quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21625: Historiografia da presença portuguesa em África (242): Revista Estudos Ultramarinos, 1959 - n.º 2 - Como se escrevia sobre a luta de libertação em pleno Estado Novo (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos, 

Impossível não ficar atónito quando uma revista dirigida por Adriano Moreira, do Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, com data de 1959, publicar poesia de Agostinho Neto ou Viriato da Cruz, as conclusões do I Congresso dos Escritores e Artistas Negros e também uma extensa mensagem dirigida por Sékou Touré (seguramente escrita por mão alheia) onde se exaltam as culturas africanas e se procede a uma minuciosa análise do processo cultural do colonizador. 

Impossível os doutrinadores do Estado Novo estarem completamente alheados das grandes mudanças que se estavam a operar em África desde 1957, esta documentação era um libelo acusatório para o regime e a sua doutrina imperial. Mas há paradoxos incompreensíveis, a explicação plausível, caso exista ultrapassa a nossa compreensão.

Um abraço do
Mário



Como se escrevia sobre a luta de libertação em pleno Estado Novo (1)

Mário Beja Santos

Já se referiu que a Revista Estudos Ultramarinos, que tinha como Director Adriano Moreira, ele também Director do Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, não deixa de nos surpreender, à distância de cerca de seis décadas, e num tempo em que já pairava no ar o sinal de efervescência da luta anticolonial, a publicação de textos de figuras que se irão distinguir nessa luta ou apresentações ideológicas a que o regime frontalmente se opunha. Por exemplo, na amostra de poesia ultramarina constam nomes como os de Agostinho Neto, Francisco José Tenreiro, Noémia de Sousa, Osvaldo Alcântara, Tomás Medeiros ou Viriato da Cruz.

E na secção de documentos, as surpresas não param. Logo, mesmo em francês, a resolução do I Congresso Internacional dos Escritores e Artistas Negros, que se realizou na Sorbonne (Paris), entre 19 e 22 de setembro de 1956. Regista-se a satisfação pelo inventário efetuado às diversas culturas negras que tinham sido até então sistematicamente mal conhecidas, subestimadas e por vezes destruídas; reconhecia-se a necessidade imperiosa de proceder a uma redescoberta da verdade histórica e a uma revalorização das culturas negras, pondo termo à apresentação errónea ou tendenciosa dessa verdade: 

“O nosso Congresso presta homenagem às culturas de todos os países e aprecia a sua contribuição para o progresso da civilização, compromete os intelectuais negros a defender, a ilustrar e a fazer conhecer no mundo os valores nacionais dos seus povos.

Nós, escritores e artistas negros, proclamamos a nossa fraternidade com todos os outros homens e esperamos deles que manifestem para com os nossos povos a mesma fraternidade”
.

O texto seguinte parece-nos incrível como se permitiu a sua publicação. Trata-se da mensagem intitulada “A cultura africana na luta da libertação”, foi enviada por Sékou Touré ao II Congresso Internacional de Escritores e Artistas Negros que se reuniu em Roma de 26 de março a 2 de abril de 1959. Quem redigiu a mensagem foi seguramente um intelectual e ideólogo próximo do ditador, sente-se um certo pendor marxista. 

“A cultura de um povo é necessariamente determinada pelas suas condições materiais e morais. O homem e o seu meio constituem um todo. Todo o povo livre e soberano tem melhores condições para a expressão dos seus valores culturais que um país colonizado, privado de toda a liberdade e cuja cultura está num estado de sujeição”

A projeção pessoal de Sékou Touré não fica de fora: 

“O líder político é, pelo facto de a sua comunhão de ideias e de acção com o seu povo, o representante de uma cultura. O homem, antes de se tornar o líder de um grupo, de um povo ou de uma parte do povo, fez inevitavelmente uma escolha entre o passado e o futuro. É assim que ele representará e defenderá os valores antigos ou sustentará, impulsionará o desenvolvimento, o enriquecimento constante de todos os valores do seu povo”.

 Deixa-se claro o que distingue um líder reacionário de um progressista, segue-se a exaltação dos líderes das democracias populares, recorda-se que a cultura árabe difere da cultura latina e adverte-se como os imperialistas utilizam os valores culturais (científicos, técnicos, económicos, literários e morais) para justificar e manter o seu regime de exploração e de opressão.

Para combater a descolonização é importante ter em conta que não basta somente o descolonizado libertar-se da presença colonial. A colonização, para se afirmar, tem sempre necessidade de criar e manter um clima psicológico favorável à sua justificação. É uma ciência de despersonalização do povo colonizado, subtil nos seus métodos e destinada a falsificar o psiquismo natural do povo colonizado.

O complexo do colonizado ainda é um fantasma permanente que se manifesta pelo uso do capacete, dos óculos de sol, símbolos da civilização ocidental.

  “Os nossos livros escolares das escolas coloniais levavam-nos a aprender a guerra dos gauleses, a vida de Joana d’Arc ou de Napoleão, a lista das diferentes regiões francesas, os poemas de Lamartine ou o teatro de Molière, como se África nunca tivesse tido história, passado, existência geográfica, vida cultura… Os nossos alunos eram apreciados devido à sua aptidão para esta política de assimilação cultural integral.

 O colonialismo, através das suas diversas manifestações, gabava-se de ter ensinado a nossa elite, nas escolas, as ciências, a técnica, a mecânica ou a electricidade, e a influenciar muitos dos nossos intelectuais. Como se fossem proprietários destes conhecimentos universais, pois eles são os mesmos, quando se fala em práticas cirúrgicas, em Londres, Praga, Belgrado ou Bordéus; os processos de cálculo do volume de um corpo são idênticos em Nova Iorque, Budapeste ou Berlim; e o Princípio de Arquimedes é idêntico na China ou nos Países Baixos; não há uma química russa nem uma química japonesa, há a química.

Na Guiné criámos a nossa própria escola de administração exactamente para contrariar este estado de inferioridade que marca os programas e a natureza do ensino colonial. As potências coloniais e a necessidade de homens que produzissem, que criassem, mão-de-obra qualificada: para cortar madeira, agricultores eficientes, trabalhadores para as poderosas companhias coloniais; e igualmente era também necessário travar as grandes endemias que ameacem as populações, que possam reduzir a mão-de-obra, e assim os poderes coloniais criaram corpos de médicos africanos com a determinação de fazer um corpo subalterno. 

Assim, no plano do conhecimento puro, no plano dos conhecimentos universais, o ensino dispensado em África era voluntariamente inferior e limitado às disciplinas que permitem uma melhor exploração das populações. Por outro lado, o ensino primário e secundário visava constantemente a despersonalização e a dependência cultural. É preciso denunciar este falso sentimentalismo que consiste em acreditar que somos devedores ao aporte de uma cultura imposta em detrimento da nossa. É preciso abordar o problema objectivamente. Quantos dos nossos jovens estudantes fizeram, sem disso darem conta, o processo da cultura africana submetendo-se à cultura da potência colonial? 

A cultura é a maneira como uma dada sociedade dirige e utiliza os recursos do seu pensamento. Fomos levados a aprender o nome de intérpretes eminentes do colonizador, perdemos as referências tradicionais da nossa cultura. Quantos dos nossos jovens estudantes citam Bossuet ignorando a vida de Alhaji Omar Tal? Quantos intelectuais africanos foram levados inconscientemente a desfazer-se das riquezas da nossa cultura para registar as concepções filosóficas de um Descartes ou de um Bergson?”

(continua)

Sékou Touré
____________

Nota do editor:

Último poste da série de 2 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21603: Historiografia da presença portuguesa em África (241): Um olhar sobre a Guiné, estávamos em 1905, por Alfredo Loureiro da Fonseca, no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Fernando Ribeiro disse...

O santomense Francisco José Tenreiro não foi, de maneira nenhuma, uma figura que se distinguiu na luta anticolonial. Nem por sombras. Por mais contraditório que possa parecer, Francisco José Tenreiro tomou partido, isso sim, pelo regime colonial, a tal ponto que foi deputado por São Tomé e Príncipe na Assembleia Nacional do Estado Novo, integrado na lista do partido único de Salazar, a União Nacional. Na internet este facto é geralmente omitido, sendo Francisco José Tenreiro apenas elogiado como poeta e como geógrafo, mas a página em inglês da Wikipedia, por exemplo, afirma: «As member of the Portuguese Parliament, he represented São Tomé and Príncipe».

Antº Rosinha disse...

Fantástico estes trabalhos de Beja Santos, sobre os tempos do nosso antigo império.
Gostei muito deste post.

De facto, Sekou Toure tinha razão, não se devia obrigar crianças e jovens africanos a estudar Joana D´Arc e Napoleão.

E mesmo nós em crianças portuguesas com dez anos, obrigados a aprender os rios e as culturas do milho e do cacau e cana de açúcar em Timor São Tomé e Guiné, etc. foi uma violência, isso não preocupava o Sekou Toure

Sabe-se que até um dia Bokassa, na República Centro Africana, chegou a imitar Napoleão com cavalo branco e tudo a que tinha direito, tudo por causa da aculturação europeia.

E mesmo esta aberração do futebol, invenção inglesa, que leva milhões de jovens africanos a sonhar com benfica, barcelona, manchester etc. que não diz nada às suas tradições e à sua cultura?

Beja Santos, nos anos 50, o Estado Novo, sabia o que se passava na cabeça dos estudantes e escritores africanos, até os simples estudantes de liceu em Luanda sabiam explicar sem censura "nós sabemos tratar de nós" não precisamos dos atrasados de tamancos.

O que se podia fazer? Era uma asneira europeia abandonar gerações de africanos nas mãos de meia dúzia de "estudantes", (naquele momento) mas a França e a Inglaterra já tinham começado a fazer essa asneira...!







Tabanca Grande Luís Graça disse...

Canção do Mestiço

por Francisco José Tenreiro (São Tomé, 1921 - Lisboa, 1963)

https://www.lusofoniapoetica.com/sao-tome-principe/francisco-tenreiro/cancao-do-mestico


Mestiço!

Nasci do negro e do branco
e quem olhar para mim
é como se olhasse
para um tabuleiro de xadrez:
a vista passando depressa
fica baralhando cor
no olho alumbrado de quem me vê.

Mestiço!

E tenho no peito uma alma grande
uma alma feita de adição
como l e l são 2.

Foi por isso que um dia
o branco cheio de raiva
contou os dedos das mãos
fez uma tabuada e falou grosso:
- mestiço!
a tua conta está errada.
Teu lugar é ao pé do negro.

Ah!
Mas eu não me danei ...
E muito calminho
arrepanhei o meu cabelo para trás
fiz saltar fumo do meu cigarro
cantei do alto
a minha gargalhada livre
que encheu o branco de calor! ...

Mestiço!

Quando amo a branca
sou branco...
Quando amo a negra
sou negro.
Pois é...

[in Ilha do Nome Santo, "Novo Cancioneiro", Coimbra, 1942]