Queridos amigos,
É no compasso de espera de reconstruir Missirá, fazendo algumas obras em Finete, calcorreando até Mato de Cão, mais de três meses de trabalho insano, que aconteceu o episódio de Bucol e se confirmou aquela insólita punição. As idas a Mato de Cão irão perdendo importância a partir de novembro desse ano, curiosamente quem lá vai todos os dias é transferido para Bambadinca, o porto do Xime ficou operacional nesse mesmo mês, o que facilitou o transporte de cargas muito qualquer ponto do Leste. De junho até novembro, como se verá, é o período calamitoso, meterá emboscadas, flagelações curtas e pesadas, um furriel ficará tresloucado, a tropa completamente exausta e a culminar numa mina anticarro, um tanto devastadora.
Annette Cantinaux vive empolgada a juntar todos estes papéis e a rescrevê-los, é um trabalho de Penélope, salvo seja, ela não deita fora o que escreveu na véspera, aprimora, ordena e comenta em voz alta, mas também por mail e ao telefone, tudo são fios condutores que a levam até ao seu amado.
E assim estamos, entre suspiros, dentro em breve Paulo Guilherme chega a Bruxelas, arriba à Rua do Eclipse e desta vez haverá passeio pela Flandres, andarão de bicicleta na região de Lier, a campina que rodeia Antuérpia, são dois cinquentões felizes, sempre a fazer juras de amor.
Um abraço do
Mário
Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (31): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Mon adoré Paulo, que feliz me sinto com as notícias que me deste ontem, ter-te-ei comigo três dias em fevereiro, hoje mandas-me as datas, se acaso coincidirem com dias de trabalho tudo farei para encontrar um colega que me substitua. Diverti-me imenso com a descrição que me fizeste dos teus alunos, futuros jovens engenheiros, descendentes de antigos proletários, os aspetos educativos em carência, o modo como conversaste amenamente com eles, pedindo às meninas para não retirarem cera dos ouvidos em público e aos jovens para não terem as mãos nos bolsos, tu observaste que eles compreenderam muito bem a finalidade das observações. Chegou anteontem um maço de documentos diversos, uma mistura de papéis da época e observações tuas bem recentes. Há uma descrição da tua ida a Bambadinca, foste cedo para tratar de problemas de abastecimento e logo a seguir ao almoço foste ouvido por um major que queria aprofundar as razões pelas quais propunhas quatro condecorações para militares teus, impressionou-me muito, tu estavas feliz quando cambaste o rio e chegaste à povoação, a conversa tiveste com o costureiro Malam Mané a quem entregas a tua roupa para reparar, a divisão de tarefas tu estabeleces com os homens das transmissões, dos mantimentos, do material de engenharia, da manutenção das viaturas, a ida à secretaria por causa de assuntos de justiça militar, o cumprimentar toda a gente, nunca esquecendo o posto de enfermagem onde tu pilhas frascos de vitaminas e preparas próxima visita da população de Finete. E há depois as respostas que deste a um major, como não ficar chocada com aquela descrição do pacto de sangue, a distribuição dos últimos cartuchos, ninguém seria apanhado vivo, o bom acaso de quando escasseavam todas as munições os rebeldes terem retirado deixando Missirá transformada numa tocha.
O outro documento que me mandas é inacreditável, citas um aerograma de um oficial da Marinha, tu dizes que é o Comandante Teixeira da Mota, como é que é possível naquela atmosfera de ferro e fogo esse senhor, ao que tu dizes ter sido um dos maiores historiadores da Guiné, te ter escrito o seguinte:
“Acabei há dias de escrever um longo artigo contendo as aventuras de um príncipe Fula que, vencido em guerra civil aí por volta de 1600, foi parar a Mazagão e daí a Lisboa e Madrid a pedir auxílio militar, acabando por se baptizar. Juntei elementos que me permitirão reconstituir a sequência e duração dos reinados dos imperadores Fulas do Futa-Toro, a partir do lendário conquistador Tenguela e seu filho Coli (ambos continuam na boca dos Fulas de hoje), desde 1465 e 1591. Vou ver se publico este estudo em Dacar. A propósito, para completar uma nota desse artigo, pedia-lhe para averiguar junto da gente de Missirá o que sabem acerca de uma tabanca aí perto, além-Gambiel, no Joladu, chamada Bucol.
O que eu pretendia saber é se a tabanca é antiga ou moderna, qual o grupo étnico de quem a fundou e lhe deu o nome e se este é de língua Fula, Mandinga ou Beafada. A tabanca em si nada tem com o meu artigo, mas num documento antigo diz-se que os Fulas invasores destas bandas partiram de uma cidade chamada Bucol, no Sudão, e interessava-me averiguar se o nome é Fula ou não, pois não encontro esse nome nos clássicos da História sudanesa”.
As peripécias que se seguiram! Conversaste com os homens grandes, havia a ideia de que a tabanca era de Beafadas, que o nome era antigo, falava-se de ser uma terra fértil, encurtando razões, ninguém sabia muito mais. E então tu tiveste aquele ato temerário, felizmente sem consequências, de atravessar o Gambiel, como se fosses patrulhar o Joladu, descobriste que não havia sinais de presença humana embora lá longe era bem claro que a população rebelde lavrava a terra. Levavas contigo nesse patrulhamento insólito um soldado por quem tinhas muita afeição, Cibo Indjai, como tu dizes, um bravo caçador, homem destemido que te disse calmamente que aquela terra era boa para apanhar gazela, havia pouca floresta e por isso não havia santuário da guerrilha. E escreveste ao historiador dando as informações lacónicas disponíveis, a mais não te sentias obrigado: ninguém associava em Missirá o príncipe Coli a Bucol; a povoação teria sido fundada por Mandingas, mas pessoas consultadas diziam que ali se falava predominantemente Beafada, antes da guerra; e ninguém sabia a antiguidade da tabanca, embora houvesse conhecimento de que tinham lá vivido colonos cabo-verdianos.
Adoro as referências que tu fazes às tuas leituras, pergunto-me onde é que tu arranjavas tempo para ler tanto livro. É bem curioso, referes o nome de um poeta português consagrado, Mário Cesariny, aqui há uns tempos fui cair numa conferência em que se falava da literatura surrealista e creio que um holandês referiu o poder inovador da sua lírica, achei curioso, quis conhecê-lo e encomendei dois livros, de um deles, intitulado Pena Capital, mando-te um poema que podia muito bem falar do amor que tenho por ti:
“Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço meu te procura”
Mon adoré Paulo, estou a escrever este poema e a desejar-te ardentemente, apesar da distância tenho o calor da tua voz, o ciciar da tua escrita, o poder de apoderar-me do teu passado e sentir-me que conquisto a alegria do meu presente pensando em ti, pondo todo este amor a trombetear o futuro. É como se eu estivesse agora a acariciar-te, percorro neste momento a teu lado em Missirá, tu recebeste a visita de um coronel que vem inquirir o teu recurso por causa daqueles malfadados dois dias de prisão simples, tu tratas como uma iniquidade, uma injustiça, e pediste reparo a um general. No interior de um abrigo ele lê-te a acusação, de que foste descuidado na limpeza do aquartelamento, que este tem pouca segurança, e depois exige ver com os seus próprios olhos as razões fundadas da pena e as razões que tu dás para não ser punido. Percorrem lentamente Missirá, a população civil mostra-se indiferente, as mulheres preparam o chabéu, as couves e as beringelas que juntam ao arroz, o coronel faz perguntas sobre as mangueiras, a natureza daquela agricultura, tu respondes o que sabes. Mostras-lhes o novo balneário, o arame farpado todo renovado, a Missirá renascida, as valas e os taludes, e guardo um apontamento teu em que pressinto o maior sofrimento que te atola a existência: “Sinto uma moinha na cabeça, que sei vir da alma, uma vergonha inenarrável de ter de me justificar pelo que fiz e pelo que não fiz. É um novelo espesso de raiva que procuro controlar, agarrando-me ao autodomínio que não sei de onde parte nem para onde vai”. Depois a tua resposta foi passada a escrito, o dito coronel não revela agressividade nenhuma, pergunta se os teus superiores conheciam a situação, tu respondes que existe em Bambadinca, é só pedir essa documentação, ofícios alarmantes sobre a degradação em que encontraste Missirá e todos os pedidos insistentes que fizeste. Cúmulo da humilhação, só parcialmente o teu recurso foi contemplado, mantêm-se os dois dias de prisão simples por não teres dedicado o máximo do teu interesse às deficientes condições de defesa e limpeza de Missirá. Depois de tudo quanto aconteceu, foste lentamente arrefecendo a cólera, o Cuor era mais importante. Tenho agora para rescrever o relato de uma emboscada noturna lá para os lados de Madina, tu chamas ao local Sinchã Corubal e depois vais a Bissau, viagem curta, testemunha do milícia que deixou fugir o prisioneiro. E segundo tu me dizes, vai seguir-se um período calamitoso de muito fogo, eu que me prepare.
Amor da minha vida, não sei explicar como me estou a colar e me sinto embevecida com esta oportunidade que me deste, a mim, uma belga, alguém que ao nascer teve que viver na clandestinidade por ter sangue judeu, que estudou e descobriu a aptidão para as línguas, que trabalha em cabines de interpretação saltitando do inglês para o neerlandês, do francês para o italiano, do espanhol para o alemão, do português para o francês, de descer a um inferno da guerra, algures na colónia da Guiné Portuguesa, um mero pretexto para te amar no fundo da minha alma, alguém que me faz suspirar a todo o momento e desejar que possamos finalmente viver todos os dias juntos, o que acontecerá, demore o tempo que for necessário, temos afeto bastante para superar estes quilómetros que nos separavam e agora nos unem. Obrigado por tudo o que me dás, bien à toi, Annette.
Pormenor do Geba, o rio da minha vida
Rio Geba: Cais de desembarque em ruínas, fotografia de Humberto Reis, retirada do nosso blogue
Dança guerreira bijagó, fotografia de Jacek Pawlicki, com a devida vénia
Pescaria no Geba
A caminho de uma operação, fotografia do autor
____________Nota do editor
Último poste da série de 11 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21632: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (30): A funda que arremessa para o fundo da memória
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