1. Começo por agradecer, à prof associada Sónia Frias, do ISCP/UL, o honroso convite para estar presente neste evento, que é também comemorativo dos 50 anos do 25 de Abril.
E quero, em especial, sublinhar e saudar o facto de a a guerra colonial ser finalmente, discutido na academia e ser tema associado e visível nos festejos do 25 de abril.
2. Introdução
Ao longo da minha vida, por inúmeras vezes, fui convidado para dar testemunho sobre a minha participação e vivência na guerra colonial. No entanto, é a primeira vez, com este objetivo, que me dirijo a uma comunidade académica e, por esse motivo, decidi escrever um texto com o objetivo de enquadrar o meu percurso de vida - a minha circunstância, até chegar às portas da guerra em Angola, onde, durante dois anos e meio, comandei, como alferes miliciano, um pelotão de soldados e sargentos, integrado nas tropas paraquedistas e sempre no “gastalho”.
O texto tem um caracter autobiográfico em que relato alguns dos momentos mais marcantes que vivi na guerra.
3. A minha circunstância:
- Este ano de 2024 Portugal comemora os 50 anos da Revolução de 25 de Abril de 1974 e o final da guerra colonial que rebentou há 63 anos no Norte de Angola, a 16 de março 1961.
o Jornal Público, na edição de 28 de abril, editou um artigo da jornalista Teresa de Sousa, que destaca a intervenção do deputado do Livre, Rui Tavares, na Assembleia da República em dia 25 de abril.
“Rui Tavares recordou-nos a todos de uma forma pessoal e simples o que era o Portugal bafiento, repressivo, mesquinho, paupérrimo da ditadura.
(…) A pobreza era descarada e generalizada. O obscurantismo
era imposto pela censura e pela ideologia. A violência escondida. A liberdade individual era nula. O medo era a arma mais poderosa.”
- Voltando à minha circunstância, eu nasci em 1946 e cresci neste Portugal de “pobreza descarada e generalizada” , numa aldeia de trabalhadores rurais, pertencente ao concelho do Lourinhã.
Nesse tempo, uma grande percentagem das crianças não terminavam a 4.ª classe (vindo, os rapazes, a concluí-la, mais tarde, na tropa) e, muito menos, prosseguiam os estudos
- Calhou-me, na minha sorte, ter uma catequista, esposa do agrário para quem o meu pai trabalhava de sol a sol, que, depois de me apresentar ao pároco da freguesia, convenceu os meus pais a deixarem-me ir para o seminário. Foi nos finais da década de 50.
Tinha doze anos quando transpus o portão de acesso a uma “casa” desconhecida. Nos primeiros tempos senti-me completamente fechado, desenraizado e perdido, ambiente bem retratado por Vergílio Ferreira na obra "Manhã Submersa" e, depois, no filme de Laura António.
4. A entrada no serviço militar
Em 1968, decidi sair do seminário e, quando em junho daquele ano, com 22 anos, transponho a porta de saída, só tinha uma certeza (ainda não era senhor de decidir sobre o rumo a dar à minha vida): tinha de cumprir o serviço militar obrigatório, imediatamente.
Por via da formação do seminário acedo a frequentar o COM – Curso de Oficiais Milicianos.
Logo em setembro (de 1968) recebo a convocatória para me apresentar em Santarém, para a inspeção militar, cujo resultado foi ficar “Apurado para todo o serviço militar” e com guia de marcha para me apresentar no quartel em Mafra, na EPI (Escola Prática de Infantaria), para frequentar o 1.º Ciclo do COM.
Entretanto, no final de outubro de 1968 sou desafiado, por um amigo, para desertar para França, "a salto". Como era preciso pagar 10 contos ao “passador” (ceca de 3800 euros, a preços de hoje) e, como eu não os tinha, fiquei entregue à minha sorte! Ir para a guerra.
5. Selecionado para os comandos, decido pelos Paraquedistas.
Gorada a hipótese de desertar, a 8 de janeiro de 1969 dou entrada na EPI, onde completo o 1.º Ciclo – a recruta e, depois, o 2.º Ciclo – na especialidade de atirador de infantaria.
Em junho de 1969, termino o 2.º ciclo do COM e, antes de recebermos a guia de marcha para nos apresentarmos nas novas unidades militares, fui selecionado, com mais de uma dezena de cadetes, para me apresentar no Centro de Instrução de Comandos, em Lamego, tropa que se supunha ser só constituída para voluntários.
Fiquei siderado! Nunca me tinha oferecido para nada na tropa, nem tentado destacar-me, em coisa nenhuma durante a instrução.
No final, o grupo selecionado junta-se e há um que toma a palavra para nos desafiar:
– Nós já não conseguimos escapar à mobilização para a guerra, por isso, é melhor oferecermo-nos para os Paraquedistas.
E enumerou, a favor da opção – Paraquedistas – um conjunto de fatores muito mais favoráveis em relação à nossa ida para os comandos em Lamego.
Além do ordenado e outros fatores, o principal argumento foi: como os paraquedistas pertenciam à Força Aérea, isso permitia que tivessemos sempre o apoio imediato dos Helicópteros no transporte para as operações no mato e melhor apoio nos momentos nos dos combates mais duros e nas
evacuações dos feridos e mortos.
E, no final, remata.
– Além disso, ainda, vamos ter o prazer de saltar da porta de um avião em andamento, o que será fantástico”!..
Vim a verificar, mais tarde, que ele tinha razão.
E foi, para não ir para os comandos, que em julho de 1969, um grupo de cinco cadetes, vindos da EPI, deram entrada no RCP – Regimento de Caçadores Paraquedistas, em Tancos, para iniciarem, durante seis meses, um novo ciclo de instrução militar, sempre com um único objetivo: treinar para a guerra... “Instrução dura, combate fácil” – era o lema!
Terminado este ciclo de especialidade, fomos todos mobilizados para a guerra e no dia 8 de fevereiro de 1970 embarcámos para Angola, para o BCP 21 (Batalhão de Caçadores Paraquedistas), os três primeiros alferes milicianos.
A partir dessa data e até 30 de julho de 1972 estive sempre no “gastalho” - em guerra comigo, contra o inimigo e nunca mais a esqueci.
Foi uma experiência brutal, atroz e, em parte, irresolúvel, para quem regia a sua vida por princípios humanistas e cristãos: apontar para matar, para eu próprio e os meus camaradas que comandava não morrêssemos, foi uma experiência brutal e marcou-me vivamente.
Por isso, nunca esqueci:
(i) Eu não esqueci..., a 29 de maio de 1970, o meu batismo de fogo.
Foi na primeira operação de combate em que tive a responsabilidade de comandar o meu pelotão. No decorrer da operação vi o cabo Onofre correr na direção de um guerrilheiro armado e capturá-lo à mão. Este indicou-nos um trilho que nos levou ao local onde, mais tarde, encontrámos diverso material de guerra, material médico e escolar e outras provisões. Mas antes, ao aproximarmo-nos do objetivo, somos travados e atacados com um forte poder de fogo de metralhadoras, armas ligeiras e morteiro 60.
Um mundo surreal!
(ii) Eu não esqueci... o primeiro estropiado do meu Pelotão, o soldado Santos, que pisou uma mina antipessoal, minutos depois dos helicópteros nos terem lançado no alto de um morro na zona de Santa Eulália.
Foi uma visão aterradora dos efeitos da guerra. Foi a primeira vez que vi a perna de um homem esfacelada.
A perna tinha desaparecido abaixo do joelho, o enfermeiro injetou-o com morfina, um camarada levou-o às costas morro acima e, eu, enquanto contactava o helicóptero, via rádio, para o evacuar, olhava, incrédulo, para o que restava da tíbia e do perónio, cujo sangue jorrava e deixava um rasto vermelho no capim verde.
Vinte minutos depois, empurramos o Santos para dentro do Héli e, lembro-me, de lhe gritar:
– Aguenta, já te safaste!
O Santos continuava a gritar:
– Ai! Minha mãe que eu vou morrer!
O Santos safou-se.
Nesse momento, lembrei-me do meu camarada Peralta que nos motivou a vir para os paraquedistas. Estava bem informado e tinha razão.
A mesma sorte não teve o meu primo Arsénio, soldado pertencente a uma companhia do exército, que, na mesma zona, pisou, também, uma mina. Eram cerca das dez horas da manhã quando se deu o acidente e só, as quatro da tarde, teve o helicóptero para o evacuar para o hospital, onde veio a morrer!
(iii) Eu não esqueci... o único morto do meu pelotão, o soldado Ramos, no dia 25 de junho de 1970, nos Montes 1020.
O meu grupo foi transportados num helicóptero SA 330 e, simultaneamente, com a nossa aproximação ao objetivo, dois aviões de combate - T6 da FA (Força Aérea), lançavam quatro bombas de napalm sobre a base guerrilheira.
De seguida, saltámos do helicóptero e corremos para a base guerrilheira, onde fomos recebidos com um grande tiroteio e, pouco depois, o Ramos apanha com um tiro certeiro nas carótidas que lhe ceifou a vida.
(iv) Eu não esqueci.... os dois feridos do pelotão: o 2.º sargento Galvão, a 10 de agosto 1970 na região da serra Vamba; e o soldado Lamas, a 6 de novembro de 1970, na região do rio Cassai, no Leste.
(v) Eu não esqueci... o cabo Lourenço, do 4.º Pelotão e meu amigo.
Morreu em combate na última operação e já com a sua comissão de serviço no final.
(vi) Eu não esqueci... a operação em que decidi não atacar. Na guerra não vale tudo.
Lembro-me, bem, dessa operação no Leste, a norte do rio Cassai.
Progredimos durante dois dias e, na madrugada do segundo, descobrimos um trilho. Enquanto estava a avaliar a situação, vejo um grande grupo de mulheres e crianças que vinham do rio com as cabaças cheias de água à cabeça, filhos às costas, dirigindo-se na direção do seu acampamento.
O soldado que estava na minha frente dispara uma rajada, sem consequências. Mando parar o fogo. As mulheres atiram os utensílios ao chão, agarram nos filhos espavoridas de medo, correm na direção da base e gritam numa grande algazarra para alertar os guerrilheiros: "tropa, tropa!"...
Os guerrilheiros disparam algumas rajadas, mas como entre nós e os guerrilheiros estavam as mulheres e crianças, decidi não assaltara base, evitando uma mortandade evidente que ocorreria se ordenasse o ataque.
De seguida, montei uma emboscada no local que, pelas características do terreno e pela minha experiência, previa que seria o ponto de fuga dos guerrilheiros. Passados pouco tempo, vejo vir, na nossa direção, um guerrilheiro armado que protegia um grupo com cerca de dez crianças que, em fila, fugiam do local.
Pelas crianças, dei ordens para ninguém abrir fogo e deixar o grupo prosseguir em paz.
(vii) Eu não esqueci... a última estadia no Leste com a minha companhia, decorria o mês de abril de 1972, quando o meu pelotão foi destacado para assaltar uma base do MPLA.
A PIDE entregou- nos um guia, pertencente aos Flexas, que se entregou às nossas tropas denunciando o local onde, antes, com os seus camaradas, tinha combatido contra a tropa portuguesa. Levou-nos direitinho à base dos ex-camaradas e, do combate, resultou a morte de cinco guerrilheiros e mais alguns feridos e a captura de várias armas.
(viii) E eu não esqueci, ainda.... no mês de abril, os breves momentos em que assisto ao interrogatório de um guerrilheiro capturado por um agente da PIDE/DGS.
Foi em Léua, no Leste de Angola. A meio da tarde aterraram, no nosso destacamento, quatro helicópteros, donde saiu um agente da PIDE e o guerrilheiro. A chegada dos Hélis tinha como objetivo transportar um grupo de combate para assaltar uma base guerrilheira que, segundo o pide, o guerrilheiro iria confessar e dizer onde se situava.
Foi destacado o meu pelotão para a assalto e, a determinada altura, o comandante da esquadra e Helicópteros chama a atenção para o adiantado da hora e que, dificilmente haveria luz do dia para efetuar o percurso de ida e volta.
Esperámos, mas do pide não havia novidades. O meu comandante ordena-me, então, que vá perguntar ao agente para saber se ainda demorava muito o interrogatório. Chego ao local e transmito a mensagem ao pide que, face ao silêncio absoluto do guerrilheiro, ainda não tinha conseguido “sacar-lhe” nenhuma informação e, incomodado pelo seu fracasso, julguei, diz-me:
– Espere aí, sr. alferes, ele vai já bufar tudo.
De seguida pergunta-lhe:
– Como te chamas?
Um silêncio absoluto por parte do guerrilheiro e, ato contínuo, o agente rapa de um pau – tipo taco de basebol – e acerta-lhe com força no nariz e pergunta:
– Como te chamas?
Depois, face ao silêncio daquele homem, repete o mesmo golpe nos joelhos, nas canelas e nos tornozelos e, eu, perplexo saio dali, imediatamente. Felizmente para o guerrilheiro – homem de grande coragem - que não traiu os seus camaradas - e para o meu grupo de combate, a operação foi abortada. Para nós, foi menos uma no pelo!
Nunca esqueci, apesar da Guerra, que não valia tudo!
Durante os dois anos e meio da minha comissão de serviço obrigatório, nunca o meu grupo de combate cometeu alguma atrocidade perante a população civil capturada, violou mulheres ou matou qualquer guerrilheiro gratuitamente, fora, evidentemente, nas situações de confronto direto entre nós: em que sobrevive quem dispara primeiro!
Mas eu vi!.. Eu presenciei! Nem sempre alguns dos meus camaradas procederam, assim!
Em julho sai da tropa, passei á “peluda”. Depois da tropa, licenciei-me em Educação Física no INEF e fui em 1978, ainda, o primeiro licenciado da minha aldeia!
Neste ano que se comemora o 25 de abril e, simultaneamente, faço 52 anos que terminei a minha comissão em Angola - a guerra continua! Não consegui escapar! Foi o que me calhou na rifa da vida.
Se em setembro de 1968 tivesse os 10 contos para pagar ao passador e desertar para França, a minha vida teria sido diferente?
Talvez, não sei!
Obrigado
Lourinhã, Seixal, 5 de maio de 2024
(Revisão / fixação de texto: LG)
___________
Notas do editor:
(*) Vd. poste de 6 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25485: Os 50 anos do 25 de Abril (17) : Conversas sobre "Portugal-África. Guerra Colonial. Madrinhas de Guerra", com Marta Martins Silva e 3 antigos combatentes, Hélder Sousa, Luís Graça e Jaime Silva. 3ª feira, dia 7 de maio, no ISCSP-ULisboa, Campus Universitário do Alto da Ajuda