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quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25862: O segredo de... (44): Aos 70 anos, comecei a ficar farto da guerra (Torcato Mendonça, 1944-2021)... Um "segredo póstumo" que chega ao blogue por mão da Ana Mendonça e do Virgínio Briote


Foto nº 2



Foto nº 3




Foto nº 8



Foto nº 5



Foto nº 1



Foto nº 4



Foto nº 10



Foto nº 9
 

Foto nº 11


Foto nº 7


Foto nº 6


Guiné > Zona Leste > Regiáo de Bafatá > Setor L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > Fotos do álbum do Torcato Mendonça, coleção "Fotos Falantes II".



Fotos (e legendas):  © Torcato Mendonça (2007) Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





1. Mensagem. com data de 19 do corrente,  do Virgínio Briote: (i) nosso coeditor jubilado; (ii) ex-alf mil cav, CCAV 489 (Cuntima) e ex-9alf mil comando, cmdt do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67); (iii) frequentou a Academia Militar (1962/64); (iv) autor do blogue, desativado (a partir de 2009), Guiné, Ir e Voltar - Tantas Vidas (recuperado pelo Arquivo.pt em 25/9/2009).



No sábado ao jantar, a Maria Irene lembrou-me que era já na 2ª feira, 19, que iríamos festejar os 57 anos de união e que no dia seguinte, 20, iríamos ter em casa a festa de aniversário dos 24 anos da nossa neta Catarina e que viriam os parentes mais próximos. Estava-me a dizer que era urgente eu limpar o local onde eu tenho tudo o que é só meu, escritos, pastas, livros, tralhas.

Comecei ontem a limpeza e arrumação e foi durante esta operação que encontrei um escrito do Torcato Mendonça, nosso saudoso Camarada. Este breve escrito, que é talvez mais um desabafo, foi-me enviado pelo correio pela Ana Mendonça, sua Mulher, que ainda hoje, fala com muita saudade do seu Torcato. Não sei mas imagino que a Ana M. deve ter encontrado este rascunho nalguma limpeza que tenha estado a fazer.

Segue-se o texto, tal como está, sem qualquer correcção da minha parte. Vb





Foto nº 12
Olá Virgínio

Deves ter razão. Hoje, quando abri o telemóvel vi este post (*). De facto, quem vê caras nem sempre vê corações. 

Falei com o Luís Graça e, agora já noite, tentei escrever (escorrer?). Falhou o coração e nada escrevi. Arranquei agora umas palavras ao ler-te e ao título “Apocalipse”. Mesmo nesta amostragem de uma dúzia de fotos vemos muito.

É um rapaz que se deixa fotografar e fotografa aquela loucura ou, porque não, a loucura dele a aparecer. Melhor, se houvesse uma listagem cronológica. 

A 12 é do início da comissão, a 2 é o “Fula” que não sou, é o olhar já marcado e o fotografado sorri, feliz por ter uma criança ao colo, pois gosta delas (Foto nº 4). 

Há mais uma, com os vapores do álcool, ou o olhar louco (turvo?) na emboscada montada (Foto nº 7). 

A camaradagem com o sargento milícia (Foto nº 10),  um amigo que já se foi, certamente de morte natural ou fuzilado pelos libertadores da Pátria. Disseram os ventos que muitos dos que comigo andaram foram assim tratados.

Mansambo era mato e, aos poucos, foi sendo um aquartelamento. Quadrado com, mais ou menos, cem por cem metros, oito casernas, abrigos e mais uns edifícios sem qualificação de nome, mais tarde onde era a cozinha, a arrecadação disto ou daquilo, a enfermaria, ou os abrigos dos obuses 10.5 (Foto nº 9), atrás da tabanca com uma dúzia de
moradores. 

Ao redor estava o IN detestando o despudor daquela rapaziada (Foto nº 11). Tentaram demovê-los e nada conseguiram. Levaram forte aos fortes ataques. Até tivera ajuda de mercenários cubanos, os ataques eram mais certos, mais organizados, mas os rapazes resolviam.

Aquilo ficou fortemente gravado e não passou. Éramos, meu caro Virgínio, uns rapazes na força da nossa juventude (Fotos nºs 1, 3, 6, 8). Hoje já batemos os 70 e tentamos ir saltando um, dia de cada vez (Foto nº 5). 

Vou ao ginásio e sinto um olhar, aqui ou ali, a interrogar-se: o velhote ainda por aqui anda…e eu tento ir andando e espero que a saúde não seja tão madrasta. Comigo ou com os meus, sejam familiares, amigos ou não mas que sejam apenas seres vivos e pessoas de bem.

E, já num tom intimista, só para ele mesmo (**): começo a ficar farto da “guerra” aonde participei e que outros participaram. Parece-me qua andaram por lá e só hoje vão compreendendo o que era aquela Guerra.

(Transcrição: VB / Revisão e fixação de texto: VB / LG)

2. Comentário do Virgínio Briote ao poste P15299 (*)



Torcato:

Das inúmeras imagens que vi daqueles anos da guerra, em Angola, na Guiné, em Moçambique, as que mais me despertaram a atenção até hoje foram as que te pertencem.

E se me pedissem para dar um título a esse álbum, eu escolheria "Apocalipse". Porquê? Porque, tal como no filme 'Apocalipse Now".  de Coppola, vejo um mundo do "outro mundo". Loucura, inocência, violência, rostos falsamente alegres de jovens sorridentes, um mundo surreal.

São fotos, Torcato, que retratam uma "Mansambo" que muitos, mas mesmo muitos de nós, nunca conheceram.

Obrigado por as mostrares, caro Camarada!

Um abraço do V Briote


28 de outubro de 2015 às 21:48 




Torcato Mendonça, Fundão, 27 de janeiro de 2007.

Foto: LG (2007)

3.  Excerto de comentário anterior do Torcato Mendonça (Poste P14309):


(...) "Sim, mudei muito"! Digo-te porquê. Antes de ser militar, fui estudante e nalguns intervalos fiz 'diversos'. Caçado, sem esperar, pela tropa, aí talvez na especialidade comecei a sofrer uma metamorfose. Aos poucos, e já mais na Guiné, o rapaz alegre e 'bon vivant' foi-se ou, porque não, apagou-se mesmo. (...)

Quando vim, nada ou muito pouco restava do outro. Deram-me várias opções de escolha de vida.

Fui sentindo os anos passarem por mim, os meus filhos crescendo. A guerra estava guardada e, de quando em vez, saltitava para o presente e depois de amansada ia-se. Tratava-a com cuidado e sentia que nunca mais voltara de todo, em grande parte talvez. Nem isso. Fisicamente fui envelhecendo, como é natural. Apressado por “aquilo” e pelas cicatrizes físicas.

Optei, já o tinha feito em parte, e deixei a adaptação correr. O meu mentor, o meu companheiro- amigo, esse meu melhor amigo, esse homem que me deu o ser e muito saber, um dia morreu-me. Chorei nesse dia e compreendi que ainda sabia chorar. Mas tinha mudado muito.

Mais forte, a parte psicológica foi de certeza a de estabilização mais difícil. Nunca estabilizará. Por isso hoje, velho aos 70 anos, com a saúde (ou falta dela) a mostrar os rombos na carcaça nada tem a ver com a hipotética entrada normal na velhice. (...)



4.  Comentário do editor LG (a propósito do Poste P15299 (*) e deste "segredo póstumo" do nosso muito querido e saudoso Torcato Mendonça (****):

Em 2014 demos início a uma série chamada "selfies / autorretratos". Não teve muito sucesso. Publicámos até agora quatro. O Vasco Pires deu o pontapé de saída... 

No nosso tempo, na Guiné, não havia tempo nem pachorra para a gente de se ver ao espelho, quanto mais tirar uma "selfie"!... Um ou outro de nós tinha máquina fotográfica ou fotógrafo de serviço (que ganhava algum patacão tirando "chapas" ao pessoal), pelo que até há algumas belíssimas fotos e alguns bons álbuns fotográficos...

É material, de grande interesse documental, não só para alimentar e desenvolver as nossas memórias como para enriquecer o acervo dos que hão de fazer, com rigor, honestidade, isenção e objetividade, a história daquele período de Portugal (bem como da Guiné-Bissau)...

Enfim, a par das nossas memórias escritas, é um material que andamos, há anos, desde pelo menos 2004, a tentar salvar das garras do esquecimento, do abandono, da destruição, dos alfarrabistas, da incineradora e do caixote do lixo...

Um desses álbuns, que veio enriquecer a fototeca da Tabanca Grande foi o do Torcato Mendonça (1944-2021), ex-alf mil art, CART 2339 (Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69), senador da nossa tertúlia, e um dos mais ativos e produtivos colaboradores do nosso blogue (com cerca de 265 referências). Foi também, de há muito, e enquanto vivo, um dos nossos conselheiros e colaboradores permanentes.

Foi autor de várias séries:
  • Pensar em voz alta;
  • Ao correr da bolha;
  • Estórias de Mansambo, I e II
  • Nós da memória

A partir de 2015, porém, e até por razões de saúde (da Ana e dele próprio), o Torcato Mendonça  tornou-se muito mais discreto, remetendo-se ao silêncio, ou intervindo uma vez por outra com um breve comentário, embora continuando nosso fiel leitor.  

Há muitos camaradas, mais novos, "periquitos" no blogue, que não puderam na devida altura acompanhar a sua vasta produção (postes, fotos, comentários), sempre de grande qualidade e autenticidade. São hoje uma referência incontornável...

(...) Sabemos que não é "confortável" para os ex-combatentes falar, para os seus "pares", num blogue como o nosso, com a audiência que o nosso tem, sobre as "questões do foro íntimo", "ver-se ao espelho", e devolver, sob a forma de escrita, os seus "selfies", os seus "autorretratos... Ou partilhar fotos mais íntimas, retratos em grande plano, que mandávamos às esposas, às namoradas, aos pais, à família, às madrinhas de guerra... De um modo geral, preferimos as fotos de grupo... Estamos a falar dos nossos "verdes anos", à distância de meio século..

De qualquer modo, e de acordo com o subtítulo deste poste (*), quem vê caras, (nem sempre) vê corações... Daí a razão de ser desta seleção de retratos do nosso querido amigo e camarada que vivia no Fundão (embora tivesse nascido no sul, sendo de origem algarvia e alentejana). São fotos da sua coleção "Fotos Falantes II"... A numeração, arbitrária, foi nossa. Bem como a sua edição... E intencionalmente não lhe acrescentámos legendas... 

Em sua homenagem (****), voltamos a publicar estas fotos, agora mais do que reeditadas..., acompanhando a partilha do seu "segredo póstumo", que a Ana Mendonça mandou, em forma  manuscrita,  ao Virgínio Briote, e que este achou por bem não mandar para a "cesta secção"... 

(Que saudades tenho de ti, Torcato!... Que saudades temos todos de ti, camarada!)


(***) Último poste da série > 22 de maio de 2024 > uiné 61/74 - P25549: O segredo de... (43): Jaime Silva, ex-alf mil paraquedista, BCP 21 (Angola, 1970/72): na guerrra não valia tudo...


quarta-feira, 22 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25549: O segredo de... (43): Jaime Silva, ex-alf mil paraquedista, BCP 21 (Angola, 1970/72): na guerrra não valia tudo...



Angola > Leste > O alf mil paraquedista Jaime Silva, do BCP 21 (1970/72), em 1970,  a norte do Rio Cassai.


 Angola >  Norte - Montes Mil e Vinte > 26 de junho de 1970 > Heli SA-330 Puma na  recuperação do 3º Pel da 1ª CCP /BCP 21 (1970/72)... Nesta operação morreu um soldado do meu pelotão, 
o soldado Ramos, no dia 25 de junho de 1970, nos Montes 1020. 


Angola > BCP 21 (1970/72) > Leste > Chiume > Dezembro de 1971 > No Leste de Angola, Chiume (Cú de Judas), heli AL III  no apoio ao 3º pelotão,  1ª CCP /  BCP 21.

Fotos (e legendas) © Jaime Bonifácio Marques da Silva (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Jaime Silva (ou, de seu nome completo, Jaime Bonifácio Marques da Silva) tem cerca  de 8 dezenas de referências no nosso blogue. No passado dia 7 aceitou participar numa conversa sobre a sua  experiência como antigo combatente (*).  O evento realizou-se no ISCSP - Instituto de Ciências Sociais e Políticas, e teve a presença (inicial) do reitor da Universidade de Lisboa. 

Contrariamente aos restantes convidados (Luís Graça, Hélder Sousa e Marta Martins Silva, jornaalista), o Jaime Silva fez questão de ler uma comunicação previamente escrita.  Mandou-nos agora esse texto, fazendo questão de o partilhar com a Tabanca Grande, a que ele pertence desde 31 de janeiro de 2014 (**). 

Acrescente-se o seguinte à laia de nota biográfica: foi alf mil paraquedista, BCP 21 (Angola, 1970/72), tem uma cruz de guerra por feitos em combate, viveu em Angola até 1974, é professor de educção física reformado, foi autarca em Fafe, em dois mandatos, nos aos 90.  com o pelouro de desporto e cultura, vive atualmente na Lourinhã, donde é natural. 



O segredo de ... (43):  Jaime Silva, ex-alf mil pqdt, BCPC 21 (Angola, 1970/72): na guerra não valia tudo (***)


ISCSP/ULisboa,  7 maio 2014


1. Começo por agradecer, à prof associada Sónia Frias, do ISCP/UL, o honroso convite para estar presente neste evento, que é também comemorativo dos 50 anos do 25 de Abril.

E quero, em especial, sublinhar e saudar o facto de a a guerra colonial ser finalmente, discutido na academia e ser tema associado e visível nos festejos do 25 de abril.

2. Introdução

Ao longo da minha vida, por inúmeras vezes, fui convidado para dar testemunho sobre a minha participação e vivência na guerra colonial. No entanto, é a primeira vez, com este objetivo, que me dirijo a uma comunidade académica e, por esse motivo, decidi escrever um texto com o objetivo de enquadrar o meu percurso de vida - a minha circunstância, até chegar às portas da guerra em Angola, onde, durante dois anos e meio, comandei, como alferes miliciano, um pelotão de soldados e sargentos, integrado nas tropas paraquedistas e sempre no “gastalho”. 

O texto tem um caracter autobiográfico em que relato alguns dos momentos mais marcantes que vivi na guerra.

3. A minha circunstância:

- Este ano de 2024 Portugal comemora os 50 anos da Revolução de 25 de Abril de 1974 e o final da guerra colonial que rebentou há 63 anos no Norte de Angola, a 16 de março 1961.

o Jornal Público, na edição de 28 de abril, editou um artigo da jornalista Teresa de Sousa, que destaca a intervenção do deputado do Livre, Rui Tavares, na Assembleia da República em dia 25 de abril.

“Rui Tavares recordou-nos a todos de uma forma pessoal e simples o que era o Portugal bafiento, repressivo, mesquinho, paupérrimo da ditadura.

(…) A pobreza era descarada e generalizada. O obscurantismo
era imposto pela censura e pela ideologia. A violência escondida. A liberdade individual era nula. O medo era a arma mais poderosa.”


- Voltando à minha circunstância, eu nasci em 1946 e cresci neste Portugal de “pobreza descarada e generalizada” , numa aldeia de trabalhadores rurais, pertencente ao concelho do Lourinhã.

Nesse tempo, uma grande percentagem das crianças não terminavam a 4.ª classe (vindo, os rapazes, a concluí-la, mais tarde, na tropa) e, muito menos, prosseguiam os estudos

- Calhou-me, na minha sorte, ter uma catequista, esposa do agrário para quem o meu pai trabalhava de sol a sol,  que, depois de me apresentar ao pároco da freguesia, convenceu os meus pais a deixarem-me ir para o seminário. Foi nos finais da década de 50.

Tinha doze anos quando transpus o portão de acesso a uma “casa” desconhecida. Nos primeiros tempos senti-me completamente fechado, desenraizado e perdido, ambiente bem retratado por Vergílio Ferreira na obra "Manhã Submersa" e, depois, no filme de Laura António.

4. A entrada no serviço militar

Em 1968, decidi sair do seminário e, quando em junho daquele ano, com 22 anos, transponho a porta de saída, só tinha uma certeza (ainda não era senhor de decidir sobre o rumo a dar à minha vida):  tinha de cumprir o serviço militar obrigatório, imediatamente.

Por via da formação do seminário acedo a frequentar o COM – Curso de Oficiais Milicianos.

Logo em setembro (de 1968)  recebo a convocatória para me apresentar em Santarém, para a inspeção militar, cujo resultado foi ficar “Apurado para todo o serviço militar” e com guia de marcha para me apresentar no quartel em Mafra, na EPI (Escola Prática de Infantaria), para frequentar o 1.º Ciclo do COM.

Entretanto, no final de outubro de 1968 sou desafiado, por um amigo, para desertar para França, "a salto". Como era preciso pagar 10 contos ao “passador” (ceca de 3800 euros, a preços de hoje) e,  como eu não os tinha, fiquei entregue à minha sorte! Ir para a guerra.

5. Selecionado para os comandos,  decido pelos Paraquedistas.

 Gorada a hipótese de desertar, a 8 de janeiro de 1969 dou entrada na EPI, onde completo o 1.º Ciclo – a recruta e, depois, o 2.º Ciclo – na especialidade de atirador de infantaria.

Em junho de 1969, termino o 2.º ciclo do COM e, antes de recebermos a guia de marcha para nos apresentarmos nas novas unidades militares, fui selecionado, com mais de uma dezena de cadetes, para me apresentar no Centro de Instrução de Comandos, em Lamego, tropa que se supunha ser só constituída para voluntários.

Fiquei siderado! Nunca me tinha oferecido para nada na tropa, nem tentado destacar-me, em coisa nenhuma durante a instrução.

No final, o grupo selecionado junta-se e há um que toma a palavra para nos desafiar:

–  Nós já não conseguimos escapar à mobilização para a guerra, por isso, é melhor oferecermo-nos para os Paraquedistas.

 E enumerou, a favor da opção – Paraquedistas  – um conjunto de fatores muito mais favoráveis em relação à nossa ida para os comandos em Lamego. 

Além do ordenado e outros fatores, o principal argumento foi: como os paraquedistas pertenciam à Força Aérea, isso permitia que tivessemos sempre o apoio imediato dos Helicópteros no transporte para as operações no mato e melhor apoio nos momentos nos dos combates mais duros e nas
evacuações dos feridos e mortos. 

E, no final, remata. 

 Além disso, ainda, vamos ter o prazer de saltar da porta de um avião em andamento, o que será fantástico”!.. 

Vim a verificar, mais tarde, que ele tinha razão.

E foi, para não ir para os comandos, que em julho de 1969, um grupo de cinco cadetes, vindos da EPI, deram entrada no RCP – Regimento de Caçadores Paraquedistas, em Tancos, para iniciarem, durante seis meses, um novo ciclo de instrução militar, sempre com um único objetivo: treinar para a guerra... “Instrução dura, combate fácil” – era o lema!

Terminado este ciclo de especialidade, fomos todos mobilizados para a guerra e no dia 8 de fevereiro de 1970 embarcámos para Angola, para o BCP 21 (Batalhão de Caçadores Paraquedistas),  os três primeiros alferes milicianos.

A partir dessa data e até 30 de julho de 1972 estive sempre no “gastalho” - em guerra comigo, contra o inimigo e nunca mais a esqueci. 

Foi uma experiência brutal, atroz e, em parte,  irresolúvel, para quem regia a sua vida por princípios humanistas e cristãos: apontar para matar, para eu próprio e os meus camaradas que comandava não morrêssemos, foi uma experiência brutal e marcou-me vivamente.

Por isso, nunca esqueci:

(i) Eu não esqueci..., a 29 de maio de 1970, o meu batismo de fogo.

Foi na primeira operação de combate em que tive a responsabilidade de comandar o meu pelotão. No decorrer da operação vi o cabo Onofre correr na direção de um guerrilheiro armado e capturá-lo à mão. Este indicou-nos um trilho que nos levou ao local onde, mais tarde, encontrámos diverso material de guerra, material médico e escolar e outras provisões. Mas antes, ao aproximarmo-nos do objetivo, somos travados e atacados com um forte poder de fogo de metralhadoras, armas ligeiras e morteiro 60.

Um mundo surreal!

(ii) Eu não esqueci...  o primeiro estropiado do meu Pelotão, o  soldado Santos, que pisou uma mina antipessoal, minutos depois dos helicópteros nos terem lançado no alto de um morro na zona de Santa Eulália. 

Foi uma visão aterradora dos efeitos da guerra. Foi a primeira vez que vi a perna de um homem esfacelada.

A perna tinha desaparecido abaixo do joelho, o enfermeiro injetou-o com morfina, um camarada levou-o às costas morro acima e, eu, enquanto contactava o helicóptero, via rádio, para o evacuar, olhava, incrédulo, para o que restava da tíbia e do perónio, cujo sangue jorrava e deixava um rasto vermelho no capim verde. 

Vinte minutos depois, empurramos o Santos para dentro do Héli e, lembro-me, de lhe gritar: 

 Aguenta, já te safaste! 

O Santos continuava a gritar: 

 Ai! Minha mãe que eu vou morrer! 

O Santos safou-se.

Nesse momento, lembrei-me do meu camarada Peralta que nos motivou a vir para os paraquedistas. Estava bem informado e tinha razão.

A mesma sorte não teve o meu primo Arsénio, soldado pertencente a uma companhia do exército,  que, na mesma zona, pisou, também, uma mina. Eram cerca das dez horas da manhã quando se deu o acidente e só, as quatro da tarde, teve o helicóptero para o evacuar para o hospital, onde veio a morrer!

(iii) Eu não esqueci... o único morto do meu pelotão,  o soldado Ramos, no dia 25 de junho de 1970, nos Montes 1020. 

O meu grupo foi transportados num helicóptero SA 330 e, simultaneamente, com a nossa aproximação ao objetivo, dois aviões de combate - T6 da FA (Força Aérea), lançavam quatro bombas de napalm sobre a base guerrilheira. 

De seguida, saltámos do helicóptero e corremos para a base guerrilheira, onde fomos recebidos com um grande tiroteio e, pouco depois, o Ramos apanha com um tiro certeiro nas carótidas que lhe ceifou a vida.

(iv) Eu não esqueci.... os dois feridos do pelotão: o 2.º sargento Galvão, a 10 de agosto 1970 na região da serra Vamba;  e o soldado Lamas,  a 6 de novembro de 1970, na região do rio Cassai, no Leste.

(v) Eu não esqueci... o cabo Lourenço, do 4.º Pelotão e meu amigo.

Morreu em combate na última operação e já com a sua comissão de serviço no final.

(vi)  Eu não esqueci...
a operação em que decidi não atacar. Na guerra não vale tudo.

Lembro-me, bem, dessa operação no Leste, a norte do rio Cassai.

Progredimos durante dois dias e, na madrugada do segundo, descobrimos um trilho. Enquanto estava a avaliar a situação, vejo um grande grupo de mulheres e crianças que vinham do rio com as cabaças cheias de água à cabeça, filhos às costas, dirigindo-se na direção do seu acampamento.

O soldado que estava na minha frente dispara uma rajada, sem consequências. Mando parar o fogo. As mulheres atiram os utensílios ao chão, agarram nos filhos espavoridas de medo, correm na direção da base e gritam numa grande algazarra para alertar os guerrilheiros: "tropa, tropa!"...

Os guerrilheiros disparam algumas rajadas, mas como entre nós e os guerrilheiros estavam as mulheres e crianças, decidi não assaltara base, evitando uma mortandade evidente que ocorreria se ordenasse o ataque.

De seguida, montei uma emboscada no local que, pelas características do terreno e pela minha experiência, previa que seria o ponto de fuga dos guerrilheiros. Passados pouco tempo, vejo vir, na nossa direção, um guerrilheiro armado que protegia um grupo com cerca de dez crianças que, em fila, fugiam do local.

Pelas crianças, dei ordens para ninguém abrir fogo e deixar o grupo prosseguir em paz.

(vii) Eu não esqueci...
a última estadia no Leste com a minha companhia, decorria o mês de abril de 1972, quando o meu pelotão foi destacado para assaltar uma base do MPLA. 

A PIDE entregou- nos um guia, pertencente aos Flexas, que se entregou às nossas tropas denunciando o local onde, antes, com os seus camaradas, tinha combatido contra a tropa portuguesa. Levou-nos direitinho à base dos ex-camaradas e, do combate, resultou a morte de cinco guerrilheiros e mais alguns feridos e a captura de várias armas.

(viii) E eu não esqueci, ainda.... no mês de abril, os breves momentos em que assisto ao interrogatório de um guerrilheiro capturado por um agente da PIDE/DGS. 

Foi em Léua, no Leste de Angola. A meio da tarde aterraram, no nosso destacamento, quatro helicópteros, donde saiu um agente da PIDE e o guerrilheiro. A chegada dos Hélis tinha como objetivo transportar um grupo de combate para assaltar uma base guerrilheira que, segundo o pide, o guerrilheiro iria confessar e dizer onde se situava.

 Foi destacado o meu pelotão para a assalto e, a determinada altura, o comandante da esquadra e Helicópteros chama a atenção para o adiantado da hora e que, dificilmente haveria luz do dia para efetuar o percurso de ida e volta.

Esperámos, mas do pide não havia novidades. O meu comandante ordena-me, então, que vá perguntar ao agente para saber se ainda demorava muito o interrogatório. Chego ao local e transmito a mensagem ao pide que, face ao silêncio absoluto do guerrilheiro, ainda não tinha conseguido “sacar-lhe” nenhuma informação e, incomodado pelo seu fracasso, julguei, diz-me: 

 Espere aí, sr. alferes, ele vai já bufar tudo. 

De seguida pergunta-lhe:

– Como te chamas? 

Um silêncio absoluto por parte do guerrilheiro e, ato contínuo, o agente rapa de um pau – tipo taco de basebol – e acerta-lhe com força no nariz e pergunta: 

 Como te chamas?

Depois, face ao silêncio daquele homem, repete o mesmo golpe nos joelhos, nas canelas e nos tornozelos e, eu, perplexo saio dali, imediatamente. Felizmente para o guerrilheiro – homem de grande coragem - que não traiu os seus camaradas - e para o meu grupo de combate, a operação foi abortada. Para nós, foi menos uma no pelo!

Nunca esqueci, apesar da Guerra, que não valia tudo! 

Durante os dois anos e meio da minha comissão de serviço obrigatório, nunca o meu grupo de combate cometeu alguma atrocidade perante a população civil capturada, violou mulheres ou matou qualquer guerrilheiro gratuitamente, fora, evidentemente, nas situações de confronto direto entre nós: em que sobrevive quem dispara primeiro!

Mas eu vi!.. Eu presenciei! Nem sempre alguns dos meus camaradas procederam, assim!

Em julho sai da tropa, passei á “peluda”. Depois da tropa, licenciei-me em Educação Física no INEF e fui em 1978, ainda, o primeiro licenciado da minha aldeia!

Neste ano que se comemora o 25 de abril e, simultaneamente,  faço 52 anos que terminei a minha comissão em Angola - a guerra continua! Não consegui escapar! Foi o que me calhou na rifa da vida.

Se em setembro de 1968 tivesse os 10 contos para pagar ao passador e desertar para França, a minha vida teria sido diferente?

Talvez, não sei!

Obrigado

Lourinhã, Seixal,  5 de maio de 2024

(Revisão / fixação de texto: LG)

___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 6 de maio de  2024 > Guiné 61/74 - P25485: Os 50 anos do 25 de Abril (17) : Conversas sobre "Portugal-África. Guerra Colonial. Madrinhas de Guerra", com Marta Martins Silva e 3 antigos combatentes, Hélder Sousa, Luís Graça e Jaime Silva. 3ª feira, dia 7 de maio, no ISCSP-ULisboa, Campus Universitário do Alto da Ajuda

quarta-feira, 24 de abril de 2024

Guiné 64/74 - P25437: 20º aniversário do nosso blogue (10): Inconfidências de um antigo combatente que é mais "blogueiro" do que "feicebuqueiro": Se eu não tivesse criado este blogue, hoje seria 'mais feliz, livre, saudável e provavelmente rico' ? (Luís Graça)


1. Humor com humor se (a)paga... e é ainda o que nos vale, rir e saber rir. Mas nesta onda de comemorações dos 20 anos do nosso blogue (*), deixem-me, caros leitores, partilhar aqui um pequeno segredo... 

Já me têm dito ou insinuado que se eu não tivesse "a m... do blogue", hoje seria "mais feliz, livre, saudável e provavelmente rico"... Acusam-me, às vezes, de ter prejudicado a minha vida pessoal, familiar e profissional por causa das... "blogarias", da "m... da guerra" e dos camaraadas da Guiné", etc. 

Ainda é cedo (espero eu...) para arrumar as botas, lavrar o testemento vital e, mais importante ainda, fazer as "partilhas" ... Por que eu sei que "fica cá tudo", um gajo leva, ou não pode levar,  nada de "material"para  o outro mundo "imaterial"... Não sei o que é que conta lá: quando eu era pequeno, diziam-me que eram as "boas acções" (ainda se escrevia com dois c).

Vem isto a propósito de um aniversário em que, se calhar, há pouco a celebrar (aos olhos dos críticos do blogue)...Não me compete a mim fazer esse juízo. Limitei-me apenas a usar a "força da inércia"... O comboio começou a andar, muito lentamente é certo, em 23/4/2004... 

Uns meses antes, ainda se estava na fase dos "ensaios": era versão beta do nosso blogue, que antes de se chamar "Luís Graça & Camaradas da Guiné", era o "blogue-fora-nada" e depois o "blogue-fora-nada-e-vão-três"... 

Em 1999, quatro anos antes, já tinha criado, muito antes que os meus colegas, a minha página pessoal e profissional... Ao fim de vinte e poucos anos, a instituição onde trabalhei "descontinuou" a página... (Recuperei-a,  há tempos, mas é um "aqruivo morto", não a posso atualizar)

Só por mera curiosidade dos "blogueiros" (que nos leem) (ou que ainda são mais "blogueiros" do que "feicebuqueiros", o que começa a ser raro), posso adiantar que o primeiro poste (ou postagem) que publiquei no "blogue-fora-nada" foi este, que a seguir reproduzo, com data de 8/10/2023...

Ao reler  "conto com mural ao fundo", quase 25 anos depois, não deixo de esboçar um sorriso amarelo, quiçá amargo... E penso na minha vida: e eu não tivesse tido e-email, nem página na web, nem blogues, nem computador(es) ?... Será que hoje seria "mais feliz, livre, saudável e provavelmente rico" ?
 
A pergunta é idiota, porque não tem resposta... Não há "ses" na vida de um  homem. Só há uma vida, única, irrepetível... Sei que não vou ter outra "chance", se a desperdicei, tenho que assumir as consequências até ao fim e beber a taça amaraga da "cicuta"... 

Mas o leitor pode ler ou reler a história e, até, eventualmente, achar-lhe piada...Eu, confesso, que mr deixou deprimido a releitura do meu primeiro "conto com mural ao fundo" (em parte adaptado)...


Blogue-fora-nada > Estórias com mural ao fundo - I: Ter ou não ter (e-mail)

por Luís Graça


Tenho por (mau) hábito perguntar às pessoas que vou conhecendo "se têm e-mail"... Mas depois de ler a história a seguir, não vou ter mais lata para o fazer: 

(i) é indelicado; 
(ii) pode ser embaraçoso; 
e (iii) até pode dar azar... 

Um dia houve alguém que me respondeu, com agressividade mal contida: "Não tenho... mas será que já é obrigatório ?"...

Nós, os ex-clérigos (durante séculos o pessoal universitário, incluindo os estudantes, estavam sujeitos ao direito canónico e só com o triunfo do liberalismo é que o reitor de Coimbra passou a ser um leigo!), temos dificuldade em imaginar um mundo sem livros, sem cátedras e, agora, sem Internet, sem blogues e sem e-mail...

Não sei se é obrigatório ter e-mail (ou se vai sê-lo em breve), mas a verdade é que todos os dias nos ameaçam com a infoexclusão, uma espécie de upgrade das labaredas do inferno. Há muito boa gente que hoje em dia teme ser acusada de infoanalfabeta e pensa que, "pelo sim, pelo não, sempre é bom ter e-mail, não vá o diabo tecê-las"... E quem diz e-mail, diz outras buzzwords horríveis tais como url, password, username, nib...

Já assim pensavam, noutro contexto, os cristão novos de Trancoso que assinalavam, com uma cruz, as suas casas, não fossem os cristãos velhos desconfiar que eles eram judaizantes, logo ignorantes e inimigos da fé cristã (a única, a verdadeira, a dominante)... A cruz era a password e o e-mail daqueles tempos em que os portugas sucumbiram à tentação totalitária...

Por isso, "ter ou não ter e-mail: eis a questão" é uma história com moral... E com mural ao fundo. 

Ponderei seriamente se havia de a pôr a circular entre @s car@s ciberamig@s... Há sempre o risco de uma leitura demasiado literal, apologética, direi mesmo...primariamente neoliberal !!! Mas, pensando bem, o que conta são os factos, a narrativa (digna do melhor do Reader's Digest, diga-se de passagem). 

A moral, cada um que a tire. E quanto ao mural, cada um que o pinte... Moralistas e grafiteiros do meu país, divirtam-se! 

A minha (moral) é apenas a da filosofia baseada na evidência. E quanto ao mural, sempre preferi o branco-da-cal-da-parede. Com aviso: 

(i) pintado de fresco; 
(ii) por favor não encostar à parede; 
(iii) é expressamente proibido fuzilar (contra o muro).

Por azar o meu, recebi esta mensagem por e-mail, através de um amigo angolano (J.D.) que, coitado, também ele tem e-mail... Dei à história o meu toque pessoal. Vocês usem-na (e socializem-na)... para os devidos efeitos. Não posso evitar eventuais tentativas de branqueamento da história. A história é para se usar e branquear, dizem os historiadores oficiais. Mas esse não é o meu ofício. No fim, não se esqueçam do nosso trato: Ciber-humor com ciber-humor se paga...

Ter ou não ter e-mail: eis a questão!

Um homem respondeu a um anúncio da MicroDura com uma generosa oferta de emprego para desempregados de longa duração. O lugar era para empregado de limpeza. 

Um adjunto do Gestor dos Recursos Humanos (GRH) entrevistou-o, fez-lhe um teste (tão simples como varrer o chão, apanhar o lixo e enfiá-lo num saco) e disse-lhe:

- Parabéns, o lugar é seu. Dê-me o seu e-mail para eu lhe poder enviar a ficha. Depois de preenchida e devolvida, aguarde que a MicroDura lhe comunique a data e a hora em que se deverá apresentar ao serviço nos nossos headquarters.

O homem, embaraçado e nervoso, respondeu que não tinha sequer casa, e muito menos computador, e muito menos ainda Internet, endereço de correio electrónico e essas coisas todas. 

Aí o valente adjunto do GRH da MicroDura ficou branco como a cal da parede... Por essa é que ele não estava à espera!... Um cidadão norte-americano sem e-mail, o que era uma aberração sociológica, bloguissimamente falando !... O que iria pensar o Mr. Bill Gaitas ?!... Por fim, recompôs-se e disse:

- Lamento muito, mas se eu o senhor não tem e-mail, isso quer dizer que virtualmente não existe; e, não existindo, não pode ter o privilégio de pertencer ao admirável mundo novo dos colaboradores da MicroDura.

O homem saiu, envergonhado e, pior ainda, mais desesperado e desempregado que nunca. Tinha apenas 10 dólares no bolso. Em vez de ir ao McSandocha’s matar a fome, resolveu entrar num Bigmercado e comprar uma caixa de 10 quilos de tomate para revenda. 

Em menos de duas horas vendeu a mercadoria, porta à porta, num dos bairros mais próximos (habitado por negros e porto-riquenhos), tendo assim conseguido duplicar o seu capital. Repetiu a operação mais três vezes e obteve um lucro de 60 dólares.

No fim do dia, concluiu que podia sobreviver dessa maneira, pelo menos por uns tempos. Passou a trabalhar mais horas por dia. Rapidamente aumentou o seu pecúlio, e em breve comprou a sua primeira carrinha, em segunda mão. Uns meses depois trocou-a por um camião.

O resto da história é fácil de adivinhar: ao fim de um ano e meio já era dono de uma pequena frota e ao fim de cinco estava milionário, ao tornar-se o principal accionista de uma das maiores cadeias de distribuição alimentar nos Estados Unidos... 

Como podes imaginar, caro leitor, esta história de sucesso só podia ter acontecido na Terra Prometida e já se tornou um casestudy nos mais famosos cursos de MBA.

Pensando no futuro da sua nova família, o nosso homem resolveu fazer um não menos milionário seguro de vida. Chamou um corretor ao seu escritório e acertou um plano. Quando a reunião estava praticamente concluída, o corretor de seguros pediu-lhe o e-mail para lhe poder enviar rapidamente a proposta de contrato. 

O homem-que-se-fez-a-si-próprio respondeu, com a maior naturalidade deste mundo, que simplesmente não tinha nem nunca tivera nem nunca provavelmente viria a ter um endereço de e-mail. O corretor não queria acreditar e comentou, em tom de brincadeira:

- Você não tem e-mail e construiu todo este império!... Imagine até onde poderia ter chegado, se tivesse e-mail!... Quem sabe se não poderia estat agira sentado na cadeira presidencial,na Casa Branca!

O homem ponderou as palavras do corretor e respondeu-lhe, com a mais fina das ironias:

- Olhe, se eu tivesse e-mail, ainda hoje andaria, feito cão, a lamber o chão do escritório do Bill Gaitas!!!

Moral da história:

1. Ter ou não ter e-mail, eis a questão.

2. Se queres ser empregado de limpeza da MicroDura ou doutra grande empresa, procura antes de mais ter um e-mail.

3. Se não tens e-mail e gostas de trabalhar, ainda podes vir a ser milionário (ou até bilionário).

4. Se por acaso recebeste esta mensagem por e-mail,  é por que estás mais perto de ser empregado de limpeza do que ser milionário (para não falar de bilionário)...

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sábado, 10 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25155: O(s) segredo(s) que o Amadu Djaló (Bissau, 1940 - Lisboa, 2015) não quis ou não pôde contar no seu livro (1): A revolta da CCAÇ 21, em 16 de agosto de 1974, em Bambadinca, e as suas exigências "milionárias": 300 contos por cabeça (50 mil euros, a preços de hoje), antes de entregar a arma e passar à "história" (isto é, à "peluda")

Guiné > s/l [Bambadinca?] > s/d [c. 1971/73] > A Força Africana... O major inf Carlos Fabião, na altura (1971/73),  comandante do Comando Geral de Milícias, e o gen António Spínola, passando revista a uma formatura de novos milícias.

In: Afonso, A., e Matos Gomes, C. - Guerra colonial: Angola,  Guiné, Moçambique. Lisboa: Diário de Notícias, s/d. , pp. 332 e 335. Autor da foto: desconhecidos. (Reproduzidas com a devida vénia)

1. Há segredos que não se partilham, por uma razão ou outra. Este, que envolve o Amadu Djaló, pode ter sido por uma de quatro razões (especulativas, acrescente-se): 

(i) o Amadu Djaló não estava lá nesse dia, em Bambadinca  (ele vivia em Bafatá, com as suas duas mulheres e restante família, incluindoa a amada mãe): 

(ii) o Amadu Djaló terá achado indigno o comportamento dos seus camaradas e subordinados, e escamoteou, esqueceu ou  branqueou este episódio, grave, que foi a insubordinação da CCAÇ 21 (no seu todo ou em parte)

(iii) o Amadu Djaló já se desligara, disciplinar e afetivamente, dos seus antigos camaradas e subordinados da CCAÇ 21, que era comandado pelo ten graduado 'cmd' Abdulai Jamanca (a companhia seria dissolvida e extinta dois dias deppois, em 18 de agosto de 1974);

(iv) "last but not the least" (isto é: não menos importante...), a ser verdade que cada militar da CCAÇ  21 só aceitava entregar a arma e passar à disponibilidade por 300 contos "per capita", estávamos perante uma exigência "milionária":  na época,  300 contos (da Guiné, 1 escudo a valer 0,90 de 1 escudo da metrópole) seriam qualquer coisa como cerca de 50 mil euros (a precos  atuais); multiplicando por 150 homens (=1 companhia,  só de guineenes) daria qualquer coisa como 7,5 milhões de euros (que não poderiam caber na mala de nenhum governador-geral, ainda para mais na véspera do reconhecimento do independência e da saída do território por parte de Portrugal; o Amadu Djaló não podia deixar de estar a par destas reivindicações, para mais sendo um alferes graduado da companhia; mas será que ele tinha a noção exata ou aproximada dos valores que estavam em jogo ? 

2. Vamos reconstituir o que se passou nesse "dia de todas as emoções" (como escreveu, no seu diário, o senhor cor cav CEM Henrique Manuel Gonçalves Vaz, 1922-2001).

Repete-se aqui a mensagem do nosso leitor (e camarada) Fernando Gaspar, ex-Fur Mil Mec Arm, CCS/BCAÇ 4518/73 (1973/74):


Data: 11 de Maio de 2012 22:30

Assunto: Bambadinca 1974

Boa noite, Luís

Fui furriel miliciano com a especialidade de mecânico de armamento e fui incorporado no Batalhão [de Caçadores] 4518/73 para a Guiné...  

Após o 25 de abril de 1974, fui destacado para Bambadinca para receber material militar, viaturas, armas, etc.


Em agosto de 1974 (não consigo memorizar o dia), os militares presentes no destacamento de Bambadinca (eu incluído), foram surpreendidos com a presença de dezenas de militares do denominados Comandos Africanos (tropas nossas aliadas).

Todos nós (talvez duas dezenas),  ficámos perplexos... Primeiro pensámos que vinham entregar as armas (o que nos facilitava o regresso a Portugal), mas não!... Fomos encostados à parede e deram um prazo de 48 horas para serem pagos da indemnização a que tinham direito, ou então, seríamos fuzilados... 

Cerca de 40 horas após o sequestro, o brigadeiro Carlos Fabião chegou num helicóptero com duas malas carregadas de dinheiro... Terminou o sequestro!

Se através do teu blogue for possível reencontrar esses camaradas de armas, ficarei muito agradecido.

Até sempre, um abraço | 
Fernando Gaspar


2. Comentário de L.G.:

Na altura manifestámos a nossa gratidão e apreço ao Fernand0 Gaspar pela  coragem de vir, a público, num blogue de antigos combatentes, revelar esse segredo, que possivelmente guardava, enterrado  há muito na sua memória... 

De qualquer modo, o  que ele  contava - ao fim de quase 4 anos todos - e que deve ter isso um pesadelo para ti e para os demais camaradas que foram feitos reféns, já não era segredo para mim... Já aqui transcrevi, ao de leve,  uma conversa que tive, em Monte Real, por ocasião do nosso VII Encontro Nacional, com o último comandante do Pel Caç Nat 52, o alf mil Luís Mourato Oliveira [foto à direita].

Ele também estava em Bambadinca, sentado tranquilamente no bar de oficiais, a beber o seu copo, quando ocorreram os graves incidentes aqui  referidos, sem grandes detalhes..  Foi igualmente sequestrado como o Fernando Gaspar  e mantido como refém até à chegada do brigadeiro Carlos Fabião, que, vindo de Bissau,  resolveu o problema (havia um vazio legal, com a CCAç 21 e a CCAÇ 20, que estaria ainda por resolver,  mais de um ano deppois da sua criação).

Isto ter-se-á passado não com os "Comandos Africanos" (que pertenciam ao Batalhão de Comandos da Guiné, com sede em Brá, Bissau)  mas com o pessoal da CCAÇ 21, que era comandada pelo tenente 'cmd' graduado Abdulai Queta Jamanca, e onde havia antigos militares da formação inicial da CCAÇ 12 do nosso tempo (Contuboel e Bambadinca, 1969/71)...  

Disse-nos o Mourato Oliveira que, depois da negociação com o Carlos Fabião, houve grande ronco...

Semelhantes incidentes (graves) deram-se em Paúnca, pela mesma altura, com a malta da CCAÇ 11 (antiga CART 11), já relatados pelo nosso camarada J. Casimiro Carvalho. (*)

De qualquer modo, esperávamos que tanto o Fernando Gaspar como o Luís Mourato Oliveira nos pudessem, na altura,  fornecer mais pormenores destes tristes acontecimentos que poderiam ter originado um tragédia imensa,  se as ameaças de fuzilamento dos reféns fossem levadas a série pelos militares revoltosos da CCAÇ 21, em caso de falharem as "negociações"!. 

3. O alferes 'cmd' graduado Amadu Bailo Djaló [foto à direita] também pertenceu a essa companhia, que era inteiramente constituída por pessoal do recrutamento local (incluindo os graduados e os especialistas). No entanto, nas suas memórias (Amadu Bailo Djaló - Guineense, comando, português: 1º volume: comandos africanos, 1964-1974. Lisboa: Associação de Comandos, 2010, 299 pp., il), não são narrados, referidos ou sequer evocados os "incidentes" de Bambadinca (vd. pp. 276 e ss.). 

Talvez o nosso camarada Virgínio Briote [foto à esquerda,] que o ajudou a escrever o livro (como "copy desk") e privou muito com ele, nos seus últimos anos de vida, possa ainda esclarecer o que se passou exatamente nesses dia 16 de agosto de 1974 em que a CCAÇ 21 (ou parte do seu pessoal, possivelmente até à revelia do seu comandante, Abdulai Jamanca) tomou como reféns cerca de duas dezenas de militares metropolitanos que ainda restavam em Bambadinca, a aguardar o fim da comissão.

4. Estes factos já eram conhecidos do nosso blogue, ainda antes do final de 2011. Terminamos este poste,  já longo, com um dos  excertos dos registos pessoais, manuscritos, do cor cav CEM, Henrique Manuel Gonçalves Vaz (1922-2001), no ano de 1974, no TO da Guiné (foto a seguir, à direita).

A recolha e a transcrição são  da responsabilidade do seu filho Luís Gonçalves Vaz que estava, nessa época (1973/74), com a sua família, em Bissau (é hoje  professor de matemática e ciências da natureza numa escola da zona de Braga; é membro da nossa Tabanca Grande). 

Recorde-se que a CCAÇ 21, de vida efémera (e que não tem história da unidade) foi dissolvida e extinta dois dias depois, em 18 de agosto de 1974.

(...) 16 de Agosto de 1974

... Este foi um dia tremendo de trabalho e emocionante com as notícias de Bambadinca, em que a Companhia  de Caçadores nº 21 a tomar conta do aquartelamento e a exigirem 300 contos por homem, para entregarem a arma e passarem à disponibilidade!

Foi para lá o Governador Brigadeiro Fabião e ao fim da tarde foi recebida a notícia de que tudo estava resolvido. ..."

Coronel Henrique Gonçalves Vaz (Chefe do Estado-Maior do CTIG) (...)

Este valor (300 contos, 300 mil escudos ultramarinos) era uma exorbitância! Tem de ser confirmado. (Nesta altura, em meados de 1974, já depois do 25 de Abril, um Fiat 127, que era o carro mais vendido em Portugal, custava 95 contos, o litro da gasolina andava nos 7$50, e o salário mínimo nacional acabava de ser fixado em 3300$00 mensais)...

Nunca o pobre do Amadu Djaló ganhou 300 contos  em toda a guerra. Nem sequer um oficial general ganhava isso numa comissão de dois anos!...Pode ter havido um erro de audição e/ou transcrição, se calhar há um zero a mais: vamos ter de pedir ao Luís Gonçalves Vaz que  releia com atenção o "manuscrito" do seu querido pai. 

No nosso tempo, um soldado da CCAÇ 12, do recrutamento local, uma praça de 2ª classe (!) ganhava 600 escudos por mês, mais o "per diem" de 24$50 por ser desarranchado: comia na tabanca e no mato, em operações, não tinha direito a ração de combate (levava um lenço atado com um mão  cheia de arroz cozido) ... Em suma, recebia em média 1300 escudos ("pesos") mensais (em 1969/71).

Os militares da CCAÇ 21 devem ter recebido em 16/8/1974, aliás como o disse o Amadu Djaló (não no livro mas noutra fonte), o dinheiro a que tinham direito até fim do ano de 1974.  O Amadu Djaló foi oficial do Exército Português até essa data. Depois teve que optar por uma das nacionalidados... Recuperaria mais tarde a nacionalidade portuguesa,  mais tarde,; quando vem para Portugal em 1986, juntamente com outros antigos comandos...

Infelizmente estas "pequenas grandes histórias " não vêm nos livros da CECA nem  na historiografia militar oficiosa,  oficial ou académica.   São "anedotas"...
__________



(**) Vd. poste 13 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9190: O último Chefe do Estado-Maior do CTIG, Cor Cav Henrique Gonçalves Vaz (Jan 1973/ Out 74) (Parte II): Agosto de 1974: rebelião da CCAÇ 21 (Bambadinca) e do BCAV 8320/72 (Bula)

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25108: O segredo de...(42): Patrício Ribeiro, "filho da escola", fuzileiro uma vez, fuzileiro para sempre... Numa canoa nhominca, em Varela, pelo mar dentro mar, com os útimos 10 portugueses e outros estrangeiros fugidos da guerra civil de 7 de junho de 1998


Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Praia de Varela > Maio de 2021 > Praia sul >  A minha cana de pesca


Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Praia de Varela > Maio de 2021 > Praia sul > Quilómetros de praia, que continua a ser bela e aprazível, apesar das alterações climáticas e da erosão.


Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Varela > Tabanca de Iale >  Maio de 2021 > A minha casa ao entardecer, às 6h30

Fotos (e legendas): © Patrício Ribeiro (2021). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Não é fácil arrancar "segredos" aos antigos combatentes que passaram pelo TO da Guiné entre 1961 e 1974. Esta série, "O segredo de..." (*), não pretende ser sensacionalista ou voyeurista. Tem apenas como objetivo facilitar a partilha de memórias, mais recalcadas, mais distantes ou já esquecidas, nalguns casos, ou mais difíceis de contar em público, com receio de censura social ou de grupo, noutros casos... Achamos, por outro lado, que devemos também dar visibilidade e  pu
blicidade a ações relevantes, praticadas por amigos e camaradas nossos, cuja modéstia os inibe de falar delas...

Um dos exemplos é o  Patrício Ribeiro que cultiva o "low profile", é discreto, vivendo há quatro décadas na Guiné-Bissau, onde é empresário e... estrangeiro. 

Na guerra civil de 1998/99 ele  estava lá. E teve um comportamento de grande coragem e nobreza, tendo socorrido e ajudado alguns compatriotas e outros estrangeiros, que lá viviam ou foram apanhados pelos acontecimentos.

Recorde-se que ele nasceu em Águeda, em 1947, foi levado pequeno para Angola, cresceu em Nova Lisboa (hoje Huambo). Aqui casou, viveu e trabalhou. Fez a tropa como fuzileiro (1969/72). 

Veio depois para Portugal na véspera da independência, na 23.ª hora (**); mas nunca gostou da sua condição de "retornado":  em 1984, decidiu ir viver e trabalhar, na Guiné-Bissau, primeiro como cooperante, e depois estabecendo-se como empresário: fundou uma empresa ligada à energia, a Impar Lda...  Agora, aos  76 anos, recusa-se a reformar-se, está cá e lá (sobretudo quando cá faz frio, e chuva, e é inverno). 

Vai dando, por outro lado, uma mãozinha ao filho que lhe sucedeu nos negócios, continua a gostar de viajar pelo interior da Guiné  (e nomeadamente de canoa nhominca, pelos Bijagós)... E, quando cá vem, dedica-se também à sua agricultura em Águeda.   

Membro da nossa Tabanca Grande desde 2/1/2006, é  autor da série "Bom dia desde Bissau" mostrando-nos pontos desconhecidos ou já esquecidos daquela terra verde-rubra...  

É nosso correspondente em Bissau, colaborador permanente da Tabanca Grande para as questões do ambiente, economia e geografia da Guiné-Bissau; tem já cerca de 150 referências no blogue...

Ainda não "abriu o livro todo" das memórias de Angola e da Guiné-Bissau. Mas já nos contou aqui um dos seus "segredos" (*). 

De um outro viemos a sabê-lo, há uns largos anos,  por intermédio de um amigo comum, infelizmente já falecido, o eng. agrónomo  Carlos Schwarz da Silva, mais conhecido por "Pepito"  (1949-2012).

Esse "segredo", em boa verdade já não o é, foi divulgado há anos no blogue (***), merece todavia figurar nesta série... para "memória futura"


O segredo de...(41): Patrício Ribeiro, "filho da escola", fuzileiro uma vez, fuzileiro para sempre... Numa canoa nhominca,  em Varela, pelo mar dentro, com os útimos 10 portugueses  e outros estrangeiros fugidos da guerra civil de 7 de junho de 1998, até ao NRP Vasco da Gama

Tenho aqui perto, em Varela, uma pequena palhota para passar alguns fins de semana (vd. fotos acima). Há 20 anos estava a mais de 250 metros do mar, agora o mar já está muito mais perto; dentro de algum tempo, já posso pescar com a cana, a partir da minha varanda…

Neste mesmo local, numa clareira, aterraram os helicópteros da fragata Vasco da Gama, para recolher os Portugueses que aqui estavam encurralados na guerra de 1998.  Foi num destes helis que o nosso saudoso Pepito, saiu.

Eu também aqui estava… Mas tinha por missão ajudar a sair outros Portugueses que se encontravam no interior, em Canchungo (antiga Teixeira Pinto) e Cacheu. Como não apareceram às horas combinadas, estive em S. Domingos e depois em Ingoré (sem combustível e em situação de guerra),  à procura deles… E de onde, a partir dos rádios da Missão Católica, comuniquei com a fragata a informar que estavam atrasados para a sua evacuação…

Ao fim do dia, também saí desta praia de Varela, numa canoa nhominca, acompanhando os últimos 10 portugueses que quiseram sair, assim como de outras nacionalidades, a quem a fragata autorizou o embarque… 

Como destino, “o pôr do sol”, o poente… Passados 18 milhas, mar adentro, lá encontramos a nossa frota com 3 navios dos “filhos da escola” que na parte final nos vierem cumprimentar nos botes e mandar subir pela escada de corda, para a fragata Vasco da Gama.

Já não foi possível os helis da fragata Vasco da Gama voltarem a aterrar na praia, havia quem os quisesse deitar abaixo… mas fomos acompanhados pelo ar, de onde recebíamos ordens, por vezes mandavam-nos, à nossa canoa, desviar de alguns obstáculos, que havia no mar …

Gosto de falar da minha praia de Varela de que adoro; dos banhos na água quente a 30º, das minhas pescarias diretamente para o grelhador, acompanhadas por umas bacias de ostras, etc…

O que escrevi,  num comentário, é um pequeno resumo dos diversos capítulos vividos naquela época, mas muitos deles ainda os considero 'classificados'.

Quando nos voluntariamos a ajudar os outros, quando pessoas a chorar nos pedem para não os deixar para trás..., a “formação militar não o permite", vem ao de cima...

E, por força das circunstâncias, passamos a ser o elo de ligação entre o resto do mundo e o interior de um país em guerra, de onde não é possível informar os familiares: onde estamos, que estamos vivos…  E, repara, não havia telefones e as fronteiras estavam fechadas, quer internamente, quer com os países vizinhos e estas últimas estavam a ser bombardeadas. Bissau ficava longe e não se sabia o que se passava no interior.

E quando do exterior… nos pedem a colaboração, através do nosso “bombolom”, para encontrar esta e aquela pessoa de quem não se tem notícias há muitas semanas, certamente qualquer um de nós ajudaria, se tivesse condições...

Os restantes capítulos vão saindo, quando alguém tocar na "ferida".

Luís, depois de ter saído na canoa nhominca, que, no regresso, na minha presença, carregou da fragata Vasco da Gama a primeira ajuda humanitária para a Guiné, destinada à Missão Católica de Suzana, eu voltei para Portugal. Não, não fiquei lá...

Mas, passados 2 meses regressei à Guiné, via Dakar e táxi aéreo para Bubaque, dali para Bissau em vedeta de guerra, que foi construída no Alfeite e que estava na mão dos militares senegaleses.

De Bissau por vezes saía para Varela, quando recebia um 'papelinho',  avisando que era melhor ir dar uma volta… Pegava na minha mochila com uma lata de atum, atravessava a pé as bolanhas e lá ia eu para banhos.

O aeroporto de Bissau esteve fechado quase um ano… Quando da morte do 'Nino', tinha ido passar o fim de semana à ilha de  Orango…

Na morte do Ansumane Mané, estava fora de Bissau... Ao reentrar em Bissau encontrei quase uma centena de milhares de pessoas, a saírem a pé. Algumas já iam para lá de Nhacra. Fiz um apelo na rádio RTP África, para mandarem transporte, a fim de apanharem as pessoas que estavam a dormir à beira da estrada, sem quaisquer condições.

Ao mínimo problema, a estrada principal era fechada a viaturas, em Safim.

Assim, como da morte dos restantes altos dirigentes do país..., estava fora, por Varela, Contuboel, etc.  

( Excertos  de vários textos e comentários, revisão / fixação de texto / negritos:  LG)


2. Comentário do nosso editor LG:
 
Patrício Ribeiro, português,
nascido em Águeda, em 1947,
criadoe casado em Angola,
com família no Huambo,
ex-fuzileiro em Angola de 1969
a 1972, a viver na Guiné-Bssau
desde 1984,
fundador, sócio-gerente
e director técnico
da firma Impar, Lda-


Patrício,  não é por acaso que eras conhecido em Bissau, ainda até há pouco tempo, como o "pai dos tugas"... Os jovens, cooperantes, rapazes e raparigas, tinham por ti um enorme respeito e admiração na altura em que o meu filho, João Graça, te conheceu em dezembro de 2009, em Bissau...

Esta história do resgaste de diversos portugueses e 
outros, em plena guerra civil (que começou com o golpe de  Estado de 7 de junho de 1998), perdidos em Varela, Canchungo  e Cacheu, devia merecer honras de título de caixa alta nos jornais da época e nas parangonas dos telejornais... Não me dei conta que isso tenha acontecido... Mas é uma verdadeira história de heroísmo que te honra e nos honra a todos nós, portugueses, teus amigos e camaradas!...

Deixa-me recordar, para os nossos leitores mais recentes, que na sequência daquele conflito, foi  montada pelo Governo Português uma operação de resgaste de cidadãos portugueses e de outras nacionalidades. 

Essa operação, com o nome de código Crocodilo, envolveu uma força conjunta dos três ramos das Forças Armadas. A componente naval foi  constituída pela fragata Vasco da Gama, com dois helicópteros Lynx Mk95 embarcados, pelas corvetas Honório Barreto e João Coutinho e o navio reabastecedor Bérrio

A atuação dos dois helicópteros foi fundamental para o êxito da missão. A força naval foi comandada pelo capitão-de-mar e guerra Melo Gomes. 

(Vd. P. Conceição Lopes, CFR: Operação Crocodilo. "Revista da Armada", julho de 2013, pág. 20).

A história do resgate, efectuado por tua conta e risco, em Varela, já a tinha ouvido contar, na tabanca de São Martinho do Porto, há uns largos anos atrás, talvez em 2012, da boca do nosso saudoso Pepito (1949-2012), um dos "encurralados", em junho de 1998, em Varela, onde também tinha casa de praia, já do tempo dos pais, e que era portanto teu vizinho.

Conseguiste metê-lo, a ele e à família, e a mais cidadãos, num dos helis da fragata Vasco da Gama, ancorada ao largo, a 18 milhas, fora das águas territoriais do país, com mais os dois ou três avios de apoio...

Eu já sabia, além disso, que, na impossibilidade de voltar o heli a Varela, tu já te havias metido na tua canoa nhominca, levando mais um grupo (10 pessoas, de nacionalidade portuguesa, e outros estrangerios...) ao fim da tarde, pelo mar fora, até à fragata salvadora!...

Camaradas e amigos, 18 milhas náuticas numa canoa nhominca (embarcação em que tu és perito e que muito admiras!), são mais do que 33 km pelo mar adentro... Não é para todos, é para quem aprendeu a amar e respeitar o mar, como tu, que foste "filho da escola" da Armada... Afinal, fuzileiro uma vez, fuzileiro para sempre!

Volto a escrever o que já repeti aqui: esta tua história incrível merece ser contada uma e outra vez. Sei que és um homem discreto e modesto, mas ainda espero ir ao 10 de junho, se não for longe, para te ver ser condecoradao por este feito de grande coragem, altruísmo e patriotismo!...

Patrício, se isto não é heroísmo, então eu nunca vi nenhum herói ao vivo e a cores!

Registo, para mais, este facto: durante o conflito político-militar, sangrento, de 1998/99, tu foste incapaz de estar longe da tua/nossa Guiné mais do que dois meses... Ao fim de dois meses, voltaste a entrar no país via Dacar, Senegal.


Carlos Schwarz da Silva, "Pepito",
 Lisboa, campus
da ENSP/NOVA. 6/9/2007.
Foto de Luís Graça
O Pepito e a família, cuja casa no bairro do Quelélé, em Bissau, foi pilhada e destruída pela 
soldadesca senegalesa, que apoiava o 'Nino' Vieira, estiveram refugiados em Cabo Verde, à volta de um ano (se bem me lembro)... 

O Pepito tinha nacionalidade guineense, e este foi um dos acontecimentos mais marcantes (e traumatizantes) da sua vida (segundo me confidenciou em São Martinho do Porto)... Voltou à Guiné, para recomeçar a sua vida, uma vida nova, nunca escondendo a sua gratidão para contigo. 

Tu, por sua vez, eras/és português, aliás o português mais guineense da Guiné-Bissau que eu conheço... e a Guiné-Bissau está-te grata pelo trabalho que lá tens feito, levando a energia elétrica a muitas tabancas mas também hotéis, escolas, hospitais....

És um homem que sabe muito da história recente da Guiné-Bissau, saberás até demais, pelos círculos em que te moves, o que te torna também um pessoa cautelosa, discreta, diplomática, sem deixares de ser fiável, afável, prestável, solidário e generoso.

Quem está há 40 anos na Guiné-Bissau, não se imaginando já capaz de viver e trabalhar noutro sítio do planeta, é um sobrevivente nato, capaz de enfrentar e resistir a tudo o que apoquenta, chateia e mata naquela terra (a sida, o paludismo, a cólera, as infecções nosocomiais, as canoas inhomincas, as armas, o tráfico de droga, a violência, a droga de vida, os golpes de Estado, a ausência de Estado, as picadas mal alcatroadas, o tempo seco, o tempo das chuvas, a pobreza, etc....).

Felizmente Águeda não está longe: tu também sabes que tens aqui uma retaguarda segura, à entrada da velha Europa, onde podes 'carregar baterias', revisitar família e amigos, fazer as teus exames de saúde, as tuas consultas médicas... É bom ter uma retaguarda segura, é bom ter uma Pátria, senão mesmo 
duas ou três... 

Tiro-te chapéu pela tua longevidade na Guiné, pela tua história de vida, pela tua sabedoria de verdadeiro africanista. 

Que Deus, Alá e os bons irãs te continuem a proteger  sempre!...
LG

PS1- Espero que no relatório da Op Crocodilo também apareça o teu nome e as tuas boas ações. Nunca chegarás a almirante, mas foste um bravo fuzileiro. 

PS2 - A RPT1, na"Sociedade Civil", ainda recentemente, dedicou a esta operação dois programas num total de cerca de 2 horas e meia. Os vídeos estão disponíves em RTP Play:

24 de julho de 2023 > Operação Crocodilo / Falcão (Parte 1) (1h 12m 08s)
25 de julho de 2023 > Operação Crocodilo / Falcão (Parte 2) (1h 20m 31s)

  

NRP Vasco da Gama (F330) na sua visita a Tallinn, capital da Estónia, entre 27 e 31 de março de 2008. Pormenor, imagem editada pelo nosso Blogue, da autoria de Ivo Kruusamägi da Wikipedia estoniana (2008) (Com a devia vénia ao autor e à Wikimedia Commons)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 18 de janeiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25083: O segredo de... (41): António Rosinha (ex-fur mil, Angola, 1961/62; topógrafo da TECNIL, Bissau, 1987/1993): Luís Cabral, a camarada Milanka, eu e o 'mau agoiro' do meu patrão

(***) Vd. poste de 18 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23090: (In)citações (198): a atuação de Patrício Ribeiro, durante a guerra civil de 1998/99, e nomeadamente em Varela, em articulação com o NRP Vasco da Gama..."Se isto não é heroísmo, então eu nunca vi nenhum herói ao vivo e a cores" (Luís Graça)

Ver ainda postes de:

31 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3101: Histórias de vida (13): Desistir é perder, recomeçar é vencer (Carlos Schwarz, 'Pepito', para os amigos)




18 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23088: (In)citações (197): Mais recordações do conflito político-militar de 1998-1999, por parte de quem o viveu por perto, o Cherno Baldé e o Patrício Ribeiro