ministro de Cristo, que veio dar testemunho da Verdade e morrer por todos, o sacerdote não pode (sem falsear a sua realidade, manietar a palavra de Deus, e dar um antitestemunho de Cristo), estar comprometido, enquant0 tal, com instituições de fins especificamente militares, mormente quando
empenhadas em atividades bélicas partidárias e unilaterais, que a sua presença, além de cooperante, poderia parecer autorizar e sacralizar.

Ou os homens compreendem a missão específica do sacerdote e respeitam-na ou não compreendem e prescindem dela.

Todos estes pontos de vista, tive oportunidade de ver que preocuparam a consciência de muitos sacerdotes que frequentaram este ano a Academia Militar, mas nunca mere- (...)

(Transcrição / revisão / fixação de texto: LG)


1. O jornalista António Marujo (do jornal digital 7Margens) publicou esta semana na Revista do semanário Expresso, edição nº 2673, de 12/5/2023,  uma excelente e bem documentada reportagem sobre os capelães militares e a guerra do ultramar / guerra colonial. O destaque é dado à figura do nosso tabanqueiro Arsénio Puim (que acaba de completar, em 8 de maio,  os 87 anos).  

O título da peça não de deixa de ser apelativo e metafórico: "O caso do capelão expulso por querer descalçar os dois sapatos à guerra".

Neste trabalho de investigação (em que o nosso blogue é citado várias vezes), o autor acabou  por descobrir  "pelo menos outros 11 padres católicos que se opuseram à guerra colonial e não quiseram ser capelães", para além dos dois que foram expulsos do CTIG e exonerados das suas funções de capelania (Mário de Oliveira, em 1968 e Arsénio Puim, em 1971):

(...) "José Maria Pacheco Gonçalves, José Alves Rodrigues, Domingos Castro e Sá, Serafim Ferreira de Ascensão, Manuel Joaquim Ribeiro, António de Sousa Alves, José Domingos Moreira, José Lopes Baptista, Joaquim Sampaio Ribeiro e Carlos Borges de Pinho (todos da diocese do Porto) e José Carlos Pinto Matos, da diocese de Viseu. "

Destes nomes destaque-se o do Carlos Manuel Valente Borges de Pinho, que foi capelão da CCS / BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, 1973/74), no curto período de 16/3 a 16/9/73. (´Foi amigo pessoal do nosso tabanqueiro José Teixeira, que neste momento não sabe do seu paradeiro: para saber mais ler aqui o poste P19055.)

O título da reportagem é inspirado na história de dois homens e um par de sapatos, que o ex-capelão militar Arsénio Chaves Puim,  na Guiné, registou no seu diário, no Dia de Ano Novo de 1971. 

“A guerra não é coisa para ter fim. Qual? Até se lhe acharia a falta, como aquele homem que, dormindo num andar inferior, estava habituado a ouvir o vizinho descalçar os sapatos à noite. Um dia este só descalçou um e o homem não adormeceu.”

O mesmo Diário que depois lhe provocaria dissabores... Como sobejamente é conhecido e está descrito no nosso blogue em inúmeros postes com a referência a Arsénio Puim (há pelo menos 66 referências)

Citando o jornalista António Marujo:

(...) A história acabou com uma denúncia — não sabe de quem: poderia ter sido alguém que o ouvira em alguma missa ou outra pessoa que o tivesse escutado numa conversa menos coincidente com as opiniões do regime. Certo é que os comandantes do quartel lhe apareceram no quarto, obedecendo a ordens superiores, “de Bissau”, para revistar tudo. Começaram por exigir os diários: “Tinham ordem judicial, estavam informados de que eu os escrevia. Deram-me duas ou três horas para me preparar, iria depois uma avioneta buscar-me.”

Abílio Machado, militar que presenciou a cena, contou, no blogue de Luís Graça: “Fui ver. Encontro o Puim sentado na cama, nervoso mas determinado, olhando uns sujeitos que impiedosamente lhe desmantelavam o quarto descarnado, de asceta, à cata de... Abriam, fechavam gavetas, apressados...”

O resto desta história, acabrunhante,  é conhecida dos nossos leitores: o capelão acaba por ser expulso do CTIG, e das suas funções de capelania (tal como tinha acontecido com o Mário de Oliveira, três anos antes, em Mansoa). De "Bissau" (sic) veiouma ordem (que ele nunca leu, nem lha deram a ler), para arrumar a trouxa e preparar-se para embarcar numa DO-27... Foram-lhe confiscados, pelo major que fazia então as  funções de comandante do BART 2917, os caderninhos com o seu "diário".

"(...) há vários sublinhados dos censores ou militares que os leram, depois de apreendidos. O autor só os recuperaria depois do 25 de Abril de 1974, depois de um primeiro pedido ter sido recusado, em janeiro de 1972, pelo ministro do Exército." (...).

Em suma, achamos de todo o interesse documental a leitura desta peça jornalística  que aborda um tema, se não tabu, pelo menos incómodo (e até comprometedor) para a hierarquia da Igreja Católica de então, nomeadamente para o bispo titular de Madarsuma, António dos Reis Rodrigues (1918-2009), um homem intelectualmente brilhante, professor na Academia Militar, que desempenhou as funções de Pró-Vigário Castrense e Capelão-Mor das Forças Armadas entre 1967 e 1975, ano em que foi nomeado bispo-auxiliar do Patriarcado de Lisboa ( ainda ao tempo do cardeal-patriarca Manuel Gonçalves Cerejeira, 1888-1977).

Não sabemos qual foi o papel, nesta história, do controverso capelão-chefe major Gamboa (de seu completo Pedro Maria da Costa de Sousa Melo de Gamboa Bandeira de Melo, nascido em Castelo Novo, Fundão, em 1919)  que vivia no "Vaticano",  em Bissau, na altura em que o Puim fui expulso do CTIG. 

De qualquer modo,  o Puim  tinha já razões de sobra para não querer “ser mais capelão militar nesta guerra”, como escreveu numa carta ao vigário-geral castrense, o bispo António dos Reis Rodrigues, pedindo para sair. Mas ainda hoje ele não sabe se a carta chegou a Garcia... Honra lhe seja feita, também fez questão de dizer que "terei pena de abandonar os homens com quem vim [os militares do BART 2917, Bambadinca, 1970/72] e de quem não tenho razões pessoais de queixa.” Dois meses depois vem a ordem de expulsão de Bissau...

2. Num trabalho desta natureza, com recurso a diversas fontes, e nomeadamente orais, há sempre alguns imprecisões, nomeadamente toponímicas, que eu próprio já sinalizei ao autor. É o caso, por exemplo, deste parágrafo:

(...) Algumas das homilias mais fortes de Puim contra a guerra foram entre abril e maio de 1971. Um grupo de pessoas — incluindo sete mulheres e algumas crianças — tinha sido detido em Madina do Boé, onde dois anos depois o PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde) proclamaria a independência unilateral. A memória é de Luís Graça que viria a ser professor da Escola Nacional de Saúde Pública, colocado no mesmo batalhão e que hoje é o principal dinamizador de um blogue que recolhe memórias e testemunhos desse tempo (...)  (Negritos nossos, LG).

O jornalista deve trocado, por lapso, Madina / Belel por Madina do Boé. Madina / Belel (temos duas dezenas de referências a este topónimo) era uma península, que ficava a norte do Enxalé, na margem direita do Rio Geba, já no limite do Sector L1 (Região de Bafatá), e que era de difícil acesso a tropas apeadas... As NT iam lá uma vez por ano, no tempo seco... 

Madina do Boé, por seu turno,  ficava junto à fronteira sul / sudeste com a Guiné-Conacri (Região de Gabu). (Temos mais de 180 referências a este topónimo; por outro lado, é um erro grosseiro dizer que foi em Madina do Boé que o PAIGC proclamou a independência unilateral em 24/9/1973; o nosso blogue já publicou muitos postes a desmontar esse mito da propaganda do PAIGC.)

Por outro lado, eu preciso de confirmar mas os referidos prisioneiros não terão sido feitos pela 1ª CCmds (que já estava a atuar no setor L1 nessa altura, no nordeste da Guiné) mas sim pela CCAÇ 12, companhia de recrutamemtp local (a que eu pertenci desde a sua formação, em junho de 1969 até ao fim da minha comissão, em março de 1971).

Tirando estes "pequenos lapsos" (frequentes quando se  fala com os jornalistas ao telefone e não há muito tempo nem espaço para explicar e registar o contexto em que as histórias acontecem, para mais num território como a Guiné de geografia e etnografia complexas e exóticas...), o trabalho do António Marujo merece ser lido. (Ele disse-me que vai também publicar uma versão corrigida, no seu jornal digital 7Margens).
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Nota do editor:

segunda-feira, 3 de abril de 2017

Guiné 61/74 - P17203: Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro) (1): um recorte do "Bolamense" (set / out 1963), e duas fotos para recordar: (i) uma visita do João Melo, ex-1º cabo op crito da CCAV 8351, ao antigo quartel de Cumbijã, região de Tombali; e (ii) o ilhéu de Caió, região do Cacheu



Foto nº 1 >  "O homem que mandava nisto tudo... tem a foto no jornal "Bolamense" [, órgão de propaganda regional de cultura e de turismo. setembro e outubro de 1963,  ano VIII. nºs 86 e 87. preço 2$50; propriedade da comissão municipal de Bolama]



Foto nº 2 >  Um antigo militar português (o segundo a contar da esquerda), de visita ao antigo quartel do Cumbijã, região de Tombali... Março de 2017.



[Na realidade, trata-se do nosso camarada e membro da nossa Tabanca Grande, João Melo, ex-1º cabo op cripto,  CCAV 8351,   Tigres de Cumbijã, Cumbijã, 1972/74, companhia que foi comandada pelo cap mil Vasco da Gama, também ele  nosso grã-tabanqueiro; em comentário a este poste o João Reis Melo, escreveu,esta manhã:

"Absolutamente inesquecível e comovente voltar a pisar a terra de Cumbijã! Esta foto, onde estou incluído, foi tirada no passado dia 25 de março de 2017. Embora fosse um desejo que acalentava há mais de 4 décadas o mesmo só foi possível com o apoio indescritível dos grandes amigos Patrício e João Santos. Poderia ter feito esta mesma viagem, podia, mas não seria a mesma coisa... O apoio simbólico que tentei dar à escola de Cumbijã diluiu-se no carinho com que todos nos receberam! Alliu Baldé, o seu atual Régulo e um dos seus filhos, Dura Baldé, foram simpatiquíssimos e deixaram em mim uma (quem sabe?) vontade de voltar"... ]



Foto no 3 > Ilhéu de Caió, a sudoeste da Ilha de Jeta, na região de Cacheu... Março de 2017.

Fotos (e legenda): © Patrício Ribeiro (2017) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do Patrício Ribeiro com data de ontem, às 15h12, 

[Foto à direita: Patrício Ribeiro,  empresário,  português de Águeda,  da colheita de 1947, vivido, crescido, educado e casado em Angola, Nova Lisboa / Huambo;  antigo fuzileiro naval, que retornou ao "Puto" depois da descolonização, fixando-se entretanto na Guiné-Bissau, há 33 anos, país onde fundou a empresa Impar Lda, líder na área das energias alternativas; é um daqueles portugueses da diáspora que nos enchem de orgulho e nos ajudam a reconciliarmo-nos com nós mesmos e afugentar o mau agoiro dos velhos do Restelo, dos descrentes, dos pessimistas; é de há muito tratado carinhosamemte como o ´pai dos tugas´, pelo carinho e apoio que dá aos mais jovens que chegam à Guiné-Bissau, em visita ou em missões de cooperação; de vez em quando lembra-se de nós e mando-nos fotos das suas andanças por estas bandas da África Ocidental: já estava na altura de lhe criar uma série só para ele: vamos chamar-lhe "Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro)"...]


Bom dia, bom  domingo, desde Bissau.

Fotos, do mês de Março, tiradas durante as minhas voltas pela Guiné (e às vezes com o contributo da minha nora que é alemâ)...

Enfim, para dar alguma cor ao nosso blogue....

Espero que em Abril apareçam muito mais, já que andam por ai... muitos antigos combatentes com as maquinas fotográficas na mão.

Junto 3 fotos:

1º O homem que mandava nisto tudo... tem a foto no jornal  "Bolamense";

2º Os que nos visitam para recordar, alguém que tirou foto no antigo quartel de Cumbidjã;

3º Os que gostam de praias tropicais, ficam com a foto do Ilhéu de Caió.


Abraço
Patrício Ribeiro
Impar Lda

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16412: Notas de leitura (873): "O que a Censura cortou": notícias da Guiné, por José Pedro Castanheira (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Setembro de 2015:

Queridos amigos,
Este livro de José Pedro Castanheira, que ainda é possível adquirir a um preço próximo de 11 euros, comprando três números do Expresso de 2013, permite-nos dimensionar quem eram os grandes alvos do exame prévio, a natureza dos corpos arbitrários, tantas vezes improcedentes e inconsequentes. É ridículo o que se cortou da biografia de Amílcar Cabral, até partir para a clandestinidade. O que Augusto de Carvalho escreveu sobre Spínola foi considerado incendiário, atirado para o balde; o abate e aviões nos céus da Guiné, assunto altamente controlado e nem a fotografia do capitão Peralta em julgamento escapou ao lápis azul.
Hoje são simples curiosidades de um mundo execrável que os mais novos não conhecem. É bom rever as imagens. Foi assim.

Um abraço do
Mário


Jornal Expresso, o que a censura cortou: notícias da Guiné

Beja Santos

O jornalista José Pedro Castanheira apresentou assim a génese deste livro surgido em 2009 e republicado pelo Expresso em forma de três cadernos em 2013:  
“Em Janeiro de 2008, comecei a escrever no Expresso uma coluna chamada ‘O que a Censura cortou’. A ideia era registar, semana após semana, os cortes efetuados pela Censura 35 anos antes. Foi uma das iniciativas tomadas para assinalar os 35 anos do semanário. O objetivo era não apenas revelar os efeitos da Censura no Expresso, mas tentar mostrar, a partir de um caso concreto e exemplar, o que ele significara no jornalismo português e na própria vida de uma nação. Uma compilação dos textos viria a ser editada em livro em Abril de 2009. Esta é uma reedição desse livro, que se julgou oportuna no âmbito das muitas iniciativas que serão realizadas ao longo de 2013 para comemorar os 40 anos do Expresso. Diferentemente do livro de 2009, este será dividido em três partes, oferecidas aos leitores juntamente com as edições do jornal de 19 e 26 de Janeiro e 2 de Fevereiro de 2013”.

Esclareço o leitor que adquiri recentemente estes três números do Expresso, que ainda não estão esgotados, com o custo aproximado de 11 euros. Não vamos falar da Censura, vamos só exemplificar o que foi censurado no Expresso entre a sua data de lançamento, em 6 de Janeiro de 1973 e 25 de Abril de 1974, com notícias referentes à Guiné. Em 27 de Janeiro de 1973, o Expresso pretende abordar o assassinato de Amílcar Cabral. A Censura cortou na íntegra a biografia de Amílcar Cabral, o jornal protestou e a notícia veria a ser parcialmente autorizada. Na notícia davam-se informações totalmente inócuas, como é o caso de: “Praticando diversos desportos, pertenceu à equipa de futebol da Casa dos Estudantes do Império, que chegou a ganhar o campeonato popular de Lisboa. A sua habilidade mereceu-lhe dos colegas o cognome de ‘cabecinha de ouro’". Augusto Carvalho, a pretexto deste assassinato, vai a Bissau, traça um perfil do governador da Guiné, a Censura corta que se farta: “Foi geral a ideia que conseguimos escolher em meios muito próximos do general: que os governadores-gerais ser campeões dos movimentos de africanização enquadrada num contexto federativo do todo nacional, onde a língua seria o cimento a unir a diversidade de culturas que enriqueceriam uma pátria comum, espalhada pelos quatros cantos do universo” e a Censura revela-se inclemente quando o jornalista escreve: “Spínola é um demagogo (…) disse-nos um representante do PAIGC com quem conseguimos contactar em Bissau. Como é natural, Bissau está cheia de elementos da organização guerrilheira. Espiões e espiados ao mesmo tempo” e escrevia-se mais adiante a propósito de Aristides Pereira como o sucessor de Cabral à frente do PAIGC: “A formação portuguesa é comum a todos eles e todos insistem num ensino do português nas escolas do PAIGC como idioma de entendimento entre as diversas etnias”.


Em 6 de Outubro o Expresso pretende falar dos primeiros aviões abatidos na Guiné-Bissau, e cita a France Presse onde se dizia que o número de perdas em aeronaves ascendia a 25, desde Março. A notícia fora proibida pela Censura. E vem a seguir uma curiosidade: “Um atraso ou uma qualquer deficiência de comunicação levou a que fosse posta em página. Quando os responsáveis do semanário souberam da inclusão de uma notícia proibida, mandaram para a impressora e substituíram-na por uma breve acerca da visita a Bona do primeiro-ministro do Japão, Tanaka. A infração quase passaria despercebida não fosse a denúncia do matutino de ultradireita Época”.


Falando por mim, foi a ler o livro de José Pedro Castanheira que vi a fotografia do capitão Peralta, capturado na operação Jove. Peralta foi condenado a dez anos e um mês de prisão. O Expresso quis publicar na capa uma foto sua, a censura só autorizou a legenda.


Para Balsemão, se não fosse o 25 de Abril, o Expresso seria forçado a fechar, era totalmente impossível continuar a publicar num jornal que a Censura mutilava nos sucessivos exames. No final do ano de 1973, Marcello Rebelo de Sousa fazia o balanço do ano, levou 24 cortes, o que se dizia sobre o Ultramar era impensável, não se podia falar do Congresso dos Combatentes, nem dos oficiais que apoiavam Spínola, nem das homilias do Padre Mário, de Macieira de Lixa. Entrara-se num período tormentoso onde era totalmente proibido falar em aumentos de preços, greves, uma entrevista a Álvaro Cunhal, por exemplo. À guisa de conclusão escreve-se que das 58 edições o número de artigos que vieram da Censura pelo menos com uma mancha azul foi de 1584. Não deixa de ser revelador que em todas as edições do Expresso tenha havido pelo menos um texto cortado na íntegra. O recorde deu-se a 3 de Fevereiro de 1973, quando o carimbo ‘proibido’ foi usado 18 vezes. A grande história da semana era uma reportagem com o General Spínola em Bissau.

E uma última nota, digna de ponderação: “Nos seus primeiros 16 meses de vida – e pese embora a Censura – o jornal acompanhou, nos locais, tudo quanto demais importante se passava de interesse para Portugal e para os portugueses. Foi à Guiné quando Amílcar Cabral foi assassinado e acompanhou o comando sui generis de António de Spínola; esteve na zona de Wiriamu, para tentar fazer o rescaldo do famoso massacre; acompanhou Caetano na sua importante deslocação a Londres; trouxe reportagens de Angola e revelou a até então desconhecida e misteriosa Macau. Assistiu às grandes pelejas parlamentares dos deputados liberais, foi ao Congresso da Oposição em Aveiro, cobriu de forma exemplar as eleições para a Assembleia Nacional. No plano externo, assistiu às importantes eleições em França, enviou repórteres à África do Sul, Suazilândia e Japão, testemunhou o importante Consistório de cardeais no Vaticano, cobriu os primeiros dias da ditadura de Pinochet no Chile bem como o golpe dos coronéis na Grécia, acompanhou a instabilidade do franquismo. Muitas dessas grandes reportagens tiveram a mesma assinatura: Augusto de Carvalho, o grande repórter dos primeiros anos do Expresso e seguramente um dos grandes repórteres portugueses”.
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16401: Notas de leitura (872): “Subsídios para o estudo da circuncisão entre os Balantas”, por James Pinto Bull (Mário Beja Santos)