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quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12468: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (11): Crónicas (ausentes) de "Tarrafo" (2): Gente amiga, Onde há macacos... e Despedida com lágrimas

Terminamos hoje a série "Últimas Memórias da Guiné", com o segundo grupo de 3, de 6 Crónicas (ausentes) de "Tarrafo"
Diz o autor desconhecer como estas (6) histórias não saíram na edição daquele livro. Lembremos que o "Tarrafo" é composto por crónicas enviadas da Guiné para serem publicadas no Jornal da Bairrada, pelo, hoje considerado o primeiro repórter da Guerra do Ultramar, Armor Pires Mota, que foi Alferes Miliciano da CCAV 488.


ÚLTIMAS MEMÓRIAS DA GUINÉ - 11

Por Armor Pires Mota (ex-Alf Mil da CCAV 488/BCAV 490, Bissau e Jumbembem, 1963/65)

CRÓNICAS (AUSENTES) DE TARRAFO - 2

Por qualquer motivo, não incluí na edição do TARRAFO alguns textos que foram inseridos no Jornal da Bairrada. Ora aqui os recupero, passado meio século. Tal como aconteceu com o“Diário de Bordo” que naufragou com a nau do esquecimento.

Gente amiga

“Maio de 1964

Os que se refugiaram no Senegal sentem que aquele não é o seu chão. E, quando souberam do nosso acantonamento junto à fronteira, alguns homens grandes vieram falar à tropa, ao capitão [Correia Arrabaça]. Queriam regressar, ajudariam a tropa a fazer o quartel e a patrulhar a zona, quando lhes déssemos armas, fariam ali as suas moranças, o seu chão seria ali. Além fronteiras, sofriam fome, privações e muitas vezes iam à suas antigas aldeias buscar alguns víveres. Ainda há dias encontrei meia dúzia de homens com mantimentos à cabeça, aos ombros. Perguntando-lhes o que faziam por ali, vi que lhes podia dar boleia até ao acantonamento. Dali ao Senegal a distância era mínima.

Falaram dos terroristas: “ bandido levar gente amiga de Português para o mato, roubar tudo. Assim, a gente sem arma, fugir”. Queixaram-se também de fome e privações: “no chão de Francês corpo dói, cabeça dói e gente mesinho cá tem… no chão de Francês vianda cá tem”. Era sabido que muitos naturais do país vizinho, e em tempos sucedia o mesmo no sul, vêm por vezes aos nossos postos de socorro da fronteira.

Gostariam de regressar, eram largas centenas. Não queriam estar mais debaixo da bandeira do Francês.
O caso foi exposto a quem de direito.”

Jornal da Bairrada, 6 Março 1965

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Onde há macacos…

Jumbembem, 11 de Dezembro de 1964

Caminhávamos, há três horas, na húmida noite do capim. Ao amanhecer, entrámos na tabanca. Deixámo-la intacta como não tivesse ares de comprometida. De cima da avioneta, o tenente-coronel [Fernando Cavaleiro], ia dando indicações, por aqui, por ali. E assim fomos ter à estrada, vencendo a bolanha.

Dois bandidos, vestidos de azul, sentados na berma, junto de um monte de árvores tombadas, ficaram surpresos e apalermados, não nos esperavam ali.
– Olhe bandidos! – disse o Estremoz, num cicio de espanto.

Cheguei-me junto dele. Apontou, carregou no gatilho e… nada. Ficou furioso. A arma encravara-se. Eles toparam a nossa presença e, fugindo, enrolaram-se no capim. Ainda atirei, mas em vão.

Certamente tinham vindo da emboscada montada à coluna auto em que houve dois feridos graves. O furriel enfermeiro, atingido nas costas, injectou e pensou o melhor que pode, os feridos, e somente no fim é que se injectou e pensou com a ajuda de um camarada. O Faustino, terrorista recuperado, contorcia-se com os estilhaços cravados num dos olhos.

Era a terceira ou quarta vez, que eu via tão de perto bandidos armados. Em combate, isso é difícil. De resto, nem mortos, é muito raro. Em geral, só rastos de sangue, guardas-de-corpo [amuletos]. É que, junto de cada atirador, há sempre quem saiba também dar ao gatilho. Assim, caso o atirador fique ferido ou morra, há outro que toma conta da arma e defenda a posição, o melhor possível, enquanto outros guerreiros arrastam para fora do local da emboscada o ferido ou o morto. E assim sucessivamente.

Um T6 sobrevoava-nos e o rádio-telefonista contactava o estacionamento:
– Estamos de costas…

Regressávamos. Eu falava para o Peixe e ele apontou-me:
– Olhe ali plantas de ananás!

Olhei. Por detrás das árvores, macacos saltavam, gritando. Achei a coisa natural, porque sempre ouvira dizer: “onde há macacos, não há terroristas"…

O Montes, que devorava um pedaço de pão com um naco de polvo assado do jantar da véspera, interrompia-me:
– Quando há-de ser o dia em que havemos de atirar-nos para o charco?

Mal eram ditas estas palavras, o fogo, vindo do mato, da esquerda e da direita, fez-nos arremessar para o chão em menos de um segundo. Os da frente tombaram de cabeça na bolanha. Encharcaram-se todos. Mas todos, num relâmpago, abriram uma estrondosa fuzilaria, estrondosa e cerrada. Por sua vez, a Fox batia a zona com fogo preciso e o T6 fazia acrobacias, metralhando, reforçando, desse modo, o estridular das armas.

Regressados ao quartel, pela calada da noite, houve grande choro para os lados de Bricama. Ouvia-se, quase imperceptível, o rumor dos tambores. Muitos haviam tombado definitivamente.

“Onde há macacos, não há bandidos"…
Pelo menos para nós, pela primeira vez, isto era mentira.

Jornal da Bairrada, 29 Maio 1965

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Despedida com lágrimas

Jumbembem, 14 de Agosto de 1965

A minha companhia teve conhecimento no dia 13 de Junho que ia abandonar Jumbembem, no dia seguinte, rumo a Farim. Houve lágrimas e euforia. “A aldeia ficou muito triste quando soube [dia 13 de Junho de 1965] que íamos ser rendidos. Alguns homens e bajudas [raparigas] começaram a pedir-nos fotografias para recordação. O Bassiro[chefe da tabanca], de voz entaramelada, desenhou no rosto olhos húmidos de saudade. Éramos amigos e íamos partir para sempre”.

“Para nós foi dia de festa e algazarra. Cervejas, abraços, gritos do viva a peluda! O Caracol puxou do acordeão e logo se lhe juntou uma comitiva terrível de euforia: soldados batiam latas, cantando, enquanto as miúdas batucavam, saltando, batendo palmas. As ruas encheram-se de música, à luz da lua que alongava os ramos dos mangueiros sobre os tectos das moranças. Cantar para melhor cicatrizar as carnes frescas de sofrimento, as feridas que a guerra nos abriu, embora nos recordemos sempre”.

[No dia seguinte, houve a cerimónia ritual da despedida, à volta da bandeira hasteada]

“Os homens alinhados no terreiro, fardas coçadas, esperavam o toque do clarim. Havia olhos febris, ensonados. Dormir, quando se faziam tantos planos? Além disso, a noite fora de festa e algazarra, ar morno e lua enorme em forte e irresistível magia a bater-nos no peito. Cervejas, abraços, gritos. O Caracol puxou do acordeão de novo e logo se lhe juntou uma comitiva terrível, eufórica: os soldados batiam latas, cantando num coro dissonante, esganiçado, mas verdadeiro, e as miúdas, a Ansaro, a Usita, todas de sorrisos brancos caindo dos lábios, encabeçavam o cortejo, batucando, saltando, cabriolandso, batendo palmas. Encheram-se as ruas de música. E pouco importava que eles viessem farejar o ararme-farpado. Seria uma despedida em cheio, com golfadas de aço e estridular fogoso das nossas armas, onde muitos haviam gravado o nome da mãe, namorada ou noiva.

Jumbembem, 1964/65 - Grupo de bajudas cujas blusas lhes foram ofertadas pelos alferes de CCAV 488 

Jumbembem - Mostra de grande empatia que se estabeleceu entre a população e a tropa. Cp Fernando Tomaz filmando a menina Usita, no fim de uma dança. Criança que, rapariga feita e bonita como era, se enamorou, de verdade, de um alferes. Teria uns belos 18 anos. Casou, foi viver para Bissau, mas não foi feliz. Morreu cedo.

A aldeia triste saiu toda a terreiro. A tropa que ela tanto amava, ia partir para Lisboa. Lisboa significava para longe, para nunca mais. Uns pediam fotografias; outros, simples lembranças. E o Bassiro, o homem grande da tabanca, adiantado, de voz entaranelada, deixava desenhar nos olhos húmidos duas brancas conchas de tristeza, enquanto a Salimaro, criança encantadora, chupava dois rebuçados que algum soldado havia distribuído.

O burburinho cresceu. As camionetas da companhia que nos vinha render, ultrapassaram os frisos de arame farpado num ronronar confuso e os soldados comentavam as duas caveiras de boi, chifres espetados no ar, provocadores, encimando a entrada. Depois desceram, dispersaram-se em pequenos grupos, mirando, inquirindo as instalações, os fortins de palmeira e terra, o rio a morrer de sede, a redondeza luxuriante.

Com a tropa nova no tereno, o clarim, soou. As notas marciais estremeceram o peito, a manhã clara a prometer um sol violento e perderam-se na selva imensa, num desafio quase irónico. Os soldados, perfis homérico de leais espartanos, rígidos e impecáveis como estátuas, plantaram os olhos na bandeira esfarrapada que subia a bailar, a enrodilhar-se no vento sul.

Jumbembem - Tarja de saudação da CCAV 488 à Companhia que a foi substituir

Num rápido desdobrar de memória, vejo o Montes, de boina castanha sempre tombada sobre a orelha, carregado de manhas de contrabandista que fora, voluntarioso e de uma ferocidade cruel na luta; o Salgueiro, medroso como uma mulher, que não era capaz de denominar o medo. Mas que ultimamente amassava e cozia saboroso pão. Mas quem o ouvisse falar, dava-lhe honras de herói. E lembrava os soldados negros: O João, o Lassana. O João de fina argúcia, inteligente e sonhador, e o Lassana, baixo, calado, mas ambos grandes e iguais a qualquer branco. E murmurei os nomes do Peixeiro e o Rogério, eternamente ausentes.

Jumbembem - A "padaria" do aquartelamento

Voltou a soar o clarim. Todas as mãos caíram ao longo da farda numa pancada seca e curta. O sol, de arranhar-se na selva, vinha sangrento e criador.

A hora da partida trouxe já um sol violento. As crianças e as raparigas, de olhos tristes, formaram cortejo para nos beijarem. Quando a hora chegou, então foi um nunca mais acabar de apertos de mão. As mulheres diziam-nos coisas comovedoras e tivemos de engolir uma ou outra lágrima.

Os motores das viaturas começaram a ronronar. Eram os últimos apertos de mão e os últimos beijos das crianças. Entoámos o Hino do Batalhão [da autoria do major Alexandre António Bahia Rodrigues dos Santos] e as viaturas começaram a mover-se devagarinho, a sair do quartel. Os negros saltaram para a estrada. E então foi a explosão dos acenos e das lágrimas, rumo a Farim”.

Jornal da Bairrada, 21 Agosto 1965

[Esta gente boa, com quem fizemos empatia e amizades, recolhera à nossa protecção. Erguemos-lhes casas novas em adobes de terra e viveu connosco todo o espectro de uma guerra, sofrendo com a tropa os desaires e alegrando-se quando não havia feridos e mortos. Éramos quase uma família, cujos membros se respeitavam. No meio da parada, havia o pau para hasteamento da Bandeira Nacional e à sua volta, foi desenhado com garrafas de cerveja o emblema do Batalhão, o que era também nosso ponto de honra].
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Nota do editor

Vd. postes da série de:

25 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12341: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (1): Diário de bordo - A primeira grande desilusão

27 de Novembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12351: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (2): Diário de bordo - Ó mar salgado!

29 de Novembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12360: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (3): Diário de bordo - Manhã azul e Deus ao leme

2 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12378: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (4): Cinco dias no Niassa; A primeira grande experiência e Dois alferes de uma só vez

4 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12386: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (5): Ilha do Como - Operação Tridente

6 de Dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12397: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (6): O casamento do Jaime e da Manuela, A macaca ciumenta e O dia de santo avião

9 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12419: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (7): Os macacos vermelhos

11 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12432: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (8): Aerogramas para a Lili (1)

13 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12444: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (9): Aerogramas para a Lili (2)
e
16 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12458: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (10): Crónicas (ausentes) de "Tarrafo" (1): Bandeira branca, O Vicente e Palhota sem luz

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12458: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (10): Crónicas (ausentes) de "Tarrafo" (1): Bandeira branca, O Vicente e Palhota sem luz

Passamos hoje a publicar o penúltimo poste da série "Últimas Memórias da Guiné", com o primeiro grupo de 3, de 6 Crónicas (ausentes) de "Tarrafo"
Diz o autor desconhecer como estas (6) histórias não saíram na edição daquele livro. Lembremos que o "Tarrafo" é composto por crónicas enviadas da Guiné para serem publicadas no Jornal da Bairrada, pelo hoje considerado o primeiro repórter da Guerra do Ultramar, Armor Pires Mota, que foi Alferes Miliciano da CCAV 488.


ÚLTIMAS MEMÓRIAS DA GUINÉ - 10

Por Armor Pires Mota (ex-Alf Mil da CCAV 488/BCAV 490, Bissau e Jumbembem, 1963/65)

CRÓNICAS (AUSENTES) DE TARRAFO - 1

Por qualquer motivo, não incluí na edição do TARRAFO alguns textos que foram inseridos no Jornal da Bairrada. Ora aqui os recupero, passado meio século. Tal como aconteceu com o “Diário de Bordo” que naufragou com a nau do esquecimento.

Bandeira branca [ou pontaria de maçaricos]

“Preso a uma cana esguia, no cimo tremulava um farrapo que, entre a sujidade e os buracos, tinha uma cor esbranquiçada.

A guerra fora ali perto, difícil. E o caminho era longo e escaldante e o cansaço juntava-se à sede para quase apetecer ficar por ali estendido à sombra de alguma árvore amiga. Mas a água daquela cântara, feita, um dia, pelas próprias mãos, de um barro quase escuro, fora uma fonte e uma bênção. Bebi duas ou três goladas, mas apetecia-me bebê-la toda, até sentir frescuras por todo o corpo ainda ensonado. Depois, estendi o corpo pesado à sombra de uma sebe que se estendia em volta da tabanca, feita de palmas secas entrelaçadas.

De arma ao lado nem sequer pensei que a vida, umas vezes corre atrás de nós com pedras na mão, como se fôssemos algum farrapo que alguém deitou fora e nos escorraça da sua porta sem dó nem piedade, mas também, outras vezes, nos coloca rosas na mão esquerda. Acho que era o caso.

Um velho que andava aí pelas 50 chuvas, a tremer de medo, nos matou a sede. Ali, ele e mais ninguém. E os filhos por que caminhos escuros andariam, onde nos esperariam eles àquela hora de incêndio no nossos ombros?

Quando o Américo, escarrando poeira, meteu a cântara à boca, do lado ouviram-se comentários e troças:
– Olha, a Amélia não tem vergonha… – E repetiam as palavras chocarreiras que ele, pouco tempo antes na luta, lançara ao vento, quando alguns invólucros do colega da esquerda lhe bateram no capacete:
– Ah, ladrões, que já me mataram… já fiz nas calças…

Mas o Américo calmamente tragou mais ou dois ou três goles e, entregando a cântara a outro, disse, muito senhor de si e com ares de quem os ia vencer e convencer pelo bom humor:
– Quem fez este, já não faz outro! – E sorriu-se.

O Américo é um daqueles tipos fanfarrões que têm os seus heróis, destemidos, audaciosos. Ele mesmo é um herói de trazer por casa, quer dizer pela caserna ou pela cozinha. Faz tudo. É capaz de matar manga deles e até esfolá-los, persegui-los. Mas isto só quando está longe dos apertos. Por isso, os colegas lhe chamam o Garganta. Justamente.

Partimos. O inimigo esperava-nos certamente noutro lugar, mais longe. Passados oito dias, Bigine era um monte de cinza abandonada, uma aldeia de paredes caídas.

O farrapo que posto ali pelo medo que era uma mentira naquele coio de bandidos (qual paz, qual quê?) poderia ter sido uma cilada.

Desde então, aprendi, todos aprenderam a andar no mato de pé atrás. A gente nunca sabe bem o terreno que poisa nem a água que bebe”.

Jornal da Bairrada, 3 Outubro 1964

[Esta operação visava capturar ao IN um helicóptero que, segundo informações do QG, vinha descarregando em Morés material bélico. Estiveram envolvidos o meu batalhão 490 e o de Bula (513), comandado pelo coronel Hélio Felgas. A operação deu em nada. No regresso, as companhias 487, 488 e 489, seguiam trilhos diferentes. O nervoso era algum e bastou alguém disparar um tiro para arrremessar para o bordo dos caminhos mais de 300 homens que não ficaram mais à espera de ordens. Encarniçaram-se em gorda metralha, até que alguém, o alferese Jaime Segura, apercebendo-se que o matraquear era todo das G3, pôs cobro àquele lamentável lapso, que poderia ter redundado em mortandade, mas a metralha passava felizmente mais alta ou mais baixa, mas não deu para fazer um único arranhão. Era pontaria de maçaricos].

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O Vicente

Mansabá, 10 Setembro 1963

O Vicente era Manjaco. Conheci-o naquele noite em que cheguei a Mansabá. Estendido no cimento, choramingava, de pés atados e presos a um dos prumos do telheiro da antiga escola primária, roupa manchada de nódoas, não sei de quê, e de chapéu Zorro no chão.

Para mim, era um homem igual a tantos outros. Depois, contaram-me a história, a história de tantos outros, e fui sabendo-a de cor à medida que as noites iam passando. Conheci-o nessa noite infernal para mim. Deitara-me na tenda que havia com o vento tentado deixar-nos à chuva e ao vento. Mas, constrangido, doíam-me todos aqueles gritos de dor ou de raiva e os tristes cânticos de morte que ele ia resmungando. Levantei-me. Tremia. Nessa noite assisti, constrangido ao máximo, ao julgamento, feito pelo capitão da companhia ali acantonada.

 – Bó cúnhece bandido?
 – Mim cá sibi…. Si fala, mim murre, capiton! – E citava alguns nomes.

Em cada suposta mentira ou falsidade em que fosse apanhado, um murro pesado estendia-o no chão, enquanto alguém o levantava pela roupa e o sentava de novo. Presidia uma grossa “menina” de cinco largos olhos, que caía, repetidamente, nos dedos dos pés, nos joelhos, nas unhas. E ainda uma ou outra vez uma faca o ameaçava.
– Bô cúnhece bandido, bô metido na coisa, hem?

Aquela noite gravou-se no meu espírito e não dormi. Os gritos arranhavam minha pele:
– Pelos meus filhos, capiton!

Eu, nada confortável em meus sentimentos, jurava a mim mesmo que não voltaria a assistir a tal julgamento. Tinha o acordo do médico.   Vicente tremia todo como se estivesse como paludismo e, de vez em quando, trincava os lábios grossos e olhava para o chão com olhos duros e enormes, soluçando lágrimas.
– Pelos meus filhos, capiton!

O Vicente continuou preso e dava-me um dó enorme o seu aspecto. Agora, com os pés entalados numa tábua, sempre presa no mesmo lugar, sentado no chão, envolto em moscas e cismando não sei o quê, talvez no arrependimento.

A faca é que uma noite, em que de novo eu com o médico não quisemos colaborar naquele espectáculo macabro, é que lhe ia tirando a vida, usando-a pelas suas próprias mãos para se ver livre de uma vez por todas. Estava cansado de tanto interrogatório. Num repente, sacou-a de cima da mesa e nem sequer alguém teve tempo, ou intenção, de sustê-lo. Cravou-a no abdómen que se rasgou. Mas por quê deixá-lo morrer assim às suas próprias mãos? A vida de um homem é preciosa, seja ele quem for e o médico cumpriu a sua obrigação: meteu-lhe as tripas dentro. Coseu, coseu. Tratou-o e, passados dias, estava curado e bem disposto, dizendo graças. Tornou-se o chefe de outros prisioneiros que não tiveram aquele esquisito e brutal tratamento. Fez-se simpático. Dividia a comida, o pão e a água, que lhe dávamos, por todos. No fundo, tinha um bom coração.

Solto, o Vicente trabalhou, ajudando alguns dias na cozinha, e, dias depois, foi para casa para junto das duas mulheres e das filhas.

Vi-o no outro dia de bicicleta e de boina ao lado.

Jornal da Bairrada, 14 Novembro 1964

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Palhota sem luz

“24 de Maio de 1964

Naquela noite de luar, dependurado sobre a madrugada, os meninos tiveram a terra, o dia e o sol a aquecer-lhes a nudez, um tecto de colmo, o silêncio do mundo, mas não tiveram presentes, um berço pobre que fosse, as palhas de uma manjedoura ou o bafo quente de animais. Nada. Pobres como a nudez. Irmãos de tantas crianças iguais.

O pai morrera-lhes, há meses. A mãe de dor rebolara-se na terra batida da palhota e os meninos sentiram logo a dureza do chão a magoar-lhes a vida tão tenra e frágil. Sabia que por ali perto andava tropa. Em nomadização. Veio ao nosso encontro. Quando o médico [Dr José Hipólito de Sousa Franco, natural de Lisboa] lhe disse que ia mandá-la para o hospital, ficara mal do parto, embora tivesse vindo a pé até nós, ela desenhou nos lábios carnudos um sorriso triste, quase medroso. Depois, colocou no fundo de uma bacia, que fora esmaltada, mas em tal estado que se poderia ver o céu ou o mato por ela, uns farrapos sujos e neles aconchegou, com todo o carinho, os dois rebentos, cor esbranquiçada, [como nascem todos os meninos negros], e cobriu-os com as pontas dos farrapos com um olhar cheio e feliz.

Ela partia de jeep.

Eu tive que partir também para outro lugar. Nunca mais saberei nada da sorte da mãe e destas duas crianças. Mas sei que fiquei feliz pela mãe e por elas. Eram gente como nós”.

Jornal da Bairrada, 20 Fevereiro 1965
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Nota do editor

Último posta da série de 13 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12444: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (9): Aerogramas para a Lili (2)

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12444: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (9): Aerogramas para a Lili (2)

ÚLTIMAS MEMÓRIAS DA GUINÉ - 9 

Por Armor Pires Mota (ex-Alf Mil da CCAV 488/BCAV 490, Bissau e Jumbembem, 1963/65)

Aerogramas para a Lili (2)


Foto: Belarmino Sardinha - Editado por CV


“Jumbembem, 6 de Janeiro de 1965
Querida Lili:
(…)
Há notícias que varam uma pessoa e a deixam bloqueada. Esta que soube ontem à tardinha é uma delas. Ontem tropas do nosso Batalhão foram fazer uma operação, uns por terra, outros de barco. No barco pequeno que ia atrelado a outro maior, que o rebocava, a grande velocidade, seguiam 22 homens. Perto do sítio, marcado para desembarque, o barco começou a desequilibrar-se e virou-se. Resultado: oito mortos. Não sabiam nadar, o rio era fundo e, além disso, com o material de guerra que levavam… Tudo isto dói. Num momento, tantas famílias de luto. A guerra é horrível, Lili, terrível, só o diabo a poderia inventar. Mas por quê e para quê os homens se odeiam? Só para fazeres uma pequena ideia do que é a guerra, repara só nestes dados. O meu batalhão (600 homens) já tem 16 mortos e muito perto de 150 feridos, alguns deles irrecuperáveis. E era o mundo tão belo se todos se dessem bem e vivessem em paz. Olha, minha Lili, reza por mim. Só com a ajuda de Deus podemos vencer e só por Deus podemos regressar à terra.
Olha, hoje baptizou-se um soldado negro do meu pelotão. Gostaria de ser o seu padrinho, mas como o capitão também gostava, dei-lhe a preferência. É um moço esperto, inteligente, que quer ir para paraquedista. Eu já lhe disse que, se fosse para Tancos (Santa Margarida), gostaria que ele fosse a minha casa”.

[Os oito mortos integravam o Pelotão de Morteiros 980 do Batalhão, constituído por 33 homens, comandado pelo alferes de infantaria José Pedro Cruz. Iam participar na operação “Panóplia”, dia 5 de Janeiro de 1965, que se realizava na península de Sambuiá, entre o rio do mesmo nome e o rio Talicó. Os soldados embarcaram em dois barcos de borracha da Marinha, carregados com todo o material bélico. Um transportava 25 soldados, mais o comandante, rebocado pela LFG Orion, tal como acontecia com o outro, por um cabo de aço que ia ligar pela parte debaixo aos barcos, amarrado a um ferro existente no fundo do barcos. O desembarque estava previsto que fosse feito próximo do objectivo e junto do rio Cacheu. Só que aconteceu o imprevisto, o cabo partiu-se. A solução encontrada foi que os soldados suportassem nas mãos um cabo mais forte. Só que a ondulação, provocada pela Orion, fazia entrar água pela proa. Os homens tinham sido avisados de que, em caso de emergência, o cabo deveria ser solto de imediao. Foram ainda avisados que o barco de borracha tinha a tendência para baixar a proa, havendo a conveniência em se chegarem mais à ré. Só que, recomeçada a marcha, a ondulação, provocada pela Orion fazia entrar água pela proa. Foi nesse momento que alguns homens que iam na ré, assustados, se haviam de levantar. O alferes ainda os mandou sentar, mas o barco já se achava desequilbrado de um dos lados, acabando por afundar-se. Como alguns não sabiam nadar, rapidamente o pânico se instalou. Foi enorme. O alferes nadou para junto do barco e colocou-o direito, içando-se de seguida. Então, já auxiliado por um soldado, ajudaram outros camaradas a subir para dentro, mas nem todos vieram à tona da água, um única vez. Talvez o peso do material bélico tenha concorrido para tal desfecho. Entre estes oito mortos, dois sabiam nadar, mas também não foram felizes. Repescados todos os que foi o possível salvar desta enorme tragédia (dois dos que se salvaram não tinham largado o cabo), foram levados para a Orion e começaram as buscas em todos os sentidos, mas o que se recolheu então foi apenas algum material que ficara a boiar.
Vítimas desta tragédia, que vitimou tantos quantos os soldados a batalha do Como, eram dois primeiros cabos e os restantes 6 eram soldados. Foi uma madrugada negra na vida do Batalhão].


“Jumbembem, 11 de Janeiro de 1965
Querida Lili:
(….)
Tivemos um fim de ano muito triste, más saídas. Nessa maldita estrada [Canjambari] que dá tantas dores de cabeça à malta, houve mais porrada. É certo quando lá vamos. Houve vários feridos e um Fula, o guia, morreu no helicóptero a caminho do hospital. A mulher que vive aqui connosco, caiu em lágrimas, quando viu o marido na maca. Tive pena sobretudo do filho que chora que nem um louco. São os horrores de uma guerra que não perdoa a ninguém. O homem andava com azar, havia sido ferido aqui há tempos. Azarento e triste fim de ano. Os chefes até parece que têm gosto em fazer estas coisas nestes dias…”

Jumbembem, Janeiro de 1965 - Meninas limpando, aos sábados, a "parada" da CCAV 488
Foto: © Armor Pires Mota (2013). Todos os direitos reservados

“Jumbembem, 30 de Janeiro de 1965
Querida Lili:
(…)
Depois de acordar e ler o que me dizias, não mais adormeci. Estava nervoso, não devido às tuas palavras, mas porque, às 3 horas, tinha que sair para uma operação. Por Deus, correu muito bem, apesar do tiroteio de parte a parte. Queimámos uma aldeia muito grande, montes de arroz e milho e mataram-se os gados todos. Quando estava quase tudo pronto, “os tiços” deram-nos combate violento, instalados na orla do mato. Não sei nem como nem porquê, a malta irritou-se com aquilo e alguns começaram a gritar: “vamos a eles!” Pois, não queiras saber. Levaram uma surra e foram obrigados a fugir, à medida que os perseguíamos, ficando alguns no terreno. Enfim, foi um pé de lume e uma coragem de nos atirarmos a eles, o que poderia ter dado mau resultado, pois foi quase por inconsciência, que nunca vi. Claro, ao fim e ao cabo, ficámos todos partidos, pois fazer 16 kms a pé já não é para nós que estamos fartos disto. Tivemos um ferido que seguiu dali mesmo para o hospital num helicóptero que foi buscá-lo”.


“Jumbembem, 11 de Março de 1965
Querida Lili:
(….)
Estive a arranjar a trouxa para ir até Bissau. Arrumei tudo o que tinha para arrumar e pus abaixo as velhas barbas (até fiquei uma rapazinho!).
Até que enfim, Lili, vou até Bissau. Custou, mas agora parece que é mesmo verdade, se, à última hora, não houver nenhum contratempo. Deus queira que não. Vou amanhã para Farim de onde irei, no sábado, de avião para a capital. Mas, para despedida, ainda esta manhã, tive mais uma operação. Por sinal. correu muito bem. Aconteceu uma coisa que que há muito já não acontecia, não houve tiros. Eles que “brinquem” com os macacos, mas connosco não, estamos fartos. Isto está cada vez pior por toda a província, à beira do precipício.
Agora, começou o azar a bater à porta dos alferes. Há dias, com o intervalo apenas de um dia, morreram dois no sul, um dos quais já tinha 22 meses de missão cumprida. Como vês, as balas não escolhem postos nem tempo de comissão”.

[Em 21 de Novembro já estava eu a contar ir a Bissau tratar da saúde e aliviar as tensões no início de 1965. Para ir à consulta era necessário o médico fazer uma proposta, que teria de ir ao hospital, a fim de ser assinada, autorizada e marcada a data. Mas a assinatura levava por vezes três meses. A minha estava a atingir esse tempo. Era compreensível. O hospital era tão pequeno e tão poucos os médicos que os doentes não eram atendidos, quando deveriam ser, excepto, claro, se estivessem em perigo de vida. Primeiro, estavam os feridos graves e os mais ligeiros, que chegavam de toda a parte. Outra razão que não me havia permitido ir em Novembro, é que o capitão Arrabaça regressava de novo ao hospital e, além disso, andava lá em tratamento outro alferes, dizia eu noutro aerograma de 21 de Novembro de 1964. O remédio era esperar e, como por Deus, não estava assim tão abalado na saúde e não podia inventar doença grave para demorar por lá mais tempo…
Como o capitão Arrabaça havia sido hospitalizado, nos meados de Outubro, tinha mais trabalho: tinha que sair quando calhava o meu pelotão ter de ir para o mato, para a porrada, e tinha que sair, quando saíam os outros dois, como comandante de companhia interino. A porta da guerra ainda estava longe de ser fechada e ainda não tínhamos destruído aos terroristas os planos da pólvora…]

[Noutro aerograma, datado de 13 de Março de 1965, escrevia à Lili a dizer que “a primeira bicharada” já havia desaparecido com o tratamento, mas havia feito mais uma análise e acusava outra espécie menos perigosa e em menor quantidade. Deveria desaparecer. Mesmo assim, não eram tão resistentes, obedeciam à medicação. Dava ainda a notícia do que o nosso conterrâneo Manuel Quintas havia sido operado a um quisto sem importância, enquanto o Victor Santos, ferido numa perna, já tinha tido alta. Disse-me que ia fazer ronha, que não podia andar muito bem. Já tinha uma recordação. Também aguardava pelo conterrâneo, João Barreiras, que enconrei da guerra do Como e me havia dito que vinha passar um mês a Bissau.]


“Hospital Militar, 7 de Abril de 1965
Querida Lili:
(…)
Sabes, já comprei o meu “folar” para os soldados do meu pelotão: vinho do Porto, bolos, amêndoas, que já mandei para o mato. Assim, sempre se lembrarão que, no dia 18, é Dia de Páscoa. Além disso, na minha ausência, tem-se portado à altura, apanhando em combate mais material aos terroristas. Coitados, estão sempre à espera que eu vá… Confesso que tenho saudades dos moços (não da porrada, claro), mas também para ser franco, prefiro estar longe, em Bissau. Aquilo lá está muito mau, péssimo. O médico escreveu-me hoje. Estão muito desanimados. Não sei se já te disse, mas dos três moços feridos, um [negro] foi sepultado na quarta-feira e há outro que está mesmo muito mal".

[Nesta altura, o meu grupo de combate que era de 40 homens, desses apenas vinte estavam válidos, operacionais. Quem comandava o pelotão era um furriel, o único que então tinha dos quatro que inicialemte me pertenciam. Apesar disso e de não ter havido feridos, as operações continuavam].


“Bula, 22 de Julho de 1965
Querida Lili:
(…)
Como já deves ter reparado – e já deves saber pelo Quintas [Manuel Pires de Oliveira] – encontro-me, de novo, no mato. Isto “até ao lavar dos cestos é vindima”, diz-se na nossa terra. Isto é guerra e está tudo dito. Estou certo de que só estou seguro, quando puser o pé em casa. Também é verdade que não me pertencia estar aqui, pois sou o mais antigo alferes ao serviço da companhia. Mas já te digo os motivos. Não vim para lamber as botas a alguém, detesto ser ”engraxador”; não vim porque goste da guerra, detesto a guerra e os seus efeitos, mas vim por estas razões: 1) tinham que vir soldados do meu pelotão e sempre gostei de os acompanhar; 2) porque, devido ao que te contei, não suporto homens com duas caras; 3) porque o lugar onde estamos é razoável. O quartel fica numa vila, Bula. Há tanta diferença entre este e o de Jumbembem…
Isto aqui é quase uma “cidade”. Até se pode sair do arame farpado e dar um passeio, coisa que nunca me aconteceu. O trabalho é que é um pouco chato, porque, noite sim, noite não, temos de guardar um cais. Dormir, não se dorme. Depois, há a praga infernal dos mosquitos e, para refrescar, a chuva. É uma noite perdida. Também dia sim, dia não, lá passamos um dia inteiro a ver chegar e partir embarcações. Só custa menos, porque ora pescamos, ora caçamos ou dormimos… Também veio comigo, voluntário, um colega, o alferes Bretão. Por isso, querida, não te preocupes. A zona onde trabalho, é calmíssima, comparada com as zonas onde tenho estado. Imagina tu que até tem ruas iluminadas…”

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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12432: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (8): Aerogramas para a Lili (1)

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12432: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (8): Aerogramas para a Lili (1)

ÚLTIMAS MEMÓRIAS DA GUINÉ - 8

Por Armor Pires Mota (ex-Alf Mil da CCAV 488/BCAV 490, Bissau e Jumbembem, 1963/65)

Aerogramas para a Lili (1)

Se me sobraram da amarga experiência alguns livros, todos vertendo lágrimas salgadas e jorros de sangue jovem e inocente, páginas marcadas por cicatrizes ou, no mínimo, por um sol violento, de rachar bolanhas e fazer ferver os miolos, ainda me sobraram largas dezenas de aerogramas, endereçados à minha madrinha de guerra e, mais tarde, namorada e esposa, de um belo e constante sorriso matizado de arco-íris, onde dizia pequenas coisas, coisas que se podiam dizer (a PIDE lia muito, mas muitas notícias de guerra passaram, vejo agora, relendo os aerogramas).

Se a minha madrinha de guerra verdadeira era a Lili, tenho de confessar que tinha outra suplementar em Luz de Tavira. Um dia troquei os aerogramas. A Lili que, embora muito jovem, tinha decisões de mulher feita, devolveu-me o que pertencia à madrinha, natural da Luz. Com uma anotação simples que dizia tudo:
- “Devolvo. Isto não é para mim”.

Uma bela bofetada com luva branca. Tive que me explicar, pedir mil desculpas e cortar. A coisa acabou por compor-se. Nunca mais soubera nada da algarvia. Eis se não quando, em 2010, recebo uma carta de Tavira, em que a outra madrinha de guerra falava um pouco da sua vida atribulada no matrimónio. O namorado, já na altura da nossa troca de correspondência, era muito ciumento.

Respondi-lhe: gostava de sabê-la entre os vivos, indagava como se lembrara de mim. Ela estava viva e muito queixosa do marido que continuava ciumento, e eu contei-lhe o meu grande infortúnio e os dias de áspera solidão, mas não obtive mais reposta. Foi espécie de um adeus. Foi um gesto bonito, passados cinquenta anos, eu que nunca a cheguei a conhecer pessoalmente. A prevista visita fora gorada numa viagem com os meus amigos do Porto a Tavira. Causa: nunca a cheguei a saber. Também nunca foi coisa que me preocupasse.

Lidos hoje os aerogramas, eles me avivam lugares, memórias, situações e datas. Evidentemente, também escrevia saudades e sonhos, estados de alma enamorada. As palavras amor e paz, sonho e futuro eram uma constante. A colecção, guardada com ternura azul e sonhadora pela Lili, está bastante incompleta. São escritos muito simples, sem redondas palavras, sem qualquer pretensão literária, ao correr do tempo e dos acontecimentos, que, obviamente, a maioria das vezes, não amiudava. Longe disso. Esse aspecto ficava para o meu Diário.

O que abaixo fica registado é um pouco do muito que fixei nos aerogramas e que não vem no "TARRAFO". Ao contrário, eu não guardei ou perdi no tempo os que a Lili me endereçou. Ou perdi-lhe o pouso. Nos meus há de tudo um pouco:

Foto: Belarmino Sardinha - Editado por CV


“Bissorã, 9 de Dezembro de 1963
 Minha cara madrinha:
 (…)
 Aqui, como aí, ontem, foi o dia da mãe. Houve missa e terço e não me lembrei só da minha, mas da tua também, das mães de todos soldados. Realizou-se uma festa na escola, promovida pela tropa e dedicada às mães de Bissorã que têm sido muito carinhosas para com a tropa, sobretudo para os oficiais. A festa esteve formidável. Gostei imenso de ver bailados indígenas. Aqui qualquer catraia ou mesmo catraio tem o corpo cheio de ritmos. E se visses os miúdos a cantar! Aprendem facilmente a letra e a música e têm vozes fantásticas.
Aqui há dias, eu e um colega meu, estivemos a distribuir bolos e bolachas a prisioneiros. Está perto o Natal. Com este gesto, conseguimos que um cabo-verdiano acabasse por confessar algumas coisas e oferecer-se para nos levar ao acampamento dos terroristas, e levou. Capturámos manga de munições e minas, importantes armas, vários documentos, etc. Foi pena não os termos apanhado, mas não foi nada mau. Sem um tiro. Nunca vi os soldados a chegar tão delirantes ao quartel. Vê lá: o mato é tão cerrado que só demos com o acampamento (oito barracas) a três metros de distância. Os gajos ficaram tão estupefactos, mas ah pernas para que vos quero. Enfim, uma boa caçada, das maiores que se têm feito. Não há pai para a cavalaria! Com estas, já são 24 barracas de mato que o Batalhão destrói”.



“Jumbembem, 9 Setembro de 1964 
Minha querida Lili 
(…) 
Ontem, à meia-noite, tivemos uma pequena festa com os terroristas que vieram atacar o aquartelamento. Chovia a cântaros e relampejava continuamente, o que nos deixava cegos, sem nada ver. Quando soaram os primeiros tiros, sei que me deixei escorregar da cama, vesti os calções, enfiei o capacete na cabeça, peguei na arma e lá fui para o parapeito orientar e disparar. Foi coisa de quarenta minutos. A reacção da tropa foi de tal modo violenta que eles tiveram de cavar, deixando abandonado vário material de guerra, roupas e amuletos de cornos de cabrito ou de cabra. Não sei. É possível que não tenham levado a saúde que trouxeram.
O certo é que os bandidos estão a aparecer mais vezes”.


Resposta da CCAV 488 a pequena emboscada
Foto: © Armor Pires Mota (2013). Todos os direitos reservados

“Jumbembem, 4 de Novembro de 1964 
Querida madrinha Lili: 
(…) 
Eu hoje saí às três da manhã. Estava uma aragem fria, devido à formação de cacimbo. Tive de levar uma camisa por debaixo da farda. Montei uma emboscada. Mas ainda bem que não apareceu nenhum desgraçado. Foi o melhor. A mim aborrece-me matar seja quem for, mas muito mais gosto que os bandidos também não me aleijem.
Morreu um moço do meu batalhão no hospital. Foi evacuado à pressa, de avião, mas durou poucos dias. Dizem que lhe rebentou a úlcera que tinha no estômago, é uma versão; a outra diz que foi por causa de uma cirrose no fígado. Para nosso mal e mal dele, é menos um”. 



“Jumbembem, 13 de Novembro de 1964 
Querida madrinha Lili: 
(…) 
Mais um domingo. Passei-o normalmente. De tarde, andei a passear de jeep, cheio de crianças, em constante alarido, como pássaros, para me distrair. Não tinha nada de especial para fazer. Porém, quando cheguei à noite e vi que a avioneta já não vinha lançar os sacos do correio, não imaginas como fiquei aborrecido. Dá a impressão que não há quem ligue, quando o correio é o melhor que podemos ter neste degredo, porque, na verdade, não é outra coisa. Ainda há dias, o piloto do helicóptero disse que não havia tropa com piores instalações (aquartelamento) do que nós. A gente sabe isso. Até porque mandam para aqui de outras companhias passar um mês os moços que se comportam mal. É caso para perguntar: se um soldado mal comportado passa aqui um mês, que crime cometemos nós para estarmos aqui há já sete meses? Mas, enfim... E já que o correio não veio, só amanhã, devo ler a tua correspondência.
(….)
Sabes, têm estado uns dias frios, sobretudo as noites. De manhã, é preciso andar de camisa. E, de noite, é preciso um lençol para nos cobrirmos”
.


“Jumbembem, 18 de Novembro de 1964 
Querida madrinha Lili: 
(…) 
Isto por aqui não está mau, está péssimo. Veio um colega meu de Bissau que disse que, durante os dez primeiros dias em que esteve no hospital, houve onze enterros de soldados brancos. Fora os mortos nativos e os feridos. O hospital está a abarrotar, e, por exemplo, quando ali chegam muitos feridos, os médicos dão alta a soldados que ainda não estão completamente curados. O hospital é muito pequeno. Está a morrer, à média, de um homem por dia. E o que mete raiva é que os jornais da Metrópole digam que o terrorismo está a diminuir e que os terroristas estão a ser acossados pelas nossas forças terrestres por todos os lados.
O terroristas sabem tirar partido da inexperiência dos “maçaricos” [tropa nova] e aproveitam. Como agora veio muita malta nova, eles acham que têm muita carne para bala. E realmente têm conseguido fazer bastantes baixas”.



“Sábado, Jumbembem, 12 de Dezembro de 1964
Querida Lili:
(…)
Ontem tinha intenção de escrever-te, mas, quando cheguei, à noite, sentia-me cansado, com pouca disposição para fazê-lo, embora tivesse dormido até às cinco da tarde.
Esta semana, com o intervalo de dois dias, tivemos duas operações. A que fizemos na noite e manhã do Dia da Mãe (8 de Dezembro) correu bem, normal. Mas, ontem já assim não aconteceu. Houve tiros, emboscadas, feridos: um furriel enfermeiro, que, é curioso e admirável, estando gravemente ferido, tratou primeiro dos outros. Um soldado deve ficar cego. Ontem, tive ocasião de ver (antes, não tivesse) dois terroristas, vestidos de azul que ficaram apalermados quando nos viram, se calhar quanto nós. Não nos esperavam ali. No regresso, uma nova emboscada, onde não esperávamos, obrigou-nos a saltar para a lama e a água da bolanha. Vê lá a ousadia deles: até atacaram a tropa, quando era protegida do alto por um bombardeiro. E já que falo de aviões, há dias, no sul, os terroristas abateram uma avioneta. Morreram um tenente, um furriel e um cabo.
O piloto do helicóptero que esteve cá ontem, disse que os seis helicópteros não têm mãos a medir na evacuação de mortes e feridos. É uma coisa pavorosa. E dizia o governador da Guiné que, neste Dezembro, já passearia pelas estradas, de norte a sul. Ainda sonha muito. Isto nunca esteve tão péssimo. Repara tu que, há dias, no sul os terrostistas destruíram completamente um quartel, incendiaram as viaturas, etc. A tropa, para se defender, teve que fugir para o mato, senão morreria ali toda. Segundo consta, quem fez o fogo, de bazuca, contra o quartel, foi um fuzileiro que fugiu para o lado dos terroristas, há uns quatro meses.
Há dias, chegou-me um soldado novo da Metrópole para substituir o soldado que me morreu em Junho.
Peço desculpa de hoje te massacrar com guerras e horrores, mas prometo que, amanhã, se Deus quiser,  já não tocarei neste assunto”.
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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12419: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (7): Os macacos vermelhos

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12419: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (7): Os macacos vermelhos

ÚLTIMAS MEMÓRIAS DA GUINÉ - 7

Por Armor Pires Mota (ex-Alf Mil da CCAV 488/BCAV 490, Bissau e Jumbembem, 1963/65)

“Os macacos vermelhos”

Os elementos da base de Canjambari chamavam-nos “macacos vermelhos”, vim a saber isso mais tarde, por confissão de um desses combatentes do PAIGC, em conversa com um dos nossos, que, finda a guerra, visitou Jumbembem.

Não se sentiam muito seguros connosco por perto, com a nossa actuação eficaz. Temiam-nos, pelo menos, tanto como nós a eles. Mas não desalojavam. O terreno era-lhes propício, com muitos pântanos em volta. Foi nessa estrada que, pouco depois de vir passar férias a casa em Junho de 1964, ver meus pais, irmãos e família, mas também a Lili e família e outros amigos, um pequeno estilhaço, já mortiço, me fez um risco no supercílio direito. Dia 9 de Outubro de 1964. Coisa de nada, sem importância, só um primeiro susto, apagou-se com o tempo. Ainda tive no entanto que me haver com algumas formigas que tinham subido a farda por dentro e já exploravam as partes de um homem. Só sosseguei, quando a refrega terminou e baixei a roupa e toca a caçar e a matar… Nesta mesma emboscada, havia de ser ferido também o capitão da 488, Manuel Correia Arrabaça.

As férias haviam acontecido no mês de Junho, tempo de festas e romarias, nomeadamente a de Santa Luzia, em Nariz, onde fomos de bicicleta, eu e a Lili, e outros amigos. Custosa foi a despedida. Agora, já sabia para onde ia, para a fronteira mais próxima de perigos, alguns letais. Já não tinha a vantagem da inocência do sangue, nem desconhecia nada, já havia experimentado tudo na minha pele, na pele e no sangue dos outros. Lembra-me a Lucília Oliveira que, quando me fui despedir dela, chorei. Talvez as lágrimas também que não convinha mostrasse à Lili. As lágrimas de um coração que andava batendo asas dentro de outro, tão novo e tão cândido.

Em Jumbembem, construiu-se, a partir de um celeiro e de uma casa de habitação de um cabo verdiano que ali montara serração e havia dado de frosques, um dos mais pobres quartéis de toda a Guiné, e até esteve à beira de ir pelos ares. No dia 14 de Dezembro de 1964, um soldado por distracção, carregou um candeeiro com gasolina, em vez de petróleo. Ao acendê-lo, deu-se a explosão e o fogo logo se propagou. Foi o pânico geral. Toda a gente tentou retirar da camarata o que pode. Eu consegui salvar a máquina fotográfica, uma Olimpus Pen, dinheiro, o Diário e alguma poesia. Resultado imediato: fiquei sem calções, farda, uns óculos contra o pó e toda a roupa da cama. Mas o perigo maior estava no fogo a rondar os bidões de gasolina. Todavia, lá conseguimos extinguir o incêndio que poderia ter proporções desastrosas.

Não sei se nesta altura, quando se declarou o incêndio, usava barba, de cor dourada, cobrindo o rosto anguloso, onde sobressaía um nariz aquilino mais disfarçado no seu tamanho ou se apenas bigode normal, sem quaisquer pontas. Também cheguei a andar de cabeça rapada, coberta de iodo que supostamente evitava a queda de cabelo que se prendia naturalmente com a água que corria de bidões guindados numa armação. Sei é que, assentando arraial em Jumbembem, onde, por longe ou perto, volta e meia, rebentavam negros e perigosos arraiais de fogo, diurno e nocturno, conforme a disposição dos guerrilheiros, deu-me, não só para vestir as alvas túnicas dos fulas, gente boa e esperta, como para mudar de visual. Não para me disfarçar perante o inimigo, que, raras vezes via, mas que existia e mexia com os nossos nervos, mas para encobrir, no caso das barbas, alguma calacice e, no caso do bigode, sugerir um rosto diferente para enviar à madrinha de guerra. Divertia-me assim, deste modo e com estes detalhes, sem importância para o que andávamos ali fazendo. Mas uma coisa é certa. Como os caminhos e carreiros eram de terra vermelha, tanto o bigode como a barba depressa ganhavam a cor do barro. E não só, todo o corpo descoberto. Com o farto suor, o corpo era quase um lamaçal.


As barbas havia-as de rapar, quando consegui ir até Bissau para um tratamento ao estômago. Ao fim de não sei quantas tentativas e previsões, transcorrendo nisto vários meses. Diga-se que a proposta para a consulta externa fora feita em 27 de Dezembro de 1964 e previa que tal viesse a acontecer no princípio do próximo ano. Mas até que chegasse assinada… Tinha bastante tempo de mato e era natural que a luta e o desgaste tivessem causado alguns danos a nível do sistema nervoso que logo se repercutia no estômago. Não é que estivesse realmente muito doente, mas era o verdadeiro pretexto para para passar alguns dias no remanso de Bissau. De Março fiquei para o mês de Abril. Escrevia à Lili já no dia 1 de Abril, dia das mentiras, mas era a verdade mais desejada como aos muçulmanos a leitura do Alcorão. No entanto, o estômago não andava, de verdade, muito bom. Iria aproveitar para tirar radiografias, fazer análises ao sangue, também às fezes. A radiografia ao estôamgo estava marcada para o dia 2 de Abril

Jumbembem, 1964 - Um refeitório improvisado

Em Bissau me encontrei com o alferes Manuel Pires de Oliveira, de Oiã, e o furriel Victor Manuel Dias Santos, da Silveira, gravemente ferido em combate em 17 de Janeiro de 1964 na guerra do Como. Ambos estão já na terra da verdade. E foi aqui que quebrei o jejum do vinho, que se arrastava há sete meses. Bebi vinho verde, que acompanhava uma encomenda, destinada a um furriel do meu pelotão, que ia de vez para a metrópole, a fim de sujeitar-se a uma cirurgia que consistia na extracção de um estilhaço que lhe restava de uma última operação, feita há mais de um ano, na Ilha do Como, precisamente no dia 16 de Fevereiro, quando o nosso pelotão tinha a (má) intenção de envenenar a água de um poço. O capitão Arrabaça estava a fazer a cobertura com a Breda… e uma bala de “fogo amigo” atingiu-o. Era o afilhado da Professora Fátima Moreira, do Silveiro, o furriel Albano Jorge de Oliveira, de Braga.

Foi uma bela patuscada. Onde havia presunto e queijo, entre outros mimos do Minho. A mim cabia-me pedir-lhe desculpa e dizer-lhe que tudo estava muito bom.

Em Bissau, graças ao furriel Victor Seabra, do Troviscal, vagomestre, que tinha a trabalhar na rádio de Bissau a namorada, bela rapariga libanesa, com quem veio a casar mais tarde, tive oportunidade de ser entrevistado nos meados de Março, falar da escrita, sobretudo de poesia, e dizer algumas produzidas na Guiné, nomeadamente uma de amor, dedicada à Lili. Quem conduziu a entrevista foi o jornalista Carlos Barra.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de Dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12397: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (6): O casamento do Jaime e da Manuela, A macaca ciumenta e O dia de santo avião

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12397: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (6): O casamento do Jaime e da Manuela, A macaca ciumenta e O dia de santo avião

ÚLTIMAS MEMÓRIAS DA GUINÉ - 6

Por Armor Pires Mota (ex-Alf Mil da CCAV 488/BCAV 490, Bissau e Jumbembem, 1963/65)

O casamento do Jaime e da Manuela 
E o caso da macaca ciumenta 

O Jaime Vieira Segura e a Manuela (Maria Manuela Gonçalves Moreira Eusébio), natural de Paredes, casaram-se na Catedral de Bissau, local muito frequentado pela muito devota mãe de Amílcar Cabral, no dia 13 de Abril de 1964, um mês após o regresso da maldita Ilha do Como.
Presidiu ao acto o Tenente Capelão do Batalhão 490, Padre Serafim Alves Monteiro da Gama. Foram padrinhos o alferes Rui Ferreira (António Rui Diógenes de Noronha Ferreira, meu grande amigo, a viver em Faro, no Algarve) e uma prima deste, também goesa, que vivia em Bissau.
Eu estive presente e fui mestre de cerimónias, ajudando-os a cumprir os rituais…
Foi possível a cerimónia, porque tanto o noivo, como o Rui e eu nos achávamos a repousar na fortaleza da Amura do ciclópico esforço e enorme e natural desgaste despendidos na operação “Tridente”, onde abundavam as rações de combate e a água que obtínhamos dos pocecos feitos, era salgada…

Catedral de Bissau
Foto: © J.F. Robalo Borrego. Todos os direitos reservados. [Edição: CV]

Não houve boda. Era dia de semana. Essa parte festiva decorreu no domingo seguinte em casa do Jaime Segura. Situava-se na Rua Principal de Bandim. mesmo defronte do buliçoso e ruidoso mercado indígena, numa enorme mescla de sabores e cores garridas, onde as mulheres negras e as bajudas de rijos seios empinando as floridas blusas vendiam de tudo um pouco.

Jaime Segura era um audaz combatente, um bom comandante de homens, cometeu alguns feitos na Ilha do Como, o que levou a ir, ainda nesse mês de Abril, para os Comandos, onde, entretanto, o havia de ir buscar o capitão Arrabaça, desafiando-o: “Abadone os Comandos e eu dou-lhe autorização para para formar um Grupo de Comandos dentro da minha companhia [488]. Você pode escolher quem quiser, mas peço-lhe que fique comigo!”. Lá seguiu para Jumbembem, onde esteve operacional, até que, em Junho de 1964, era transportado de helicóptero para Bissau. O destino final era o Porto, onde, no dia 10 de Junho, era condecorado com a Cruz de Guerra… mas recebia outro prémio. No aeroporto, surgiu-lhe o Brigadeiro Sá Carneiro (tio do falecido Sá Carneiro) que lhe fez este inesperado anúncio: o Governador e Comandante-Chefe tinha-o escolhido para seu Ajudante de Campo, de modo que, quando regressasse a Bissau, deveria ir ao Palácio do Governo falar com o então Brigadeiro Arnaldo Schulz, meses depois promovido a General.

Quando chegou a Bissau havia de ser acometido por fortes dores na barriga.Tendo ido ao hospital, os médicos extraíram-lhe o apêndice. A cirurgia correra bem. Só que, passados dias, ao retirarem os agrafes, estavam tão seguros que levaram atrás de si pedaços de carne. Resultado: uma infecção, que levou 30 dias a curar. Só após este período, se apresentou. Teve direito a dois gabinetes: um no Palácio, outro no QG (Quartel General). Serviço: todos os dias, até sábados e domingos, tinha de ler os perintreps, enviados pelas companhias, ver locais onde houve combates e assinalá-los com os diversos alfinetes de cor num enorme mapa da Guiné, que cobria as duas paredes da sala secreta de reuniões, onde todos os dias reuniam as altas esferas militares (coronéis) dos três ramos das Forças Armadas que decidiam o que poderia ser feito nos dias seguintes. Era o alferes das bandeirinhas, de uma guerra mais longe.

Quanto ao serviço de transportes, não era tarefa fácil para o Fernando Correia, que acabara por ser colocado no Quartel General como responsável pelo sector dos abastecimentos. Ou fosse na 2.ª Secção de Transportes da 4.ª Repartição, após a apresentação do relatório do médico que o operara. Isso permitiu que trouxesse para Bissau a noiva e fosse viver com o Jaime Segura e a Manuela, primeiro, numa casa na estrada de Bor, depois mais na baixa da cidade. Amigos de animais, tinham no pátio macacos e uma macaca ciumenta. Tanto que quando, de propósito, o Jaime e a Manuela se abraçavam, acariciavam ou beijavam, a macaca, enfurecida, qual fêmea traída, pegava no que tinha à mão, até merda, e arremessava-lhes.

Não era obra fácil o serviço de transportes, era necessário alugar os barcos e contactar os comerciantes, mas seguramente melhor do que eu estar em Jumbembem.

Um e outro não podiam estar melhor, viviam o ambiente da cidade, longe dos tiros. Mais tarde, o alferes Fernando Correia foi viver mais para o centro da cidade, junto ao Grande Hotel, com o Tony Magalhães, que trabalhava no sector da administração do QG.

************
O Dia de Santo Avião

Eu era o mais antigo oficial miliciano da Companhia. Os outros eram por ordem decrescente: António José Orlando Bretão, Armando Graça da Cruz e Inácio Gonçalves Rodrigues Casinhas. Quando o capitão Correia Arrabaça baixou ao hospital, na sua ausência, era eu quem assumia o comando da Companhia, o mesmo acontecendo, posteriormente, relativamente ao Tenente de Cavalaria Lourenço de Carvalho Fernandes Thomaz. Uma das operações levou-nos à fronteira com o Senegal, onde contactámos com refugiados e familiares da tabanca que se havia acolhido à nossa sombra. Tinha como objectivo também capturar uma manada de vacas. Havia falta de carne e não havia a quem comprar. Carne não faltou então por longos meses, mas, sim, o correio. Tanto assim que enviava ao Comando uma mensagem algo áspera: “tropa sem correio, tropa sem moral”. Estava a gerar-se um certo mal-estar. O correio era como o melhor pão de casa. Dois ou três dias depois, era festejado o dia de Santo Avião. As dorniers voltavam a sobrevoar Jumbembem, lançando alguns mantimentos e correio.

Localização de Jumbembem. Vd. Carta da Província da Guiné (1961) - 1:500.000

Às vezes, orientávamo-nos na semana por dois dias: um era o implacável dia da resoquina, mas não julguem que se tratava de drogas para forjar coragem para suportarmos o esganiçar frenético da metralha, o esbrasear das manhãs espapaçadas de suor, sangue e capim, muradas de cacimbo e rasgadas pelos pios sinistros e agourentos que arrepiavam a pele da alma, de ponta a ponta. Eram apenas pílulas antipalúdicas. O outro era o dia do correio. Era dia de festa geral. Havia algazarra estridente, um sorriso no canto da boca, por vezes amarrotado pela secura dos dias e nos olhos uma alegria profunda e íntima. O correio esperava-se com a ansiedade de gente moça, roída pelo espinho da saudade que gotejava lágrimas, quando a solidão era maior. Uma carta que fosse, fosse ela da mãe, da noiva, da madrinha de guerra, de um amigo, fazia esquecer uma semana inteira de lutas e cansaços. Era um alívio, um conforto enorme. Ouvia-se o ronronar da Dornier e os olhos pregavam-se no céu em brasa.

A Dornier era um anjo de asas acinzentadas, esvoaçando todo a tremer no seu coração pequeno, sobre pântanos, vestidos de algas, escondendo por vezes animais perigosos, ou sobre palmares infinitos, fechados, acabando por nos acariciar os olhos num redopiar manso sobre o aquartelamento ou sobre a trincheira, lançando-nos o saco azul, bordado a letras vermelhas. A carta era a oração de mãe, trespassada de dor e de viva esperança em Deus e nos santos da sua devoção. A carta era a fotografia, o sorriso, o coração grande da noiva, derretendo-se em palavras melodiosas, abrindo-se em sonhos e projectos, em beijos. A carta era o conselho e a força de um amigo. A carta era a seara verde em promessas de ouro e o vinho acetinado de uvas amadurecidas. A carta era o melhor sedativo para uma cicatriz ou um rasgão, uma couraça para um estilhaço. Uma couraça forte que podia salvar uma vida das garras terrivelmente aguçadas e sangrentas da metralha atroz. A carta era a terra e o arraial da romaria do padroeiro de cada um. A carta era a coragem e a fé, a força renascida, a esperança mais viva e mais larga, do tamanho da distância.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12386: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (5): Ilha do Como - Operação Tridente

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12386: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (5): Ilha do Como - Operação Tridente

Guiné, 14 de Janeiro de 1964 - Tropas embarcadas, rumo à Ilha do Como

Guiné, Janeiro de 1964 - Desembarque das forças do Batalhão 490 na Ilha do Como

ÚLTIMAS MEMÓRIAS DA GUINÉ - 5

Por Armor Pires Mota (ex-Alf Mil da CCAV 488/BCAV 490, Bissau e Jumbembem, 1963/65) 

Ilha do Como - “Operação Tridente”

Foi desgastante a guerra do Como, onde, no fim de contas, não houve claros vencedores (deixámos uma Companhia no Cachil) nem vencidos (haviam de voltar a ocupar a Ilha, como é normal neste tipo de guerra). O IN no início estava bem moralizado, estava em seu território e mandaria nele. Tentou forçar a saída das nossas Companhias, sediadas em Cauane e em Curcô, com ataques contínuos, mas apenas conseguiu tal intento na posição de Uncomené. Mostrava-se nesta altura “bem instruído, manobrador, muito agressivo e com um poder de fogo extraordinário, no entanto as numerosas baixas que sofreu, foram-lhe abatendo o moral e desorganizando-o, a ponto de, no final da operação, os pequenos grupos dispersos, sem qualquer agressividade e famintos, fugirem ao menor contacto com as nossas tropas”, conforme consta da “História da Unidade”. Foram destruídos dois acampamentos, num total de 62 casas de mato, houve 76 mortos confirmados no terreno (contra 8 de toda a tropa envolvida) e com mais de 100 “mortos prováveis”; feridos confirmados, 15, contra 29 da nossa parte, mas aquele número era muito mais elevado. Além da recolha de vário material de guerra, no entanto, não tanto como seria previsível

O comandante Nino, ao princípio, fez-nos a vida negra, mas a fúria e o poder de fogo foram abrandando à medida que as populações desertavam. Com 21 mortos, com poucos efectivos operacionais e com a população a fugir, segundo estratégia delineada por Amílcar Cabral, Nino chegou a pedir ajuda a muitas bases, segundo carta encontrada, mais tarde, pelas nossas tropas, numa operação em Gampará, assinada por este comandante.

Guiné - Ilha do Como, 1964 - Alf Mil Bretão e Fur Mil Lima, da CCAV 488, atravessando ponte feita de palmeiras destinada aos abastecimentos das tropas em acção

Esta guerra não foi fácil para ambas as partes. Mas, no fim da operação, já um pelotão (o do Jaime Segura) atravessava sem problemas a ilha. Nela se integrou o Comandante da denominada operação “Tridente”, a maior operação da guerra contrasubversiva até aí realizada nas três frentes, pelos meios e forças utilizadas, que iam do nosso Batalhão a Companhia de Fuzileiros, comandados pelo lendário Alpoim Calvão, que hoje tem negócios em Bolama. Uma das poucas vezes que o vi nesta ilha foi a apontar uma faca ao tronco de uma árvore. Não falhava um só golpe. A operação envolvia também, pela primeira vez, um grupo de comandos, paraquedistas, força aérea, canhões, montados numa bela praia, e um navio transformado em hospital de apoio. Que, felizmente, não foi muito utilizado, apesar dos terríveis medos e previsões não muito optimistas, esta é a verdade.

Guiné - Ilha do Como, 1964 - Tropas atravessando bolanha

A operação “Tridente”, devido ao clima e inicial força do IN, foi difícil, terrível em muitos aspectos, mas não foi muita da mentira que a jornalista Felícia Cabrita fez publicar no "Expresso", uma grande reportagem feita, decorridos 30 anos sobre a operação “Tridente”. Como tive possibilidade de saber pessoalmente da boca de alguns que foram ouvidos, as afirmações de alguns ou foram mal contextualizadas ou deturpadas. Além disso, só publicou o que poderia diminuir as Forças Armadas Portuguesas. Houve muita outra gente entrevistada de quem não apareceu uma única palavra na dita reportagem com o título de “A Campanha do Medo”. A verdade e a isenção não interessam a muita gente como é o caso. Houve medos, mas ninguém fugiu para Dakar e dali para Paris como muitos que assim procederam. Assim tendo feito, são considerados heróis, e os que deram o corpo ao manifesto, após o 25 de Abril eram tratados como verdadeiros criminosos. Passados 30 anos, para alguns ainda havia complexos, fantasmas.

Guiné - Ilha do Como, 1964 - No final de uma refeição

Como ali não havia bajudas nem mulheres, só nos matos fechados, acontecia que nós é que tínhamos de cuidar das nossas roupas, a começar pela lavagem de cuecas, calças, camisas, meias, etc, etc.. No final, eu já cuidava também das minhas barbas, penteava-as, assim como os meus longos cabelos e procurava torcer o meu bigode, criar-lhe pontas à boa moda do princípio do séc. XX.

Finda a guerra, nos meados de Março, o meu último aerograma tem a data de 12 e dava conta de algum sossego e de um macio mascote. Tratava-se de um cordeiro que cabriolava brincalhão no acantonamento e com o qual a malta brincava. Era bonito, preto e branco e mansinho, de tal forma que dormia com os soldados. Era como que o anúncio da paz, ainda que temporária. A guerra ia continuar por outras partes.

Guiné - Ilha do Como, 1964 - A hora do correio e da partilha das alegrias

Na batalha do Como para onde nos deslocámos em Janeiro de 1964 em meios navais, ainda participou por algum tempo o alferes Fernando Correia. O meu pelotão teve aí 6 feridos e a 487 dois mortos e dois feridos. Mas o Fernando tinha então um grande problema de audição. No buraco, onde dormíamos, percebendo mal o zunir das granadas, saídas das bocas dos canhões estacionados na praia, perguntava-me o que era aquilo… Aquilo era o assobio das granadas, explicava-lhe. Perante isso e temendo o pior, o Comandante do Batalhão, que sabia bem o que era a surdez, sofria do mesmo mal, mandou-o evacuar para a Metrópole, a fim de ser operado. Acontecia em 25 de Março, “por doença adquirida em serviço”. Neste interim, chegava a 25 de Março de 1964, e dava, solene e publicamente, o nó com a Lurdes Espanhol, passados quatro dias, ou fosse no dia 29, que coincidia com o dia de Páscoa. Belas e doces amêndoas! (Tinham casado no registo civil por procuração no dia 4 de Janeiro desse mesmo ano).

Submeteu-se a uma cirurgia no Hospital da Estrela. Pouco tempo depois embarcava de novo para Bissau, onde acabou por ser colocado no Quartel General como responsável pelo sector dos abastecimentos. Ou fosse na 2.ª Secção de Transportes da 4.ª Repartição, após a apresentação do relatório do médico que o operara. Isso permitiu que trouxesse para Bissau a noiva e fosse viver com o Jaime Segura e a Manuela, primeiro.

Ilha do Como, 1964 - Embarque de vário material de regresso a Bissau

Fotos (e legendas) : © Armor Pires Mota (2013). Todos os direitos reservados. [Edição: CV]

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12378: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (4): Cinco dias no Niassa; A primeira grande experiência e Dois alferes de uma só vez

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12378: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (4): Cinco dias no Niassa; A primeira grande experiência e Dois alferes de uma só vez

ÚLTIMAS MEMÓRIAS DA GUINÉ - 4

"Cinco dias no Niassa, alguns em barracões"; "A primeira grande experiência" e "Dois alferes de uma só vez"

Por Armor Pires Mota (ex-Alf Mil da CCAV 488/BCAV 490, Bissau e Jumbembem, 1963/65)

i - Cinco dias no Niassa, alguns em barracões

Chegámos a Bissau na manhã de 22 de Julho. Na véspera, tinha-se realizado no navio um acto de variedades para esconjurar medos. No entanto, vivemos a bordo durante cinco dias, o que nem era de todo mau. Por falta de instalações, o Batalhão 490 só desembarcou no dia 27, ficando alojado na Bolola. Pior não podia ser, sob todos os aspectos. O alojamento era formado por alguns barracões, sem as mínimas condições. Além disso, se de um lado ficava o cemitério, do outro estendiam-se os canais do rio Geba, o grande rio da Guiné, a fornecer-nos exércitos de mosquitos arreliadores nos seus zumbidos, nas suas picadelas. Os barracões não tinham nem portas nem tão pouco janelas e os telhados, de zinco, não garantiam que não chovesse. Aliás, os barracões estavam em obras e ali fui encontrar o alferes Sampaio Alegre, de Anadia, ocupado da logística. Com grande azáfama. Era sempre uma grande alegria encontrarmos camaradas conhecidos, embora o nosso conhecimento fosse muito ténue.

As refeições eram servidas em marmitas (e sempre o havia de ser durante toda a comissão). Era tempo das chuvas e não havia qualquer recinto abrigado que nos protegesse da inclemência do tempo. Quando as obras estavam quase prontas, eis que se verificou a nossa mudança para o Forte de S. José da Amura, onde encontrámos instalações mais apropriadas, mesmo assim, também com algumas deficiências. Mas mais um imprevisto. Quando as instalações estavam prontas a serem desfrutadas, o Batalhão recebia a missão de instalar-se em alguns aquartelamentos do norte da província ou fosse no triângulo da mais activa zona do PAIGC, o Oio. Logo que o 490 desembarcou, foi-lhe atribuída a pior das missões, a de Unidade de Intervenção às ordens do comandante-chefe, Arnaldo Schulz.

Na Amura, um tempo bom, que só durou até 2 de Agosto de 1963, era dada instrução e fazia-se o serviço ao aquartelamento, e havia secções ou pelotões, a dar apoio a outras unidades, quer de carácter logístico, quer de fogo.

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ii - A primeira grande experiência

Quando as companhias partiram com o objectivo da intervenção na zona do Oio, considerado inexpugnável santuário do IN, tendo Morés como centro e fulcro do terrorismo, era zona de mata densa, não era aconselhável que a tropa se fizesse acompanhar da sua bagagem. Já bastaria a cada homem o peso de armas e munições. Calculava-se que o batalhão fizesse uma operação que estava calculada para a duração de 20 dias, mas assim não aconteceu, foram meses de luta e desgaste. E os homens tiveram de haver-se apenas com uma muda de roupa, com a organização de suas posições e com o combate ao IN que se mostrava moralizado e atrevido, para não dizer atrevido e forte.

Ficaram sediadas duas companhias, uma em Mansoa e outra em Mansabá, enquanto iam sendo rendidas, uma de cada vez, pela terceira que se encontrava em Bissau, ou por aquela que estivesse em descanso. Actuaram assim em Mansabá e Bissorã. A minha fez, primeiro, Mansabá e depois Bissorã. E assim andámos em perigos e guerras esforçados até 29 de Dezembro. Vinha aí outra guerra, maior ainda.

Nesta zona do Oio, as três companhias fizeram de tudo: acções de reconhecimento, capinagem e limpeza das bermas das estradas, emboscadas, umas montadas e outras sofridas, mostrando o IN moral em alta e bastante agressividade, remoção de abatizes, patrulhamentos, acções de psico-social, ensino do português, mas também operações de grande envergadura, como a operação “Tigre” e “Adónis A-2” (487), “Verde” e “Adónis 2” (488) e a de maior envergadura “Adónis B-3”, no dias 2 e 3 de Novembro de 1963, no coração do Oio. Morés acabou por ser ocupada pelas nossas tropas, depois de muita luta, alguns mortos e feridos. Ali foi hasteada até a bandeira nacional e houve grande regozijo. Visitou o local o comandante-chefe. Entusiasmado, visitou Morés mais uma vez, fazendo-se acompanhar de alguns mimos para os guerreiros, água, pão e guloseimas, que, de propósito, fora buscar ao QG ( Quartel Generall). Minguada glória.

Duas das grandes emboscadas em que caiu a 489 foram: uma entre Talicó e Morés e a outra na estrada de Bissorã. Estiveram envolvidas nesta operação as companhias 487, que teve um morto por acidente e 3 feridos; a 488, com cinco feridos, enquanto a 489, a mais castigada, registou 1 morto e 10 feridos e a CCS, 1 ferido. Do lado do IN, houve 36 mortos confirmados e 8 feridos e foram ainda feitos 12 prisioneiros, além de vário material capturado. A mulher idosa, Mala Seidi, que levara a companhia 489 à base de Morés, foi baleada pelo grupo guerrilheiro. Nesta operação alguns prisioneiros, porque não iam amarrados, escaparam-se para o seu lado, quando se deu o grande embate.

Localização de Morés e Talicó um pouco a sul

O IN, disposto a defender o seu quartel-general, esperou que a tropa avançasse, como de facto aconteceu com muita dificuldade, muito suor e sangue, mas também muita coragem e valentia. Foram 45 minutos de fogo cerrado e algum sangue, mas com o apoio dos T6, sustentaram o ímpeto e de tal modo que ficaram nessa noite em Morés, mas não em paz, pelo contrário. Toda a operação envolveu 10 acções de fogo, que fizeram obviamente os seus estragos.

Era um perigoso e árduo treino para outra guerra, esta no sul, Ilha do Como, que ninguém tinha ousado “descobrir” até então. Era outro santuário, outro bastião seguro.

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iii - Dois alferes de uma só vez

Não começávamos da melhor maneira na companhia 488. Os alferes Brasil (António Norberto Coelho Brasil), dos Açores, e Fernando Correia (Fernando António da Silva Correia), do Porto foram feridos gravemente numa emboscada, no caminho de Mansabá para Bissorã, atravancado de abatizes, no dia 2 de Outubro de 1963. O primeiro tinha ido como voluntário. Encontrava-se supostamente protegido atrás de uma viatura, quando uma granada bateu na caixa metálica, provocando mil estilhaços. Alguns atingiram-lhe a cabeça e as costas.

O alferes Fernando Correia tinha como missão retirar as abatizes e encontrava-se a 3 kms do quartel de Mansabá. Uma rajada de metralhadora ligeira, desferida sobre ele, ouvidas as vozes de comando, furou o pneu de uma roda de um jeep que se encontrava nas suas costas, desfez-lhe a coronha da espingarda G3, atingiu-o de raspão no braço direito e uma outra bala atingia-lhe o peito, alojando-se entre duas costelas. Houve até alguma discussão no bom sentido, entre o médico, José Hipólito de Sousa Franco, que afirmava não ter o ferido a bala alojada, e o sargento Napoleão a dizer que sim. Foi tratado em Bissau, sendo-lhe extraída, na verdade, a bala alojada mesmo junto do coração. Teve sorte, por um triz.

Evacuados de helicóptero para o hospital de Bissau, o Brasil, ao outro dia, foi transferido para o Hospital da Estrela, em Lisboa.

Sofremos todos um grande sobressalto. Logo dois alferes de uma só vez. Era um aviso grave: havia terrenos que não deviam ser por nós percorridos ou devassados, sem muitas cautelas Era perigoso fazê-lo. O Oio era então o grande santuário da guerrilha.

O comandante, coronel Fernando Cavaleiro, que, na altura, se encontrava em deslocação a Mansabá, foi em socorro, integrado no meu pelotão. Silenciado o IN, reorganizámos o regresso, era quase proibido ir mais além atacar no coração do PAIGC. O comandante ordenou-me que progredisse em fila por um dos dois lados do caminho e por dentro do capim. Não gostei lá muito da estratégia, disse que era perigoso, ainda nos montavam mais emboscadas ou nos apanhavam à mão, refilei, mas ele esteve certo. Não houve mais fogo nem mais sangue nessa manhã, em que, de uma só vez, eu perdia dois camaradas que, entretanto, mereciam um louvor do Comandante Chefe em 18 de Outubro de 1963 e oportuna condecoração.

A partir daí, o alferes Brasil não mais voltava ao teatro das operações, ao contrário do Fernando Correia, que, operado em Bissau, após 15 dias de convalescença, já estava de novo no mato, desta vez, no outro vértice do triângulo do Oio, em Bissorã. Aí desfrutámos de algum sossego, mas fizemos o que fazíamos em toda a parte, acções de guerra contrasubversiva. Com um pouco mais de sorte.

Passávamos o tempo, por vezes cavalgando dois burros, subtraídos ao IN, escoltados pelo cão do meu colega, o Porto, que mandara ir da metrópole.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de Novembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12360: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (3): Diário de bordo - Manhã azul e Deus ao leme