Mostrar mensagens com a etiqueta João Caramba. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta João Caramba. Mostrar todas as mensagens

sábado, 2 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14556: Blogoterapia (268): Vitórias (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR do BCAÇ 3872)

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 28 de Abril de 2015:

A família junta o passado e o presente e perspectiva o futuro. 
Nesta foto estão os meus pais, irmãos, a minha mulher, a minha filha e sobrinhos, para além do Caramba. 
Três combateram na Guiné, um em Moçambique e o meu sobrinho prestou serviço durante o processo do referendo em Timor e mais tarde fez duas comissões no Iraque.
É a minha família mais chegada e quando estávamos todos era uma alegria. 

Um abraço a todos os camaradas
Juvenal Amado



VITÓRIAS

Sentado na enorme sala de espera das consultas externas do Hospital de Leiria, olho rostos, tento adivinhar o que se passa por detrás dos semblantes mais ao menos fechados...
Na sua maioria são gente para a minha idade e como o meu avô diria, eram rapazes do meu tempo.

Mas voltando aos “fregueses” da sala de espera, ponho-me a pensar que muitos dos homens foram combatentes, jovens, fortes, e hoje estão doentes, cansados das agruras da vida, saudosos daquele tempo em que afrontavam a vida como se nada lhes pudesse provocar beliscadura. Quantos estiveram na Guiné, Angola, Moçambique? Quantas esposas quanta madrinhas de guerra? Os progenitores são na esmagadora maioria uma recordação e uma saudade.
A saúde já não é a mesma e essa é que é a verdade indiscutível.

Há pouco tempo recebi a notícia de que o Silva dos Carvalhos estava a fazer hemodiálise e quando comentava o facto com outro camarada, fiquei a saber que o “Ermesinde” também está à espera de um transplante renal, o Narciso foi operado a tumor no cérebro, o Alfredo “estufa” teve um AVC e não sai da cama nem fala, também o “sacristão” esteve muito mal e isto para não falar nos que já nos deixaram.

Através dos semblantes dos utentes na sala de espera tento adivinhar o calvário que cada um está a passar por detrás do olhar absorto.
Quantos filhos e quantos netos terão? Quantas brigas, quantas derrotas e quantas vitórias, constarão na bagagem de cada um?
Os filhos e netos serão a sua vitória da vida sobre a morte?

Há dias assisti a um diálogo num filme que encerrava uma grande lição de vida.
Uma idosa judia, sobrevivente de um campo de morte nazi que ostentava a tatuagem de um número no braço e que estava muito doente, tinha ao redor da cama sete filhos, mais de uma dezena de netos e alguns bisnetos.
O médico disse – então tem aqui a sua família?
Ela respondeu, que sim e que aquela família, era a sua vingança sobre quem tentara aniquilá-la e através dela, toda a sua descendência. A prole tão numerosa era a sua vitória sobre os sofrimentos que lhe tinham infligido.

Fiquei a remoer nas suas palavras pois elas eram um grito de vitória, não em forma de batalha ou guerra ganha, mas sim em forma de sobrevivência e de prolongamento do seu nome, quando tudo tinham feito para lho apagar.

Em Monte Real também soube que alguns camaradas não estavam na sua melhor forma, mas mesmo assim ali estavam também a celebrar outros tempos, novas e velhas amizades. Alguns levaram esposas filhos e netos. Estarmos ali, foi celebrarmos uma vitória onde só a vida e a paz podem e devem ser vencedoras.

Juvenal Amado
____________

Nota do editor

Último poste da série de 2 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14555: Blogoterapia (267): Num Ápice, fico Anestesiado, a Mente o Obriga (Mário Vitorino Gaspar)

domingo, 12 de abril de 2015

Guiné 63/74 - P14462: Estórias do Juvenal Amado (53): O 25 de Abril faz 41 anos e eu continuo um incorrígel sonhador


"O João Caramba [1950-2013],  eu e o Ivo, em Santa Maria da Feira, pouco tempo depois do nosso regresso"

Foto (e legenda): © Juvenal Amado  (2015). Todos os direitos reservados.


1. Mensagem de Juvenal Amado (ex-1.º cabo condutor auto, CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74)

Data: 8 de abril de 2015 às 23:06

Assunto: O 25 de Abril faz 41 anos

Caros camaradas

A liberdade será porventura um dos maiores anseios colectivos da Humanidade. Tão difícil de alcançar,  julgo ainda mais difícil de manter.

Somos uma geração que lutou por ela, que a abraçou, e que deseja deixá-la às gerações vindouras como um bem supremo, pelo o qual tantos morreram desde o berço da nossa nacionalidade.

Na nossa História tantas vezes perdida e outras tantas vezes recuperada, valeu a pena.

Um abraço

Juvenal Amado

Estórias do Juvenal Amado (53) > Sou um sonhador

Sonho com água a passar límpida debaixo das pontes,
Que no Natal haverá brinquedos para todas a crianças,
Amêndoas na Pascoa,
Que há um fim para a violência,
Que o Homem tem prioridade sobre os interesses,
Que chove sempre na altura certa,
Que o Sol aparece sempre na Primavera,
Que os campos se cobrem de verde,
Que as flores darão sempre lugar aos frutos,
A Natureza vença a destruição,
Que os homens se respeitem,
O branco e o preto sejam símbolos da mesma pureza,
Que no Verão os fogos poupem a floresta,
O Outono seja manso,
O Inverno rigoroso mas que ninguém dê por isso,
Que haja arco-íris em todas as escolas,
Que o desemprego seja uma recordação,
Que a tua mão nunca se canse da minha,
Que os sonhos alimentem os sentidos,
Que o silêncio seja a bebedeira da alma...

O 25 de Abril faz 41 anos 
E eu continuo um incorrigível sonhador.

________________

Nota do editor:

Último poste da série > 26 de agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13534: Estórias do Juvenal Amado (52): Portugal, fábrica de soldados

sábado, 19 de outubro de 2013

Guiné 63/74 - P12170: Estórias do Juvenal Amado (49): Afinal era bala real - Lembrando João Caramba

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 13 de Outubro de 2013:

Caros camaradas
Lembrar os nossos é um exercício que se faz naturalmente, pois desse tempo que passámos juntos fica a necessidade de deles falarmos.
Parece que estão mais próximos, atenua o nosso sentimento de perda e prestamos-lhe uma homenagem que não tem preço, não é institucionalizada pois não se institucionalizam os sentimentos.
Juvenal Amado



AFINAL ERA BALA REAL

O Passos contou-me esta ocorrência na última vez que estive com ele, quando lembrávamos o nosso camarada João Caramba, onde fica demonstrado o voluntarismo e a noção de entreajuda que norteava o nosso saudoso amigo.

O caso passou-se quando ainda estávamos no Cumeré em treino operacional, antes de seguirmos para o Leste.

O Passos nunca dizia não a uma jogatana de futebol e embora com um calor pouco convidativo à sua prática, era raro o dia em que não houvesse jogos entre pelotões, ora da CCS ora das companhias operacionais.

Nesse dia o Passos torceu um pé. Não dando muita importância a verdade que após o fim do jogo e com o arrefecimento, a dor no artelho bem como em todo o pé, que apresentava já algum aspecto inchado, tornou-se incomodativa levando-o a procurar ajuda na enfermaria.

Aí levou uma pomada, uma ligadura na zona afectada e a troco de uns analgésicos LM tomados a horas certas, o Passos esqueceu-se da dor.

Mas a malta não estava lá para jogatanas e mesmo nessa tarde o Pelotão de Reconhecimento foi chamado para instrução de guerrilha e contra guerrilha.
A simulação de um golpe de mão a um pelotão de uma das companhias operacionais era a ordem. Estavam connosco as seis companhias operacionais desembarcadas do Angra do Heroísmo, 3 continentais e 3 madeirenses.

O resultado do insucesso desta operação, era ficar prisioneiro do pelotão “atacado” toda a noite e no outro dia, ser exibido como troféu pelos que eram para ser caçados e passavam assim a caçadores.
Embora fosse a brincar, ninguém do Pel Rec queria deixar os seus créditos por mãos alheias e passar por essa vergonha.

Foram feitas equipas de dois calhando numa delas o Passos e o Caramba.
Tinham sido informados de que os atacados tinham bala simulada e não deveriam responder ao fogo.

Lá se foram aproximando da força “inimiga” com todo o cuidado, e estando conscientes de que acabariam por ser detectados,  tinham após isso, tudo fazer para não serem feitos prisioneiros.

E assim foi. Quando foram detectados, pernas para que te quero pelo mato fora. Atrás deles ouviam os disparos.

Mas o pé do Passos não o deixava correr muito, uma vez que cada vez lhe doía mais, com a agravante de ter batido com ele ao saltar do Unimog que os tinha levado ao local onde se iniciaria a operação.

Os perseguidores ganhavam terreno a olhos vistos e o Caramba teimava em não deixar o Passos para trás, dizendo: ou fugimos os dois ou somos os dois apanhados.

Nisto o Caramba manda o Passos atirar-se pra o chão pois detectou que alguém estava a usar bala real. No chão o Passos por instinto meteu bala na câmara com o Caramba a gritar para não responder ao fogo e logo de seguida levantar os braços gritando que se rendiam.

Os perseguidores aproximaram-se todos risonhos e eufóricos da vitória, não esperavam que o Caramba desse um salto em frente para desancar o responsável pelos tiros, que lhe tinham assobiado aos ouvidos.

- Ou me tiram este gajo da frente ou eu parto-lhe as trombas.

No meio de enorme burburinho e acusações, foram ver o carregador da G3 e ele tinha de facto balas reais. Foi um momento de consternação para todos com o Caramba a jurar pela pele do atirador.

Do que se passou a seguir, o Passos disse-me que não soube mais nada sobre o resultado da ocorrência, mas pensa que aquilo foi abafado tendo ficado em nada.

A falta de preparação com saíamos da recruta/especialidade e eramos enviados para a Guiné, era muita e houve muitas tragédias que se poderiam ter evitado.

A sorte era escapar.

Entretanto o Batalhão 3872 embarcou numa LDG e na Bóro direito ao Xime e o episódio foi-se diluindo nos verdadeiros perigos que se avizinhavam daí para a frente.

Um abraço para todos
Juvenal Amado

João Caramba a bordo do "Angra do Heroísmo" ao largo da ilha da Madeira

A malta do Pelotão de Reconhecimento em confraternização
____________

Nota do editor

Último poste da série de 12 DE ABRIL DE 2013 > Guiné 63/74 - P11382: Estórias do Juvenal Amado (48): Fizeram-me lembrar os "Doze Indomáveis Patifes"

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Guiné 63/74 - P11382: Estórias do Juvenal Amado (48): Fizeram-me lembrar os "Doze Indomáveis Patifes"

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 25 de Março de 2013:

Luis, Carlos, Magalhães e restante Tabana Grande.
Mais uma pequena lembrança dos tempos de Galomaro.
Aproveito para agradecer a ajuda que o Luís Dias (ex-alferes da companhia do Dulombi CCaç 3491), que me confirmou quanto às informações operacionais das movimentações das nossas tropas e do PAIGC na nossa zona de acção.

Juvenal Amado


FIZERAM-ME LEMBRAR OS DOZE INDOMÁVEIS PATIFES

Alferes Dias em Galomaro com a MG42 

Lembrou há pouco tempo o ex-Alferes Dias da CCAÇ 3491 do Dulombi, que o BCAÇ 3872 até meados de Abril de 1972 só com três meses de mato já sofrera 12 mortos metropolitanos (4 em Cancolim – CCAÇ 3489 + 8 no Quirafo/Saltinho - CCAÇ 3490) mais cinco milícias e um desaparecido em combate (o Baptista também no Quirafo). Juntando aos mortos e os feridos, as baixas eram já consideráveis e em virtude disso, chegou a ser considerada a possibilidade de o Batalhão ser transferido para outra zona.

Tal não se veio a confirmar pois ao aumento da movimentação do IN, entre Cancolim (atacado várias vezes) e Galomaro onde atacaram várias tabancas como Cansamba, onde estava um pelotão da companhia do Saltinho, Bangacia, Campata (e ainda Bafatá pois o IN infiltrava-se passando perto do destacamento de Cancolim) posteriormente a própria CCS em Galomaro.

A este acréscimo da movimentação do PAIGC respondeu-se com medidas acertadas, que talvez tenham feito gorar os intentos do movimento independentista e assim para sacudir o assédio que vinham fazendo na zona, foram precisas várias intervenções dos pára-quedistas (logo em 1972) e, posteriormente, a transferência da CCAÇ 3491 que veio reforçar Galomaro e Cancolim (I GCombate). Também essa companhia “emprestou” para Piche o II Grupo de Combate do Luís Dias (e o III GCombate do Farinha). A certa altura Galomaro, também foi reforçada por um pelotão comandado pelo alferes Luís Borrega (em 1972) e outro de uma companhia independente (em 1973), onde estava um meu antigo colega de escola, Carlos Afonso

Pára-quedistas em Galomaro desta vez em 1973.

Mais tarde tivemos mais mortos e feridos (zona de Cancolim e zona de Galomaro) e um desaparecido em Cancolim (António Manuel Ribeiro) que veio a aparecer por ter conseguido fugir em Março de 1974 de uma prisão do PAIGC, usando o rio Corubal para se guiar até ao Saltinho.

Posteriormente alguns soldados vieram para o nosso batalhão alguns por castigo, como o caso de um madeirense expulso dos comandos, que integrou o Pel Rec e pelo que vou contar, também se recorreu a agrupamentos disciplinares para reporem os nossos mortos e evacuados.

Belo dia juntamo-nos todos para ver o grupo de soldados que tinha chegado em rendição das baixas de Cancolim. O aspecto deles não era o melhor e o estado das fardas era representativo das vicissitudes por que tinham passado até ali chegar. Todos a roçar mais os 30 do que os 20 anos, eram o retrato vivo de soldados que a indisciplina, o azar ou quem sabe fruto de uma certa revolta os atiraram para castigos na maioria com passagem pelas prisões militares.

Um tinha agredido um superior, alguns refratários, etc... depois já sabe, ou não se sabe onde existe a verdade e onde ela acaba.

Nisto ouço ao meu lado uma exclamação: Olha o Lino!!!!! 

- É um moço lá do mê bairro e há anos que o não via! - Dizia o Caramba naquela forma tão peculiar de falar e dando a perceber com expressão do rosto, que o Lino era de primeira apanha.

O Lino também o reconheceu logo e fez-se ali uma festa com umas cervejas à mistura.

O Lino contou imensas peripécias e as inúmeras “porradas” que levou na Metrópole às quais juntava outras tantas já na Guiné, com passagens pelo presidio militar. Via-se que pela cara dele, que há muito tinha deixado de se vangloriar dos seus feitos e que esses lhe tinham custado demasiado caro.

- Lembras-te de quando atiravas bombas de carnaval ao polícia com a fisga?

Todos nos rimos imaginando o pobre policia a ser bombardeado sem saber donde lhe chovia. Outras patifarias onde o Lino era figura principal foram recordadas e está claro, que elas eram bem presentes na memória do Caramba, que delas sabia em primeira mão ainda moço.

O Lino bem como os outros lá foram no mesmo dia para Cancolim na coluna que regressava de Bafatá.

Nós, com mais de um ano de comissão, não ficamos indiferentes à sua passagem por Galomaro e ao seu especto físico e ar arruaceiro, o grupo mais fazia lembrar os “Doze Indomáveis Patifes”, um conhecido filme americano sobre a II guerra mundial.

Nessa mesma noite Cancolim é atacada e lá vai o Lino evacuado para Bissau com um ferimento numa perna. Nada de especial e acabou por regressar mas, se não estou em erro, foi mais tarde evacuado com uma ulcera no estômago e, desta vez sim, nunca mais o vimos.

Nunca me esqueci do seu aspecto, sem dentes, muito moreno, pequeno e magro com um rosto algo sofrido, irreverente que se desarmou ao ser por nós tratado com amizade. É que ali debaixo daquele sol tórrido, éramos todos iguais.

Nota de rodapé:
- Os pára-quedistas foram usados várias vezes na nossa zona em 1972 e 1973 em Cancolim onde reforçaram o próprio destacamento. Foram largados entre Galomaro e Saltinho (íamos buscá-los quando caimos numa mina com um morto) e posteriormente no eixo Cancolim, Dolumbi, Madina de Boé. Também o grupo do Marcelino da Mata fez operações a partir de Galomaro após o ataque a Campata.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 19 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11279: Estórias do Juvenal Amado (47): Aquelas postas de bacalhau eram ouro

terça-feira, 19 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11279: Estórias do Juvenal Amado (47): Aquelas postas de bacalhau eram ouro

Galomaro > Porta de Armas

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 15 de Março de 2013:

Caros Luis, Carlos, Magalhães e restante Tabanca Grande
Gostava que fosse mais uma estória despretenciosa e que ela não carregasse o sentimento de perca que neste momento é praticamente impossível ignorar.
Mas isto também serve para honrar os amigos e para preencher o vazio que ficou. Por outras palavras fazemos o luto necessário ao nosso equilíbrio.
Juvenal Amado


ESTÓRIAS DO JUVENAL AMADO

47 - AQUELAS POSTAS DE BACALHAU ERAM OURO

O Caramba* tinha recebido da terra uma encomenda. Enganaram-se os que pensaram que era uma coisa especial, que era o tesouro gastronómico alentejano. Na verdade a encomenda resumia-se a umas quantas postas de bacalhau salgado e seco, como era tradição cá na terra, na vez de liofilizado como o recebíamos lá.
Aquilo para o Caramba era ouro puro e tratou de o guardar com mil cuidados, começou logo a magicar como o iria fazer, sim porque aquilo não era um manjar qualquer, tinha que ter honras de iguaria fina.

Por mim achava que umas postas de bacalhau não mereciam tanta deferência, mas o Caramba era um homem que gostava das coisas da terra, que cultivava a sua ruralidade e que fazia questão de não esconder as suas origens. Contava ele que ainda moço ia com o pai para o negócio da compra e venda de fruta, com um naco de pão, umas azeitonas britadas, um dente de alho e uma posta de bacalhau demolhada, que depois passava pelas brasas feitas num intervalo do seu labor.

Eu, oriundo de operariado urbano que nem quintal tinha, apreciava quando ele falava da sopa de beldroegas, do licor de poejo, dos coentros, do gaspacho, as caldeiradas de peixe da barragem, da sopa de cação, enfim, coisas que eu não conhecia mas que quando regressei tive oportunidade de saborear nas inúmeras vezes que com ele privei. Ele chegava a trazer do Alentejo as ervas aromáticas e mais os necessários, para fazermos os petiscos em minha casa na Boavista de Alcobaça, para onde eu fui viver depois de casar. Visitava-me então amiúde quando vinha carregar fruta da região que depois transportava para os mercados do baixo Alentejo e Algarve.

Mas voltemos ao “fiel amigo” que o pai lhe tinha mandado.

O destino do manjar foi uma p……. de bacalhau que ele preparou dentro de uma das terrinas de aço inox quem eram usadas no refeitório.
Era o que se podia chamar uma grande tachada.

Nessa noite a partir das oito horas da noite, ele, eu e Aljustrel estávamos de reforço à porta de armas no primeiro de cinco, que tínhamos apanhado por castigo e foi mesmo ali que fizemos as honras ao dito.

Está claro que não comemos sozinhos, alguns camaradas que regressavam do Regala bem com um ou dois furriéis a troco de um rodada de cerveja, também se associaram na terrina. Mais tarde até o Santos que estava preso, ajudou a acabar com ela e de caminho ficou de reforço connosco até de manhã.

O Santos na sua qualidade de preso, todo dia enfiando num pequeno cubículo no abrigo STM, onde mal cabia uma pequena mesa e dois beliches, não lhe custou nada ficar de reforço por nós que bem bebidos não nos aguentávamos com os olhos abertos. Quando começou a raiar o dia chamou-nos e foi-se enfiar na sua cela, onde se preparou para apanhar mais um dia naquilo que poderia chamar-se “frigideira”, tal era o calor dentro daquelas quatro paredes.

O Santos por esperteza era soldado básico. Natural de Grijó, passava o dia às ordens do tenente Raposo, nem arma tinha distribuída. Não me lembro do que ele fez mas sei que levou uma porrada com prisão agravada pelo Comando-Chefe, passando assim duas vezes pelo encarceramento. Está claro que quem estava de serviço à porta de armas à noite lhe abria a porta para ele vir para o fresco, e por vezes, quando era levado à casa de banho passava pela cantina para beber uma bem fresca. Tudo isto nas barbas do nosso comandante e mais oficiais do quadro, de onde podia haver problemas. Dos milicianos nós não tínhamos medo neste caso.

Fica aqui mais um apontamento onde as figuras centrais foram o nosso camarada João Caramba e o Santos dois amigos que já nos deixaram.

Voltando à figura do Caramba, uma das minhas passagens por sua casa, estava ele de convalescença de uma intervenção cirúrgica e por isso já com muitos dos problemas que a partir de certa altura o foram afligindo. Brincamos com a velhice que se ia apoderando de nós e à minha pergunta de como estava, respondeu-me, com um ar maroto, apontando para a televisão onde se passava uma cena de amor entre uma bonita mulher e um homem, assim com alguma filosofia e fino humor:
- Ora vamos indo não fazendo nada e para aqui estamos vendo o que outros estão fazendo

Dito isto, fez com a boca um trajeto trocista para que não houvesse duvidas, ao que se estava a referir.

Um abraço
Juvenal Amado

____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 10 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11227: In Memoriam (144): João António Branquinho Caramba, ex-1.º Cabo TRMS da CCS/BCAÇ 3872 (Galomaro, 1971/74)

Vd. último poste da série de 5 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11196: Estórias do Juvenal Amado (46): Este gajo não tem uma cunha, tem um barrote

domingo, 10 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11227: In Memoriam (144): João António Branquinho Caramba, ex-1.º Cabo TRMS da CCS/BCAÇ 3872 (Galomaro, 1971/74)

João António Branquinho Caramba
06 de Abril de 1950
07 de Março de 2013
 ex-1.º Cabo TRMS do PEL REC/CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74


Falecimento do nosso camarada João Caramba

Juvenal Amado*

Quanta vezes fiz o caminho até Beja?

Era sempre com uma alegria que passava Vila Franca , reta de Pegões, avistava Grândola, Ferreira do Alentejo e quando entrava em Beja virava para o Penedo Gordo, uns poucos quilómetros percorridos apontava direito à estação. Lá estava o meu camarada Caramba mais a sua Rosa e filhos, sempre de braços abertos e o tempo deixava de contar.

Falava-se de tudo e de nada, era tal o prazer de estarmos juntos, que guardo muitas dessas conversas para sempre.

O João Caramba figura incontornável, foi meu camarada no 3872 e desde tenra idade habituado a lidar com as vicissitudes do meio rural do seu Alentejo. Habituado às grandes distâncias, muita horas sozinho no seu trabalho, sabia o valor de uma boa conversa, era por isso grande contador de estórias e sabia contá-las como ninguém.

Nos almoços da companhia juntava-se sempre uma roda de camaradas para o ouvirem.
“Uma vez em Castro Verde…
“Quando fui fazer uma carrada de melão…
“O mê pai fazia os mercados de….. 
“Uma vez na feira da Cuba fui à tourada e…
“Uns tipos de Trigaches andavam roubando-me os figos mas um dia quando lá chegaram, eu estava lá esperando por deles e preguei-lhes um cagaço com uma espingarda velha. Agora por via disso tão depressa não posso lá ir, não vá algum reconhecer-me…

Quantos serões onde ele contava com imensa graça as suas andanças? Quantas gargalhadas até às lágrimas? Estar com ele em Alcobaça, Fátima ou no Penedo Gordo, era não dar pelo o tempo passar.

Com ele conheci fisicamente, pois antes já eu as conhecia de nome que ele não se cansar de as nomear, Vidigueira, Cuba, Viana do Alentejo, Évora e relíquias que são as capelas por vezes perdidas na planície
Fui ao casamento dele, conheci os filhos bebés, viu-os crescer e tornarem-se homens que eram o orgulho dele e ver o amor que eles lhe dedicavam, foi sempre inspirador.

Falar do meu camarada Caramba é ter medo de não lhe fazer justiça, é falar de um amigo muito querido, é falar de alguém insubstituível, é dizer que conhecê-lo fez mim um homem melhor e por fim, perdê-lo faz parte dos dias tristes que a vida sempre nos reserva.

Quer queiramos ou não, esse dias tristes chegam e vão-se juntado à medida que avançamos na idade. Nesses momentos pensamos, como será possível a vida continuar sem a presença física dos nossos entes que partem? Como é que continuamos a caminhar a viver e a respirar, depois do desaparecimento físico de quem foi tão importante para nós?

Sem os termos conhecido tudo teria sido diferente.

No dia 8 de Março, dia da mulher, voltei a Beja, mas desta vez foi uma viagem dolorosa onde se juntaram as lágrimas da sua mulher com as que o céu derramou todo o dia, ali me despedi para sempre do meu camarada, amigo e irmão João António Branquinho Caramba, que em vida nunca me regateou a amizade e a saudade tenho dele espero eu, que o tempo a venha atenuar.

Descansa em paz,  amigo.

João Caramba

Monte Real, 21 de Abril de 2012 > VII Convívio da Tabanca Grande > João Caramba, ao centro, escuta o nosso editor Luís Graça. À direita da foto, o nosso camarada Belarmino Sardinha


2. Comentário de CV:

No passado dia 1, véspera do VII Encontro dos ex-Combatentes da Guiné do Concelho de Matosinhos, foi o funeral do Esteves, meu colega de empresa e também nosso camarada de Guiné. Este ano foi a primeira vez que não participou no nosso Convívio.

No ano passado, no VII Convívio da Tabanca Grande, participou pela primeira vez o nosso camarada João Caramba, que se fez acompanhar da sua esposa Rosa, motivado, sabemos, pelo Juvenal Amado seu particular amigo. Quem adivinhava que nunca mais participaria daquele nosso evento?

É duro, mas muitos de nós temos alguém já na "secretaria" a preencher a nossa "guia de marcha".

Vem isto a propósito de que cada vez somos menos, e os que ainda cá estão devem desfrutar da amizade e camaradagem que une os ex-combatentes, afinal a nossa maior riqueza, já que as reinvindicações materiais se esfumaram face à actual conjuntura económica. Exijamos ao menos o respeito que nos é devido pela nossa condição, sendo que para tal temos que manter a nossa união.

À família enlutada no nosso camarada João, especialmente à sua esposa, filhos e netos, apresentamos os nossos sentidos pêsamos. Cada camarada que vemos partir é como se um irmão nosso partisse. Ficamos mais tristes, mais sós.

Uma palavra especial para o nosso amigo Juvenal, que sabemos sentiu muito fundo a partida do seu especial amigo, e compadre se não estamos enganados. Já há muito o Juvenal tinha escrito sobre o João e sobre a relação de fraternidade que os unia desde os tempos de Guiné. Um belíssimo exemplo.

Camarada João, até um destes dias.

(*) -  Juvenal Amado foi 1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74
____________

Nota do editor:

Vd. último poste da série de 2 de Março de 2013 > Guiné 63/74 - P11179: In Memoriam (143): Soldados Domingos do Espírito Santo Moreno e João Amado, e 1.º Cabo João António Paulo, da CCAÇ 3489, mortos em combate, em Cancolim, no dia 2 de Março de 1972 (Juvenal Amado)

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9909: Tabanca Grande (339): João Caramba, ex-1º cabo trms, Pel Rec, CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74, alentejano de Beja, nosso grã-tabanqueiro nº 558

1. Mensagem do nosso camarada e novo tertuliano João Caramba (ex-1.º Cabo TRMS do PEL REC/CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 12 de Maio de 2012:

Olá amigos.
Espero ter a honra de pertencer ao grupo.
Se alguma coisa não estiver correta agradeço a vossa correção.

Um abraço
João Caramba


Uma história recordando a Guiné

Decorria o ano de 1973.

Quando soube que tinha chegado um novo batalhão à zona e que nessa unidade vinham alguns patrícios meus conhecidos, resolvi ir-lhes fazer uma visita. Logo que consegui uma oportunidade fui até lá.

Ao chegar ao destacamento começa a história que vos vou contar, a qual, poderia chamar-lhe trágico-cómica.

À porta de armas, todas as viaturas eram identificadas, registando-lhes a matrícula e a unidade onde pertenciam, só depois era levantada a cancela. Qual não foi o meu espanto quando verifiquei que o soldado de serviço, que eu conhecia bem, era analfabeto, não podendo ler nem registar coisa alguma e, mais grave ainda, era que estava com uma G3 em bandoleira,  coisa que não seria possível em situação normal pois era básico e não estava autorizado a manusear qualquer tipo de arma.

A coluna parou junto à cantina, onde eu me desloquei imediatamente, para falar com o cantineiro, que também era da nossa terra,  e contar-lhe o que se estava a passar.

Ficou tão admirado como eu, indo logo de seguida avisar o Oficial de Dia, pois foi o próprio que lá o tinha colocado, entregando-lhe a sua própria arma. Ao ter conhecimento do que se estava a passar o Sr. Alferes saiu do gabinete de braços por cima da cabeça,  esbracejando e ameaçando que lhe dava uma porrada e que o metia na cadeia e outros mimos mais que nem os bichos gostam.

Quando o soldado se apercebe do que se está a passar sai do posto, de arma em punho, puxa a culatra atrás, mete a bala na câmara e mandou-o parar,  ameaçando fazer-lhe um buraco. Claro está que o Sr. parou de imediato,  tremendo, sem saber o que fazer.

Nesse momento, alguém me fez lembrar que esse rapaz me tinha algum respeito, portanto eu tinha que intervir e assim fiz, com muita calma pedi-lhe que me entregasse a arma e, muito devagar, com a arma apontada para o meu lado, veio entregá-la e ao mesmo tempo cumprimentar-me como se nada se tivesse passado.

Só depois da bala fora da arma é que o Sr. Oficial se aproximou para continuar com alguns insultos. Foi difícil fazê-lo compreender que ali só podia haver um culpado e era ele próprio. Então com muito tempo e paciência lá fui conseguindo dar-lhe a volta de maneira que esta história ficasse por aqui sem vinganças nem castigos e acho que consegui.

Termina assim esta história, que podia ter sido uma tragédia, mas acabou em mais um dos muitos acontecimentos da Guiné, que ficaram nas nossas lembranças.

João Caramba



Monte Real > VII Encontro Nacional da Tabanca Grande > 21 de abril de 2012 > Foto de Rui Silva, mostrando em primeiro plano, da esquerda para a direita, o nosso editor Luís Graça e dois alentejanos dos quatro costados, o João Caramba, nosso novo grã-tabanqueiro, e o Belarminho Sadinha. Em segundo plano, à esquerda, outro ilustre grã-tabanqueiro de longa data, o Juvenal Amado. O Juvenal e o João pertenceram à  mesma unidade, CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74, e são bons amigos.


2. Comentário de CV:

Caro João, bem-vindo à tertúlia. Sabemos que entraste pela mão do nosso camarigo de longa data Juvenal Amado, que se bem me lembro já havia falado de ti em pelo menos um dos seus textos.

Tivemos o prazer da tua companhia, e de tua esposa, no nosso VII Encontro deste ano, em Monte Real, pelo que já és conhecido por muitos de nós.

Já sabes que um dos deveres dos camaradas inscritos na tertúlia é,  dentro da sua disponibilidade,  ir alimentando o Blogue com as suas recordações e fotos. Tens o teu amigo Juvenal como inspirador.

Ao terminar deixo-te um abraço em nome da tertúlia. Passas a ser o tabanqueiro nº 558.

O camarada e amigo
Carlos
_____

Nota de CV:

Último poste da série > 15 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9903: Tabanca Grande (338): José Carlos Suleimane Baldé, ex-1º cabo at inf, CCAÇ 12 (Contuboel, Bambadinca e Xime, 1969/74)