quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12432: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (8): Aerogramas para a Lili (1)

ÚLTIMAS MEMÓRIAS DA GUINÉ - 8

Por Armor Pires Mota (ex-Alf Mil da CCAV 488/BCAV 490, Bissau e Jumbembem, 1963/65)

Aerogramas para a Lili (1)

Se me sobraram da amarga experiência alguns livros, todos vertendo lágrimas salgadas e jorros de sangue jovem e inocente, páginas marcadas por cicatrizes ou, no mínimo, por um sol violento, de rachar bolanhas e fazer ferver os miolos, ainda me sobraram largas dezenas de aerogramas, endereçados à minha madrinha de guerra e, mais tarde, namorada e esposa, de um belo e constante sorriso matizado de arco-íris, onde dizia pequenas coisas, coisas que se podiam dizer (a PIDE lia muito, mas muitas notícias de guerra passaram, vejo agora, relendo os aerogramas).

Se a minha madrinha de guerra verdadeira era a Lili, tenho de confessar que tinha outra suplementar em Luz de Tavira. Um dia troquei os aerogramas. A Lili que, embora muito jovem, tinha decisões de mulher feita, devolveu-me o que pertencia à madrinha, natural da Luz. Com uma anotação simples que dizia tudo:
- “Devolvo. Isto não é para mim”.

Uma bela bofetada com luva branca. Tive que me explicar, pedir mil desculpas e cortar. A coisa acabou por compor-se. Nunca mais soubera nada da algarvia. Eis se não quando, em 2010, recebo uma carta de Tavira, em que a outra madrinha de guerra falava um pouco da sua vida atribulada no matrimónio. O namorado, já na altura da nossa troca de correspondência, era muito ciumento.

Respondi-lhe: gostava de sabê-la entre os vivos, indagava como se lembrara de mim. Ela estava viva e muito queixosa do marido que continuava ciumento, e eu contei-lhe o meu grande infortúnio e os dias de áspera solidão, mas não obtive mais reposta. Foi espécie de um adeus. Foi um gesto bonito, passados cinquenta anos, eu que nunca a cheguei a conhecer pessoalmente. A prevista visita fora gorada numa viagem com os meus amigos do Porto a Tavira. Causa: nunca a cheguei a saber. Também nunca foi coisa que me preocupasse.

Lidos hoje os aerogramas, eles me avivam lugares, memórias, situações e datas. Evidentemente, também escrevia saudades e sonhos, estados de alma enamorada. As palavras amor e paz, sonho e futuro eram uma constante. A colecção, guardada com ternura azul e sonhadora pela Lili, está bastante incompleta. São escritos muito simples, sem redondas palavras, sem qualquer pretensão literária, ao correr do tempo e dos acontecimentos, que, obviamente, a maioria das vezes, não amiudava. Longe disso. Esse aspecto ficava para o meu Diário.

O que abaixo fica registado é um pouco do muito que fixei nos aerogramas e que não vem no "TARRAFO". Ao contrário, eu não guardei ou perdi no tempo os que a Lili me endereçou. Ou perdi-lhe o pouso. Nos meus há de tudo um pouco:

Foto: Belarmino Sardinha - Editado por CV


“Bissorã, 9 de Dezembro de 1963
 Minha cara madrinha:
 (…)
 Aqui, como aí, ontem, foi o dia da mãe. Houve missa e terço e não me lembrei só da minha, mas da tua também, das mães de todos soldados. Realizou-se uma festa na escola, promovida pela tropa e dedicada às mães de Bissorã que têm sido muito carinhosas para com a tropa, sobretudo para os oficiais. A festa esteve formidável. Gostei imenso de ver bailados indígenas. Aqui qualquer catraia ou mesmo catraio tem o corpo cheio de ritmos. E se visses os miúdos a cantar! Aprendem facilmente a letra e a música e têm vozes fantásticas.
Aqui há dias, eu e um colega meu, estivemos a distribuir bolos e bolachas a prisioneiros. Está perto o Natal. Com este gesto, conseguimos que um cabo-verdiano acabasse por confessar algumas coisas e oferecer-se para nos levar ao acampamento dos terroristas, e levou. Capturámos manga de munições e minas, importantes armas, vários documentos, etc. Foi pena não os termos apanhado, mas não foi nada mau. Sem um tiro. Nunca vi os soldados a chegar tão delirantes ao quartel. Vê lá: o mato é tão cerrado que só demos com o acampamento (oito barracas) a três metros de distância. Os gajos ficaram tão estupefactos, mas ah pernas para que vos quero. Enfim, uma boa caçada, das maiores que se têm feito. Não há pai para a cavalaria! Com estas, já são 24 barracas de mato que o Batalhão destrói”.



“Jumbembem, 9 Setembro de 1964 
Minha querida Lili 
(…) 
Ontem, à meia-noite, tivemos uma pequena festa com os terroristas que vieram atacar o aquartelamento. Chovia a cântaros e relampejava continuamente, o que nos deixava cegos, sem nada ver. Quando soaram os primeiros tiros, sei que me deixei escorregar da cama, vesti os calções, enfiei o capacete na cabeça, peguei na arma e lá fui para o parapeito orientar e disparar. Foi coisa de quarenta minutos. A reacção da tropa foi de tal modo violenta que eles tiveram de cavar, deixando abandonado vário material de guerra, roupas e amuletos de cornos de cabrito ou de cabra. Não sei. É possível que não tenham levado a saúde que trouxeram.
O certo é que os bandidos estão a aparecer mais vezes”.


Resposta da CCAV 488 a pequena emboscada
Foto: © Armor Pires Mota (2013). Todos os direitos reservados

“Jumbembem, 4 de Novembro de 1964 
Querida madrinha Lili: 
(…) 
Eu hoje saí às três da manhã. Estava uma aragem fria, devido à formação de cacimbo. Tive de levar uma camisa por debaixo da farda. Montei uma emboscada. Mas ainda bem que não apareceu nenhum desgraçado. Foi o melhor. A mim aborrece-me matar seja quem for, mas muito mais gosto que os bandidos também não me aleijem.
Morreu um moço do meu batalhão no hospital. Foi evacuado à pressa, de avião, mas durou poucos dias. Dizem que lhe rebentou a úlcera que tinha no estômago, é uma versão; a outra diz que foi por causa de uma cirrose no fígado. Para nosso mal e mal dele, é menos um”. 



“Jumbembem, 13 de Novembro de 1964 
Querida madrinha Lili: 
(…) 
Mais um domingo. Passei-o normalmente. De tarde, andei a passear de jeep, cheio de crianças, em constante alarido, como pássaros, para me distrair. Não tinha nada de especial para fazer. Porém, quando cheguei à noite e vi que a avioneta já não vinha lançar os sacos do correio, não imaginas como fiquei aborrecido. Dá a impressão que não há quem ligue, quando o correio é o melhor que podemos ter neste degredo, porque, na verdade, não é outra coisa. Ainda há dias, o piloto do helicóptero disse que não havia tropa com piores instalações (aquartelamento) do que nós. A gente sabe isso. Até porque mandam para aqui de outras companhias passar um mês os moços que se comportam mal. É caso para perguntar: se um soldado mal comportado passa aqui um mês, que crime cometemos nós para estarmos aqui há já sete meses? Mas, enfim... E já que o correio não veio, só amanhã, devo ler a tua correspondência.
(….)
Sabes, têm estado uns dias frios, sobretudo as noites. De manhã, é preciso andar de camisa. E, de noite, é preciso um lençol para nos cobrirmos”
.


“Jumbembem, 18 de Novembro de 1964 
Querida madrinha Lili: 
(…) 
Isto por aqui não está mau, está péssimo. Veio um colega meu de Bissau que disse que, durante os dez primeiros dias em que esteve no hospital, houve onze enterros de soldados brancos. Fora os mortos nativos e os feridos. O hospital está a abarrotar, e, por exemplo, quando ali chegam muitos feridos, os médicos dão alta a soldados que ainda não estão completamente curados. O hospital é muito pequeno. Está a morrer, à média, de um homem por dia. E o que mete raiva é que os jornais da Metrópole digam que o terrorismo está a diminuir e que os terroristas estão a ser acossados pelas nossas forças terrestres por todos os lados.
O terroristas sabem tirar partido da inexperiência dos “maçaricos” [tropa nova] e aproveitam. Como agora veio muita malta nova, eles acham que têm muita carne para bala. E realmente têm conseguido fazer bastantes baixas”.



“Sábado, Jumbembem, 12 de Dezembro de 1964
Querida Lili:
(…)
Ontem tinha intenção de escrever-te, mas, quando cheguei, à noite, sentia-me cansado, com pouca disposição para fazê-lo, embora tivesse dormido até às cinco da tarde.
Esta semana, com o intervalo de dois dias, tivemos duas operações. A que fizemos na noite e manhã do Dia da Mãe (8 de Dezembro) correu bem, normal. Mas, ontem já assim não aconteceu. Houve tiros, emboscadas, feridos: um furriel enfermeiro, que, é curioso e admirável, estando gravemente ferido, tratou primeiro dos outros. Um soldado deve ficar cego. Ontem, tive ocasião de ver (antes, não tivesse) dois terroristas, vestidos de azul que ficaram apalermados quando nos viram, se calhar quanto nós. Não nos esperavam ali. No regresso, uma nova emboscada, onde não esperávamos, obrigou-nos a saltar para a lama e a água da bolanha. Vê lá a ousadia deles: até atacaram a tropa, quando era protegida do alto por um bombardeiro. E já que falo de aviões, há dias, no sul, os terroristas abateram uma avioneta. Morreram um tenente, um furriel e um cabo.
O piloto do helicóptero que esteve cá ontem, disse que os seis helicópteros não têm mãos a medir na evacuação de mortes e feridos. É uma coisa pavorosa. E dizia o governador da Guiné que, neste Dezembro, já passearia pelas estradas, de norte a sul. Ainda sonha muito. Isto nunca esteve tão péssimo. Repara tu que, há dias, no sul os terrostistas destruíram completamente um quartel, incendiaram as viaturas, etc. A tropa, para se defender, teve que fugir para o mato, senão morreria ali toda. Segundo consta, quem fez o fogo, de bazuca, contra o quartel, foi um fuzileiro que fugiu para o lado dos terroristas, há uns quatro meses.
Há dias, chegou-me um soldado novo da Metrópole para substituir o soldado que me morreu em Junho.
Peço desculpa de hoje te massacrar com guerras e horrores, mas prometo que, amanhã, se Deus quiser,  já não tocarei neste assunto”.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 9 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12419: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (7): Os macacos vermelhos

3 comentários:

Luís Graça disse...

Meu caro camarada:

Tudo isto já foi há 50 anos, no século passado... E, no entanto, continuam a ser "dados sensíveis"... O que se escrevia num aerograma ou numa carta (nas linhas e entrelinhas, ou nos espaços, já que os aerogramas não tinham linhas...), por muito autocensurado que fosse, ainda hoje mexe connosco...

Confesso que nunca escrevi um areograma, e hoje tenho pena, mas fascina-me ler os, ainda poucos, que nos chegam ao blogue... Entendo e respeito o pudor que leva alguns camaradas a não querer partilhar, talvez por pudor, os conteúdos da sua epistolografia... Em muitos casos, a correspondência da Guiné foi destruída ou perdeu-se... O que é pena, falam de nós, da nossa geração, das nossas ilusões e desilusões, dos nossos sentimentos mais profundos, da nossa narrativa da guerra...

Obrigado, camarada, pela tua grandeza e generosidade. Um valente alfabravo. Luis

Ildeberto Medeiros disse...

Obrigado amigo por esta recordacao que par mim tem um valor extraordinario porque como diz aconteceu consigo trocar os Aerogramas pois comigo aconteceu porque sou Acoreano tinha uma madrinha de guerra do continente ou seija de Coimbra e tinha aminha namorada nos Acores< hoje minha mulher a qual estou casado a38 anos> pois foi uma bronca dos diabos mas tudo se resolveu por isso me fez recordar este passado OBRIGADO AMIGO E MUITA SAUDE DESTE JA BOAS FESTAS

Tony Borie disse...

Olá Armor.
Obrigado por nos mostrares as tuas recordações, que são quase lembranças de todos nós!.
És um privilegiado na escrita, fazes-te compreender perfeitamente, e falas a nossa linguagem, do nosso tempo de combatentes.
Bem hajas, companheiro.
Tony Borie.