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terça-feira, 15 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26047: Efemérides (444): 15 de outubro de 1969, perdas, inesquecíveis, uma saudosa amizade e porquê

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de hoje, 15 de Outubro de 2024:

Queridos amigos,
Cada um se arroga o direito de ter o seu dia de memória, com ou sem textura de religiosidade. Exatamente há 55 anos, uma mina anticarro ceifou vidas e deixou gente marcada por diferentes tipos de mazelas, desde traumatismo craniano a fratura no calcâneo. Lição mais amarga não podia ter, permiti-me viajar pela noite escura, a tragédia podia ter sido maior se a força do PAIGC que ali nos aguardava não tivesse percebido que os tiros às escuras é metralha de dois bicos. Recebi enorme solidariedade do batalhão de Bambadinca, é inquebrantável a gratidão que dela guardo. E nasceu uma grande amizade por alguém que me tratou dos olhos. Sempre que voltava a S. Miguel, era inevitável um encontro com o Zé Luís, podíamos estar até 2 ou 3 anos sem qualquer contacto, em nada diminuía a euforia do encontro. E foi assim durante décadas até ele partir para as estrelas, e hoje junto-o na minha memória ao lado daqueles camaradas que tanto sofreram com a explosão de Canturé, no regulado do Cuor, em 15 de outubro de 1969.

Um abraço do
Mário



Efeméride: 15 de outubro de 1969, perdas, inesquecíveis, uma saudosa amizade e porquê

Mário Beja Santos

Aí por fevereiro de 1969, comecei a dar tombos nas viagens quase diárias entre Missirá e Mato de Cão, ou no sentido inverso, uma dor aguda, por detrás do joelho direito, levava-me à queda, parecia que logo me recompunha, a dor suavizava; o maqueiro bem me punha emplastros, mas fazendo notar que havia algo de anómalo na curva interior do joelho; conversa com o médico do batalhão, David Payne, confesso-lhe que se repetem com mais frequência as quedas, passa-me requisição para ir à consulta de ortopedia a Bissau, aproveito para pedir para ir ao estomatologista e ao oftalmologista, pedido aceite.

Parto no início da segunda semana de março, fico surpreendido com a rapidez do atendimento, trato uma cárie dentária, o médico ortopedista, face ao resultado do raio-x, informa-me que tenho uma exostose, uma enorme cartilagem, dali já não saio, vou ser operado; na véspera de entrar no HM 241, consigo uma desistência e vou ao oftalmologista. É um homem de estatura avantajada, voz abaritonada, cedo descubro que vem dos Açores, o acento é tipicamente micaelense. Palavra puxa palavra, falo-lhe da minha estadia entre outubro de 1967 e março de 1968, as belíssimas lembranças que trouxe, ainda não faço a mínima ideia como elas se vão cinzelar na minha existência, estamos entusiasmados na conversa, é nisto que ele propõe que jantemos juntos, vamos matar saudades da terra. Apresenta-se, é o único oftalmologista na Guiné, tem que fazer algumas horas no hospital civil, chama-se José Luís Bettencourt Botelho de Melo, tenente-médico, tinha acabado de montar consultório quando foi chamado para estas lides na Costa Ocidental de África; interrogo-me, olhando esta fotografia, devia estar mesmo uma noite mais do que acalorada para haver todo aquele suor na camisa, alguém nos tirou a fotografia, ambos de boa disposição e já com a promessa de encontros futuros. Não iria acontecer tão cedo.

A 20 de março, apoiado nas canadianas, vou a um determinado guichet buscar uma guia de marcha, um sargento desbocado, quando houve falar em Missirá, no Cuor, diz sem rebuço que houve mortos e feridos na flagelação da véspera, ardera o quartel. Transido, peço ao condutor que me leve de novo ao HM 241, consigo encontrar o régulo Malã Soncó, tem o peito estilhaçado, fala dos mortos e dos outros feridos; nova viagem até ao Quartel-General, suplico uma partida do que é que entre pelos ares, mandam-me para Bissalanca, um helicóptero deposita-me no Cuor, aviso todos que temos de ter o quartel pronto antes que cheguem as chuvas, o que aconteceu.

Ando duríssimo, os meus caçadores nativos recalcitrantes, andam pelos matos fechados desde 1966, sonham com a boa vida, é nisto que vou amolecendo quanto às medidas de precaução, acho que tudo me é permitido, como andar pela noite escura nas picadas. E assim contribuí que em plena noite, à entrada de Canturé, uma mina anticarro despedaçasse a parte dianteira de viatura, o soldado-condutor Manuel Guerreiro Jorge entrou logo em agonia, eu saí disparado, felizmente com a G3 na mão, não vale a pena falar mais do que aconteceu, bem me pesa na consciência o resultado de um ato inequivocamente negligente.

Com a cara queimada e óculos perdidos, volto novamente à oftalmologia, o José Luís tratou-me dos olhos e nasceu um ritual de encontros que se irão prolongar até que dolorosos esclarecimentos obrigaram o seu internamento, era sempre uma festa ir até S. Miguel. Havia que o avisar com alguma antecedência. Ainda hoje, paro no Largo da Matriz, em Ponta Delgada, a olhar onde era o seu consultório ou percorro a rua Bruno Tavares Carreiro, ali bem pertinho, imagino que lhe vou bater à porta, fazemos sala e depois partimos para uma iguaria e para conversa que puxa conversa e que nos despedimos com a quase certeza de que em breve haverá novo toque de reunir. E voltaremos a falar do 15 de outubro. Escreveu alguém que a fotografia é um documento fascinante porque nos permite apreciar um instante que existiu. Ela permite infindáveis perguntas, estas duas fotografias têm resposta numa amizade inesquecível, que nasceu na tormenta da guerra.

Escrevo estas recordações exatamente 55 anos de factos ocorridos que iriam solidificar uma amizade para a qual não há qualquer veleidade em responder quanto ao seu porquê.


Março de 1969
15 de outubro de 1969, o meu amigo Humberto Reis parece que não acredita no que está a ver
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Nota do editor

Último post da série de 19 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25762: Efemérides (443): Hoje, no dia do 139º aniversário natalício de Aristides de Sousa Mendes (1885-1954), e na inauguração do seu Museu, em Cabanas de Viriato, Carregal do Sal, o Papa Francisco deu-nos a graça e a honra da Sua Benção (João Crisóstomo)

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20248: Efemérides (312): Mina anticarro em Canturé, regulado do Cuor, 16 de Outubro de 1969 (Mário Beja Santos, ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Outubro de 2019:

Queridos amigos,

Quando soube que o nosso camarada António Carlão partira para as estrelinhas, veio a lume no blogue a sua imagem junto da viatura destruída em Canturé, em 16 de outubro de 1969.

Hoje, neste meu dia de luto, detive-me diante da fotografia em que o meu camarada, o 1.º Cabo António da Silva Queirós, conhecido no nosso meio por o 81, era ele que metia a braçadeira enquanto eu manejava o morteiro, revela espanto diante de um buracão onde jaz o Unimog 404.

Por tudo ser verdade, por ter havido incúria da minha parte e múltiplo sofrimento alheio, aqui guardo lembrança. Porque quanto a penitência e consolação o assunto é íntimo.

Um abraço do
Mário


Efeméride: Mina anticarro em Canturé, regulado do Cuor, 16/10/1969

Beja Santos

Confronto-me com aquele destroço e a estupefação tão espontânea do Cabo António da Silva Queirós, quem captou esta imagem não sabia se havia feridos e mortos, o Queirós está de mão estendida, jamais saberemos o sobressalto em que se encontra, saíram de manhã cedo de Missirá, deparou-se esta viatura esventrada mesmo à esquina da picada em direção a Canturé, por aqui se podia rumar, para sul, até Mato de Cão, e em tempos de paz, umas horas depois, chegava-se a Bissau, depois de Enxalé, Porto Gole, Jugudul; para norte, rumava-se para Gambiel, a ponte fora destruída no início da guerrilha, em tempo de paz por aqui se prosseguia até Geba e Bafatá.

Vivia-se então tempos muito ásperos. O comando de Bambadinca sangrava efetivos de milícias, uma secção de Finete para Demba Taco, uma outra secção de milícias de Missirá para a região de Galomaro. Ia-se praticamente todos os dias a Mato de Cão, é pura coincidência este frenesim a que estávamos a ser submetidos, as obras do porto do Xime estão à beira da conclusão, o arrebol de idas e vindas para patrulhar Mato de Cão diminuirá significativamente a partir de novembro.

Efetivos esgotados, uma grande parte do contingente do Pel Caç Nat 52 formara-se no CIM (Bolama) em 1966, passaram por Porto Gole, Enxalé, Missirá, sonham com o meio urbano, o que irá acontecer em novembro, não percebo porque é que ficaram desapontados, sabiam de antemão que não haveria descanso nas tarefas de toda a ordem, sete dias sem descanso, o que mudava era viajar para uma operação, para uma coluna de reabastecimento, para uma patrulha nos Nhabijões ou emboscada noturna no Bambadincazinho ou na estrada para Mansambo. O que se passou naquele dia 16 de outubro decorreu de um estado de derrisão, de quase inconsciência, na perda da noção das precauções básicas, de quem liderava a coluna, eu.


Infogravura Luís Graça & Camaradas da Guiné

Ao amanhecer, viera-se até Bambadinca com uma lista farta para suprir carências na comida, nas munições, nos materiais de construção e na manutenção de viaturas. No regresso, viatura ajoujada, efetivo mínimo, doentes com pernas entrapadas. Com incrível displicência, com o dia já a declinar, ainda fui vistoriar obras em abrigos em Finete. O condutor, Manuel Guerreiro Jorge, de Monte da Cabrita, Santana da Serra, Ourique, suplica-me para partirmos imediatamente, acedo quando vejo o céu plúmbeo, o Unimog trepa a ladeira de Finete, temos a reta de largos quilómetros pela nossa frente, anoitece. Mandaria o bom senso que ficássemos em Finete, não se viaja dezasseis quilómetros na noite escura. Respondo sempre que não se pode perder tempo, há muitos afazeres para o dia seguinte, peço ao Manuel Guerreiro Jorge para ir na gáspea, o piso está bom, a picada não tem quaisquer reentrâncias, é uma reta colossal até Gã Gémeos, daí até Sansão e depois Missirá é que é altos e baixos.

Mas houve um momento de inquietação, exatamente quando no fim da ladeira de Finete fomos acolhidos na picada por um pesado silêncio, era uso e costume haver chilreios, macacada de galho em galho, tive uma premonição de presença humana, coisa de segundos, vamos seguir. E o Unimog partiu à desfilada, faróis coruscantes atravessavam as trevas da noite. Caminhava para as seis e meia da tarde.

Conheço a palmo a picada, por aqui andámos centenas de vezes, é um deslumbramento com as suas áleas de poilões, simetricamente colocados, só encontrei coisa parecida na estrada para o Enxalé. Suspiro quando já estamos bem perto de Canturé, mais uma hora e descarregamos todos estes bidons, sacos e fardos e caixas de munições. E o fragor da explosão toma conta de tudo, o Unimog parece levantar voo, silvam os curto-circuitos, Cherno Suane, que seguia no guincho, parece o homem-canhão, vai disparado até ao fundo, junto de um morro de bagabaga. O instinto leva-me a saltar com a G3 na mão, uma rajada até despejar por completo o carregador varre aquela margem direita, onde há gente que nos espera, deu para sentir uma fuga precipitada. Desapareceram-me os óculos, não vejo do olho esquerdo, sinto queimaduras na cara, no pescoço, um potente zumbido no ouvido esquerdo. Mas são os gritos de Manuel Guerreiro Jorge que tomam conta da nossa atenção, tem o corpo desarticulado, a mina anticarro explodiu sobre o seu rodado.

Fecho os olhos enquanto recordo tudo isto, quando os abro é para ver o espanto do António Silva Queirós. Tudo se passou há cinquenta anos, meio século não é nada quando sei que foi uma noite que mudou a minha vida, que por displicência se perdeu uma outra vida, houve feridos graves, contei com a generosidade dos camaradas de Bambadinca que vieram sem um gemido pela noite fora, atravessando aos tombos a bolanha de Finete, veio o médico, David Payne Pereira, tudo fez por aquele moribundo, a quem fechou os olhos em Finete.

Levantei-me cedo, tirei a fotografia emoldurada e pu-la numa mesa, faço questão de vos mostrar que retenho todo este filme e para todo o sempre. Tratei os olhos, descurei alguns dos feridos que foram para Bissau, um deles perdi-lhe o rasto, o meu devotado amigo Alcino Barbosa, que regressou com fratura de calcâneo.

Dir-me-ão que são coisas da vida, que o cansaço nos leva por vezes a comportamentos ligeiros, às tais displicências que depois matam e ferem. São os tais momentos que nos afundam ou nos fazem crescer. Olhando esta fotografia que gravou há meio século um sinistro, guardo o dilema que esta efeméride comporta. Só que a vida continua, haja o que houver de amarguras na alma.

E peço perdão por tudo quanto aconteceu naquela destemperada corrida noturna, em 16 de outubro de 1969.
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Nota do editor

Último poste da série de 7 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20214: Efemérides (311): Convite para a cerimónia do Dia Municipal do Combatente, a realizar no 11 de Outubro, às 11 horas, na Praça dos Heróis do Ultramar, em Fânzeres - Gondomar (Carlos Silva, ex-Fur Mil da CCAÇ 2548)