sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21690: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (32): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Annette aproveitou a estadia em Liège para organizar mais apontamentos, são papéis que vêm pelo correio, alguns deles não passam de garatujas, fotografias a preto e branco ou de um verde descolorido, estamos em maio de 1969, Missirá renasce, entrou-se na época das chuvas mas ainda não foge, há muita gente doente, é a malária e a canseira, e é nesse contexto que vai acontecer aquilo que Paulo Guilherme envia com o título "a emboscada da minha vida". Sempre ouvi dizer que não se devem fazer emboscadas à noite, e muito menos em território inimigo. Era bem provável que os guerrilheiros em Madina e Belel pensassem que ele ficara bem intimidado vendo uma boa parte de Missirá em cinzas. Tanto que não aconteceu que houve esta emboscada, desta vez foi Madina e Belel que receberam a mensagem. Acontece que daqui até novembro se andará num carrossel de peripécias, de um modo geral bem dolorosas, um furriel aparecerá semi-enlouquecido, flagelações em cadeia, o ritmo das idas a Mato de Cão não abranda, só em novembro, altura em que o porto do Xime estará operacional. Haverá entretanto uma mina anticarro e numa manhã, quando Paulo Guilherme sair do seu abrigo será formada toda a sua tropa, vêm informar o nosso alfero que iniciaram a vida militar em 1966, andaram sempre nesta canseira, querem repouso. Pura ilusão, mal sabem o que lhes espera na chamada intervenção a zona de Bambadinca.
Mas isso é história para contar com mais vagar, não nos precipitemos.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (32): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Mon adoré Paulo, que bom, dentro de três dias aqui estarás na minha companhia, a encher a minha vida, a tonificar-lhe o sentido de que eu já desistira de procurar. Imagina, e isso tem interesse para ti, a Comissão Europeia encomendou-nos um trabalho, viemos três dias a Liège para uma conferência promovida pela Confederação Europeia de Sindicatos, o tema que está a ser abordado tem a ver com os desafios para o mundo trabalho pelo impacto da computorização, já decorreram dois dias de trabalho, amanhã é o último. É bem curioso, penso que em 1986 esta mesma confederação promoveu uma conferência, creio que de um só dia, sobre a cibernética, o que ela iria trazer de novo para a tecnologia, e nessa altura, tirando os oradores, os representantes dos trabalhadores que nela participaram mostraram-se profundamente céticos, não haveria grandes alterações, sobreviriam os escritórios, os balcões dos bancos, as agências de viagens. Como se iludiram! Tenho aproveitado estas noites frias de janeiro para ordenar a documentação mais recente que me enviaste, voltei a ler os papéis anteriores e garanto-te que me tocou muito aquela inquirição do coronel que te visitou em Missirá por tu teres reclamado da punição de dois dias de prisão simples.

Impressiona-me nos documentos que me mandaste agora aquela emboscada junto de um local, espero estar a dizer bem, de nome Sinchã Corubal, não muito longe de uma base da guerrilha chamada Madina. Tinhas anteriormente verificado haver trilhos que passavam perto de Chicri e de Mato de Cão, decidiste fazer um patrulhamento tendo aproveitado a vigilância em Mato de Cão. Registaste nos teus papéis a data de 27 de maio de 1969. Tu e os teus homens fizeram uns bons quilómetros dentro da mata densa, sempre flanqueando o trilho descoberto e posicionaram-se do lado de cá da bolanha de Sinchã Corubal, depois de teres conversado com toda a gente quanto à eventualidade de aparecer um grupo do lado de lá ou do lado de cá, como se processaria a retirada, quem desencadearia o fogo e outros pormenores. Interessou-me muito o que tu escreveste sobre a descrição da noite, o murmurar das águas, o ouvires os pequenos ruídos de quem mordiscava e levava o cantil à boca, as luzes ao longe da povoação do Xime, a passagem de animais, os estalos da matéria viva no arvoredo, o pesado silêncio da noite, quase um convite para passar pelo sono e delegar a vigilância noutro. E tu dizes nos teus papéis que sentes ainda o ciciar ao ouvido de um teu bazuqueiro, de nome Mamadu Djau que te pôs pressão no ombro e te alertou que estava a ver avançar do outro lado uma coluna na vossa direção.

Passou-se a palavra para todo o grupo, tu deitaste-te no meio da picada, ladeado por dois bazuqueiros, atrás, protegidos por morros de bagabaga, os apontadores de dilagrama, quando tu disparasses começaria a fuzilaria. Tu descreves o clima de tensão, o ver aqueles vultos a avançar num passo cadenciado, sabe-se lá se a olhar para todos os lados, tu sentias-te como se estivesses numa porta da floresta, com aquele espaço imenso pela frente de capim, ouvindo as passadas cada vez mais próximas, um restolhar que a natureza obrigava, talvez aqueles corpos sentissem a aspereza do capim molhado. Tu falas numa zona de morte, quem avança em tua direção está a escassas dezenas de metros, continuam a ser vultos, não sabes quantos, e na mansuetude da mata dás o sinal da guerra aberta, desfechas uma rajada em direção àquele grupo, estrondeiam as armas, ouvem-se gritos do lado de cá e do lado de lá, tu não sabes se a coluna recua ou se toda aquela gente se atira ao solo, certamente que por ali ciranda o terror, tal o impacto da surpresa, o mais certo é que a coluna esteja em fuga. É um fogo impressionante, o que tu escreveste, sabes hoje que foram minutos que demoraram horas, quem vinha naquela coluna não teve capacidade de resposta e tu lanças um grito para o ar a anunciar a retirada, desta feita dentro do próprio trilho usado pela gente que habita em Madina e Belel.

Correm afogueados, de vez em quando mandas fazer alto, queres saber se estão todos, o que é confirmado. Enquanto anoto que organizo os teus apontamentos não deixo de me impressionar com a familiaridade com que tu tratas os lugares, é impossível que não tenhas posto os pés em todos aqueles sítios, vocês vão a correr de Saliquinhé para Gambana, à direita podiam ir até Finete, mas não, sobem pela velha estrada que pode ir até Missirá ou até mesmo ao Gambiel, infletem na curva de Canturé, fazem uma pausa, há por ali laranjais e passados uns minutos uma nova correria até à outra curva de Canturé, daqui seguem a Gã Gémeos, passam pela ponte de Sansão, já perto de Missirá avisam-se os sentinelas de que vamos entrar e tu escreves que foi impressionante a receção, militares e população aguardam-vos na porta de armas, todos sorriem, é fácil perceber que toda aquela tempestade de fogo vos correu de feição, regressam sem feridos nem mortos. Escreverás ainda que esta emboscada noturna teve o condão de acirrar os ânimos, o inimigo não abrandará as hostilidades, haverá uma chusma de pequenas flagelações, depois de uma muito grande que custou vidas às gentes de Madina e Belel.

Nos últimos papéis que mandas, as surpresas não acabaram naquela emboscada noturna, pude constatar. Estamos a 28 de maio, quem voltou a patrulhar Mato de Cão nesse dia foi o furriel Casanova, dormiste umas horas, entregaste-te a afazeres domésticos. Não te sai da cabeça qual será o tipo de reação das forças do PAIGC. Não paraste um instante naquele dia, acompanhaste as aulas, vistoriaste as munições e o depósito de víveres, e durante a tarde andaste com militares e população civil a fazer uma capinação na região de Sansão. Anoiteceu, fizeste o expediente corrente com o furriel Pires, prolonga-se a época das chuvas, há uma nova vaga de doentes de malária, apareceu um soldado milícia com sinais de elefantíase, fizeram-se abates à carga de cantis extraviados. Veio o cozinheiro Umaru Baldé anunciar o jantar, pediste mais cinco minutos para ir tomar um duche. E o que se segue é o mais movimentado instantâneo da guerra que vem nos teus papéis. Vens embrulhado numa toalha e estacas, ouvem-se os sons cavos de um bombardeamento não muito longe, os disparos eliminam a noite, é um estranho fogo, parece mesmo pirotecnia de fim de ano, tiros atirados para o ar enquanto ribombam morteiradas em cadeia, a sinfonia de metralhadoras, é uma flagelação impressionante e tu pensas que te estão a destruir Finete, aquela flagelação é demolidora. Usumane Baldé, a quem tu chamas o teu soldado prussiano ouve as tuas imprecações e responde: “- Ah, nosso alfero, eles vão partir Finete todinha!”. Tu gritas e pedes voluntários, não vais deixar Finete ficar destruída, o motorista Setúbal já faz rodar um Unimog 404 na parada, sobem para a caixa vinte voluntários e vai começar uma corrida desenfreada para ir ajudar Finete. Fico-me por aqui porque o registo que tu deixas é enorme, jamais te passou pela cabeça o estarrecedor do episódio seguinte.

Meu adorado Paulo é nesse ponto que ficam organizados os apontamentos desde agosto de 1968 até estes dias de maio de 1969. Foi o papel que tu me reservaste e que alterou as nossas vidas. Impossível, sim, impossível, abandonar esta tarefa, sabendo que ela foi a alavanca da iluminação que trouxeste para os meus dias e para as minhas noites. Obrigado por tudo, meu homem de Lisboa. Amanhã ao fim do trabalho, regresso à Rua do Eclipse, em menos de duas horas estou em Bruxelas. Vou brunir a nossa casa. Espero-te à porta de Zaventem, já sei a hora da tua chegada. Despeço-me com a boa notícia de que já reservei a nossa estadia em Lier, iremos passear pela Campina, alugamos facilmente as bicicletas e podemos percorrer aqueles canais maravilhosos, iremos a Antuérpia, tenho todo o gosto em voltar ao Museu de Rubens, e tenho a maior satisfação em irmos, como tu sugeres, a Groningen, que também aprecio muito. Vem depressa, tens muito amor à tua espera. Bien à toi, Annette.

(continua)

Duas imagens de Liège
Lier, Bélgica
O Grande Hotel nos tempos áureos
O Grande Hotel reduzido a uma ruína
Edifício do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa na década de 1960
O rio Geba, deslumbrante a qualquer hora do dia
Os rios dão tudo, transportam-nos longe, é só preciso um tronco escavado
A natureza é sempre empolgante, pronta a surpreender-nos
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21657: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (31): A funda que arremessa para o fundo da memória

3 comentários:

José João Domingos disse...

Caro Beja Santos

Não te conheço pessoalmente mas tenho muita admiração por ti.

Leio religiosamente a Rua do Eclipse que me dá uma boa imagem dos teus sabores e dissabores na Guiné.

Um abraço e Boas Festas

José João Domingos

Fernando Ribeiro disse...

Esta é sem dúvida uma descrição impressionante, da qual não duvido nem um bocadinho, salvo num único ponto. Julgo lembrar-me que o Unimog 404 era um Unimog mais crescidinho do que o "burro do mato", e no entanto era mais rápido e até mais ágil do que este. Mesmo sendo um Unimog maior, acho que 20 pessoas num único 404 é gente a mais. Ainda se fossem numa Berliet... Seria mesmo um Unimog 404?

Valdemar Silva disse...

Como diria o outro.....
O "404" levava 10 sentados nos bancos, vá que com mais 10 sentados no estrado de lado e atrás de pernas pendoradas....é só fazer as contas.

Abraço
Valdemar Queiroz