quarta-feira, 24 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25441: CCAÇ 675 - Guiné 1964 / 66 - Retalhos do nosso pós-guerra - II (Parte III e última) (Belmiro Tavares)


CCAÇ 675
Guiné 1964 / 66
Retalhos do nosso pós-guerra - II (Parte III)

Belmiro Tavares

2023/24


O Nascimento era um trabalhador incansável! Inteligente, como era, sabia trabalhar sem usar a força… bruta. Sabia, devido à sua experiência de vida, cumprir ordens com o menor esforço possível; estava sempre em, todas!

O Nascimento, quer no serviço intramuros quer no mato, ocupava sempre o primeiro lugar na secção e… foi esse o princípio do seu fim. Mais uma vez, ele colocou-se, no topo da coluna e fez explodir uma mina antipessoal – provavelmente teria uma carga de trotil acoplada.

Recordemos como aconteceu o pavoroso acidente que vitimou, irremediavelmente, o Nascimento naquele dia aziago, dia de triste memória para todos nós.

Naquele tempo, o alf. Tavares encontrava-se em Bissau, na consulta externa de otorrino (otorrinolaringologia) do hospital Militar; os seus ouvidos não resistiram a tantas e tão agressivas intempéries, acompanhadas de violentos rebentamentos de explosivos vários. Por esse motivo, o alf. Mendonça comandou, naquele dia, o 3.º pelotão. Como devem lembrar-se, ainda em Bissau, o Mendonça ficou sem o seu “pelotão de acompanhamento”; as suas esquadras de morteiro, de “breda” e de LGF foram distribuídas pelos outros três grupos de combate.

Nesse dia, a patrulha destinava-se à região de Buborim, o limite oeste da nossa zona. Pouco depois de Banhima, o pessoal saiu para a margem esquerda da estrada, enfronhando-se, entre o capim espesso, alto e encharcado, devido à chuva intensa que caía desde alta madrugada. O Nascimento entrou num “trilho” que a nossa tropa abrira, uns dias antes. O normal (todos sabiam mas, na hora, escolhe-se, regra geral, o caminho mais fácil) seria abrir nova vereda mas, devido às dificuldades ambientais e à falta de experiência da chefia, escolheu-se o caminho menos complicado, na aparência, mas… errado e perigoso. Percorridos poucos metros, ouve-se a enorme explosão… duma “bomba” potente, um rebentamento descomunal. O enfermeiro, Pereira, 1.º cabo n.º 2515, natural de Entre-os-Rios (entretanto, já falecido), acorreu à cabeça da coluna (local da explosão) e deparou com um acidente horroroso – estendido no capim, o Nascimento tinha apenas um pé; o outro não mais foi avistado. O profissional da Enfermagem, cumpriu cabalmente, o seu dever: um garrote para estancar a perda de sangue; um penso para proteger a zona afetada e soro para reestabelecer a pressão da corrente sanguínea. Naquele local e com os meios disponíveis, nada mais poderia fazer para reverter a situação.

Devemos ter em devida conta que os nossos enfermeiros levavam sempre, a tiracolo, uma bolsa enorme cheia de medicamentos e similares para enfrentar as situações mais complicadas. A maior carga seria a elevada quantidade de frascos de soro – e quantas vezes nos fizeram um jeitão do caraças! À saída do aquartelamento, aquela bolsa pesaria uns vinte quilos… bem medidos.

Um dia, em data que não conseguimos confirmar, patrulhávamos a região de Sanjalo; a CCav 487, de Farim, andaria, ali perto, como havia sido acordado. Detetámos um acampamento e os seus ocupantes foram obrigados a dar corda às sandálias; fugiram em direção à estrada de Farim. Minutos mais tarde, ouvimos, mais a sul, um forte tiroteio. A 487 vinha, estrada fora e teve de pagar as favas.

Corremos em direção à dita estrada onde, segundo informação do PCA, havia um ferido grave. Quando nos encontrámos com a tropa de Farim, ficámos aturdidos com aquela confusão; ninguém conseguia gerir a situação. Além do mais, eles traziam poucos medicamentos. Os nossos enfermeiros entraram em ação e a barafunda acabou. Parecia que os nossos (os de Binta) eram os “velhos” e os 487 aparentavam ser “os periquitos”. Nós sabíamos que o BCav 490 tinha participado na tão badalada “guerra do Como” que terá sido algo extremamente complicado. Avante!

Voltemos ao tema do nosso caro Nascimento! Via rádio, foi logo pedida a evacuação dum ferido tipo Y (épsilon); tratava-se duma espécie de código que significava um “ferido muito” grave. O heli não aparecia; o homem do rádio insistia. Passado “longo tempo” (naquela azáfama, um minuto parecia uma eternidade) informaram da base aérea de Bissau que, devido ao mau tempo, o heli não podia sair – o risco seria enorme! Decidiu-se voltar ao aquartelamento (Binta), em alta velocidade (a velocidade possível, em tais estradas). A cor do rosto do Nascimento e o seu comportamento faziam prever o pior. Em Binta, o dr. Barata poderia fazer mais um dos seus preciosos milagres. Era a esperança, a tábua de salvação daquele pessoal atormentado.

Durante o percurso, um solavanco mais forte desequilibrou o soldado que segurava o frasco do soro e a agulha “desenfiou-se” da veia, deixando o sinistrado sem receber soro. Tentaram reintroduzir a agulha no local devido mas… tal não foi possível. Mais à frente, falaremos de “veias bailarinas”.

Os homens do Rádio continuavam a insistir, nervosamente, na evacuação dum ferido muito grave. Estes chamamentos aflitivos chegaram aos ouvidos do piloto, Honório; sabendo tratar-se da CCaç 675, voluntariamente, ele decidiu rumar a Binta, numa avioneta; fez voo rasante, ao longo da costa e depois sobre o Cacheu, aterrando, um pouco mais tarde, em Binta e em segurança. Levava consigo um mecânico. Porquê um mecânico e não um enfermeiro? Certamente terá pensado que, no meio daquele temporal, o mecânico poderia ser-lhe mais útil, ou seria o que tinha, ali, à mão. Por outro lado, ele sabia que em Binta havia um médico ótimo e enfermeiros muito bons.

Na pista de Bissau, uma ambulância aguardava a chegada do Honório com o sinistrado. Após a aterragem, a transferência foi rápida mas, logo, se aperceberam que o garrote vinha desapertado e o Nascimento perdia sangue. Reapertado o garrote, a ambulância seguiu, em velocidade, para o HM 241. Entrou na estrada principal e… o inacreditável aconteceu! Um pneu “explodiu”! O condutor correu, até à base e trouxe outra viatura.

Depois de tantos “trancos e solavancos”, o Nascimento veio a falecer, nas escadas de acesso ao HM – um azar do caraças.

Parecia que o Nascimento pressentiu que chegara ao seu dia fatídico. O enfermeiro, Oliveira, contou que, naquele dia o soldado Nascimento foi dos últimos a entrar na formatura, às primeiras horas daquele dia estuporado. Normalmente, ele era um dos primeiros a chegar. Pediu desculpa pela demora e justificou-se: - “Estive a arrumar a correspondência”. Coincidências estranhas, em dia de tanto azar!

Nesse dia, 30 de julho, o Tavares encontrava-se, em Bissau, e de nada sabia. À tarde, casualmente, encontrou o Honório, na baixa da cidade, e ele informou:
- Fui, hoje, a Binta! Trouxe um ferido que faleceu, já no hospital!
- Onde o recolheste?
- Em Binta!
- Sabes o nome do sinistrado?
- Nascimento!
- Que grande porra! É meu!

O Tavares “pegou” um táxi para o HM. Logo, à entrada, encontrou o enfermeiro, Martins, o Rato, de quem falámos no texto anterior. Ele encontrava-se, tremendamente, nervoso, mesmo exaltado! Ele perguntou:
- Sabe o que aconteceu, meu alferes?
- Sei! A vítima fatal foi o pobre do Nascimento!

O Rato praguejava por todos os poros e comentou:
- Eu safei vários em estado bem mais grave! Não sei como isto pode ter acontecido. Será bom que se averigue!

Seguido pelo Tavares, o Rato percorreu uns corredores, abriu uma porta, sacudiu, bruscamente, um lençol e… ali estava o Nascimento, estendido sobre um colchão… sem um pé mas, inacreditavelmente, estava defunto.

O Tavares procurou o médico de serviço a quem solicitou explicações. Ele declarou:
- Sei, apenas, que o soldado morreu, antes de entrar no hospital; se ele aguentasse mais uns segundos e entrasse na sala de operações, não morreria. Nada mais sei! Nada mais posso acrescentar!

O Tavares retorquiu:
- Ainda ontem, eu vi um alferes entrar neste hospital com as duas pernas cortadas por uma rajada, a nível dos joelhos e não morreu. Como é que este não resistiu… apenas com a falta de um pé?

Eis a resposta do médico:
- Algo terá corrido mal entre a hora do acidente e a chegada a este hospital. Sobre isso, nada posso adiantar, porque desconheço, em absoluto. Se pretender outros pormenores, o melhor será seguir o caminho em sentido inverso.

Entretanto, em Binta, logo pela manhã, o dr. Barata, o nosso bom Galeno e o Oliveira, contactaram o HM 241 para saber novas do Nascimento. Receberam, de chofre, a notícia mais brutal e inesperada:
- O Nascimento morreu!

Seguindo o conselho do médico do hospital, o Tavares socorreu-se do piloto Honório para saber outros pormenores. O Honório, um grande amigo e admirador da CCaç 675, averiguou com os telegrafistas da base aérea como tudo tinha acontecido:
- O “teto baixo” atrasou e impediu o socorro, apesar das insistências…

O Tavares interrompeu, perguntando:
- O que é isso de “teto baixo”?

Explicaram:
- São nuvens e/ou nevoeiro espesso, rente ao solo; com teto baixo, o heli não pode sair.

Ninguém ordenou que o Honório partisse para Binta, de avioneta, mas ele era arrojado e, sabendo que a CCaç 675 estava em dificuldades, saiu por sua conta e risco.

De seguida, o Honório solicitou a um médico, ali presente, que ajudasse a esclarecer como aquilo teria acontecido. O médico fez várias considerações (inconclusivas). Por fim perguntou:
- Sabe se fizeram o “desbridamento”?
- Não sei o que é isso! – respondeu o Tavares.
- Quando não se consegue apanhar a veia para introduzir soro na circulação sanguínea, faz-se o “desbridamento”, ou seja, corta-se a pele onde a veia está mais à superfície, “pega-se a veia à mão” e introduz-se nela a agulha do soro.

Acrescentou que, devido a uma perda anormal de sangue, as veias tornaram-se “bailarinas”. Isto significa que, nessa altura, as veias “desviam-se” de tudo o que é metálico, “temendo” perder mais sangue, colocando-se em causa a resistência humana.

Anos mais tarde, o Tavares falou de “veias bailarinas” e “desbridamento” com o nosso amigo Oliveira ele respondeu que ouviu esses vocábulos, pela primeira vez, aquando do ferimento do Nascimento.

Acrescentou que o dr. Barata se preparava para fazer o desbridamento quando o Honório aterrou em Binta. Logo desistiu (não iniciou a operação) porque não havia tempo a perder e porque a avioneta e o piloto podiam fazer falta noutro local. Naquela hora, o mais importante era a entrada do Nascimento no hospital, o mais rapidamente possível.

Durante esta conversa, o Oliveira, ainda informou:
- Quando o Nascimento chegou a Binta, a primeira coisa que fiz foi proceder à troca do garrote. Eu tinha comigo um garrote diferente dos nossos; era usado pelos fuzileiros; era mais seguro e menos doloroso do que os que nós usávamos.

O Tavares perguntou:
- Era possível que o tal garrote se desapertasse, por si só, durante o voo?

Um “não” categórico foi a resposta.

O certo, porém, é que o Nascimento chegou à base aérea com o garrote desapertado e, portanto, a perder algum do pouco sangue que lhe restaria.

Acontece que todos nós sabíamos que os garrotes deviam ser “aliviados” de quarenta em quarenta minutos, aproximadamente. Depreende-se que o Nascimento o terá desapertado e… não conseguiu reapertá-lo.

Fatal!

Entre nós e sobre este tema lamentável, não houve mais conversa! Assunto encerrado! Em boa verdade, nada nos traria o amigo Nascimento de volta! Porca miséria! Ironias do destino Acabado de narrar este caso de triste memória, vamos transmitir uma notícia também amarga: - o Fernando Marques da Silva, mais conhecido por “Dentinho” (ele exibia um dente de ouro) faleceu, recentemente. Vivia na região de Lisboa e esteve ligado aos “caminhos de ferro”. Foi a esposa que nos transmitiu esta notícia tão danada.

Podemos afirmar que aquela senhora, nossa conhecida de longa data, foi extraordinária, avisando-nos da morte do marido. É bom que os familiares dos nossos companheiros, que vão “partindo” cumpram esta espinhosa missão. Acreditem! O Tavares não adivinha o quer que seja – tem de ser avisado! Caso contrário… não há notícias para ninguém.

Por vezes, ele recebe estas novas, quando telefona a convidar um companheiro para mais uma confraternização. Não esqueçam de “ordenar” à família que deve comunicar estes acontecimentos, por mais tristes que sejam, ao Tavares. Ele avisará os restantes companheiros. Seria bom que não ocorressem tais factos. Durante anos, o Dentinho foi um participante assíduo das nossas confraternizações.
Inicialmente, ele era condutor mas, devido a um acidente, ainda em Bissau, passou a atirador.
Ele era o sold. Cond. auto 2575; passou a soldado atirador com o mesmo número.

Quando, no dia 5 de janeiro de 1965, levámos a cabo a célebre incursão na península e base de Sambuiá, já no regresso, a poucos metros da picada de Guidage, entre Cufeu e Ujeque, o Dentinho caiu desmaiado, no meio do capim, com um princípio de insolação, devido ao gigantesco esforço despendido, à hora de maior calor. Foi, na verdade, uma tarefa tremendamente exigente. O fur. mil. Oliveira tratou dele e, pouco depois estava como novo.

Neste mesmo dia e quase à mesma hora – estávamos ao fim da tarde -; o Firmino Padre Eterno, sold. Cond. auto. n.º 2775, ao volante da sua GMC, detetou uma mina anticarro, naquela picada. Por pouco, não a fez explodir! Seria um acidente gravíssimo, principalmente, porque uma semana antes – 28 de dezembro de 1964 – uma mina semelhante destruiu o unimog do Malveira (sold. Cond. auto n.º 2577, Virgílio Manuel Martins de Carvalho). Provocou a morte imediata do companheiro, fur. mil. inf. Álvaro Manuel Vilhena Mesquita, três feridos graves e quatro feridos menos graves. Seria, para nós, extremamente gravoso sofrer um novo acidente semelhante, em tão curto espaço de tempo. Psicologicamente, seria ruinoso para nós mas, pior que o fator psicológico, seria o real… que na verdade não aconteceu, porque… tínhamos ao nosso lado, ao volante da GMC o Padre Eterno.

Digam lá que não é bom ter um Padre Eterno… como amigo – é sempre uma muito boa ajuda!

O Padre Eterno conseguiu parar a GMC (ficando a mina entre as duas rodas da frente daquela viatura, velha p’ra caraças, tinha apenas travão de mão. O de pé tinha ido pró maneta).

O Firmino contou:
- Eu vinha a seguir as pegadas de uma vaca, na areia; de repente deixei de ver as marcas das patas do animal; vi o rasto dum pneu e parei. O nosso fur Pedra barafustou comigo e eu disse-lhe que estava ali uma mina. Ele meteu lá o pé e… quase virou calhau, quando viu aquela “bomba”.

Retirada a viatura do local, o nosso sempre presente capitão fez explodir aquela mina danada… sem perigo para ninguém.

De seguida, alguém que gosta de se rir e fazer rir os outros, disse ao Padre Eterno, o homem do dia:
- Tu vinhas a seguir as marcas das patas da vaca mas, o que tu tiveste foi… uma “vaca”… do caraças!

Assim terminamos a nossa tarefa de hoje. Será retomada se, antes do fim do ano, surgir outro assunto que mereça ser tratado.

Nota: retomamos a escrita porque, entretanto, soubemos que o 1.º cabo n.º 2133, Filipe Manuel Ferreira dos Santos, do 3.º pelotão faleceu em 2015. A informação foi prestada pelo companheiro Ataíde (o do morteiro) que foi (quase) o dono da CP. Ele conhecia um cunhado do Filipe Santos que lhe deu a triste nova. Dessa vez a esposa “esqueceu-se” de nos avisar. O Filipe trabalhou na Lisnave mas, há anos, foi vítima de um AVC e ficou debilitado… para o resto da sua vida. Assim, perdemos mais um elemento de grande qualidade. Aquando do ferimento do 2.º sarg. Gouveia Marques, em Caurbá, o Santos passou a comandar a 1.ª secção; fê-lo com brilhantismo até à chegada do fur. mil. Andrade. Fazia uma boa equipa com o 1.º cabo João Moura, n.º 2137.

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Nota do editor:

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22 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25425: CCAÇ 675 - Guiné 1964 / 66 - Retalhos do nosso pós-guerra - II (Parte I) (Belmiro Tavares)
e
23 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25431: CCAÇ 675 - Guiné 1964 / 66 - Retalhos do nosso pós-guerra - II (Parte II) (Belmiro Tavares)

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