segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21619: Notas de leitura (1328): “Socialismo na Guiné-Bissau: problemas e contradições no PAIGC desde a independência”, na Revista Internacional de Estudos Africanos, N.º 1, Janeiro-Junho 1984 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Março de 2018:

Queridos amigos, 

Desconhecia a publicação (terá tido vida efémera) e li com agrado este artigo de Patrick Chabal [1951 - 2014] onde ele faz a súmula das principais teses com que trabalhou para o seu doutoramento em Cambridge. Impressiona a largueza da análise e a precisão da síntese, o cientista começa por fazer o chamamento dos muitos créditos auferidos pelo PAIGC pelo seu papel como movimento revolucionário e disserta sem habilidades sobre os porquês do falhanço da via socialista na Guiné-Bissau, em total dissonância com a linha de Cabral, os governantes do PAIGC cometeram todos os erros que Cabral previra, e com o falhanço económico encontraram os necessários bodes expiatórios na fratura política. 

Tudo preto no branco, escrito com rigor e numa linguagem viva e desenvolta.

Um abraço do
Mário



Um artigo de Patrick Chabal sobre o socialismo na Guiné-Bissau, 1984

Beja Santos

Quando está a preparar a sua tese de doutoramento sobre o título “Amílcar Cabral as Revolutionary Leader”, apresentada na Universidade de Cambridge, Patrick Chabal procede a uma súmula dos principais assuntos que há a abordar na sua investigação, publica-a sob a forma de artigo denominando-o “Socialismo na Guiné-Bissau: problemas e contradições no PAIGC desde a independência” será dado à estampa na Revista Internacional de Estudos Africanos, N.º 1, Janeiro-Junho 1984.

Quando Chabal visitou a Guiné-Bissau e Cabo-Verde em 1979, sente que na Guiné já se vive uma crise profunda, o país endivida-se a olhos vistos, o descontentamento é indisfarçável, tão indisfarçável como a orfandade de Cabral, os seus continuadores são figuras menores. 

De tudo quanto vê, procura em artigo traçar as linhas gerais para uma discussão aprofundada do socialismo na Guiné-Bissau, começa por analisar o que foi a luta armada, depois a natureza do Estado pós-colonial e mais adiante expõe o significado e as implicações do socialismo na Guiné-Bissau.

Enuncia em primeiro lugar as razões pelas quais o PAIGC foi um movimento nacionalista lusófono que ganhou renome mundial: pela forma como lutou, pelo esforço demonstrado na tentativa de reconstrução política, social e económica nas áreas onde tinha desempenho proeminente; pela condução discreta e autónoma como o líder do PAIGC obtinha apoios no chamado bloco socialista e no mundo ocidental e como tivera sucesso na mobilização das populações rurais intentando mobilizá-las para a atividade política a par do esforço na luta armada. 

Chabal reconhece que o processo de guerra nacionalista fora caldeando o PAIGC para uma organização política tão mobilizadora como a ação militar. O seu esforço de impulsionar uma coesão interétnica, Cabral conseguiu que o PAIGC se mantivesse flexível para com os quadros militares a serem premiados na hierarquia; e observa que Cabral se absteve, tanto quanto possível,  de utilizar uma fraseologia socialista ortodoxa, apoiava-se quase exclusivamente na ideologia pragmática e valorizava a procura de soluções para os problemas sociais, económicos e políticos. 

Quando desapareceu da cena política, em janeiro de 1973, deixara o PAIGC com ideologia e desenvolvida uma notada trama diplomática que excedia de longe a importância da Guiné-Bissau como país. Fora sempre o dínamo da CONCP – Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Africanas, recebia armamento dos soviéticos, mantinha boas relações com a China e tornara público que o PAIGC aderira a uma política muito rigorosa de não alinhamento, Holanda, Escandinávia e o Conselho Mundial das Igrejas foram indispensáveis para o fácil reconhecimento diplomático da Guiné-Bissau antes e depois do 25 de abril.

O Estado pós-colonial nasceu de visíveis contradições: o PAIGC ambicionava expandir a todo o país as estruturas políticas que trazia da luta armada e esbarrou logo com a macrocefalia de Bissau, não dispunha de qualquer experiência de domínio de centros urbanos e não estava clarificada a distinção entre o partido e o Estado, 

Cabral tinha antevisto uma “ideologia socialista indígena” que em muito excedia o PAIGC, era a janela de oportunidade para manter atuantes as populações agrícolas de todo o país, uma parte determinante da Guiné nunca se identificara com o PAIGC, a esperança depositada era num sistema político instituído como poder popular. Isso nunca veio a acontecer, a tal pequena burguesia que se suicidaria no altar da democracia revolucionária não desistiu de abancar prontamente na orgânica estatal. Em Bissau concentrou-se o poder político, a área de decisão e sobretudo a área de indecisão: como incrementar a agricultura e implementar um modelo industrial. E é no novelo destas contradições que começa a ganhar força a extrema fragilidade da integração política da Guiné-Bissau e de Cabo Verde.

Como observa Chabal, esta política de unidade fora exclusivamente congeminada por Cabral, não há qualquer documento histórico de que este propósito unitário alguma vez tivesse feito o seu caminho, a própria intelectualidade guineense e cabo-verdiana eram contrárias ou, quanto muito, mantinham um estado de ceticismo profundo. 

Lançados em empreendimentos de industrialização que ruíram prontamente pela base, deixando o país financeiramente encalacrado, acirradas as tensões, logo que procurou o inimigo dentro da cidadela, régulos, funcionários leais aos portugueses e a tropa dos Comandos, ia crescendo a atmosfera de intimidação e terror, faltava o arroz, não se estabelecia a ligação entre a cidade e o campo, os projetos constitucionais de Cabo-Verde e da Guiné foram a faísca que espoletou o golpe de Estado.

Até esse golpe de Estado, o PAIGC não obteve resposta, não definiu uma linha clara para um projeto de desenvolvimento económico que acelerasse uma certa autossuficiência alimentar, a classe política vivia ofuscada pelo tal modelo industrial que se lhe afigurava como o farol do progresso. Não houve programa de modernização agrária, não se criou um sistema cooperativo, os Armazéns do Povo tornaram-se a prazo num pesadelo e mais uma fonte de descontentamento. 

1980, o ano do golpe de Estado, devido à incapacidade na prossecução de uma política agrária decente, saldou-se em mais de 50% dos alimentos essenciais a serem importados. Chabal passa em revista esses projetos falhados, desde os automóveis Citroen, passando pelo projeto da fábrica de açúcar do Gambiel, a fábrica de frutos e enlatados de Bolama e o complexo agroindustrial do Cumeré.

O autor debruça-se sobre o aparelho de Estado do PAIGC pós-Cabral. Após a independência, era numeroso o grupo que apostava na industrialização por ser a via mais eficaz para a transformação socialista. Aquela vanguarda não ouviu os representantes dos seus apoiantes rurais, começou a agir fora da realidade, divorciou-se dos camponeses, não conseguiu uma fórmula de coesão entre Bissau e as zonas rurais. Assim se deu o descrédito desse modelo de desenvolvimento socialista que se queria sobrepor aos interesses rurais específicos. 

Chabal reflete sobre o caminho que Cabral intentara seguir dentro dos parâmetros de um sistema político onde houvesse uma elevada coesão. Cabral não tinha ilusões de que o futuro económico do pequeno país dependia de um trabalho penoso, uma vida extremamente difícil na ausência de matérias-primas e de riquezas de subsolo. 

Como se estivesse a denunciar os erros da governação de Luís Cabral, Chabal transcreve uma passagem de uma entrevista que Basil Davidson fizera a Cabral, em que este relevara a sua dedicação absoluta à causa do desenvolvimento e do bem-estar dos campos:

“A abordagem global que nós temos é que todas as decisões estruturais devem ser baseadas nas necessidades e condições dos nossos camponeses. […] Acima de tudo, nós queremos descentralizar tanto quanto for possível. Essa é a razão por que estamos inclinados a pensar que Bissau não continuará a ser a nossa capital no sentido administrativo. […] Acerca da política económica depois da libertação, a prioridade estará no aumento da produção de alimentos. A agricultura está em primeiro lugar. Nós não temos ilusões: a Guiné é um país pequeno e comparativamente pobre. Continuaremos pequenos em tamanho e por um período longo continuaremos pobres”.

Esta era a “linha de Cabral” que não foi posta em prática.

Recorde-se que este artigo se confina a uma análise que vai desde a luta armada até ao golpe de Estado de 14 de novembro de 1980.

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Nota do editor

Último poste da série de 30 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21596: Notas de leitura (1327): "A Caixa de Correio de Nossa Senhora", por António Marujo; Círculo de Leitores e Temas e Debates, Outubro de 2020 (Mário Beja Santos)

7 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O Patrick Chabal, que morreu novo, tem pelo menos uam meia dúzia de referências no nosso blogue.

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/search/label/Patrick%20Chabal

Joaquim Luis Fernandes disse...

Tanto que haveria para dizer sobre este tema!
E não estarão nestas e noutras contradições do PAIGC as origens e causas do assassinato do seu líder, Amílcar Cabral, em 20 de Janeiro de 1973?
Atente-se, aos acontecimentos e protagonistas envolvidos na conjura, ao seu desenvolvimento, no antes e após o assassinato, ao curso que a guerra tomou com a introdução dos mísseis strella, e por fim, ao rumo político da Guiné Bissau no pós independência, e à conduta dos seus protagonistas e dos seus alinhamentos.

Para quando o fim das mentiras e o emergir da verdade, desse amontoado de contradições, que foi no passado e ainda é hoje, o chamado Partido Libertador, o PAIGC? Um desafio do passado, no presente e para o futuro.

Anónimo disse...

Joaquim Fernandes tanto para dizer, é verdade mas tudo em relação à Guiné é contraditório.Eu atrevo-me a dizer (embora correndo o risco de me cair em cima o carmo e a trindade) que na Guiné (como aliás em quase toda a áfrica) tudo não passou de projectos pessoais que se esboroaram em areia.Olhando para a Guiné para o sofrimento dos seus povos, porque são vários, para o que se passou a seguir à sua independência (eu diria dependência).Basta ouvir e ver o que os mais velhos disseram quando voltaram a pegar em armas contra o Nino em 1998.Que teve que se socorrer de tropas do Senegal e de Conakry.
Um abraço
Carlos Gaspar

Manuel Luís Lomba disse...

Mais um valioso contributo do Mário a favor do nosso conhecimento.

Afinal de contas, o PAIGC (daquele tempo) escreveu torto por linhas direitas.

É facto acontecimental, histórico, que a sua realização principal não correspondeu às aspirações do Povo guineense, antes a criação do MFA, o derrube do regime e do Império português - e menos por sua conta e risco, mais por conta de outrem e à revelia da essência daqueles povos - o seu sujeito.

O Povo da Guiné em vez da liberdade levou com a substituição de uma ditadura por outra; o Povo de Cabo Verde aspirava à liberdade, mas num quadro de "autonomia", idêntica à que o Portugal Insular (Madeira e Açores) estava em vias de "conquistar", sem torcionários nem tiros e livre da intromissão mental e material dos blocos afro-asiáticos e comunistas, arautos credenciados de "libertadores.

O PAIGC (daquele tempo) não era desejável para a maioria dos guineenses e seria repelente para a esmagadora maioria dos caboverdianos do seu arquipélago.

A independência de Cabo verde foi mais artificial que a da Guiné, foi criação do MFA e sustentada pelo "Fundo da Defesa do Ultramar"...

Os dadores de florins, coroas e dólares "libertadores" não os haviam feito chegar os seus cofres...

Por via de regra (a eleição de Hitler será a excepção que a confirma), os povos que possam usar a arma do voto rejeitam os partidos armados. O Povo rejeita a violência.

Se a "bolha" conservadora do MFA, personificada no General Spínola, nos seus "rapazes" da Guiné e na "Ala liberal" da então Assembleia Nacional, não se tivesse evaporado (atenção, em 1972!), nas eleições na Guiné, o sufrágio universal resultaria em menos de 20% dos votos para o PAIGC e em Cabo verde seria residual, uns 3% ou menos.

Tivemos reservada idêntica receita à da Guiné, Angola e Moçambique, a substituição de uma ditadura por outra. A sua rejeição pelo povo fez 40 anos.

Mas, pela nossa ingénita generosidade, os seus arautos não foram (nem serão) excluídos.

Abr.
Manuel Luís Lomba


Valdemar Silva disse...

Feriado de 08 de Dezembro de 2020
Provavelmente em 08 de Dezembro de 1974 muitas mães e pais rezaram à Nossa Senhora da Conceição ter acabado com a guerra na Guiné e assim os seus filhos e, calhando, suas filhas já não tinham que ir prá tropa.
O que é que essas e mães e pais dirão ao lerem este poste do Luís Lomba?.
Luís Lomba, agora temos uma novidade apanhando a ideia salazarista do Minho a Timor, mas só até Cabo Verde e vá lá a Guiné que não gostavam do PAIGC. Já falta pouco para findar este ano, vamos esperar pela novidade pra 2021.

Abracelos
Valdemar Queiroz

Manuel Luís Lomba disse...

Viva, Valdemar!

Somos livres de pensar e de desfazer equívocos.

Referes-te ao meu comentário à recensão pelo nosso laborioso Mário à substância da tese de Doutoramento do escritor Patrick Chavall, no referido à verdade factual da prestação do PAIGC pela libertação do Povo bissau-guineense.

No relativo à celebração de Nossa Senhora da Conceição em 8 de Dezembro clamo um engano. Se ela deu Jesus à luz em finais de Dezembro, logo a sua concepção virginal terá acontecido por alturas de Março...
Se se tratou de milagre do Criador extensivo ao tempo da sua gestação, as Sagradas Escrituras pecaram por omissão.

A nossa tropa foi fundada pelo nosso camarada D. Afonso Henriques, em 1127, não acabou com o fim da Guerra do Ultramar, antes passou a ir à guerra na África, Ásia e Europa, algo pela realização da diplomacia pátria ...e por dinheiro também.

Com culpas também para Nossa Senhora da Conceição? Desde 1646 que é Rainha, Padroeira de Portugal e da Lusofonia (entenda-se do nosso Colonialismo). Logo Suprema Comandante espiritual das Forças Armadas Portuguesas.

A fixação da culpa da Guerra do Ultramar no Salazar, esse ditador e sua sabedoria, como mentor de um fascismo à santacombandense, que, para se opor ao poderoso fascismo moscovita, nos arranjou alguém em permanência a infernizar-nos a mocidade, a única que tivemos, e sempre pronto a a liquidar-nos a vida nas bolanhas, matas e savanas africanas, é muito redutora, já raia o anacronismo.

Valdemar: Terás muito mais razões objectivas para malhar noutros, no D. João I, no filho infante D. Henrique e, sobretudo, no seu neto, esse paradigma do Imperialismo, do Colonialismo e do Esclavagismo mundiais, que foi o nosso D. João II.

Se nos é justo evocarmos os pais e as mães de Portugal que rezaram a nossa Senhora pelo fim do nosso fascismo, da Guerra do Ultramar e os choraram a morte de cerca de 3 000 de nossos camaradas mortos nos 13 anos dessa guerra, devemos trazer à colação os nossos irmãos africanos que sofreram os 25 anos de guerras fratricidas subsequentes e choraram os quase 2 milhões de mortos - não em consequência da sua libertação do fascismo português, mas pela conjugação do pior que enformava os seus "Movimentos de Libertação" com o fracasso da nossa "Descolonização Exemplar".





Valdemar Silva disse...

Ó caro Luís Lomba
Tens que arranjar, não quer dizer que seja já, pode ser para o ano que está chegar, como é que resolverias o problema da guerra das Colónias, do Ultramar, que nos era imposta em África, conforme quiseres, sem ser com a independência daqueles territórios. Tá bem que foram os portugueses os primeiros a descobrir aquelas terras e a trazer à civilização aquela gente selvagem (sem ser o ouro e as especiarias, trazer à civilização os selvagens foi um rentável negócio), assim como os romanos e árabes se fartaram de fazer a mesma coisa por cá, com os primeiros a serem corridos à mocada e os segundos à espadeirada pela recém formada tropa D. Afonso Henriques. E cá ficamos independentes, com as nossas guerras civis durante anos, o que aliás ia acontecendo por quase todos os países com as suas guerras internas. Assim também aconteceu e continua a acontecer nos países do continente africano, não teriam de ser excepção.
A Nossa Senhora da Conceição, como nossa Padroeira, com certeza já nos perdoou e aos do 'aquilo era nosso' julgo que lhes pede calma com um 'pronto fizeram tudo o que puderam, mas já acabou e Ceuta não conta'.
Não percebi aquela '...da Lusofonia (entenda-se do nosso Colonialismo)', então a Lusofonia não é também a nossa gente das Comunidades Portuguesas espalhadas por muitos países do mundo?

Abracelo e cuidado com o cornodovírus
Valdemar Queiroz