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quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26029: CCAÇ 675 - Guiné 1964 / 66 - Retalhos do nosso pós-guerra - III - (Parte I) (Belmiro Tavares)


CCAÇ 675
Guiné 1964 / 66


Retalhos do nosso pós-guerra - III

Belmiro Tavares

2024

No dia 12 de maio de 2024, organizámos a nossa confraternização anual para os nossos antigos combatentes da zona norte. Reunimos em Águeda e éramos 35 convivas. Tudo (quase tudo) correu bem! O almoço estava otimo e foi bem servido. Tivemos direito a uma sala só para nós o que é deveras importante; estávamos, absolutamente, à vontade e não incomodámos os vizinhos.

Para esta reunião, tivemos em devida conta, facilitar a vida aos companheiros, principalmente, os que vivem a norte do Douro mas, segundo parece, a benesse não foi bem entendida. No entanto – cereja no topo do bolo – a irmã e o sobrinho do furriel Mesquita (dr.ª Teresa Mesquita e dr. - Francisco Mesquita) bem como três familiares do soldado n.º 2336, Jerónimo Justo (o filho, José Luis, a nora Maria de Lurdes e o neto, Tiago) fizeram questão de nos brindar com a sua benigna presença. 

Além disso, estes participantes anunciaram que estarão presentes também na confraternização do sul, em Benavente, no dia 22 de setembro do ano corrente. O nosso mui querido general, o Tavares, o C. Figueiredo, o Frade, o Luis Moreira e o Santo Marques percorreram mais de duzentos quilómetros para cada lado; o Gabriel Rosa e o M. Cariano palmilharam cerca de duzentos quilómetros na ida e na volta.

Caros minhotos! Tenham em devida conta que todos nós (os elos da nossa robusta corrente) nos sacrificámos imenso, durante aqueles dois longos anos de bruta guerra para criar e alimentar, até ao dia de hoje esta amizade enorme que nos une; esperamos que ninguém pretenda deitar por terra o esforço, a ousadia, a enorme coragem e a amizade que tem unido todos os robustos elos da nossa corrente. Pensem nisso! Esperamos, sinceramente, que todos pretendam que a Gloriosa CCaç 675 se mantenha viva durante muitos anos. O Tavares defende que sempre foi muito bem recebido pelo nosso pessoal do Minho – em boa verdade nunca foi mal recebido pelos antigos combatentes, em parte alguma! Pretende-se que assim continuemos por muitos e bons anos.

O comandante desta tropa especial continua a ser o nosso General Tomé Pinto que se mantém duro como o aço - se, como ele afirmou, no dia 12 de maio de 1965, em Binta, “Com tais soldados (os da CCaç 675) é fácil ser vencedor. Nós diremos que com tal comandante será impossível não ser vencedor; com ele ao nosso lado, tudo era fácil e, todos juntos, vencemos o que parecia impossível. Teremos de continuar a ser vencedores!

Mudando de rumo!
Alfredo Roque Gameiro Martins Barata (1938-2017)


Até ao dia de hoje, não temos notícias dignas de registo acerca do nosso pessoal. Assim sendo, vamos falar de uma figura ímpar da nossa CCaç 675. É certo que não pode haver comparações pois, a sua especialidade era única. Referimo-nos, claro está, ao nosso mui distinto médico, dr. Martins Barata.

Sabemos que provém de uma família de arquitetos e pintores. O seu “mano velho” também foi arquiteto; foi ele quem projetou o emblema da CCaç 675 que veio a ser considerado o mais original (e diferente) de quantos apareceram naquela Guiné tórrida e inclemente. O nosso era, na verdade, simples e simbólico: “CCaç 675 Nunca Cederá” sobre as cores da Infantaria.

Damos como certo que não vamos falar do médico porque não temos cabedal para tanto. Mas podemos afirmar que era um bom médico (muito bom mesmo) e sempre presente onde e quando necessitávamos dele. Nunca virou a cara à luta… à sua luta… que era também a nossa!

Pelo menos nos primeiros tempos de mato, ele foi muito assediado por alguns dos nossos soldados para se livrarem de uma ou outra patrulha mais assustadora. Não constou que alguém tivesse beneficiado de tais artimanhas. O nosso bom Galeno confiava nos seus alargados conhecimentos e experiência de vida e, assim sendo, não seria fácil demovê-lo ou enganá-lo.

Ainda em Bissau, os soldados lamentavam que ele receitava apenas comprimidos LM (Laboratório Militar) e que “os mesmos” serviam para debelar todos os males que os assolavam. O bom do nosso médico foi incansável a explicar que os comprimidos que usávamos eram todos preparados no mesmo laboratório mas tinham finalidades e valências próprias. Conseguiu levar a água ao seu moinho! Tudo ficou esclarecido.

Na primeira quinta-feira que passámos em Bissau, ele mandou distribuir a cada militar, à hora do almoço, um comprimido (“daraprim”, um antipalúdico, se bem me lembro); espalhou-se entre os nossos soldados (nas outras unidades terá acontecido o mesmo) que se tratava “apenas” de um remédio “para combater ou diminuir o “apetite sexual”. Foi difícil combater tal boato entre os soldados, defendendo que se tratava apenas de uma proteção contra o paludismo – uma doença tropical, ainda muito ativa na Guiné e não só. Não evitaria que se contraísse tal maleita mas, quem tomasse aquele comprimido preventivo, não seria tão fortemente atacado.

Com o tempo, tudo entrou nos eixos, devidamente, - o nosso doutor passou no exame – e, lentamente, começou a ser admirado e respeitado (sem imposição) pelos nossos soldados; aliás, ele merecia toda a admiração, consideração e respeito de todos nós.

O doutor Barata gostava de ir connosco para o mato… de vez em quando. O nosso conceituado mestre da guerrilha não gostava (mas não o proibiu) que ele se expusesse, desnecessariamente, e alegava:
- Se o doutor vier connosco de uma patrulha e se tivermos um ferido grave, o senhor não estará nas melhores condições para o tratar como estaria se tivesse ficado no quartel.

O nosso bom Galeno ouviu as palavras sensatas do nosso venerável capitão e terá reduzido o número das suas saídas para o mato… talvez.

Constou que os nossos adversários (os nacionalistas) se assustaram, fortemente, ao ver um militar da CCaç 675 com uma arma tão estranha (uma máquina fotográfica); terão pensado que se tratava de um “lança misseis” e/ou um “drone” e deram corda às sandálias; com o rabo entre as pernas, rumando aos seus esconderijos, como, usualmente, faziam.

Acontece que, no dia 28 de dezembro de 1964, dia em que fomos, severamente, atingidos por uma potente mina anticarro (foi a primeira de seis); o nosso médico estava lá – demos graças a Deus! – caso contrário, os danos poderiam ter sido bem mais graves. Ele manteve-se calmo, atuante e dominou a situação; ia aconselhando os dois cabos enfermeiros, ali presentes, os quais se comportaram como deviam. Naquele dia, de triste memória, nem o fur. mil. enf. Oliveira se encontrava entre os operacionais mas os dois cabos enfermeiros fizeram maravilhas; como soe dizer-se: das tripas fizeram coração! Seguindo o exemplo do seu chefe, iam acorrendo a todos os “focos de incêndio” e… eram tantos, meu Deus!

Sinto vontade de recordar, aqui e agora, as ousadas palavras do mui ilustre “inventor do quadrado móvel” da CCaç 675:
- O soldado português é o melhor soldado do mundo! Ele é corajoso, voluntarioso, valente e ousado. Poderá não morrer pela Pátria ou pela Bandeira, mas, de bom grado, dá a vida pelo seu chefe ou pelo companheiro do lado.
E acrescentava:
- Será que ele – “doa a quem doer”! Será que ele tem as chefias que merece?!

Nota: as palavras em itálico e entre aspas são acrescento nosso.

Voltemos ao campo da verdade!

O dr. Martins Barata conseguiu, no meio daquele inferno medonho e sem os meios adequados, elaborar diagnósticos completos e perfeitos acerca de cada sinistrado.

Agora, será de bom tom lembrar, também, a extraordinária atuação do soldado nativo n.º 108, Mamadu Bangoran (etnia fula), um soldado com muitos altos e baixos. Naquele dia, de triste memória, não fora a sua inaudita coragem e o seu arreigado portuguesismo e teríamos mais mortos, certamente, ou feridos mais graves, ainda. Ele arriscou, literalmente, a sua vida, entrando no meio daquelas chamas alterosas para retirar dali alguns feridos que, por si só, não conseguiriam livrar-se daquele inferno. Reentrou no meio daquelas chamas impetuosas para recolher espingardas, capacetes, carregadores, cantis, etc. para que não fossem parar às mãos dos independentistas vorazes. Não temeu sequer a mais que provável explosão do depósito de gasolina.

Depois disto, juntou-se aos companheiros que enfrentavam, corajosamente, os adversários que desencadearam uma severa emboscada, logo após o rebentamento da desastrosa mina. Escondidos entre o capim alto e denso, iam fustigando a nossa tropa, que, com eficácia os colocou em fuga desvairada.
Era mesmo assim, aquele jovem fula! Naquele dia, portou-se como um herói!

Que será feito de ti, companheiro, Bangoran?! A CCaç 675 fez de ti um homem e não te esquece! Tu também não nos esquecerás, certamente!

(continua)
__________


Nota do editor

Último post da série de 24 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25441: CCAÇ 675 - Guiné 1964 / 66 - Retalhos do nosso pós-guerra - II (Parte III e última) (Belmiro Tavares)

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25983: A CCAÇ 675 - A Gloriosa - Como se “inventou” e gerou o mito – verdadeiro da Gloriosa CCaç 675 (Belmiro Tavares, ex-Alf Mil)


A CCAÇ 675

A Gloriosa

Como se “inventou” e gerou o mito – verdadeiro da Gloriosa CCaç 675


Como conseguimos os nossos objetivos com trabalho (muito trabalho), dedicação, honestidade, saber, coragem (muita coragem), valentia e ousadia q.b.

Primeira fase, em Évora, 07/01/1964 – 2.º ciclo de instrução (o 1.º foi ministrado, no ano anterior, em outras unidades).

Formação da CCaç 675

- Aperfeiçoamento físico técnico e mental para que ninguém acusasse fadiga… antes do tempo.
- Disciplina… disciplina…. Disciplina.
- Espírito de corpo – união fraterna entre todos os elementos da CCaç 675 que viria a ser a gloriosa.

Havia um cross semanal; o primeiro foi de 5 km e dezenas de soldados desistiram; o último tinha 35 km e não houve desistências.
Em tempo breve, os nossos soldados distinguiam-se de todos os outros pela disciplina, garbo, educação e respeito que exibiam em qualquer local. Todos se orgulhavam de pertencer à CCaç 675 – a Gloriosa; cada um de nós dava, diariamente, o seu melhor.
Estava lançado o mote… que se ia enraizando… Estávamos, no entanto, ainda longe de atingir os objetivos ideais que tinham sido traçados pelo nosso mui ilustre capitão.

Avançámos afoitos para a 2.ª fase:
- Bissau, 13/05/1964
- Aperfeiçoamento físico enérgico e vigoroso (quase violento) porque “a guerra é coisa séria” e encontrava-se ali ao lado da nossa porta.
- Mentalização técnica, física e psicológica – estávamos sempre na crista da onda.
- Era obrigatório saltar das viaturas, em movimento, até aos 50 km/hora.
- O nosso sábio timoneiro determinou que os subalternos não permitissem que os soldados vagueassem pela cidade (Bissau), onde encontravam um ambiente derrotista; quando fôssemos para o mato, eles já se sentiriam vencidos.
Assim os nossos soldados tinham o dia “todo ocupado”; podiam fazer o que quisessem… menos ir à cidade. O ambiente, ali, era o menos aconselhado a quem sentia ganas de vencer.

Surgiu uma nova alínea (“a cabeça” do nosso afoito capitão não parava!):
- Saltar da viatura e disparar, ainda antes de “aterrar”, porque – ensinamento do nosso douto capitão: “apenas o primeiro tiro deles é perigoso; ouvindo os nossos disparos, eles baixam a cabeça, levantam o cano da sua arma e… já não acertam”

3.ª fase – Binta 29/06/1964 – Estávamos prestes a “abrir as portas da nossa guerra”
- Organização dentro do aquartelamento.
- Preparativos para a defesa das instalações… precárias.
- Entrada na guerra, de rompante e em força, 04/07/1964.
- Demonstração de coragem, ousadia e valentia… a todas as horas; ali, a guerra era total e cobria toda a zona.
- Força, no seu máximo expoente.

Em breve, as emboscadas dos nossos adversários eram “montadas”, cada vez mais longe do “nosso itinerário” que não tínhamos e, a cada dia, com menos intensidade. Surgiu um novo parágrafo:
- “É preferível romper a sola das botas que os pneus das viaturas”.

Isto significava que era mais fiável e seguro andar a pé e fora dos caminhos e atalhos do que nas viaturas.
- Em breve, montávamos mais emboscadas que os independentistas – eles não estavam habituados a sentir tanta valentia e a ser tão pressionados.
- Instalávamos perigosas “armadilhas”, em locais criteriosamente escolhidos, provocando-lhes insegurança.

Nota: usando as viaturas, os nossos adversários sabiam onde nos encontrávamos e para onde nos deslocávamos; era fácil precaverem-se: ou montavam uma sempre perigosa emboscada ou afastavam-se… para fora da nossa zona.

- Sinalização, à entrada de uma ponte, acabada de reconstruir: “Atenção! Há armadilhas!”
Eles não acreditaram na nossa sinceridade e… pagaram caro.
- Eram forçados a viver, “sobre brasas” e … afastaram-se do nosso território.

- “PSICOSSOCIAL” junto à fronteira com o Senegal, “convidando” os guineenses ali refugiados, a regressar à terra que os viu nascer. - Garantíamos-lhe segurança e trabalho – sempre trabalho – muita amizade e proteção – Inicialmente, o regresso foi lento mas, logo, acelerou enormemente, apesar da vigilância do pessoal armado do PAIGC, para o impedir. A RECONSTRUÇÃO - a fase mais importante após a pacificação-.

No fim do primeiro ano de Guiné, 12/05/1965 o nosso capitão falou às tropas, em parada, alertando:
- Soldados! Se a nossa comissão acabasse hoje, nós seríamos apelidados de vândalos, porque, na verdade, nós limitámo-nos, quase só a destruir. Agora, vamos iniciar uma nova fase da nossa guerra; será mais complicada que a anterior mas não menos importante, tentaremos trazer de volta os antigos habitantes desta região, proporcionando-lhes segurança e trabalho… muito trabalho.

Teremos:
- Restaurar casas;
- Edificar casas novas;
- Preparar jovens para a autodefesa de pessoas e bens e da tabanca;
- Criar condições de vida;

No fim da nossa guerra, poderemos dizer aos nossos familiares e amigos:
- Nós destruímos! Mas… Nós reconstruímos e construímos!
- Faremos regressar as pessoas que foram obrigadas a abandonar as suas casas e seus haveres, refugiando-se no vizinho Senegal, onde vivem, há vários meses, em miséria extrema!

E concluiu:
- Vamos a isto, valentes companheiros! Com soldados como vós… é fácil ser vencedor!
- Autodefesa da tabanca nova:
- Militarização de jovens voluntários.
Se ocorresse um ataque a CCaç 675, logo, acorreria em seu auxílio:

Nota: o tal “imaginado” ataque nunca aconteceu, porque… os nossos adversários nos respeitavam muito e não ousavam aproximar-se da “nossa casa”.
- Desenvolvimento social e cultural
- Conversas frequentes com os “homens-grandes”, à sombra do poilão – local sagrado dos mandingas – “ali ninguém poderia mentir”.
- Construímos:
- Um posto de socorros para o povo de Binta;
- Formámos enfermeiros para ali trabalhar;
- Nota: os casos mais intrincados “passavam” para a equipa médica da CCaç 675;
- Um parque infantil;
- Um jardim escola;
- Uma escola primária – aqui, mais de meia centena de crianças aprendiam a ler, escrever e contar, na “doce língua” de Camões, sob as ordens um “professor” que trouxemos de Farim, a “expensas” nossas; a miudagem entoava o Hino Nacional, diariamente, antes do início das aulas e, mais tarde, durante o hastear da Bandeira aos domingos e feriados. Foi uma enorme surpresa para todos nós, quando tal aconteceu pela primeira vez.
- Os jovens encarregados da auto-defesa prestavam honras à Bandeira… em dias determinados;
- Restaurámos uma boa parte das “moranças” da velha Binta; os nossos militares auxiliavam em tudo o que à construção e reconstrução dizia respeito; havia, porém, uma técnica para a qual não estavam preparados:
- Elaborar as coberturas das “moranças”, com capim; esta tarefa “pertencia” aos nativos.
- Construímos muitas moranças usando a construção em “tabuleiro de Xadrez”

Assim surgiu a “VILA TOMÉ PINTO!” A povoação era, agora, enorme – já não era a vulgar tabanca; ali, viviam em segurança quase total mais milhar e meio de pessoas.

Para produzir riqueza, aquele povo necessitava de sementes e também alimentos. Aqui, o nosso já célebre capitão “colocou em risco a sua já brilhante carreira”. Não conseguindo apoios de outras entidades decidiu contactar, diretamente, o senhor governador Geral da Guiné, General Arnaldo Schulz, que compreendeu as razões do excelso capitão e em breve enviou para Binta:
- Cinquenta toneladas de arroz para semear;
- Quarenta e cinco toneladas de arroz para alimentação:
- Cinquenta toneladas de amendoim para semear.

Além disso entregou “em mão” uma verba avultada para os primeiros encargos (aquisição de ferramentas e alimentos).

Em breve as mulheres de Binta produziam uma quantidade desmedida de produtos hortícolas que vendiam aos habitantes de Farim e também à tropa, ali sediada.

Quase diariamente, ao fim da tarde, um grupo de raparigas (bajudas) aparecia junto do comando da CCaç 675; sorrindo, dengosamente, solicitavam ao glorioso capitão que lhes facultasse transporte que as levasse a Farim. Meio mundo se admirava da quantidade de produtos da horta – especialmente tomates – que a cada dia, elas comercializavam, naquela vila.

Alguém encontrou a resposta:
“Em Farim, há uma enorme carência de… tomates!”

A sementeira foi grande! Lançaram à terra a totalidade das sementes fornecidas pelo governo e ainda cerca de duas toneladas de amendoim que o célebre capitão de Binta conseguiu, gratuitamente, em Farim: oferta da Ultramarina na pessoa do seu gerente, em Farim, o sr. Júlio Pereira.
A produção de amendoim e milho era tarefa dos homens; as mulheres tratavam do arroz e da horta.
A colheita foi volumosa! A tropa ajudou na arrecadação do produto, em local seguro, e no posterior transporte para o cais.

“A venda foi total!” aquele povo massacrado nunca recebeu tanto “patacão” (dinheiro) pela venda da “mancarra” (amendoim) porque, desta vez, eles receberam o valor total da mercadoria. Agora, como dantes, um kilo de amendoim 2$00 (dois escudos) mas, desta vez, eles recebiam o valor total da mercadoria não havia desvios como dantes!

O sábio capitão alertou o representante da Ultramarina, em Binta como segue:
- Tu não recebes “mancarra” de ninguém sem a presença de um oficial ou sargento; no acto do pagamento, as contas terão de “bater certo!” Entendeste?
Não houve desvios!

Por estas e por outras (que não cabem em espaço curto) aquele povo considerava o douto capitão de Binta como… “o pai de todos”. Estas foram as palavras de Júlio Pereira, o gerente da Ultramarina, em Farim, quando ofereceu o amendoim de que dispunha, para aumentar a área semeada.
Neste ambiente de crescimento, cultural, social e económico os nossos combatentes (os europeus) não foram esquecidos.

Pusemos a funcionar:
- As aulas regimentais.

A partir de agora – fins de 1964 – a CCaç 675 já não era uma companhia… nem sequer um batalhão! Era um regimento!
Na CCaç 675 havia:
- Dois analfabetos;
- Trinta e quatro militares tinham a terceira classe de adultos – era quase o mesmo que nada!
- Os analfabetos “aprenderam qualquer coisita” o suficiente para escrever cartas aos pais e aos amigos, orgulhando-se da sua aprendizagem. Alegavam que os pais não queriam acreditar que eles já eram capazes de escrever cartas.
- Trinta e duas praças fizeram, em Farim, o exame da quarta classe.

O alf. Tavares (o responsável pelas aulas) não levou um soldado a exame por não estar devidamente preparado e outro reprovou. Um bom resultado! O “inventor daquelas aulas regimentais” alegava perante os alunos:
- Este diploma poderá não ser muito importante na vossa vida (será bom sinal, se assim acontecer) mas poderá sempre ornamentar qualquer espaço da vossa casa ou poderá ser colocado, até, sobre o aparelho de TV. Mas podem dizer aos vossos filhos, aos netos e aos amigos:
- Para conseguir aquele diploma, trabalhei muito, tirando horas, ao meu descanso diário – de manhã, espingarda na mão, ia para o mato atormentar os adversários e enviá-los para fora do nosso terreno; à tarde, lápis na mão e livro sobraçado, ia ouvir atentamente, as palavras dos nossos ensinadores, os oficiais e os furriéis da CCaç 675.


Também neste campo a CCaç 675 foi gloriosa e única.

Temos um passado – comissão na Guiné – glorioso mas no após-guerra continuamos a ser diferentes… pela positiva.
Em 1967, fizemos a primeira confraternização! Reunimos sempre com os familiares. No 1.º almoço eramos 24 antigos combatentes; no ano seguinte, reunimos 23; no 3.º ano éramos apenas 17!
Sob orientação ativa do nosso emérito capitão, sempre presente e com a prestimosa ajuda do sold. cond. auto Padre Eterno e outros, chegamos a reunir mais de 170 pessoas.

Após a pausa do Covid, a máquina entrou de novo em movimento; passámos a fazer duas reuniões anuais: - uma a norte e outra a sul. As nossas já provectas idades a isso nos obrigam.

Temos vindo a colocar lápides, nas sepulturas nos nossos mortos: - nos que morreram na guerra (os três foram trasladados) e nos que morreram cá, na peluda.

Quando e onde é que isto vai parar?

Vamos aguardando, andando, e resistindo; agora… sem grandes acelerações!

Nota: Em 2023, fizemos, em Évora a nossa confraternização anual para o pessoal do sul; o nosso general e o alf. Tavares foram de véspera para acertar agulhas. À noite, foram jantar, de surpresa, a um restaurante que pertence ao nosso companheiro Orlando Amoreirinha, primeiro-cabo n.º 2144. Após o jantar e uma agradável conversa, o Tavares sugeriu:
- Amoreirinha! Eu já não conheço estas ruas e becos; além disso, “de noite, todos os gatos são pardos”. Pega lá no teu carro e indica-nos até à messe de oficiais.

Conversámos, ali, mais um pouco e o nosso general manifestou o seu contentamento alegando:
- Fiquei muito feliz por saber que tu singraste na vida! Tens ali o teu ganha-pão e o dos teus filhos! Resposta do Amoreirinha:
- O que consegui na vida, agradeço-o ao meu general e ao meu alferes porque me deram a oportunidade de estudar e ensinaram-me para poder fazer o exame da 4.ª classe; sem esse diploma não conseguiria chegar onde cheguei.

O “inventor” daquela escola e o “responsável pelo seu funcionamento” ficaram radiantes ao ouvir aquelas palavras dum antigo aluno da “Escola Regimental” da CCaç 675, em Binta. Sem meios… mas com coragem e a vontade dos alunos… conseguimos!
Teríamos de ser vencedores! E fomos!

Acontece que o Amoreirinha já era 1.º cabo (e era dos bons) quando entrou naquela escola mas… não tinha a 4.ª classe.
Também o 1.º cabo corneteiro nº. 2446, J. Sousa Cunha, fez a 4.ª classe, naquela Escola… uns tempos depois de ser cabo.

O ousado e insigne capitão de Binta pensou e determinou! Os seus subordinados… cumpriram! E de cara alegre! O resultado é, ainda, bem visível! Há de continuar! Ninguém o esquece! A CCaç 675 merece!

Belmiro Tavares
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Nota do editor

Vd. post de 24 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25441: CCAÇ 675 - Guiné 1964 / 66 - Retalhos do nosso pós-guerra - II (Parte III e última) (Belmiro Tavares)

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25425: CCAÇ 675 - Guiné 1964 / 66 - Retalhos do nosso pós-guerra - II (Parte I) (Belmiro Tavares)


CCAÇ 675
Guiné 1964 / 66
Retalhos do nosso pós-guerra - II (Parte I)

Belmiro Tavares

2023/24

No início de 2023, divulgámos os “Retalhos I”[1] à maioria dos nossos companheiros. Em 2024, faremos nova comunicação aos nossos rapazes. Ninguém pode esquecer que “a Gloriosa” continua viva e de boa saúde.

A nossa CCaç 675 é aquela máquina! Sempre afinada… mas os seus filhos (somos nós) têm a obrigação de a alimentar. Sabemos que ela não é exigente: contenta-se com pouco! Basta um chisco de amor, de carinho, alguma dedicação e… ela rejuvenesce e está sempre de braços abertos para acalentar os seus filhos. Como bem sabeis, ela tinha, inicialmente, mais de 160 filhos; hoje somos apenas um pouco menos de cem – corrupção do tempo. Estes números até amedrontariam muita gente mas… a CCaç 675 nunca tremeu, ainda não treme nem há de tremer, nunca! Resta-nos uma consolação: os seus netos (filhos e outros familiares dos antigos combatentes) vão seguindo as peugadas dos seus antepassados. É verdade! Será – temos a certeza – um caso único! Um caso digno de estudo!

Já repararam na quantidade de pessoas (os descendentes e outros familiares dos antigos combatentes) que têm vindo a acompanhar-nos? Uns, com o devido respeito, ocupam o lugar dos pais ou avós que, obedecendo às rigorosas leis da vida, foram partindo. Filhos, irmãos, sobrinhos e netos têm vindo a tomar parte nas nossas confraternizações. É sintomático! Aquele bichinho, criado no meio de tantos sacrifícios, entre inúmeros perigos, “temperado” com água lodosa e salgada das bolanhas e com montes de pó das estradas de terra batida e das “picadas” – dizíamos – aquele animalejo não morre cedo! Por isso, nós afirmamos: a nossa CCaç 675, a menina dos nossos olhos, viverá enquanto nós quisermos. Fiquem com esta certeza: - chegada a nossa hora… nós partimos mas… ela fica!

Agora – escrevemos no princípio de 2023 surgiu mais um caso bicudo: não conseguíamos contatar a viúva do soldado n.º 2166, Eurico Leite Magalhães ou outro familiar para lhes entregar a lápide, pois ninguém, nem de noite nem de dia, atendia os telefones de que dispúnhamos. Pensou-se que ela teria ido viver com um dos seus filhos. Onde? Manuseando os nossos alfarrábios, encontrámos o telefone duma “loja de óculos” que pertencera ao nosso Magalhães e fizemos a ligação. A senhora que nos atendeu já tinha vendido a loja mas ficou com o telefone. Solicitámos-lhe, encarecidamente, que tentasse descobrir o contacto de alguém da família do nosso companheiro. Volvidos poucos dias, a senhora informou que o filho, Miguel Magalhães, era membro da direção do Maia Futsal e transmitiu-nos o telefone do clube.

Mais um caso resolvido… a contento!

Proclamamos, mais uma vez, que o povo português é extraordinário; também é único! Basta um pedido, apelando ao sentimento e todos se esforçam para ser prestáveis… sem pedir nada em troca.

Nós sabemos – muitos de vós sabem também – que o alf. Tavares correu “mundos e fundos”, procurando companheiros cujos paradeiros eram desconhecidos; sempre encontrou pessoas amáveis e prestantes que não olhavam a esforços para ajudar no que ele precisava. A única aberração foi a CRC de Guimarães que pretendia cobrar 30$00 (trinta escudos) por cada informação e um envelope selado e endereçado para enviar a resposta. Foram mandados “tocar tangos na sua rua”. Era o mínimo que se podia fazer.

Contactado o filho do nosso Magalhães, ele prometeu comparecer com a esposa e a mãe, na nossa confraternização, em Santo Tirso. Será mais um filho da CCaç 675 a tomar parte em futuras reuniões, em representação do pai. Por azar, não pôde comparecer mas veio a irmã com o marido, na companhia da mãe, a viúva.

Meus caros! Vencemos mais uma batalha mas, desta vez, os despojos são chorudos. Viva a gloriosa, CCaç 675!

Vamos citar os companheiros e os descendentes dos falecidos que compareceram na confraternização do norte, no dia 24 de setembro de 2023.

Em representação do sold. n.º 2326, Jerónimo Justo, compareceram:
- Uma filha, Natália Cardoso;
- Um filho, José Luis Justo;
- A nora, Maria de Lurdes;
- O neto, Ruben e a sua namorada, é filho da Natália;
- O neto, Tiago é filho do José Luis.

Em representação do sold. n.º 2166, Eurico Leite Magalhães, compareceram:
- A esposa, Virgínia;
- A filha, Ângela e o marido.

A doutora Teresa Mesquita e seu filho, dr. Francisco Mesquita, foram visitas frequentes durante cerca de 30 anos, sem qualquer falta, em representação de seu irmão e tio, o nosso companheiro fur. mil. Álvaro Mesquita, morto em combate. Como se lembrarão (ninguém o esquece) ele foi vítima fatal da explosão duma mina anticarro, na estrada de Bigene, entre Sansancutoto e Genicó Mandinga, no dia 28 de dezembro de 1964. Foi a primeira mina que nos fustigou… e de que maneira! Foi, entre várias, a de mais graves consequências. Este ano, por motivos aceitáveis não puderam comparecer.

A viúva e o filho do alf. Mendonça prometeram comparecer mas, à última hora, a cooperativa de Felgueiras marcou a vindima das uvas da sua quinta para aquela data. Foi pena! Mas aquele vinho é fabuloso! Há que preservá-lo!

O fur. mil Mouta e o sold. cond. n.º 2552, Baltazar (residentes em Albergaria-a-Velha e em Águeda, respetivamente) foram juntos até Santo Tirso.

O sod. 28, Martins (do morteiro) compareceu com a esposa e outro familiar.

O sold. 30, Monteiro Pinto, também do morteiro, trouxe consigo a esposa, o filho e a nora. Há alguns anos, por relevantes serviços prestados na organização duma confraternização do pessoal do norte, o Pinto foi “louvado, verbalmente” pelo alf. Tavares e, em consequência, foi promovido a “31”. Tratou-se de uma razoável progressão na carreira. A promoção, por tardia, não teve efeitos no “pré”. Provavelmente, teve-se em devida conta o facto de ele ter tentado (e conseguiu durante algum tempo) “ludibriar” a lavadeira e… mais não contamos.

O 1.º cabo corneteiro, n.º 2440, Gabriel A. Rosa trouxe consigo a esposa, um filho e dois netos. Partiram da Estrada da Beira, distrito de Coimbra e juntaram-se a nós em Santo Tirso.

O sold. n.º 412, Manuel Cardoso, não compareceu por causa do Covid; passou um mau bocado!

O alf. Tavares, na companhia da filha e do genro, partiu de Lisboa e fez “escala técnica”, em Sever do Vouga, a sua terra natal.

Por último, mas muito mais importante, o nosso sublime general, Alípio Tomé Pinto, deslocou-se, no dia 23, à região de Viseu para confraternizar com os antigos combatentes da sua companhia de Angola. No regresso de Viseu, o alf. Tavares preparou-lhe uma imprevista emboscada (se não fosse imprevista não era emboscada) mas proveitosa, na A25; foi feito prisioneiro e foi “obrigado” a jantar e a pernoitar em Sever do Vouga. Cremos que terá sido um bom castigo!

Já viram algo parecido? Um mísero alferes (na verdade ele vale por dois mas apenas em volume e peso) aprisionar um senhor general e obrigá-lo a comer e pernoitar naquele interior profundo da Beira Litoral, lá, onde o Judas talvez tenha perdido as botas?! Cremos que terá sido uma penalização de respeito! Ou terá sido um grande abuso! Na CCaç 675, até disto acontece!
Será que o abusador escapa duma valente e merecida “porrada”?!
Perdoai-lhe, Senhor, porque, por vezes, ele não sabe o faz! Será, talvez, fruto da idade!

No dia seguinte, domingo, 24 de setembro, seguiram para Santo Tirso; pelas onze horas, encontravam-se; no local de encontro.

Aproveitámos a oportunidade para entregar a lápide à família (viúva, filha e genro) do Eurico Magalhães, que faleceu, há alguns anos. A viúva brindou-nos com uma ligeira preleção cheia de carinho e agradecimento. Mais tarde, ela informou que aquela lápide não podia ser colocada na sepultura do marido; ele encontra-se num “gavetão” e ocupa o lugar cimeiro. Que iria colocá-la no jardim da sua casa.

No fim de contas, a família CCaç 675 vai rejuvenescendo a olhos vistos: uns vão partindo – por vontade de Deus! – mas outros vão entrando por amor aos familiares e por adoração à nossa CCaç 675, à qual os seus antepassados, honrosamente, pertenceram. Eles vão partindo! Mas fica a amizade férrea, pura, simples, desinteressada… eterna. Desta vez (mais uma vez) não houve missa pelos nossos falecidos, porque, em Santo Tirso, não há igrejas abertas depois das 11H00. Por outro lado, com a “chamada dos mortos” e a entrega da lápide, esquecemo-nos de rezar um Pai Nosso e uma Avé Maria; que Deus e os nossos mortos nos perdoem!

O almoço foi de boa qualidade e bem servido – até parecia que estávamos a comer em Binta! Tivemos direito a uma sala só para nós, onde passámos uma boa parte da tarde, em amena cavaqueira. Cerca das 18H00, os de mais longe (o nosso general e o alf. Tavares) foram os primeiros a partir.

Unidos pelo espírito da CCaç 675, mais uma vez, cumprimos a nossa nobre missão. Todos recolheram aos seus aposentos… sãos e salvos… e sem mais emboscadas. Na verdade, a emboscada é um vício que nos ficou dos tempos de Binta mas, agora, elas são mais meigas.

Nas emboscadas que os nossos adversários nos prepararam houve apenas um morto: o saudoso fur. mil Álvaro Mesquita. Na primeira emboscada, quando vínhamos de Lenquetó, tivemos dois feridos (o 2.º sarg. Marques e o 1.º cabo Marques); em boa verdade, este não era um dia bom para os Marques. Isto ocorreu no dia 4 de julho de 1964. Não recordamos outros feridos nas emboscadas, que os nossos adversários nos prepararam. Eles, graças a Deus, não poderão dizer o mesmo.

Recordemos a significativa emboscada da serração, na estrada de Farim. Esta terá sido a emboscada mais minuciosamente preparada pelo nosso ilustre capitão e foi superiormente executada pelo alf. Santos e seus “muchachos”. Os sete combatentes que compunham o grupo tombaram: cinco morreram na estrada; um apareceu morto entre o capim a 50 metros do local e o último (era chefe) morreu ao entrar no Senegal, com um tiro no rosto e outro nas costas. É caso para dizer que era muito grave voltar as costas à célebre CCaç 675, a Gloriosa.

Não temos palavras para narrar o espírito de união existente entre nós; essa amizade, como todos vós bem sabeis, foi gerada no meio dos maiores perigos, nas bolanhas de Binta e arredores, com alguns graves acidentes pelo meio, mas… pelo que estamos a reviver e a construir… podemos afirmar que valeu a pena. A CCaç 675 continua a ser única.

Passado o verão de 2023 voltaremos a colocar lápides nas sepulturas dos nossos mortos. A máquina não pode parar! Creiam que até já é um razoável “sacrifício” mas o dever a isso nos obriga!, principalmente, tendo em devida conta a nossa idade já provecta. Mas é uma satisfação enorme conviver com os descendentes dos nossos companheiros que já partiram. Todos deliram com a nossa atitude e a nossa presença benfazeja, porque se trata de um caso único, um grande amor. A nossa CCaç 675 foi e continua a ser um caso digno de estudo. Pela positiva, ela foi diferente de qualquer outra e assim continua. Acima de tudo, comove-nos o respeito, a gratidão e quase adoração dos “doridos” o que provoca em nós uma enorme satisfação do dever cumprido, uma alegria desmedida.

A verdade nua e crua é que na guerra aprendemos a matar mas o nosso mui ilustre capitão ensinou-nos algo mais e de suma importância: ensinou-nos a respeitar as vidas dos nossos adversários, principalmente, as dos que, sem armas, os acompanhavam ou a isso seriam obrigados. Para nós, matar seria uma inevitabilidade! Mas os homens da CCaç 675, ao contrário de muitos outros, não matavam desnecessariamente. Eliminávamos o adversário apenas quando não havia alternativa e, acima de tudo, se a nossa vida estava em jogo, correndo sérios riscos. Assim, a escolha não seria tão complicada quanto possa parecer. Nós não podíamos premir o gatilho por “dá cá aquela palha”. O nosso capitão, logo de início, determinou:
- Ninguém dispara sobre mulheres e crianças!
- Ninguém atira sobre homens desarmados!

Creiam que, em Binta, as regras, mesmo as internas, tinham de ser, escrupulosamente, cumpridas. Era mesmo isso que fazíamos. Todos sabíamos obedecer às ordens no nosso mui ilustre capitão.

O senhor general, Arnaldo Schulz, que foi, no nosso tempo, governador da Guiné, dizia que o nosso capitão já não era um “Pinto”; era já um galo… muito importante e… acima de tudo, duro de roer!

Pouco depois de ter sido determinado que não podíamos disparar sobre mulheres, crianças e homens desarmados, um soldado comentou com o seu alferes, seu comandante de pelotão, como segue:
- Oh meu alferes! Se nós matarmos as mulheres, as crianças, os homens desarmados e também alguns armados, em breve, a guerra acaba por falta de combatentes do outro lado – missão cumprida! Vamos para a santa terrinha!

Responde-lhe o alferes:
- Brinca com coisas sérias e verás o que te acontece! Sujeitas-te a um grande trambolhão!
- Não, meu alferes, isto é só brincadeira, entre nós!
- Creio que queres mesmo divertir-te e não pensas em transgredir. É bom que seja assim!

A conversa acabou ali.

Naqueles tempos, o mais importante era ir acordando, todos os dias, com o dedo grande do pé a mexer! Onde é que já ouvimos este dito tão interessante?! Para justificar o que atrás narrámos, acerca de poupar a vida de certas pessoas (infelizmente, ainda não foi inventada uma guerra sem mortos) vamos recordar a nossa ida (visita de cortesia) a Genicó Mancanho, na estrada de Guidage; naquele tempo – princípios de julho de 1964 – era ainda uma “picada”… de triste memória pelas terríveis dificuldades com que fomos, ali, mimoseados… até que, depois de muitos e duros sacrifícios, passou a ser estrada de… terra batida.

Esta operação ocorreu, no dia 10 de julho de 1964, poucos dias após o nosso badalado “batismo de fogo”. O cerco à aldeia foi parcial (cerca de ¾ de perímetro) para que, quem assim pretendesse, pudesse fugir em segurança… mais ou menos relativa. A parte não cercada ficou, propositadamente, voltada para o Senegal, que ficava ali perto. Fomos recebidos a tiro mas não houve mortos nem feridos em nenhuma das partes beligerantes. Os habitantes daquela pequena tabanca (aldeia) refugiaram-se no Senegal e lá viveram, miseravelmente, durante largos meses.

Anos mais tarde, já depois da independência da Guiné, aquela aldeia foi reativada; um dos casais para lá enviados (temos indicação que foram quatro) foi a nossa conhecida Dandan e o marido. Ela foi aprisionada em Mansacunda e não quis voltar ao “mato”. Chorou, copiosamente, durante o dia todo, pensando (temendo), certamente, que viria a ser comida pelos “caras pálidas”.

Há mais de trinta anos, uma africana da Guiné hospedou-se no hotel Dom Carlos, onde o alf. Tavares trabalha. Pela manhã, ela perguntou ao porteiro de serviço onde ficava a “rua não sei quê de farmácias”. Perguntaram-lhe se não seria a Rua da Sociedade Farmacêutica; eufórica, ela respondeu que sim. Explicaram-lhe onde ficava a tal rua e ela foi tomar o pequeno-almoço.

Logo, o Tavares entrou na sala e um rapaz que, estava ali, de serviço, e tinha cumprido tropa na Guiné, informou:
- Esta moça é da Guiné e sabe muito acerca da guerra.

O Tavares perguntou-lhe se podia comer, na mesma mesa. Para início de conversa, perguntou-lhe de onde era natural:
- Sou de Bissau!
- Nasceste mesmo, lá?
- Nasci no norte, perto de Farim!
- Em que tabanca?
- Genicó Mancanho, perto de Binta.
- A tua aldeia estava cercada de bananeiras, anormalmente, altas!
- Como “sabi”?
- Eu ajudei a destruí-la, porque fomos recebidos com fogo!

Ela comentou:
- É verdade! A tropa não nos matou a todos porque não quis; se a tropa fosse tão má como nos contavam, ninguém sobreviveria para contar como tudo aconteceu!

Todos fugiram, em segurança, para o Senegal. Pouco mais atarde, ela partiu com a família para Bissau. Cresceu um pouco e andou, durante anos, a carregar armamento e géneros alimentícios da Guiné Conacry para o Oio. Após a guerra, foi enviada para a Checoslováquia para tirar um curso de farmácia. Agora, veio a Lisboa para fazer um curso de atualização.

Durante a sua permanência no hotel, tomou sempre o café da manhã com o amigo, Tavares; afinal… nunca foram inimigos.

Recordemos outros casos:
- Dos trinta e nove prisioneiros que trouxemos de Lenquetó, apenas um foi abatido, porque nos conduziu, intencionalmente, à tremenda emboscada que o seu bi grupo nos preparou perto Caurbá; quando fugiu para se juntar aos seus subordinados, teria de ser baleado. Inevitável!

- O prisioneiro de Cufeu estava apavorado, temendo ser comido pelos soldados brancos, mas nada de mal lhe aconteceu.

- O padre de Gebacunda, uma povoação no norte do Oio, mesmo frente a Binta. Viveu connosco uma vida airada; pediu para ir ao Senegal para trazer as suas duas mulheres; foi e… não mais voltou! Pela aparência, ele seria mais abade que padre!

- Uma prisioneira da região Buborim viveu em liberdade total, no aquartelamento de Binta. Volvidos cerca de quinze dias, o nosso capitão perguntou-lhe se pretendia continuar em Binta ou voltar ao mato. Ela, dando uma no cravo outra na ferradura, alegou que todos a trataram bem, mas… os familiares estavam no mato e gostaria de voltar para junto deles… se o capitão de Binta autorizasse.

O nosso ilustre comandante de companhia ofereceu-lhe um saco de arroz e uns “panos”, informando:
- Os “panos” são para ti! O arroz é para a família! Diz ao pessoal que retire as abatis da via, porque o caminho é de todos! Se não obedecerem, destruiremos os vossos acampamentos e… não há mais arroz nem “panos” para ninguém!

Na verdade, eles retiraram as abatis pequenas e queimaram algumas das outras. Entenderam que a tropa de Binta deveria retirar as grandes. Se a estrada era de todos, o trabalho não deveria ser só deles.

Fizemos vários “prisioneiros” mas nenhum entrou na prisão – em Binta não havia disso – porque não era necessário. Também não eram obrigados a apresentações temporária à PSP, nem usavam pulseira eletrónica! Modernices!

(continua)

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Nota do editor

[1] - Vd. post de 7 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24631: CCAÇ 675 - Guiné, 1964/66 - Retalhos do nosso pós-guerra - I (Belmiro Tavares, ex-Alf Mil Inf)

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24631: CCAÇ 675 - Guiné, 1964/66 - Retalhos do nosso pós-guerra - I (Belmiro Tavares, ex-Alf Mil Inf)



C. CAÇ. 675
Guiné 1964 / 66
Retalhos do nosso pós-guerra - I

Belmiro Tavares

A C. Caç. 675 continua viva! Apesar de fortemente “desfalcada”… quanto mais velha, melhor! Isto não acontece apenas com o Vinho do Porto. É caso para dizer que nada (ou quase nada) conseguirá impedir-nos de cumprir a nossa extraordinária missão… a não ser a morte… por enquanto. A essa ainda não conseguimos sobrepor-nos, mas… na nossa segunda vinda a este mundo, talvez não tenhamos… adversários invencíveis. Até lá… seja o que Deus quiser!

Passe a graça! É de graça!
Coloquemos, de novo, os pés no chão!

Ultrapassada a pandemia (dela ainda restam certos resquícios mais ou menos percetíveis) regressámos às nossas confraternizações anuais mas, agora, com mais genica. Dado que temos “companheiros” espalhados por todas as províncias do continente (temos também um “teimoso” que, de boa saúde, vive na Madeira) e porque a idade vai ditando as suas leis rígidas, decidimos organizar, anualmente, dois convívios: um para a “rapaziada” do norte e outro para os que vivem na zona sul. Não creiam que há sectarismo nesta decisão. Nem pensem! Cada um escolhe, de sua inteira e livre vontade, em qual pretende participar; por outro lado, todos podem estar presentes nas duas. Todos serão bem-vindos! Acima de tudo, que ninguém esqueça os familiares.

Acontece que nem só de convívios vive a nossa C. Caç. 675, a gloriosa. Voltámos a colocar lápides nas sepulturas dos nossos companheiros que, entretanto, nos foram abandonando, para sempre. É a rígida lei da vida!

Esta é já a terceira série! No início dos anos setenta (século passado) colocámos as primeiras quatro lápides nas sepulturas dos três companheiros que morreram em combate, na Guiné (soldado Augusto, furriel miliciano Vilhena Mesquita e o soldado João Nascimento); como entretanto, faleceu o 1º cabo enfermeiro nº 2533, António Martins; morreu num acidente de viação, aquando da visita a sua mãe, em Tondela, a sua terra natal, depusemos também uma lápide na sua sepultura.
A partir de maio de 1966, terminada a comissão na Guiné, o Rato ficou a viver em Lisboa; exercia a profissão de enfermeiro num qualquer hospital da capital.

Falemos um pouco deste cabo enfermeiro que nos acompanhou na Guiné durante dois anos infindáveis e de quem se contam inúmeras brincadeiras inofensivas e engraçadas.
No dia a dia, era um desenrascado nato mas era igualmente corajoso e competente no desempenho das tarefas inerentes à sua especialidade – enfermagem.
Não defendemos que ele era melhor ou mais eficiente que os outros dois, pois todos eram bons, briosos e decididos. Acontece que, quando o doente (ou o ferido) confia plenamente em quem o trata (médico ou enfermeiro) se o profissional sabe insinuar-se e é bem aceite, é meio caminho andado para a total recuperação. Era o que acontecia com o “Rato”. Ele sabia penetrar no coração e na alma do doente e o este confiava, piamente no que ele dizia ou fazia.

Vamos contar duas façanhas acerca do “Rato”; ambas ocorreram em Guidage mas em épocas diferentes e sob as ordens de oficiais diversos.

A primeira ocorreu em março de 1965, quando o mui ilustre e digno “capitão do quadrado”, em cumprimento de ordens superiores, enviou para Guidage (um posto fronteiriço no norte da Guiné) o signatário destas linhas com o seu pelotão. Ao receber a ordem de partida, o alferes, mui respeitosamente, perguntou ao seu comandante qual era a sua missão naquele autêntico desterro. Seria preferível viver na sede da companhia com toda uma série de patrulhas frequentes e mais ou menos perigosas ou “morrer de tédio” na solidão de Guidage? Que venha o diabo e escolha!

O sábio capitão de Binta respondeu que, segundo informações da PIDE (polícia internacional de defesa do estado), um grupo de chefes políticos do PAIGC (partido africano para a independência da Guiné e Cabo Verde) iria deslocar-se a Sambuiá (uma base fortíssima a norte do Cacheu e a poucos quilómetros da fronteira com o Senegal) para apaziguar as chefias daquela base; havia, ali, desentendimentos graves entre os chefes. Seria urgente reverter a situação, enquanto era tempo. Nós pensaríamos o contrário: quanto mais desentendimentos… entre eles… melhor!

Quanto à PIDE, essa salazarenta organização policial de má fama, podemos dizer que, durante a mui longa e perigosa guerra colonial, ela prestou muitos e valiosos serviços às nossas Forças Armadas; em alguns casos, houve resultados notáveis. Lembremos apenas o apoio que os “pides” prestaram, durante anos, aos nossos prisioneiros, nos calabouços de Conacri e a sua posterior libertação – operação Mar Verde. Poderá dizer-se que, mesmo aquilo em que não acreditamos ou de que não gostamos ou até odiamos, pode proporcionar ajuda prestimosa às nossas cores, como é o caso. Esta é a face boa e patriótica da PIDE.

Durante vários anos, umas dezenas de militares portugueses penaram miseravelmente na prisão de Conacri (capital da Guiné ex-francesa), cujo governo apoiava, abertamente, a guerrilha da Guiné-Bissau que pretendia libertar-se do domínio português. Por incrível que possa parecer alguns conseguiram sobreviver ali, penando, durante bem mais de uma dezena de anos.
Graças a Deus, a PIDE não os abandonou!
Imagine-se os perigos que alguns “pides” correram para fazer chegar aos nossos prisioneiros lembranças e correspondência dos seus familiares. “Mascaravam-se” de comerciante, subornavam polícias e carcereiros para poder contatar diretamente aqueles prisioneiros infelizes, massacrados e abandonados. Faziam isto, duas vezes por ano, no mínimo.

A PIDE colaborou, abertamente, na operação “Mar Verde” que provocou a libertação daqueles portugueses e trouxe-os de volta a Portugal. Entre aqueles massacrados prisioneiros, havia pelo menos um piloto aviador de nome Lobato, creio.

Esta terá sido, talvez, a faceta mais apreciável e até louvável daquela “salazarenta organização policial”. A maior parte das grandes operações levadas a cabo durante a Guerra do Ultramar, teve por base informações da PIDE e a tropa ia agindo a contento.

A missão deste vosso alferes, junto à fronteira norte, era impedir a passagem dos tais chefes políticos, pelos nossos terrenos, nas imediações de Guidage. Mui respeitosamente, este alferes manifestou a sua opinião:

- Para cumprir, cabalmente, tal missão eu terei de montar emboscadas permanentes, ao longo da fronteira. Acontece que, durante a noite, os adversários podem passar bem perto das nossas barbas, sem que nos apercebamos de tão ousada e perigosa presença. Por outro lado, nem os meus soldados nem eu poderemos suportar, impunemente, tão desmesurado e perigoso sacrifício que, na pior das hipóteses, poderá tornar-se inglório por falta de resultados. Ninguém nos informa sobre o itinerário aproximado que eles vão usar nem sequer a hora de passagem. Eu preciso dos meus soldados (e eles necessitam de mim) até ao fim da comissão que ainda é quase uma miragem. Trata-se dum sofrimento enorme e, certamente, sem resultados condizentes e poderá marcar-nos, negativamente, para o resto da nossa comissão.

A resposta do inigualável capitão foi clara e… convincente. Ei-la:

- Como deve calcular, eu confio em si! Faça o que melhor entender para cumprir a missão, cabalmente, enaltecendo o bom nome da nossa C. Caç. 675 e das nossas Forças Armadas.
Você leva consigo o enfermeiro Martins que, a qualquer hora, é eficiente; leva também o Machado (um soldado atirador natural de Cheleiros, Mafra), que tinha ganas de ser enfermeiro; na prática, até foi.

O alferes em causa e o seu pelotão lá foram até Guidage; no grupo seguiram o Rato (enfermeiro) e o Nhaca (ajudante ou aprendiz de enfermagem).

O enfermeiro Martins não perdeu tempo para iniciar a sua atividade, lá, quase sobre a linha de fronteira, onde o diabo perdeu as botas. Começou a dar consultas diárias, não só aos militares mas também aos civis que, vindos do Senegal, ali procuravam “mezinho” para todas as suas maleitas. Em Guidage, onde estava sediado um outro pelotão, praticamente não havia população civil; mais tarde… havia ali um bom número de “retornados” – portugueses da Guiné que, para fugir às agruras da guerra, se refugiaram no Senegal, junto dos seus irmãos étnicos (etnia mandinga) que viviam nos dois lados da fronteira.

Imaginando que os medicamentos ali distribuídos, gratuitamente, poderiam ir parar às “mãos” dos nossos adversários que tinham apoio do governo do Senegal, o alferes determinou que o “mezinho” teria de ser tomado, ali, pelos “doentes” e na presença do enfermeiro ou do seu ajudante.

O enfermeiro Martins, por seu lado, exigia que os “doentes” civis o chamassem por dr. Martins. Para terem direito a consulta gratuita e aos medicamentos “à borla”, os doentes teriam de trazer galinhas ou frangos para oferecer ao sr. Doutor. Era um João Semana… dos tempos modernos!

Sabendo que a população dava “apoio logístico” (ou a isso seria obrigada) aos guerrilheiros do PAIGC, o alferes informou os supostos doentes:

- Se, durante a minha permanência aqui, em Guidage, este quartel for atacado, eu enviarei umas morteiradas (granadas de morteiro, neste caso de calibre 81) sobre a vossa aldeia.
Todos negaram dar apoio aos combatentes, nossos adversários, mas nós sabíamos que a sua atuação (no mínimo a de alguns) era bem diferente do que nos transmitiam, amigavelmente.

Dias volvidos, o quartel de Guidage foi atacado (em modo soft); nós respondemos em força ao ataque dos adversários e, logo, duas ou três granadas de morteiro caíram na aldeia senegalesa. 

Conclusão:
1 – Não houve vítimas entre os civis – o que muito nos agradou;
2 - Durante uma semana não tivemos lavadeiras.

Como em Guidage não havia população civil, as mulheres senegalesas lavavam a roupa a cada um de nós, cobrando esc. 50$00 por homem/mês. Por outro lado, o nosso conhecido, “dr. Martins”, perdeu a clientela civil. Em breve tudo se recompôs: eles precisavam de tratamento médico e as lavadeiras faziam-nos uma falta do caraças. O dr. Martins (um enfermeiro autopromovido a doutor) recuperou a clientela e continuou a ser “remunerado” com galinhas e frangos.

No final das consultas, o enfermeiro Martins tinha de proceder à conferência do material utilizado - era tempo das vacas magras! Os descartáveis (usa e deita fora) ainda não tinham sido “inventados”. Um dia, faltava uma agulha da seringa; tudo era controlado ao centavo e ao centímetro. A falta de uma mísera agulha de seringa poderia dar origem a castigo severo se se provasse que houve dolo e/ou negligência. A balbúrdia (irresponsabilidade) surgiu entre nós, uns anos mais tarde, logo após a Revolução dos Cravos.

Por vezes podia-se driblar a justiça se houvesse inteligência e bons conhecimentos técnicos.
Vejamos: os caldeiros da nossa cozinha estavam irremediavelmente deteriorados; era tal a sua debilidade que já não “suportavam” a soldadura. Naquele tempo, tudo tinha duração estipulada, mas os materiais recentes não tinham a qualidade e a duração dos antigos. No entanto, o legislador “esqueceu-se” de colocar em prática a adaptação e a correção necessárias. O célebre capitão de Binta solicitou à Intendência que procedesse à substituição dos ditos caldeiros porque “já não cumpriam o fim a que se destinavam”. Pediram explicações. O capitão argumentou que a ruína prematura se devia ao uso excessivo dos caldeiros. Todos eram usados diariamente porque fornecíamos aos soldados sopa e um prato às duas refeições.

Eis a resposta dos entendidos (burocratas) da Intendência:~

- O uso excessivo não justifica a ruína prematura!

Seria inútil argumentar porque… o chefe tinha sempre razão!

Volvidos poucos dias, os nossos adversários (os combatentes do PAIGC) colocaram uma mina na estrada de Guidage (mais precisamente na bolanha de Cufeu) a qual foi despoletada por um caminhão Mercedes. O motor da viatura “desencaixou-se” e desapareceu nas águas turvas e lodosas da bolanha. Apenas o condutor da viatura ficou ferido num pé; foi evacuado para Lisboa e… meses mais tarde, “passou à peluda”.

O nosso excelente capitão informou a Intendência que todos os caldeiros seguiam na viatura sinistrada e desapareceram nas águas pútridas da bolanha de Cufeu. Recebemos, imediatamente, caldeiros novos… em folha. Valeu a pena! É o que vale a burocracia!

Perante aquela falta duma mísera agulha de seringa, o enfermeiro alertou o seu ajudante:
- O Nhaca! (era a alcunha do soldado Machado) falta uma agulha da seringa! O Machado esbugalhou os olhos, bateu com a palma da mão na testa e saiu do “consultório” em corrida desenfreada, em direção à bolanha que servia de fronteira entre a Guiné e o Senegal; bolanha é um terreno alagadiço onde também se cultiva arroz. Abeirou-se duma “bajuda” (rapariga, “teoricamente”, virgem), levantou-lhe a saia (um tecido enrolado à cintura) e recuperou a tal agulha que ela levava espetada no traseiro.

Acreditem que é verdade!

Correu de regresso até ao aquartelamento e, esbaforido, disse, contente, ao seu chefe:
- Está aqui a agulha que faltava!

Meses mais tarde o mesmo enfermeiro e o mesmo ajudante voltaram a Guidage, exercendo as mesmas tarefas, mas agora integrados em outro pelotão. Os dias corriam modorrentos mas, de repente, tudo se complicou… e de que maneira!

Ao fim da tarde de determinado dia, dois soldados (o Coelho e o Artur José) saíram do quartel, espingardas na mão, para tentar caçar algo que lhes proporcionasse um bom petisco. Certamente, não terão avisado os seus superiores de tão inopinada saída. Entretanto, à hora pré-determinada, o sargento de serviço fechou o portão (uns fios de arame farpado) e armadilhou-o, como acontecia, a cada dia. Os “pretensos caçadores” voltaram, de mãos vazias. Não se lembraram que o portão poderia estar armadilhado, e abriram-no, displicentemente, para entrar. A armadilha funcionou. Cumpriu-se o aforismo: - “as nossas armadilhas nunca falham… contra nós!”
O Coelho foi atingido por uns tantos estilhaços (mini estilhaços)… nada de grave; o Artur, por seu turno, ficou com a veia femural desfeita numa extensão de sete centímetros.

A noite caía inapelavelmente! O helicóptero já não podia sair da base, em Bissau – não estava equipado com meios de orientação noturna. Era a guerra dos pobres!

Era imperioso que o Artur se “aguentasse” vivo até às primeiras horas da manhã e que a perna não gangrenasse. Noite de dor profunda! Noite de esperança! E a gangrena? Estaria de acordo? Podia ser fatal!

O Rato (enfermeiro e dr. Martins) iria ser confrontado com um dos momentos mais difíceis e fantásticos da sua vida; manteve-se ao lado do Artur, durante toda a noite, dando-lhe apoio moral… e medicamentoso para impedir que a gangrena “levasse a melhor”.

Amanheceu! A vitória daquela dupla (Martins e Artur) era uma realidade! A gangrena e a morte foram vencidas! Como terá o Martins conseguido aquela estrondosa vitória? – Não sabemos! Ninguém sabe, como tal aconteceu! Apenas ele saberia e já não consegue dizer nada. 

Desgraçadamente, o Martins foi o nosso primeiro morto, após o regresso da Guiné. Faleceu numa deslocação que fez a Tondela, a sua terra natal, para visitar a sua mãe. Faltou-lhe ali, certamente, um “enfermeiro Martins” para que não perdesse a vida em um miserável acidente com uma motorizada.

Logo pela manhã, o helicóptero levou o Artur para o HM 241, em Bissau. Ao aperceberem-se do seu estado tão melindroso, os médicos “afiaram facas e cutelos” para amputar a perna do Artur sem ter em devida conta o esforço, a dedicação, o saber e o profissionalismo do Rato e o enorme sofrimento do Artur.
Por sorte, encontrava-se ali um médico, que vivera, durante uns anos, nos EUA, trabalhando num hospital onde eram tratados muitos mutilados da guerra do Vietname. Ele alegou que: “para amputar, há sempre tempo”. Pela primeira vez, em Portugal, “um tubo de plástico” foi usado para substituir sete centímetros de uma veia femural que se encontrava destruída nessa extensão. Graças a Deus!

O Artur continua de boa saúde, no Monte da Estrada, nas imediações de Relíquias, a sua terra natal; continua a servir-se da perna que Deus lhe deu. Na zona, onde a artéria femural fora substituída por um mísero tubo de plástico (não seria, certamente, um plástico qualquer), a coxa tem ainda um perímetro, significativamente, inferior ao da outra mas… é a sua perna, graças a Deus… e também às artes mágicas e milagrosas (quase) do enfermeiro Rato.
Que a terra lhe seja leve!

Diz o nosso povo que “a conversa é como as cerejas” (engatam-se umas nas outras) e com razão. Vejamos.

Dois soldados da C. Caç. 675 eram naturais de Relíquias, concelho de Odemira; um é o Artur José (seu nome completo) de quem temos vindo a falar; o outro era o Manuel José (é também o seu nome completo); faleceu há já uns anos. Acontece que, apesar do que ficou aqui expresso, não pertenciam à mesma família. Mas há mais estranhezas: ambos eram “filhos de mãe incógnita”.

Nunca entendemos esta situação! Sabíamos o que era o “pai incógnito” mas nunca tínhamos ouvido falar de “mãe incógnita”… ultrapassava o nosso entendimento.

O 1º sargento da companhia, Antero dos Santos, apresentou uma explicação algo estapafúrdia… que não nos convenceu.

Na verdade, é obra! Dois rapazes nascidos na mesma povoação, têm o mesmo sobrenome, não pertencem à mesma família e, para cúmulo, ambos são filhos de “mãe incógnita”. Mas há mais! Nasceram no mesmo ano, foram para o mesmo quartel, pertenciam à mesma companhia e ao mesmo pelotão - o primeiro, comandado pelo alf. Costa (já falecido) e que, tal como os dois soldados, era também alentejano. Era natural de Beja!… Por mero acaso… não era de Relíquias!
Um caso assim, só poderia pertencer à C. Caç. 675.

Na sepultura do Rato (enfermeiro Martins) bem como na do Manuel José, já se encontram as respetivas lápides da C. Caç. 675.

O furriel enfermeiro José Eduardo Reis de Oliveira, mais conhecido por JERO (o acrónimo elaborado com as iniciais de seu nome) fez questão de estar presente, em Tondela, pois o Rato seria seu colaborador mais dileto. Aliás, o JERO esteve presente na colocação de outras lápides.

Um dia partimos para o norte com seis lápides na mala do carro. No 1º dia colocámos cinco – quando acabámos de depor a última (furriel Mesquita, em Famalicão) já era noite escura. A irmã e o sobrinho (Drª Teresa Mesquita e seu filho Dr. Francisco Mesquita) do malogrado Álvaro Mesquita, tiveram a amabilidade de nos oferecer um lauto jantar… no restaurante, “O Tanoeiro”, em Famalicão. Por sinal, o dono era nosso amigo, de longa data E por falar em lápides…
Vila Nova de Famalicao > Cemitério local > 8 de julho de 2010 > O Belmiro Tavares e o JERO junto da campa do Álvaro Manuel Vilhena Mesquita.

Uns anos após a colocação das quatro primeiras lápides, já nos anos 80/90 (século passado) encomendámos uma nova série de 45 lápides. Para que isto se tornasse realidade, calcorreámos outros tantos cemitérios de norte a sul, ou seja, desde Caldas das Taipas (bem no extremo norte do país) onde jazem os restos mortais do sold. corn. 2444, António da Silva Lopes, até Vila Real de Santo António onde repousa o sold. cond. auto, 2466, João Alexandre de Jesus Alexandre. Este foi ferido num pé, aquando do rebentamento estrondoso duma mina, na bolanha de Cufeu, estrada de Guidage, como acima foi referido.

Nós temos apregoado aos ventos que, tendo em conta as várias facetas das nossas vidas, fomos uma companhia positivamente diferente de todas as outras. Em tempos idos, através do blog luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com, perguntámos:
- Quem tem vindo a fazer reuniões anuais para recordar a nossa passagem por aquela malograda guerra miserável?
A melhor resposta que nos chegou referia uma companhia que falhou apenas um ano.
À pergunta: - Quem trasladou os seus mortos, durante a guerra? Apenas duas unidades responderam afirmativamente.

Nota: o governo da época não pagava a urna de chumbo para a trasladação; apenas fornecia o transporte (os navios vinham vazios). À época, uma urna própria para esse fim custava esc. 8.000$00 (oito mil escudos); na Guiné, um alferes auferia um vencimento pouco superior a 6.000$00.

À pergunta: Quem colocou lápides nas sepulturas dos seus mortos em combate? Ninguém respondeu, afirmativamente.
Não seria necessário perguntar se alguém colocou lápides, tal como nós, nas sepulturas dos antigos combatentes, que morreram após o regresso.

Sempre defendemos que a C. Caç. 675 era… diferente pela positiva, de todas as outras.
Hoje, tendo em conta que ninguém perpetuou a memória dos seus mortos durante o pós-guerra, podemos afirmar, sem receio de errar, que somos uma companhia única.

Perto de um milhão de jovens participou na guerra colonial; em mais de seis mil companhias (cada companhia era constituída por cerca de cento e sessenta mancebos) apenas uma companhia - a gloriosa C. Caç. 675 - cometeu tal proeza.
Tudo isto se iniciou na Guiné, onde, sob um sol tórrido, e no meio dos maiores perigos, começámos a ser diferentes:
- Os nossos soldados distinguiam-se pelo aprumo e pelo seu comportamento garboso;
- Pacificámos a nossa zona – algo mais de 400 km2 (quatrocentos quilómetros quadrados);
- Lutámos também à procura da paz (na nossa zona, claro)
- Cerca de dois milhares de guineenses abandonaram o Senegal onde viviam em grande penúria, passando a viver em liberdade e a produzir riqueza à sombra da nossa companhia e da nossa Verde/Rubra. Nunca, mesmo em tempos idos, aquele povo recebeu tanto “patacão” (dinheiro) pelo amendoim que produziu. Para isso, foi mesmo necessário controlar (dominar) a ação perniciosa (criminosa) dos funcionários das grandes empresas comerciais que ali compravam amendoim. “Manga de patacão” clamavam os chefes de família quando venderam a mancarra (amendoim) que produziram, em 1965. Eles sabiam que produziram mais que em outros anos; também sabiam que naquele tempo não havia “desvios”!

Já em 2023, recomeçámos o nosso fadário; encomendámos mais 25 lápides, e no dia 16 de abril, colocámos as primeiras cinco, nas sepulturas de outros tantos companheiros:
- Em Caldas da Rainha, colocámos a primeira – eram 09:00 – na sepultura do Joaquim Lopes Henriques (o Caldas), soldado nº 2225. Estavam presentes a viúva e o filho. Não foram parcos nos agradecimentos. Os seus olhos brilhavam de alegria!
Seguimos para Alcobaça, a terra natal do furriel miliciano enfermeiro, Oliveira, mais conhecido por JERO. Estavam presentes: a viúva, os filhos e um generoso grupo de bons amigos do nosso companheiro. O silêncio (e o respeito) era audível! Grande camaradagem!
- Partimos para Batalha, cemitério de Jardoeira. Aqui repousam os restos mortais do J. Santos Frazão, soldado atirador 2236. Não compareceu nenhum familiar! O Frazão não tinha filhos e a viúva, quando se viu sem o seu marido, voltou à sua terra natal – Arouca. Já consegui o seu contato e informei-a do que fizemos para que ela não viesse a ser colhida de surpresa.

No mesmo cemitério está sepultado o Carlos Agostinho Vieira, o 1º cabo R. M. 2645; era o encarregado das munições, em Binta. Toda a família esteve connosco: viúva, filhos, filhas, noras, genros e netos. Aliás já quase todos tinham participado das nossas reuniões anuais. No fim da cerimónia, a família do Vieira convidou-nos para almoçar. Logo informei que o convite seria aceite mas cada um pagaria a sua parte. Por artes de magia pura, o repasto foi oferecido pela família do Carlos Vieira. A todos, os nossos sinceros agradecimentos! Em resposta, uma boa parte da família esteve presente na reunião deste ano, em Benavente. Presentearam-nos com uma “box” de vinho que o Vieira fabricou… antes de “partir”. Foi a sua última colheita! Tratou-se de um gesto de grande simpatia para com a nossa rapaziada.

A viúva do Vieira tomou parte no funeral do Lua; ela decidiu ir connosco para nos indicar o caminho para o cemitério onde o José Pires Carreira (o Lua) está sepultado; era o soldado atirador 2244. A viúva e uma filha estavam presentes. Ficaram extremamente contentes por terem ali os companheiros de seu marido e pai.
Só encontrámos boa gente! Todos rejubilaram com a nossa presença e pela atitude da C. Caç. 675. É ela que nos move.

Neste dia, 16 de abril, a “equipa de colocação de lápides” foi chefiada pelo nosso mui querido general, Alípio Tomé Pinto; era coadjuvado por um alferes (o Tavares), por dois furriéis (Luís Moreira e Mogo Miguel; este era o acordeonista privativo da C. Caç. 675) e pela condutora civil – Ana Luisa – filha do alferes Tavares.
Pela primeira vez, eu “convoquei” o nosso general para estas tarefas pois temos obrigação (pelo menos moral) de preservar o nosso adorado chefe. Aconteceu desta vez porque o nosso general nutre uma consideração especial pelo furriel Oliveira, por ser o nosso cronista-mor e, além disso, foi o seu padrinho de casamento.
O nosso general vinha radiante e surpreendido pela alegria, simpatia e carinho com que aquelas gentes nos receberam; prometeu estar presente noutras colocações de lápides.

No dia 21 de maio, colocámos mais duas lápides, no cemitério dos Prazeres, em Lisboa: uma no jazigo onde está guardado o corpo do nosso querido médico, dr. Martins Barata; outra foi colocada junto dos restos mortais da Srª Dª Maria Lucília Pinto, a mui digna esposa do nosso general. Surpresa? Não! Todos se lembram, certamente, que a srª Dª Lucília sempre nos acompanhou desde janeiro de 1964, quando a C. Caç. 675 foi formada, no RI 16, em Évora; mesmo quando a saúde começou a abandoná-la, ela fez sempre questão de estar presente nas nossas confraternizações. Por tudo isto, o mínimo que poderíamos fazer era: - chamar-lhe mãe.
Por outro lado, se a companhia tem um pai, o nosso general - deveria, também, ter uma mãe; mais ninguém teria precedência neste assunto. É caso para dizer que, agora, nós somos órfãos de mãe.

Neste dia, a nossa equipa era constituída por: o nosso general, a viúva e a filha do fur. Mil. enf. Oliveira, um filho do dr. Barata, o Tavares, o Moreira, o Mário Cardoso e o Filipe.
Que Deus nos dê vida, saúde e ânimo para levar mais esta nossa tarefa a bom porto. Acontece que o último de nós a morrer ficará sem lápide. Ou talvez não! Aguardemos!

Brevemente, retomaremos a nossa tarefa mui nobre. Desta última série, falta colocar 18 lápides. Serão depostas em vários cemitérios desde Maia (Porto), Gonçalo (Guarda), Covilhã, Alcanena, Idanha-a-Nova e Serpa. Há vários em cemitérios diferentes do distrito de Setúbal.

Acabámos de saber que o Vítor Bramão, soldado atirador 2032, sepultado em Faro, não pode “receber” a lápide que até já foi elaborada. Os seus restos mortais passaram à vala comum; a família não os reclamou, porque não foi avisada. Quando se apercebeu, já era tarde. Lamentamos, profundamente!

Aconteceu o mesmo com o soldado Ap. Metre. 2041/63, António Manuel Rola Garrido, que foi abatido, em Monsanto, por forças extremistas, pouco depois da Revolução dos Cravos. Afinal… fez-se a Revolução e os mortos continuaram. Ele era guarda prisional e foi morto a tiro, quando conduzia um “criminoso” ao tribunal. Foi vítima da “politiquice” de extremistas!

Damos por terminado o relatório desta nossa tarefa… até esta data. Dentro de alguns meses, depois do verão, haverá mais.

Lisboa, julho de 2023

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sexta-feira, 3 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24114: Notas de leitura (1560): "Sons da Guerra Colonial", por Carlos Miranda Henriques; Edições Vieira da Silva, 2023 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
Não é usual alguém, mesmo solidário com amigos antigos combatentes, e com livro já publicado sobre a guerra colonial, pretenda homenagear aqueles jovens que andaram em diferentes teatros de operações, recolhendo múltiplos depoimentos, aliás não esquece em In memorium o José Eduardo Reis de Oliveira, que era para nós o Jero, de saudosa memória, temos aqui algumas histórias pícaras, tudo rescende ao feitiço africano, mesmo quando a narrativa está focada em dor e sofrimento. Uma iniciativa que nos merece muito respeito.

Um abraço do
Mário



Quando o escritor se arvora em recolector de guerras alheias

Mário Beja Santos

É, acima de tudo, uma antologia de muita escuta e camaradagem, um ajuntamento de pequenos textos elaborados por antigos combatentes nos três teatros de operações. Há narrativas assinadas sob pseudónimo, por vontade dos seus autores. São lembranças de uma juventude sofredora, observa o recolector, que tanto deu a Portugal sem regatear, sem nada exigir em troca: "Sons da Guerra Colonial", por Carlos Miranda Henriques, Edições Vieira da Silva, 2023. Iremos aqui cingirmo-nos aos relatos que se prendem com a Guiné, encontrei inclusive um nosso confrade, Belmiro Tavares.

Abre as hostilidades Carlos Matos Oliveira, capitão miliciano, recorda o telefonema de António Silva, cabo-enfermeiro da CCAV 1617/BCAV 1897, é telefonema que se repete pelo S. João, vem a propósito da operação Espadeirar, que se realizou no Oio em 23 de junho de 1967, quem comandava a operação era o capitão Alarcão, da CCAV 1616. Chegaram a um objetivo que era a base de Cã Quebo, na região do Oio; não houve resistência, encontrou-se uma pistola CESKA e duas granadas, seguiram pelo trilho que levaria à estrada Mansabá-Bissorã, aqui começaram os problemas, veio fogo de morteiros, o capitão foi ferido, o radiotelegrafista atingido mortalmente, sem que fosse avistado pelos camaradas, ficando no terreno com o rádio e os códigos; o autor foi ferido por um estilhaço de rocket, o enfermeiro dava-o como morto, respondeu-lhe com um palavrão. Lá se pediu ajuda à aviação. E remata a sua recordação dizendo que voltaram a Cã Quebo mais duas vezes, de lá saiu com estilhaços num braço e nas costas.

Augusto Silva, que foi alferes miliciano, vem contar o que passou com as formigas, não ficamos a saber em que lugar se deu a ocorrência, o que interessa é que houve uma emboscada durante um patrulhamento e o comandante do pelotão, o alferes Saldanha Antunes, ordenou que se abrigassem atrás de ninhos das formigas bagabaga; finda a emboscada, por ali andava o alferes Antunes aos berros com as ferroadas dolorosas das formigas nas partes íntimas…

A história seguinte remete-nos para a CCAV 5398, assina um tenente-coronel com as letras A. A., a unidade militar estava sediada entre Bafatá e Gabu, o comandante, capitão Crispim Malaquias acompanha uma força que vai fazer um patrulhamento ofensivo, perto do Senegal, começam a chover as morteiradas, quem abriu fogo está bem municiado, foi necessário pedir apoio aéreo, quando surge o Fiat, o piloto pede referências pois diz só haver dezenas de gazelas em fuga, há um soldado que solta um palavrão, é nisto que o piloto viu a saída do morteiro da força do PAIGC e foi até lá largar umas bombas, antes de se retirar para Bissau quis saber quem é que lhe tinha chamado uma certa insolência, semanas mais tarde haverá um encontro e o piloto dirá a quem o imprecou: “Deixa lá, a tua sorte é que eu não sou casado”.

Segue-se uma história intitulada A mão de vaca, tem a ver com uma unidade estacionada no Boé, aquela gente andava tão faminta de uma comida caseira quando um grupo veio de férias logo se lançou em busca de almoço, a ementa era escassa mas todos se sentiram feliz a pedir mão de vaca, e assim se conta:
“O odor da comida quase pronta já chegava ao nosso olfato e passados momentos a única empregada de mesa do restaurante depositava os três pratos pedidos de mão de vaca, e que era como descrevo: uma mão de vaca inteira em tamanho natural com os dois dedos do animal voltados para nós e que ultrapassava os limites da travessa-prato, tendo como acompanhamento uma pequena mão cheia de feijão branco. A surpresa foi tal que boquiabertos ficámos, sem palavras, mas passados minutos lá nos atirámos ao petisco que acabou por nos saber muito bem.”

Entra em cena agora o nosso confrade Belmiro Tavares, estamos em finais de abril de 1966, uma companhia é enviada de Bissau para Farim totalmente desarmada, ir-se-á recordar com bom humor do uso do capacete em toda a atividade operacional, alguém será salvo pelo seu uso e fala-se na madrugada de 3 de dezembro de 1965, a missão era na zona de Sanjalo, alguém se apresentou sem capacete, o alferes reponta, o cabo radiotelegrafista regressa devidamente equipado, há tiroteio pelo caminho, resultam três feridos que serão recambiados para Bissau de helicóptero, é no regresso que o cabo radiotelegrafista mostra ao alferes o capacete com um sulco com certa de quatro centímetros de comprimento e um milímetro de fundo, afinal o capacete salvava vidas.

Não falta uma história de amor, quem assina é J. Monteiro, furriel miliciano. Houve para ali uma patrulha acidentada, ao atravessar uma zona de palmeiral e bananal, uns babuínos faziam grande algraviada, atirava todo o tipo de projetos, não faltavam dejetos. Lá chegaram a uma tabanca e pediram água para se lavarem. Entra em cena uma menina de vinte anos, apresentada como uma beleza serena e africana, de pele castanha e com uns olhos enormes, vivos e muito pretos. A menina deu-lhe para a paixão e disse ao furriel que ele tinha que ir lá mais vezes pelo caminho dos macacos para ela o lavar. Paixão correspondida, passaram a viver juntos com discrição. Houve despedida sem rancores, despeitos ou mágoas:
“Dei-lhe o meu fio de ouro com um crucifixo de pendente, para que sempre se recordasse de mim. Coloquei-lhe no anelar da mão esquerda uma aliança de ouro que comprei em Bissau. Passados estes anos todos, continua viva dentro do meu coração, e quando faço oração peço a Deus que esteja feliz na sua Guiné.”

Belmiro Tavares foi engenheiro de pontes improvisado, o Capitão Tomé Pinto mandou reconstruir a ponte de Genicó, antes de partir para cumprir a missão andou a fazer uns gatafunhos, fizeram-se duas “cavas” de cerca de vinte centímetros de profundidade, derrubaram-se umas palmeiras, cujos troncos foram cortados à medida da largura do ribeiro, feita a ponte arranjou-se uma “placa de sinalização” a avisar que havia perigos de morte, ora colocaram-se ali umas granadas para fazer estragos, explosão houve, nunca mais os guerrilheiros, até ao fim da comissão da CCAÇ 675 procurou destruir a dita ponte de Genicó.

Esta antologia de narrativas alheias tão ternamente recolhidas termina com um conjunto de poemas de Carlos Miranda Henriques e de Augusto Silva. Uma bonita ideia, recolher depoimentos e fazer-nos recordar.


Belmiro Tavares
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Noita do editor

Último poste da série de 27 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24105: Notas de leitura (1559): Histórias Coloniais, por Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus; A Esfera dos Livros, 2013 - Pidjiquiti, 3 de agosto de 1959: para cada um a sua verdade (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 11 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21993: A Operação Vaca, em 10 de março de 1965, em que forças da CCAÇ 675, com a ajuda da Marinha, "resgataram" 85 vacas "turras", no Oio, "ronco" que gerou depois um contencioso entre "infantes" e "marinheiros" (Belmiro Tavares, ex-alf mil, Binta, 1964/66)

Guiné  Região de Cacheu > Binta > CCAÇ 675 (1964/66) > c. 1965 >  A ganadaria da "companhia do quadrado"...

Guiné  > Região de Cacheu > Binta > CCAÇ 675 (1964/66) > C. 1965 > Secretaria da Companhia, que funcionava como sala de visitas: da esqerda para a direita, 1.º Ten Batista Lopes, cmdt da LFG Lira (que na época fiscalizava o rio Cacheu),  Ten Cor Fernando Cavaleiro, CMDT do BCav 490  (Farim, 1963/65), Cap Tomé Pinto, CMDT da CCAÇ 675, e Cap Cav Manuel Correia Arrabaça, CMDT da CCS / BCav 490

Fotos (e legendas): © Belmiro Tavares (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Capa do livro "A nossa luta: dois anos de muita luta: Guiné 1964/66, CCAÇ 675)", de Belimiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autor, il.. Lisboa, 2017, 606 pp. [Um exemplar autografado foi oferecido ao nosso editor. com a seguinte dedicatória; "Ao caro amigo Luís Graça, com enorme amizade e carinho. Lisboa, 1/2/2021, Belimiro Tavares".]




1. O Belmiro Tavares (ex-Alf Mil da CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), Prémio Governador da Guiné (1966), membro nº 390, da nossa Tabanca Grande, desde 1/11/2009,  empresário hoteleiro, é autor da série "Histórias e Memórias de Belmiro Tavares", de que se publicaram 47 postes ao longo de mais de 4 anos, entre novembro de 2009 e maio de 2014  (*). 

Grande parte dessas histórias e memórias foram recompiladas no livro cuja capa se reproduz acima. Com a devida vénia, vamos reproduzir a segunda parte do poste P9646 (**),  que corresonde no essencial, no livro supracitado, à narrativa "10 de março de 1965: um dia agitado: operação "Vaca" (pp. 255/257). É uma história bem humorada, e contada com talento.


Belmiro Tavares, alf mil, CCAÇ 675
(Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66)
Também a famosa "companhia do quadrado" tinha de lidar, como todas as outras, ao longo da guerra,   com o candente problema da "falta de carne", alegadamente pelos mesmos motivos: "os nativos não manifestavam vontade de vender os seus animais", devido à importância que o "gado vacum", em especial,  representava para as famílias e as comunidades... Esse problema tem sido aqui abordado, de um lado e do outro (***).


A operação Vaca

por Belmiro Tavares


Hoje, vou transmitir uma actuação muito esquisita, muito especial, diferente (digo eu) e também com surpresa total, à qual não atribuímos qualquer 
nome – nem houve tempo para tal!  

Posteriormente um oficial da Marinha, o comdt do navio Lira [, Lancha de Fiscalização Grande,]  que patrulhava o Cacheu naquela data, chamou-lhe “Operação Vaca”, nome que aceitámos... 
à posteriori.

Tratou-se duma operação... improvisada (ponham improviso nisso) mas muito lucrativa, materialmente. Não recordo a data; creio apenas que ocorreu em março de 1965 [, dia 10, p. 255 do supracitado livro].

Na madrugada daquele dia (e sem imaginar o que iria acontecer) o meu Grupo de Combate saiu para o mato; regressámos, missão cumprida, cerca das 3h00 da tarde; à entrada do quartel cruzei com os outros dois Gr Comb.: um seguiu para Farim e outro para Guidage.

 O cap Tomé Pinto aguardou que eu chegasse e, depois dum belo banho, almoçamos juntos. A meio do repasto, ouvimos alguém chamar insistentemente:

–  Sr. Capitão! Sr. Capitão!

Depreendemos que se tratava de pessoal da Marinha e fomos averiguar o que pretendiam.

– O nosso Comandante manda dizer que, na bolanha em frente, anda uma grande manada a pastar; se decidirem ir lá apanhá-la, nós temos ali uma LDM que facilita a travessia do rio.

A proposta partia do comdt Baptista Lopes, um grande amigo da CCaç 675. Entre “aquela Marinha” (pessoal do navio Lira) e a nossa unidade... tudo corria sobre esferas: eles faziam ali aguada [, abastecimento de água potável], por vezes almoçávamos juntos (no navio ou nas nossas pobres instalações), emprestavam-nos um motor para regar a nossa horta com água do poço e forneceram-nos corrente eléctrica para podermos ver dois filmes com a Madalena Iglésias e o António Calvário – vimos aqueles filmes todas as noites, mais de uma dezena de vezes!

Uma das nossas preocupações, no tocante à alimentação, era a falta de carne, porque os nativos não manifestavam vontade de vender os seus animais. Recebiam o “patacão”, é certo, mas perdiam evidentes sinais exteriores de abastança. Entre eles não era rico quem tinha dinheiro no canto do baú; a riqueza manifestava-se pela quantidade de vacas que cada um possuía. Sabia-se logo quem era rico... o resto é conversa. As vacas serviam até como “moeda de troca” na “aquisição” de noiva.

O cap Tomé Pinto, o nosso sábio timoneiro, sempre atento a tudo o que nos rodeava, perguntou se eu estava disposto... a ir ao Oio apanhar umas vacas... vivas ou mortas.

– Por vaca... eu vou até ao inferno!

Reuni logo os meus soldados e, acompanhados por militares e milícias nativos, utilizámos a LDM (Lancha de Desembarque Médio) para cruzar o rio... na ponta da unha.

Os indígenas tinham a missão de se aproximar e lidar com os quadrúpedes. Eu sabia que as vacas fugiam dos brancos como se de inimigos se tratasse... e não é que elas até tinham razão?!

Desembarcámos cautelosamente na margem esquerda do Cacheu e à distância, cercámos os ruminantes; era quase uma centena de lindas cabeças. Os nativos abeiraram-se delas e iniciaram a tarefa de as “empurrar”, cautelosamente, para junto do rio onde a LDM nos aguardava.

Pareceu-me estranho que tantas vacas pastassem tão perto de nós... sem vigilância de pessoal armado... nem parecia que estávamos no Oio! Não vimos viv’alma! Soubemos mais tarde que quatro guerrilheiros armados protegiam a manada. Quando se aperceberam que a tropa de Binta atravessara o rio e já montava o cerco ao gado... esconderam-se no tarrafe; houveram por bem que era preferível perder apenas os ruminantes... que deixar escapar também as próprias vidas.

Os nossos negros iam cumprindo a sua missão, conduzindo a manada para o local escolhido. A certa altura, porém, as vacas deixaram de caminhar; nem o diabo as fazia locomover-se: estavam atoladas em mais de meio metro de lama peganhosa.

Reconhecida a impossibilidade de obrigar o gado a aproximar-se da margem, ordenei aos marinheiros que nos trouxessem cordas do quartel. Utilizávamos estas cordas quando saíamos para o mato em noites de puro breu para que ninguém se descarrilasse – éramos os “voluntários” da corda!

Recebidas as cordas, logo quinze vacas foram atreladas à lancha que as rebocou para a outra margem. Houve azar! Esqueceram-se de levantar o “taipal” da barca e as desditosas vacas foram coagidas a atravessar o rio com as narinas debaixo de água; os quinze animais morreram por asfixia! Foi um ar (falta dele) que lhes deu! 

Com as restantes... tal não aconteceu e eram setenta belos animais. Acabou-se a falta de carne! A CCaç 675 passou a ter uma razoável e lustrosa ganadaria que causava inveja – salvo seja – ao chefe da tabanca de Binta, Malan Sanhá.

Foi então que um valente bezerro, o animal mais corpulento da manada, iludiu (ou forçou) a vigilância; subiu ao caminho que ali cruzava a bolanha para sul e só parou a uns bons 300 m. Apontei a G3 mas não disparei porque o animal iria morrer longe; perdíamos a bala e eles ficavam com a carne! Mas... eis que o animal (parado) voltou a cabeça, talvez para afugentar uma incómoda mosca; fiz pontaria e disparei; as pernas dobraram-se imediatamente e o animal caiu inanimado; àquela distância acertei-lhe mesmo no ouvido! Belo tiro! O touro foi logo ali sangrado, “desmontado” e trouxemo-lo “em peças”.

As vacas que morreram por asfixia foram amanhadas e distribuidas: pela CCaç 675, pelo pessoal da Marinha, pelos civis de Binta e pela CCav. 487 de Farim – foi um bodo aos pobres!

Como bons ganadeiros, logo no domingo seguinte, procedemos à ferra dos (já) nossos animais para prevenir confusões com os da vizinhança.

Um serralheiro improvisado elaborou uma letra “C” em ferro que, soldada na extremidade duma haste metálica, serviu lindamente para “marcar” o nosso gado. Convidámos o Comdt do BCav  490 [, ten cor Fernando Cavaleiro],  a equipa de futebol da CCav 487 e seus apoiantes bem como o pessoal do navio Lira que partrulhava o Cacheu.

A festança iniciou-se com um jogo de hábeis pontapés na bola entre as equipas da CCaç 675 e da CCav 487; os infantes triunfaram por concludentes 3 x  0 – sem margem para dúvidas! É certo (invento eu) que os de Farim foram pré-avisados que, se nós não ganhássemos eles perdiam o direito de almoçar à borla e poderiam até sofrer eventualmente, uma emboscada no regresso a Farim. Mas, claro, não foi por isso que vencemos; é brincadeira!

Seguiu-se a ferra, o ponto alto (e o mais hilariante) da festa! A rua 4 de Julho serviu de arena; entre dois grandes armazéns de zinco, encerrámos a rua com viaturas, formando o redondel... que era quadrangular. Um a um, os animais foram apanhados e conduzidos até junto da forja; com a tal letra “C” bem aquecida queimava-se o pelo (por vezes também a pele) de cada vaca ou similar. Alguns não gostavam e escoiceavam duramente tentando escapar, a qualquer preço,  e a cena repetiu-se sessenta e nove vezes!

Houve várias tentativas de toureiro mas só apareceram artistas inábeis e medrosos; houve também tentativas de pegar... desajeitadas... de quebrar o côco... Tínhamos na CCaç 675 um sobrinho do afamado pegador de touros, Salvação Barreto, o tal que “dobrou” o artista no extraordinário filme “Quo Vadis”; este sobrinho, porém, não queria entender-se com cornúptos ao vivo, para ele, vaca só no prato; mas “cantava” embora desafinado: “una lágrima entre os ojos”!

Para encerro da festa ficou uma perigosa vaca que marrava desalmadamente! Como diz o ditado: o rabo é pior de esfolar! Houve várias tentativas de lide mas a vaca era mais manhosa e enganosa que os turras (estes nunca nos obrigaram a fugir); alguns mais afoitos, mal a vaca investia, saltavam logo para a “trincheira” (para cima das viaturas).

Eis que surge na praça um soldado que, aparentemente, nada teria a ver com touradas. Era natural de Figueira de Castelo Rodrigo, de seu nome completo Silvestre Fernando Verges Flor; não sei o motivo por que o alcunharam de “Aguardente” (era percetível) !. 

Este jovem beirão tentou arremedar qualquer aprendiz de toureiro mas nada lhe saiu bem... nem mal. Distraiu-se a conversar com alguém que, de cima duma viatura, tentava, prudentemente, aconselhá-lo; pôs-se a jeito, involuntariamante, para levar uma valente marrada; gritaram-lhe; ele voltou-se e, não tendo já tempo para fugir, curvou-se “corajosamente” para a frente (para amortecer o impacto),  embarbelou-se com altivez e arrojo e dominou a besta astuciosa e má: uma valente e aparatosa pega... de emergência! 

O pior, porém, foi sair de entre os cornos aguçados da bicha... mas com algumas ajudas conseguiu libertar-se daquela melindrosa situação... sem qualquer mazela. Pediu-se, insistentemente, “bis”... mas ele não foi na conversa; desconfiou que a sorte podia não estar de novo do seu lado e comentou: “de repetição é o relógio da torre da igreja lá da santa terrinha”!

Ao fim de um mês a patrulhar o Cacheu, o comdt do NRP Lira rumou a Bissau não sem antes ter recebido mais duas vacas; além disso foi-lhe prometido que, regressando de novo àquelas águas, poderia contar com carne das vacas que havíamos surripiado aos turras assustados; afinal eles detetaram os animais e forneceram a (parte da) logística!

A caminho de Bissau, ao passar na povoação de Cacheu, na foz do rio com o mesmo nome, um oficial de Marinha, de alta patente, subiu ao navio para seguir viagem para a capital da província. Durante o percurso, o comdt do navio Lira informou garbosamente – em off - o seu superior hierárquico, pormenorizadamente, sobre a tal “Operação Vaca”.

Já em Bissau, os comandantes de todos os navios que haviam patrulhado outros rios reuniram, como habitualmente, com o comando naval para informar, de viva voz, tudo o que de importante havia ocorrido. O comdt B. Lopes não referiu a tal caçada de vacas mas o oficial que havia sido informado – em off – lembrou-lhe que devia referi-la e... assim teve de ser.

Uns dias mais tarde a CCaç 675 recebeu um ofício da Marinha a exigir metade das vacas capturadas. Não descontavam sequer as que haviam sido distribuidas a outras entidades,  exigiam apenas 42,5 vacas!

O cap Tomé Pinto não brincava em serviço; elaborou cálculos rigorosos tendo em devida conta os meios humanos envolvidos naquela tarefa (damos como certo que a carne de vaca não fazia parte da dieta alimentar da LDM); referiu ainda que a parte de leão (maior risco) tinha pertencido aos “infantes”. 

Feitas as contas e apresentadas com rigor e clareza, concluiu que a Marinha tinha direito a duas vacas e meia, e como haviam já recebido três, os marinheiros deveriam devolver-nos meia vaca. O cap Tomé Pinto rogou penhoradamente que essa meia vaca nos fosse enviada pelo primeiro navio que viesse patrulhar o rio Cacheu.

A Marinha não respondeu!... mas não desarmou!

O próximo comandante, R.V.V. e Sá Vaz, a patrulhar o Cacheu,  trazia a incumbência de reabrir as negociações. Parecia que ia travar-se uma batalha “fratricida” entre a Marinha e a Infantaria... mas teria lugar fora da água barrenta do rio cor de cinza.

O cap Tomé Pinto, um perseverante e zeloso defensor dos superiores interesses dos seus comandados, manteve intransigentemente a sua posição sumamente documentada e justificada: inadvertidamente, receberam meia vaca em excesso... devolvam-na!

Por fim o comdt Sá Vaz argumentou (em tom de evidente ameaça velada): 

–  A CCaç. 675 ficará mal vista perante a Marinha se não entregar parte das vacas (já não quantificava).

O cap Tomé Pinto, “homem d’antes quebrar que torcer”, não cedeu, garantindo a veraciadade dos números que havia transmitido.

Assim terminou uma das “batalhas” (aliás duas: a captura e divisão das vacas) mais divertidas e lucrativas que levámos a bom porto. Não nos faltou carne até ao fim da comissão... e ao pessoal do navio Lira – sempre que vieram patrulhar o Cacheu – também não.

A ganadaria da CCaç 675 era excelente e..., apesar de tudo, foi barata.

Fez-nos um jeitão do caraças!

Belmiro Tavares

[Com a devida vénia ao autor... Seleção, revisão e fixação de texto para efeitos de publicação neste blogue: LG]
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Notas do editor:

(*) Vd. primeiro (1) e último (47) poste: