1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Dezembro de 2020:
Queridos amigos,
Era necessário criar a circunstância de Paulo Guilherme nos dar minimamente a saber em que trabalha nessa viragem de século, como reflete sobre os desafios prementes que se põem às causas em que está envolvido. Fez amizade com este Gilles Jacquemin , este, esporadicamente, pergunta que livro é que ele está a escrever com Annette, e pede alguns detalhes sobre essa bizarra guerra de guerrilhas de que nunca ouviu falar, pois para um belga a África é o Congo. E Paulo, sem grandes minudências, conta-lhe a história de uma grande flagelação, estavam todos convencidos em Missirá, com o potencial fogo que tinham visto e ouvido, Finete ficara reduzida a escombros, pois não era verdade, era o primeiro ataque a Bambadinca, provocou pânico, mas foi conduzido desastradamente pela guerrilha, teve consequências, aquele local que parecia tão sossegado passou a viver em permanente estado de alerta. E Paulo disse a Gilles que os meses que se seguiram foram duríssimos, um imprevisto castigo depois de pôr de pé Missirá. Talvez seja uma outra história que Paulo contará a Gilles, se ele mostrar interesse, claro está.
Um abraço do
Mário
Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (33): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Cher Gilles Jacquemain, Estou a escrever-te à pressa, parto amanhã cedo para Bruxelas, a Annette vai-me buscar a Zaventem, partimos logo para Lier, vamos fazer a campina até Antuérpia, passaremos mesmo um dia em Eindhoven e Groningen, voltamos a Bruxelas e preciso de conversar contigo a sério, a política dos consumidores está em risco de anquilosar, preparei um documento para distribuir pelos outros diretores da minha associação, noto uma incompreensível relutância na parceria proposta pelo comissário com as medidas de política de Saúde, acho que é um grande desafio a que nos devemos afoitar, não há perigo nenhum na perda de identidade, as questões da sustentabilidade crescem de importância, devemos saber corresponder aos desafios da mudança de milénio. Não se pode ficar insensível às tendências do consumo no final do século, a esta sociedade móvel centrada na rede das redes, falava-se nos jovens mileuristas, tudo indicia que os jovens vão viver com muito menos dinheiro neste capitalismo de mão-de-obra barata, onde há tanto entusiasmo pelo low-cost, vivemos agora com os jargões do empreendedorismo, inovação e criatividade, com os benefícios da microeletrónica, energias renováveis e mercado global do comércio eletrónico. O que está a dar é a flexibilidade do trabalho, o que chamam a reengenharia para fazer mais com menos. E entrámos na tirania do instante, na cultura da urgência. Na esfera relacional, estou totalmente de acordo com Zygmunt Bauman, é o tempo da modernidade líquida, das relações de fachada, dos sorrisos que não chegam ao coração, que se limitam às relações públicas. E a política dos consumidores entrosa perfeitamente com as questões de saúde e ambiente, este novo século está confrontado com o envelhecimento. Parece que a política dos consumidores se esqueceu que em 1999 o Conselho Económico e Social das Nações Unidas reconheceu o consumo sustentável como parte dos direitos dos consumidores. Somos úteis para os ambientalistas e temos um histórico ao serviço das políticas de saúde, foram os consumidores europeus que denunciaram o que se estava a passar com a talidomida e conseguiram fazer aprovar o código do medicamento. Temos colegas com uma visão paroquial, temem perder apoios financeiros se acaso se estabelecer uma ligação programática com a saúde. Esta conceção da defesa do consumidor técnica poderá levar-nos ao apagamento, não me custa nada vaticinar que passaremos a ser uma política subsidiária no futuro, só representada pelas instituições estatais e por associações transformadas em empresas, a vender serviços. Não contem comigo. Por isso, meu estimado Gilles, preciso de me encontrar contigo antes de regressar a Lisboa, coordeno amanhã com a Annette a nossa viagem e espero de ti alguma disponibilidade para, por exemplo, nos encontrarmos durante uma refeição.
Perguntas-me pela Annette, sinto-a feliz, viaja que se farta, mas anda sempre com os meus papéis da guerra da Guiné, é uma pasta que a acompanha com tudo que eu lhe envio, há dias atrás contou-me que nas noites de Liège estava exatamente a falar de um episódio inesquecível, vou dar-te um lamiré, creio que a guerra em que participei num ponto minúsculo de África Ocidental não é assunto que te acalore, mas como tu és um amigo do coração apanha com os dados explicativos, os tais que entusiasmam Annette.
Estamos no final de maio de 1969, houve sucesso numa emboscada noturna, não era atividade muito comum, havia mesmo quem a desaconselhasse, tem muitos riscos, felizmente que eu dispunha de gente que conhecia as matas, eram soldados experientes. No dia seguinte a este episódio, imagina tu, ao anoitecer ouvimos troar os canhões e o disparo constante das metralhadoras e os estrondos dos morteiros, julgávamos que a guerrilha estava a retaliar sobre outro dos nossos quartéis, qualquer coisa como a 14 quilómetros dali. Estávamos especados na parada a ouvir aquele fogo ensurdecedor, a ver o céu riscado pelas balas, bem cedo começou a chegar o odor de toda aquela pólvora, o vento soprava de feição para o nosso lado. Não resisti, pedi voluntários, e da forma mais imprudente do mundo fomos numa corrida disparada até perto do nosso outro quartel. E começou o insólito, eramos aguardados com entusiasmo e abraços, com voz embargada perguntei a alguém que eu tratava por irmão se havia mortos e feridos, a que ele me respondeu que todo aquele fogo fora disparado sobre Bambadinca, a poucos quilómetros dali. Lá fomos, atravessámos um rio e fomos levados para Bambadinca, que estava num perfeito pandemónio, fora uma surpresa total, os guerrilheiros tinham-se aproximado do campo de futebol, por milagre não houvera acidentes graves, mal eu suspeitava que era o princípio da queda dos oficiais de comando em Bambadinca, em breve serão punidos e afastados, o sistema defensivo irá ser alterado e eu próprio sofrerei as consequências dessa mudança quando for viver para Bambadinca, em novembro desse ano. E regressámos ao amanhecer. São esses os papéis agora que eu estou a juntar para a Annette, o meu quartel está-se a recompor, o trabalho não para, chegamos a ir montar vigilância à navegação duas vezes por dia, são uns duros 25 quilómetros ou com calor sufocante ou chuva diluviana, a qualquer hora do dia, andamos à mercê da tabela das marés.
Para findar esta curta narrativa à volta dos papéis que Annette está a organizar, e como não espero tão cedo voltar-te a falar da Guiné, tu ficas a saber que se muita canseira já tivemos, os meses que se seguem, entre junho e novembro vão significar para este teu amigo uma sucessão de flagelações em Missirá, onde habitualmente vivo (a primeira, logo em junho, será um amargo de boca para os guerrilheiros, deixarão baixas confirmadas), mas também em Finete; haverá episódios burlescos, caso de uma noite em que Missirá, por vários desencontros, ficou defendida por escassos doze homens, eu estava lá, à cautela mandei toda a população para os abrigos e os homens puseram-se em posição defensiva com as suas espingardas, felizmente não houve flagelações e tudo está bem quando acaba bem nestas vigílias inquietantes. Estou agora a juntar papéis porque tenho que ir a Bissau como testemunha de defesa de um militar que deixou fugir um prisioneiro durante uma operação. E aproveitando a tal vigilância aos barcos que vão ou partem de Bambadinca, haverá nova emboscada, que nos foi favorável. Paro por aqui, tu tens mais que fazer, não te irei contar que em agosto, numa emboscada noturna em Finete, inopinadamente me surge um vulto esbranquiçado à frente, disparei sobre uma pobre mulher que vinha numa coluna de reabastecimento dos rebeldes, um dos meus colaboradores perdeu a cabeça, tive que pôr a disciplina militar a funcionar; um sargento, em completo estado de exaustão, ameaçou matar meio mundo, teve que ser evacuado, passou dois anos na psiquiatria; e em outubro, foi a vez da guerrilha nos atingir a fundo com uma mina anticarro. Nada mais te digo, se me quiseres fazer perguntas, esta guerra da Guiné não era uma mera reminiscência, faz parte da minha transformação em homem, procurei ao longo destas décadas recuperar as solidariedades e as amizades que me animaram e de algum modo fizeram de mim esta pessoa de quem tu dizes que és profundo amigo. Por aqui fico, já preparei a bagagem, mas tenho que dormir umas horas para fazer uma viagem que me vai pôr nos braços da minha amada. Bien à toi, Paulo.
(continua)
Vista aérea de Bambadinca, fico com a sensação que podia entrar e percorrer todo este território que me foi familiar, desde o campo de futebol onde me comportei como um frangueiro, a residência naquele grande U, com tantas recordações, o edifício do comando, a secretaria e as transmissões, a capela, a manutenção militar, a delegação do batalhão de engenharia, e posso mesmo imaginar que me dirijo à rampa para cambar o Geba, estou a correr contra o tempo, são três e meia da tarde, preciso de chegar a Missirá ainda com luz, partirei pelas três da manhã para Mato de Cão. Uma imagem que reterei até ao último dos meus dias.
Fernando Calado, alferes das transmissões do BCAÇ 2852, de braço ao peito, mostra-nos as marcas da flagelação da noite de 28 de maio de 1969
Pensão Central, da Dona Berta que me autorizava a tratá-la por avó, Bissau, paredes meias com a catedral
Imagem de Bolama
Imagem do porto de Bambadinca, do álbum de Luís Mourato Oliveira, com a devida vénia
No rio Corubal, onde nem tudo é tarrafo
O esplendor do tarrafo num pequeno rio da região do Boé
_____________
Nota do editor
Último poste da série de 25 de dezembro de 2020 >
Guiné 61/74 - P21690: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (32): A funda que arremessa para o fundo da memória