sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21632: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (30): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Aqui se faz a recapitulação dos acontecimentos do primeiro trimestre de 1969 e se alarga o olhar para a reconstrução de Missirá, uma tremenda luta contra o tempo, desde meados de abril até junho houve que fazer 17 moranças, 2 abrigos novos e restauros noutros 3, uma mão na espada, outra na enxada, nunca de deixou de ir a Mato de Cão, nunca se abandonaram doentes nem abastecimento, nunca se esqueceu Finete. Deitara-se para trás das costas aqueles dois dias de prisão simples acompanhado de louvor, Missirá, pela força das circunstâncias, era o pólo de atração, o grande desafio para que todos sentissem que o que se destrói se reconstrói, e que todos estávamos juntos naquela humilde gesta de reerguer Missirá, com mais conforto e segurança. Como aconteceu. Virão agora flagelações, todas falhadas, e haverá pequenos contra-ataques, tropa e guerrilheiros emboscam, minam, esperam-se, tal o respeito mútuo. E temos agora muito que contar sobre os acontecimentos do próximo trimestre.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (30): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Annette très adorée, estou profundamente sensibilizado pela súmula que fizeste do primeiro trimestre de 1969. Doloroso e uma das maiores escolas de aprendizagem de toda a minha vida. Creio que te recordas de ver a fotografia do Fodé junto do cadeirão onde faço leituras e oiço música. Era sargento das milícias de Finete, revelou-se cooperativo desde a primeira hora, amigo de pedir, vinha expressamente a Missirá em dia combinado para comer bacalhau com batatas, ainda hoje é o seu prato preferido. Está tudo gravado na mente, aquela escabrosa operação Anda Cá, pouco passava das seis e meia da manhã do dia 22 de fevereiro de 1969 quando fui chamado com urgência, disseram-me que o Fodé tinha descoberto um fornilho. Aproximei-me e ele apontou para uma tábua que estava bem camuflada num velho trilho. Pedi-lhe para se postar ali e alertar todos para passarem ao largo; e avancei em direção a Madina, havia seguramente muito perto uma tabanca, ouviam-se cantares, o pilão trabalhava, gralhavam vozes, e enquanto avançamos cautelosamente já em posição de meia-lua, ouve-se uma explosão, silêncio sepulcral, e gritos lancinantes. Tomo consciência de que está tudo perdido, ou se avança prontamente ou se dá a desmotivação, passo por um buracão enorme onde agoniza um soldado europeu que desobedecera ao alerta do Fodé, e este geme, olha-me com todo o sofrimento do mundo, vejo-lhe os tendões dilacerados abaixo de um joelho e uma mão quase decepada. Como antevira, os senhores capitães pretendem recuar, a minha proposta de um pelotão com o cabo das transmissões irem à procura de um local para pedir a evacuação Y e nós atacarmos o objetivo foi rejeitada. Esta imagem foi-me enviada pelo Fodé a partir de Lisboa antes de ir para Hamburgo, onde recebeu a prótese e fez fisioterapia. O que antes era um rosto permanentemente sorridente é agora uma tristeza infinita, aqueles olhos não enganam. A nossa cumplicidade vem até aos dias de hoje, anda entre o Algueirão de Mem-Martins e o Bambadincazinho, onde tem os seus bens, as candongas de que se encarregam membros da família. Cegou, jamais se esqueceu de todo o afeto que recebeu em Lisboa. Olho para esta fotografia todos os dias para me lembrar das travessuras do destino e o que uma ordem pode acarretar na vida de um homem.

O momento mais importante depois da operação à minha exostose foi a reconstrução de Missirá, nada de tão empolgante acontecerá na minha vida. Em plena convalescença, fui ao Batalhão de Engenharia, sito em Brá, falar com o Capitão Rui Gamito que um dia me visitara, vindo de umas obras num saltinho, ficou intrigado, lá do alto do helicóptero, naquele oceano florestal ver a bandeira portuguesa a tremular numa tabanca rodeada de arame farpado. Recebeu-me afavelmente, percebeu o drama que se estava a viver em Missirá, eu falava aos sacões em sacos de cimento, chapa ondulada, rolos de arame farpado, cibes para os abrigos, esquadria de janelas, rede-mosquiteiro, atrevi-me a pedir um gerador. Tomou nota de tudo, não disse nem que sim nem que não, limitou-se a dizer “vamos ver” e apresentou-me a um subordinado a quem delegou a missão, o Emílio Rosa, amizade para toda a vida.

E porquê tão empolgante a reconstrução de Missirá, chère Annette? Nada sabia do ofício, só pude contar com boas vontades, e era uma corrida contra o tempo, em junho, o mais tardar no fim do mês, viriam chuvas diluvianas, ou estava tudo de pé ou dormiríamos, militares e civis, debaixo de uns panos de tenda. A minha satisfação em ver as obras prosperar foi de tal ordem que uma noite, depois dos afazeres compridos, devíamos estar nos finais de abril, passou-me pela cabeça escrevinhar um simulacro de poema que no dia seguinte foi no saco do correio para Lisboa, parecia um relatório para todos os meus ente-queridos, o combatente entregara-se a uma nova refrega e assim passou à escrita tal exaltação:
“Escrevo-vos em júbilo, vendo as papaias a crescer, contemplo um sol poente que incendeia de luz, por escasso tempo, as cores das novas moranças. Essas casas e abrigos defensivos são, por ora, a lama e os cibes engavinhados da bolanha onde os nossos tios e primos Mandingas continuam a cultivar, espero ainda vir a comer daquela mancarra e daquele abacaxi. Na atmosfera, há uma nostalgia da sumaúma que esvoaça nas crinas de um bissilão, aquela árvore de sangue forte que me dá coragem neste tempo em que lutamos contra o tempo. Acompanho e agradeço a todas essas mãos, mais pretas do que brancas, que enchem as malhas de cimento e rasgam portas para entrar e sair de poisos mais cuidados. Cada uma destas portas novas fala em nome de 17 moranças calcinadas.
Anoiteceu e já não posso ver as enxadas que ribombaram o dia inteiro, que orgulho eu tenho nestes camaradas que às vezes são soldados, que vão longe daqui e vigiam o Geba para que os barcos naveguem e continue a vida; e às vezes eles transformam-se em agricultores alçados em construtores, perfilando tijolos de adobe, há sempre neles um sorriso que me afasta os medonhos presságios de que tudo não acabe bem. Já passa das seis horas da tarde, sente-se um vento morno e nos céus de Missirá encadeia-se a luz de chumbo da lua ensombrada. E reflito nesta gesta dos meus soldados, picando a humildade deste mister que me persegue os dias e as noites: até aos joelhos amassa-se a lama, enquanto ao lado se lavra a golpes de catana um cibe, se afaga uma nova parede, e esta amarinha onde outrora existiu uma morança que houve que derruir, tão incendiada.
Esta terra chama-se Cuor, rima com suor, sinto uma sede oleaginosa, o anseio de ver tudo terminado, novas casas, abrigos seguros, seres humanos mais confiantes. Por isso vos escrevo nesta terra côncava onde se vive uma rapsódia de adolescentes e onde sonho permanentemente com a minha pátria”
.

Tenho muito poucos comentários, são meses com uma certa rotina, tudo corre sem incidentes nas idas diárias a Mato de Cão, escrevo abundantemente, são meses sempre acompanhados de boas leituras, como sabes perdi tudo no incêndio de Missirá, ando a reconstruir uma biblioteca, comprei um gira-discos a pilhas, privo-me disto e daquilo para de vez em quando comprar um estojo de música em Bafatá. E houve guerra, vou enviar-te o relato dos acontecimentos do início do segundo semestre, há um episódio brejeiro, uma ida a um lugar para lá do Geba, recebera uma carta do comandante Teixeira da Mota a perguntar se eu podia obter informações em Missirá ou Finete para onde tinham ido as populações de Bucol, já no regulado de Joladu, fora do meu raio de ação. Eu depois conto-te.

Estou bem desolado, a reunião da nossa associação foi marcada para Barcelona, nos últimos dias de janeiro, de acordo com o calendário de um grupo de trabalho estarei em Bruxelas dois dias em meados de fevereiro, não posso ainda precisar datas, a única coisa que eu posso precisar é que tu és a mulher mais bela do mundo, o encanto da minha vida, o meu arrimo, não é só na Rua do Eclipse que se sente a falta do ente-querido, aqui tu também és a grande ausente. A presença faz-se da nossa comunicação, do peso das nossas lembranças, de muita gratidão e respeito. Lembranças onde também entra a guerra da Guiné, onde tu fazes de cronista, juntando todos os elementos dessa comissão. Sei que te atiras a este trabalho com muito gosto, e sei que foste sincera quando um dia, vendo estas fotografias das florestas, dos meandros dos rios, do emaranhado dos tarrafes, muito encostada a mim, me disseste ao ouvido, “meu amor, havemos os dois de visitar a Guiné”.

Amanhã telefono-te, adormeço a pensar em ti e estou cheio de saudades quanto ao que nos reserva o futuro, teu, Paulo.

(continua)

Fodé Dahaba
Floresta da Guiné-Bissau
A folhagem tudo esconde, o gigantismo desta árvore de madeira exótica, tudo ao alcance de um patrulhamento, inevitavelmente cheio de perigos, dos homens e do interior da floresta
Antigo Quartel do Centro de Instrução Militar em Bolama, aqui se prepararam as praças do Pel Caç Nat 52, e muitos outros
Batalhão de Engenharia 447, Brá, aqui vim para pedir materiais de reconstrução ao capitão Gamito, ele apresentou-me o alferes Emílio Rosa, amizade para toda a vida
Por aqui deambulei, na marginal de Bissau, um pouco mais à direita fica o Pelicano, onde se realizou a boda do meu casamento
____________

Nota do editor

Último poste da série de 4 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21608: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (29): A funda que arremessa para o fundo da memória

Sem comentários: