O Caco, General Spínola, numa das viagens a bordo do helicóptero do Jorge Félix.
Zona operacional de Galomaro, onde terá ocorrido a história da captura do prisioneiro Vd. carta de Duas Fontes (Bengacia): o Jorge Félix sinalizou duas povoações, a azul: Sinchã Lomá e Dulo Gengéle...
A caderneta de voo do Jorge Félix, onde consta a operação em que foi capturado o prisioneiro a que se refere esta história.
Fotos: © Jorge Félix (2008). Direitos reservados.
1. Mensagem do Rui Felício, ex- Alf Mil, CCAÇ 2405 (Galomaro e Dulombi, 1968/70) (1), com data de 12 de Março último:
Meu Caro Amigo Luís Graça,
Depois de vários anos sem notícias do Jorge Félix (2), tive a felicidade de o reencontrar há dias através de e-mail que ele me enviou.
Soube do meu endereço, por meio do teu blogue que tem lido...
Relembrou-me uma história curiosa que se passou em Galomaro numa operação militar em que ele esteve envolvido e da qual resultou um prisioneiro do PAIGC que pernoitou na sede da CCAÇ 2405.
É essa história que, no seguimento de outras anteriores te tenho enviado (3), que agora te peço que tenhas o incómodo de ler e decidir se lhe achas interesse para publicação no teu blogue.
Além da história propriamente dita, juntei-lhe algumas fotos cedidas pelo Jorge Felix, cuja publicação autorizou, bem como do endereço de um filme do YouTube.
Aceita os meus melhores cumprimentos, depois de tão longa ausência e os parabéns renovados pelo esforço que tens dedicado ao teu blogue que de muita utilidade tem sido para tantos de nós.
Fotos: © Rui Felício (2008). Direitos reservados
GALOMARO – Os baixinhos do Dulombi, antes da mudança... AGOSTO 1969
O JORGE FELIX E O PRISIONEIRO (Ou a psicossocial no seu melhor... )
por Rui Felício
(i) PREÂMBULO
Durante cerca de 3 semanas estacionou na sede da Companhia CCAÇ 2405, em Galomaro, uma Companhia de Paraquedistas ( penso que se tratava da CCP 120), para fazer limpeza de alguns objectivos do PAIGC, que as informações militares detectaram nas imediações da zona operacional da CCAÇ 2405.
No apoio a essa Companhia de paraquedistas, incluía-se o helicóptero pilotado pelo meu grande amigo Alferes Jorge Félix, que já referi em histórias anteriores.
O episódio que vou contar poderia ter resultado em catástrofe, como mais adiante se compreenderá, mas o que permanece na memória, é de facto a situação picaresca que, passado o perigo, a seguir se desenvolveu.
Antes do relato dos factos, é importante dar a conhecer a personalidade do Jorge Félix. Sem ela, esta história não teria o sal e a pimenta que a maneira de ser dele lhe conferem.
(ii) A PERSONALIDADE DO JORGE FéLIX
O Jorge Félix, a quem ainda hoje me ligam laços de grande amizade, foi piloto de helicópteros da Força Aérea em Bissau nos anos de 1968 a 1970.
Para além do seu elevado profissionalismo, capacidade técnica e conhecimento do território, que o tornaram, na opinião generalizada, como um dos melhores, senão o melhor piloto de helicópteros que terão passado pela guerra da Guiné, reunia e ainda reúne, invulgares qualidades difíceis de encontrar todas concentradas numa mesma pessoa.
Aquelas que mais apreciei foram e ainda são, apesar dos anos passados, um apurado sentido de humor, uma jovial e permanente boa disposição que alastrava a quantos o rodeavam, um permanente lenço de seda colorido em volta do pescoço que era a sua imagem de marca e uma aptidão especial para rapidamente aprender a dominar as técnicas das mais variadas especialidades.
Refiro-me ao domínio da fotografia e da imagem, da música e, sobretudo, dos corações femininos! Dizem que destroçou vários na sua passagem por Bissau, Bafatá, Galomaro e sei lá quantas mais terras da Guiné...
(iii) A OPERAÇÃO MILITAR
Mas vamos à história de cuja parte final fui testemunha.
A parte inicial foi-me descrita pelo próprio Jorge Felix e confirmada pelos paraquedistas intervenientes.
Num certo dia de Agosto de 1969, o Jorge Félix transportou no seu helicóptero um grupo de paraquedistas que iam fazer um assalto, a uma base do PAIGC, identificada pelos serviços de informações militares da Guiné, como estando localizada na região de Galomaro.
Ao procurar local para a aterragem perto do objectivo, em plena mata, o Jorge Felix foi descendo o helicóptero e, a uns 5 metros do chão, a deslocação de ar provocada pelo movimento das pás do aparelho, afastou uma série de ramos de arbustos deixando a descoberto um guerrilheiro do PAIGC que ali se havia emboscado.
O homem estava armado com um RPG7, e a granada colocada, apontando para o helicóptero, o que naturalmente deixou em pânico o piloto e os tripulantes.
Na verdade, se o gatilho tivesse sido premido, era o destruição do helicóptero e de algumas vidas, senão todas, daqueles que o tripulavam.
O Jorge Félix que foi quem primeiro avistou o guerrilheiro, gritou aos paraquedistas que de imediato saltaram do Heli e aprisionaram o homem sem necessidade de dispararem um único tiro, desarmando-o acto contínuo.
Pelos vistos, o susto e a surpresa dele foram tão grandes, ao avistar inesperadamente o helicóptero sobre a sua cabeça, que lhe devem ter paralisado os movimentos e o raciocínio... para sorte dos militares que enchiam o aparelho...
(iv) O REGRESSO A GALOMARO
E a partir daqui já fui testemunha ocular...
Regressados a Galomaro, o prisioneiro (4) foi fechado numa sala da casa onde funcionava a secretaria da CCAÇ 2405, aguardando ali que lhe fosse dado o destino que os altos comandos de Bissau lhe determinassem.
Como nunca antes na CCAÇ 2405 tivéssemos feito prisioneiros, aquele homem mais parecia uma ave rara enjaulada em jardim zoológico em dia de grande afluência de visitantes.
Todos queriam vê-lo e o seu aspecto era o de um animal acossado e aterrorizado, certamente porque a propaganda que lhe tinham enfiado no cérebro, lhe fixara a ideia de que os soldados colonialistas haviam de o torturar até à morte...
A verdade é que ninguém lhe fez mal... Pelo contrário, vendo-o assim aterrorizado, procurámos tranquilizá-lo e dar-lhe de comer, o que foi sempre recusando, possivelmente porque pensava que a comida estaria envenenada.
Assisti a dada altura, a um diálogo que jamais esquecerei e que não resisto a tentar reproduzir tanto quanto a memória mo permita, passados já tantos anos.
(v) A CONVERSA COM O PRISIONEIRO
O Jorge Felix entrou na sala, onde eu me encontrava com o prisioneiro e com mais um ou dois soldados, com o lenço de seda esvoaçando, o habitual ar sorridente e descontraído, e dirigiu-se cordatamente ao prisioneiro:
- Então como vai, meu amigo? Está tudo bem consigo?
O prisioneiro, consciente de que aquele piloto tinha todas as razões do mundo para se sentir revoltado pelo sucedido uma ou duas horas antes, encolheu-se receoso e ficou, tenso e em silêncio, esperando a vingança...
O Jorge Félix, insistiu:
- O Senhor é casado?
O homem fez um sinal de assentimento com a cabeça, e o Jorge Felix prosseguiu:
- Pois é, a sua Esposa lá em casa a remendar-lhe as peúgas, coitada, e o Senhor anda para aqui a brincar às guerras... E tem filhos?
Mais um movimento afirmativo do prisioneiro incentivou o Jorge Felix a prosseguir:
- Sabe, o Senhor parece ser uma pessoa de bem, por isso devia estar em casa a ajudar a sua Esposa, a acompanhar os estudos dos seus filhos... Em lugar disso, anda por aí com uma arma daquelas nas mãos, sujeito a que ela se dispare sem querer e ainda vir a magoar alguém, ou magoar-se a si próprio... Já viu em que situação a sua Família ficaria se o Senhor viesse a sofrer algum acidente?.. Quem iria depois cuidar deles? Já pensou nisso?
O homem cada vez entendia menos daquela conversa mansa, daqueles conselhos simpáticos vindos de um oficial português que se habituara a considerar como seres desumanos e cruéis.
Quanto mais o Félix falava, mais ele se encolhia, sentado a um canto contra a parede, se calhar a pensar em que momento lhe iriam fazer mal...
O Félix não desistia da sua prelecção, tentando que o prisioneiro se descontraísse e estabelecesse com ele algum diálogo.
- Ora diga-me lá, o Senhor estava com aquela perigosa arma nas mãos para quê? Se era para disparar uma bazucada contra nós, porque não o fez?
Finalmente o prisioneiro sentiu-se na obrigação de responder:
- Porqui tem medo! Helicoptero é suma mosca... quando olha a gente nunca mais despega di nós...
O Jorge Felix ripostou de imediato:
- Isso é verdade! Mas nunca faríamos mal a uma pessoa como o Senhor, que tem Família constituída, que aparenta ser uma pessoa de bem... E porque é que não quer comer?... Sabe que tem que se alimentar para poder dar assistência aos seus filhos... A menos que não lhe agrade a comida... Realmente esse esparquete que lhe deram, não tem grande aspecto.. E os olhos também comem, não é? ... Quer vir jantar fora comigo?.. Um frango de churrasco e umas cervejolas? EU PAGO!
Brincando ou não, a verdade é que com toda esta conversa o Félix conseguiu que a tensão do prisioneiro se distendesse e, inacreditavelmente, este aceitou o convite!
O Felix, saiu para pedir autorização aos paraquedistas para levar o homem a comer um franguinho no restaurante do Regalla, o único aliás que existia em Galomaro. Estes autorizaram desde que o prisioneiro fosse acompanhado por um soldado, para se garantir que não fugiria...
E foi assim que o Jorge Felix, à falta de melhor companhia, saiu para a night de Galomaro com o novo amigo conquistado às hostes do PAIGC que poucas horas antes podia tê-lo mandado para os anjinhos...
E jantaram juntos... E trocaram confidências que só o Felix poderá revelar...
O JORGE FELIX PAGOU O JANTAR, COMO PROMETERA! COM EXCLUSIVO RECURSO AOS SEUS CAPITAIS PRÓPRIOS...
É uma divida que, segundo me disse, gostaria de lhe cobrar se o homem ainda estiver vivo e se lhe for possível reencontrá-lo.
Anexo três fotos que o Félix me enviou.
Rui Felício
Ex-Alf Mil Inf
CCAÇ 2405
(Galomaro e Dulombi, 1968/70)
Lisboa, 11 de Março de 2008
_______
Notas de L.G.:
(1) O Rui Felício, juntamente com o Paulo Raposo, o Victor David e o Jorge Rijo, faz(ia) parte dos famosos baixinhos de Dulombi, os quatro alferes milicianos da CCAÇ 2405 / BCAÇ 2852 (1968/70):
vd. poste de 8 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1352: Estórias de Dulombi (7): Perigos vários, a divisa dos Baixinhos de Dulombi (Rui Felício)
(2) Vd. postes de:
28 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2592: Voando sob os céus de Bambadinca, na Op Lança Afiada, em Março de 1969 (Jorge Félix, ex-Alf Pil Av Al III)
12 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2627: Vídeos da Guerra (8): Nha Bolanha (Jorge Félix, ex-Alf Mil Piloto Aviador, 1968/70)
18 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2660: Notas de leitura (10): Jorge Félix, o nosso piloto aviador, fala do livro do Beja Santos e evoca o Alf Mil Brandão (CCAÇ 2403)
(3) Vd. série Estórias de Dulombi:
9 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXIX: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (1): O nosso vagomestre Cabral
14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVII: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (2): O voo incandescente do Jagudi sobre Madina Xaquili
19 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXL: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (3): O dia em que o homem foi à lua
5 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1046: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (4): a portuguesíssima arte do desenrascanço
18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1085: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (5): O improvisado fato de banho do Alferes Parrot na piscina do QG
27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1217: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (6): Sinchã Lomá, o Spínola e o alferes que não era parvo de todo
8 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1352: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405)(7): Perigos vários, a divisa dos Baixinhos de Dulombi (Rui Felício)
30 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2073: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (8): O Fula, a galinha e o vestido
(4) O prisioneiro em causa deveria ser o Malan Mané, apontador de RPG, pertencente ao bigrupo de Mamadu Indjai, capturado pelos pára-quedistas, em operação conjunta do Sector L1 (BCAÇ 28252, Bambadinca, 1968/70) e COP 7 (Bafatá) (Op Nada Consta, 18 de Agoso de 1969) ... As forças pára-quedistas eram CCAP 123, a 2 Gr Comb, e a CCP 122, a 1 Gr Comb. Ambas as unidades estavam aquarteladas temporariamente em Galomaro. O Malan Mané, depois de Galomaro, foi levado para Bambadinca, para interrogatórios. Também esteve em Mansambo. Foi gravemente ferido na Op Pato Rufia, no Xime, a 7 de Setembro de 1969.
Vd. postes de:
30 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXX: A CAÇ 12 em operação conjunta com a CART 2339 e os paraquedistas (Agosto de 1969) (Luís Graça)
15 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLIII: O Malan Mané estava vivo em Novembro de 1969 e eu abracei-o (Torcato Mendonça)
25 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P906: CART 2339 e Malan Mané, duas estórias para duas fotos (Torcato Mendonça)
1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1011: A galeria dos meus heróis (4): o infortunado 'turra' Malan Mané (Luís Graça)
(...) Op Nada Consta > Desenrolar da acção:
Enquanto as forças do Sector L1 ficavam emboscadas nas proximidades da bolanha do Rio Biesse (a leste, a CCAÇ 12 com 3 Gr Comb dispostos em semicírculo; a norte, o Pel Caç Nat 53; e a oeste, forças da CART 2339), veio a primeira vaga de paraquedistas que foram colocados na ponta oeste da bolanha, penetrando imediatamente na espessa mata que se estende para sul.
Cinco minutos depois, é capturado um elemento IN armado de RPG-2. Sucederam-se mais duas vagas de helicópteros, transportando outros tantos Gr Comb dos paras e a mata passou a ser percorrida de norte para sul.
0 prisioneiro [Malan Mané, de seu nome, de etnia mamdinga], entretanto, não dera nenhuma informação que permitisse levar à localização de qualquer arrecadação [de material] ou acampamento importante. Confessou apenas que no local se encontravam 80 homens, sob o comando de Mamadu Indjai, dispersos em pequenos grupos pela mata, e com quem os paras estabeleceriam depois contacto, fazendo 2 mortos e capturando 3 armas automáticas". (...)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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