Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.
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Caro Luís:
O nosso Povo tem uns ditados muito acertados. Por exemplo, dizer-se que "Quem não se sente não é filho de boa gente", é um daqueles que tem muita aplicação prática.
Já estava à espera que mais dia menos dia "rebentasse a bronca" com outros camaradas nossos que, tal como o Alberto Branquinho e o Mexia Alves, não concordam com o protagonismo exagerado que alimentas no Blogue acerca de Gandembel e Ponte Balana, sempre imputadas ao Idálio Reis da [CCAÇ] 2317 e dos seus homens ....
Tiveste agora que tirar a limpo com o Idálio aquilo que eram as opiniões do Branquinho, como se só o 1º fosse o detentor de todo oconhecimento e acho a resposta do Reis muito brusca, para quem sabe perfeitamente que, só enquanto não se construiram os abrigos de betão, é que o pessoal "imitava as toupeiras".
Eu optei sempre por dormir dentro do Paiol em Ponte Balana, em cima dos cunhetes de munições, junto ao rádio-transmissor, sabendo perfeitamente que se tivessemos um ataque a sério, com a tomada do destacamento, só nos restava abrigar naquele bunker, pedir a Gandembel que nos enchessem de morteiradas e obuses e havia de ser o que fosse.
Claro que não obrigava ninguém a praticar esta loucura comigo, mas tinha sempre companhia,pois enquanto Gandembel estava "a embrulhar" havia sempre quem jogasse as cartas...e alguém contava as flagelações do in.
Assim como o Idálio pode dizer que foi o homem que mais tempo esteve em Gandembel com mais cerca de 150 a 200 homens, incluindo as tropas especiais e os especialistas , foi o meu Pelotão de Nativos 55 que mais meses esteve na Ponte Balana: Talvez uns 4 meses.
Como sabes os Pel Caç Nat tinham graduados brancos e sempre de rendição individual, o que originava duas coisas: (i) Eram apêndices das Companhias,para o pior.... até porque eram Nativos (sem comentários); (ii) Estavam completamente desgarrados das Companhias, o que era péssimo a nível humano e psicológico.
Quando o meu Pel Caç Nat saíu de Ponte Balana, já a cabeça da coluna ía a uns quilómetros de distância e, enquanto a 2317 seguiu para Buba, o Pel Nat 55 ficou logo na Chamarra.... nem sequer os quiseram em Aldeia Formosa.
O Zé Teixeira, que correu todos aqueles destacamentos , possivelmente até me conhece. Além de Aldeia Formosa, onde estive uns oito dias antes de seguir para Gandembel, ainda fui dormir duas ou três noites a Mampatá...
Dos 120 dias que o meu Pel esteve em Ponte Balana lembro-me de três Furréis brancos, do operador de transmissões - esse sim toupeira do 1º ao último dia- e talvez em Dez 68 foi lá colocada mais um ex-Alferes, Barge de seu nome, e que foi uma salutar companhia para mim. Salvo erro comandava um Pelotão da CCAÇ 2317.
Não me lembro de haver qualquer contacto comigo a questionar sobre o que eu teria a dizer de Gandembel-Ponte Balana, aquando da vossa romagem por aqueles lugares. Haverá algum engulho com a minha ida ao Corredor da Morte?
Como é que eu posso pronunciar-me sobre a Guerra da Guiné em locais onde nunca estive, a dormir numa cama, a comer um bife na tasca do não sei quantos ou a ter direito a uma lavadeira - pagando, claro - quando Gandembel e Ponte Balana não tinham contacto com o exterior excepto nos helis que levavam enfermeiras paras- querida Ivone e outras-que só lá iam buscar os mortos e feridos do ataque anterior...
Pista de aviação nada
População nada
Gado nada
Comida pouca e péssima...Nas chuvas o Balana fornecia peixe, à granada, claro.
Colchões para dormir cheios de buracos - remendos nem vê-los. Os poucos que havia eram para as viaturas. Bebida muita. Medo ainda mais. Médico uma vez em Dezembro.
Padre e Missa uma vez no Natal.
Gandembel e Ponte Balana são dois locais com misticismo, feitos de heroísmo e medo e os fantasmas ainda por lá andam e por cá também.
Gostaria, portanto, de te pedir , se assim o entenderes, que não esqueças os demais protagonistas que também forçados fizeram aquele pedaço da História.
Como diz o Branquinho,também lá estive e não vou deixar que outros contem as coisas por mim.
Um abraço do
Hugo Guerra
PS - Tenho muita pena de não ter podido ir ao Simpósium que acho correu muito bem. O meu Ortopedista, que esteve lá, ex-Alferes Francisco Silva, tirou-me as veleidades de aguentar as viagens de picada. Sou agora muito colunável....
2. Comentário de L.G.:
Hugo, errar é humano...Neste caso, pequei por omissão, ao fazer tábua rasa dos teus 120 dias (quatro meses, entre Agosto de 1968 e Janeiro de 1969), no destacamento de Ponte Balana. Tens que me dar o desconto: a minha base de dados, neuronal, não é assim tão grande e tão fiável que não me deixe mal, em certas circunstâncias... Lamento profundamente ter-me esquecido de ti e dos teus homens do Pel Caç Nat 55. Não o fiz intencionalmente, nem tinha nenhuma razão, objectiva, para o fazer... Como não tenho nenhum razão, manifesta ou latente, para pôr o Idálio Reis no Olimpo dos deuses e dos heróis. Sou anti-herói. São os homens, meus camaradas, que fizeram a guerra, que me interessam. Tu, o Idálio, e tantos outros, nos mais diversos pontos da Guiné...
Chegaste à nossa Tabanca Grande em Novembro de 2007 e temos, eu e os meus/nossos co-editores, publicado sempre as tuas mensagens... Foi pena não teres, em tempo útil - isto é, antes do Simpósio Internacional de Guileje - falado,com mais detalhe, da tua estadia em Ponte Balana... A ter havido injustiça, fica aqui reparada. Como eu costumo dizer, a nossa Tabanca Grande não tem portas nem janelas, não há convidados, nem VIP, nem membros de 1ª e 2ª classe... Há apenas amigos e camaradas da Guiné, que têm a liberdade de entrar e sair, quando lhes apetece...Caro que temos algumas regras de convívio e de comportamento...
Procurei em tempo útil incluir nas estórias de Guileje o relato da tua ida (voluntária à força...) ao Corredor da Morte (1)... Como seguramente publicaria o teu relato da estadia no hotel de muitas estrelas de Balana, se me tens avivado a memória... Já publiquei 2700 postes neste blogue e recebi, em três anos, muitos milhares de emails, .. Não me peças, por favor, que memorize todos os detalhes curriculares de toda a gente... Por outro aldo, não vale a pena a gente entrar pelo lado das insinuações e provocações, do género A Minha Guerra Foi Pior que a Tua... É uma picada que não nos leva a lado nenhum e é totalmente contrária ao espírito, aberto, franco, assertivo, frontal, leal, deste blogue...
Dito isto, Hugo, digo-te que apreciei a tua franqueza e aqui vai um abraço. Sem ressentimentos. Luís Graça (que, como tu, foi tropa-macaca, de 2ª classe).
PS - Não tenho fotos tuas do Tombali... Em contrapartida, mando-te uma foto com o teu médico de quem só posso dizer que foi um camaradão no fim de semana que passámos juntos, no sul...E a quem já convidei para ingressar na nossa Tabanca Grande.
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(1) Vd. postes de:
29 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2489: Estórias de Guileje (4): Com os páras, na minha primeira ida ao Corredor da Morte (Hugo Guerra)
7 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2415: Uma guerra entregue aos milicianos: onde estavam (estão) os nossos comandantes ? (Hugo Guerra, Coronel, DFA, na reforma)
22 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2374: O meu Natal no mato (10): Bissau, 1968: Nosso Cabo, não, meu alferes, sou o Marco Paulo (Hugo Guerra)
29 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2312: Tabanca Grande (43): Hugo Guerra, ex-Alf Mil, Pel Caç Nat 55 e 50 (Gandembel, Ponte Balana, Chamarra e S. Domingos, 1968/70):
(...) Chamo-me Hugo Guerra, nasci em Estremoz em Abril de 1945 e estudei na Escola de Regentes Agrícolas de Évora onde acabei o meu curso em 1964. Em Agosto de 1968, sem perceber bem como (depois hei-de contar), estava no Ana Mafalda a caminho da Guiné em rendição individual e, como a sorte nunca me bafejou, quando desembarquei já tinha guia de marcha para Gandembel onde fui comandar o Pel Caç Nat 55 que estava adstrito à CCaç 2317 [, Gandembel/Balana, 1968/69]. Passei por Aldeia Formosa, num heli, e aterrei, ainda em Agosto [de 1968], em Gandembel.
"Passei a maior parte do tempo em Ponte Balana e estava lá quando fechámos a porta em Janeiro de 1969. Nessa altura, e porque a sorte continuava alheia à minha
odisseia, fiquei num destacamento logo a seguir, de nome Chamarra.
"A CCAÇ 2317 foi para Buba e mais tarde foram acabar a sua martirizada comissão em território menos hostil.
"Eu tive, mais tarde, uma passagem rápida por S. Domingos no comando do Pel Caç Nat 50 mas o suficiente para ficar ferido com o rebentamento duma anti-pessoal, salvo erro a 13 de Março de 1970.
"Sou hoje DFA e Coronel" (...).
(2) Vd. postes de:
26 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2688: Construtores de Gandembel/Balana (1): Op Bola de Bogo, em que participou a CART 1689, a engenharia e outros (Alberto Branquinho)
26 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2689: Construtores de Gandembel / Balana (2): O papel da CART 1689 (8 de Abril a 15 de Maio de 1968) (Idálio Reis)
28 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2692: Construtores de Gandembel / Balana (3): Nunca falei em protagonismo pessoal, mas sim da CART 1689 (Alberto Branquinho)