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segunda-feira, 8 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25724: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte VI: Uns com tanto, e outros com tão pouco








 Timor Leste > Um país montanhoso, de paisagens luxuriantes... A muitos sítios no interior, só se consegue chegar de "motor" (motorizada), mesmo que o "pendura", em muitos troços, tenha que ir a "penantes" (como é o caso, aqui, do Rui Chamusco, na primeira foto de cima)



Fotos: © Rui Chamusco (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Escola Portuguesa Ruy Cinatti > Festa final de ano 2024/25 (vídeo, 5' 40'') (com a devida vénia...).


 (A Escola Portuguesa de Díli - Centro de Ensino e Língua Portuguesa Ruy Cinatti, fundada em 2002,  é um estabelecimento de de ensino pré-escolar, primário e secundário localizado em Díli, Timor-Leste., frequentada por alunos timorenses, portugueses e de outras nacionalidades)



1. Rui Chamusco, membro da nossa Tabanca Grande desde 10 de maio último, é cofundador e líder da ASTIL (Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste), criada em 2015 e com sede em Coimbra.
 
A ASTIL fundou e administra a Escola de São Francisco de Assis (ESFA), nas montanhas de Liquiçá, Manati / Boebau (pré-escolar e 1º ciclo) e tem também em curso um programa de apadrinhamento de crianças em idade escolar. (Havia, então, em Boebau, 150 crianças sem acesso à educação.)

Professor de música, do ensino secundário, reformado, natural do Sabugal, e a viver na Lourinhã, o Rui tem-se dedicado de alma e coração a estes projetos solidários no longínquo território de Timor-Leste.

Desde a sua primeira viagem a Timor-Leste, no 1º trimestre de 2016, que ele vai escrevendo umas "crónicas" para os membros da ASTIL e demais amigos de Timor Leste. Temos estado a recuperar essas crónicas, agora as da segunda estadia, em 2018 (*).

O Rui Chamusco partiu para Timor, em 25 de janeiro de 2018, com o seu amigo, luso-timorense, Gaspar Sobral, cofundador também da ASTIL. Em Dili ele costuma ficar na casa do Eustáquio, irmão (mais novo) do Gaspar Sobral, e que andou, com a irmã mais nova, a mãe e mais duas pessoas amigas da família, durante três anos e meio, refugiado nas montanhas de Liquiçá, logo a seguir à invasão e ocupação do território pelas tropas indonésias (em 7 de dezembro de 1975) (tinha "apenas" 14 anos...).




Lourinhã > 2017 > Rui Chamusco e Gaspar Sobral, casado com a Glória Lourenço, professora do ensino secundário, conterrânea e amiga do Rui. A família Sobral tem um antepassado comum que foi lurai, régulo, no tempo dos portugueses. As insígnias do poder (incluindo a espada) estão na posse do Gaspar, que vive em Coimbra. A família Sobral andou vários anos pelas montanhas de Luiquiçá e de Ermera, tentando escapar à tirania dos ocupantes indonésios. O Gaspar esteve 38 anos fora da sua terra, só lá voltando em 2016, com o Rui.

Foto: Arquivo do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2017)


1. Esta segunda viagem e estadia do Rui Chamusco (de 27 de janeiro a 14 de junho de 2018) (*), em Timor Leste, em missão solidária, culminaria com a inauguração da Escola de São Francisco de Assis (ESFA), em 19 de março de 2018, em Boebau, Manati, nas montanhas de Liquiçá, evento já aqui relatado.

Através da família Sobral, um exemplo de "resistência e resiliência", e das crónicas do Rui, vamos conhecendo melhor Timor-Leste, de ontem e de hoje:

Estas crónicas têm um enorme interesse para se perceber melhor o que é hoje a República Democrática de Timor Leste, país membro da CPLP, com o qual mantemos laços históricos, e sobretudo afetivos, tal como mantemos com a Guiné-Bissau e outras antigos territórios que estiveram sob a administração portuguesa em África e na Ásia.

Enfim, estas crónicas, que o Rui Chamusco partilha connosco, acabam por ser um privilégio, para os nossos leitores, amigos de Timor Leste e/ou promotores da lusofonia.  



II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL)

Parte VI - Uns com tanto, 
e outros com tão pouco



06.04.2018, sexta feira - Investimento ou desperdício


Hoje estive de novo na escola Rui Cinatti, uma escola verdadeiramente portuguesa num contexto timorense. Os créditos que este estabelecimento de ensino foi granjeando ao longo dos anos são sobejamente conhecidos. Frequentar esta escola é motivo de orgulho para qualquer aluno e família. 

Com programas e funcionamento do calendário escolar português, aqui são administrados conhecimentos, saberes e atitudes que muito dignificam mais de mil alunos, respetivos professores e auxiliares de ação educativa (mais ou menos sete dezenas). As condições físicas deste estabelecimento fazem inveja a muitas escolas de Portugal. Tudo é tratado com muito respeito; tudo parece bem. Mas por detrás de todo este cuidado está o zelo, a competência e a dedicação da sua direção, concretizada na pessoa do Dr. Acácio.

Perante os números astronómicos indicados em investimentos à vista, fala-se quase sempre em milhões, quase instintivamente perguntei: “quem paga isto tudo?” A resposta foi pronta e clara: “ O ministério da Educação e a embaixada de Portugal”. Se acrescentarmos a tudo isto os gastos mensais com o pagamento a professores e auxiliares de educação poder-se.á ter uma ideia do bolo mensal que aqui é investido.

Tudo bem. Dão-se os meios e atingem-se os fins. Dito de outra maneira,  “as árvores conhecem-se pelos seus frutos”. Mas sem qualquer preconceito ou  acusação, dou comigo a pensar: “se nós dispuséssemos de uma ínfima parte do que aqui se gasta para apetrechar e fazer funcionar a nossa escola de São Francisco de Assis em Boebau.” 

Os restinhos que aqui sobejam matavam a fome à pobreza e ainda sobrava pão. Uns com tanto e outros com tão pouco, como cachorrinhos que ansiosamente esperam alguma migalha que caia da mesa dos seus senhores.


07.04.2018, sábado - Pedido de ajuda


A Delfina, uma moça de que já falei a propósito de ter acabado o secundário como sendo a segunda melhor aluna da turma, mas que estava em casa por a família de acolhimento não ter hipóteses de economicamente lhe poder garantir a continuidade nos estudos, veio até nós para nos informar dos seus primeiros dias na Universidade da Paz, onde frequenta o curso de Relações Internacionais. 

A rapariga conta, com um ar de felicidade bem visível no seu rosto, episódios relacionados com o estudo das disciplinas (comunicação social, economia, filosofia, português, e outras). Fala-nos dos professores, dos colegas, do seu envolvimento em ações culturais. Até parece que ganhou uma nova vida. 

No seu ar de simplicidade, próprio das terras donde provém, Boebau, promete-nos que se irá esforçar muito para aproveitar ao máximo o apoio que lhe estamos prestando. Com uma prestação de contas ao pormenor, a Delfina explicou-nos como, para poupar algum dinheiro, se desloca para a universidade. Em percurso normal teria de apanhar duas microletes que, a quinze cêntimos cada viagem, daria 60 cêntimos por dia. No fim do mês teria gasto dezoito dólares, o que para ela e muitos timorenses é incomportável. Então resolveu fazer uma parte do trajeto a pé e reduzir assim a despesa a metade.

É difícil hoje em dia encontrar jovens com este querer e esta força de vontade. Claro que se a Delfina fosse filha de gente rica ou gente notável, não haveria qualquer dificuldade em prosseguir os estudos. Mas a Delfina perdeu o pai e a mãe está muito doente. Por isso recorreu a uma família de acolhimento, onde vivem neste momento 14 pessoas. Os seus estudos na Universidade da Paz só são possíveis graças à benevolência do seu reitor, Dr. Lucas, que compreensivelmente atendeu o nosso apelo, libertando-a do pagamento de propinas e graças ao apoio de outros amigos sensíveis a casos como este.

A Delfina pediu-nos timidamente um telemóvel a fim de poder desenvolver com mais competência os seus trabalhos de investigação. Entretanto conta com a ajuda de colegas, com trabalhos de grupo, e claro está com a ajuda dos professores. Talvez apareça algum anjo portador deste meio de comunicação, com acesso à Internet...


09.04.2018, segunda feira - Mundo Mágico


Estamos a falar, claro está, do mundo das crianças, onde a fantasia é rainha e os seus habitantes são príncipes e princesas. “Mundo Mágico” é o nome de uma escola creche e jardim infantil que hoje visitei em Motael / Dili, no intuito de aprender alguma coisa que nos possa servir de exemplo para a nossa escola de Boebau. 

Mais ou menos 40 crianças povoam o espaço agradável que as responsáveis procuram com muito carinho proporcionar aos seus utentes. Em funcionamento há cinco anos, de melhoria em melhoria, um local onde a língua portuguesa é o veículo principal de comunicação. A decoração, os jogos, o ambiente transportam-nos para este mundo de sonho e de fantasia em que o presente e o futuro se constrói com fadas, castelos, músicas e canções infantis que nos empolgam para horizontes ilimitados, para campos cobertos de arco iris sem alcance mas que encantam e fazem sonhar. 

E, ao me lembrar daquela frase perdida “cada criança que nasce é um sinal de que Deus ainda não está zangado com a humanidade...”,  fico a pensar e a concluir que, aqui em Timor, Deus está bem presente graças ao número tão elevado de crianças que nascem e crescem nestes mundos mágicos mas reais. Os seus sorrisos contagiantes são a prova provada de que este Deus existe e se manifesta com abundância nestas crianças. Remato com a letra de uma velha canção: “ Se Deus é alegre e jovem / Se é bom e gosta de sorrir / Porquê andar tão triste / Porquê andar sem cantar e sem rir.”


14.04.2018, sábado - Rumo a Boebau


Até que enfim! Depois de tanta espera, lá vamos nós, o Eustáquio e eu, bem assentados no “motor” a caminho de Boebau. Não foi preciso muito tempo para nos aprontarmos. Mochila às costas e uma mala com os materiais da exposição “Lameta”, e toca a andar que se faz tarde. 

Até Liquiçá tudo bem. Depois começa o calvário até Boebau. Quem já fez este caminho de carro ou de motorizada sabe bem do que estou falando. As dificuldades do caminho são tantas que, só por sorte, a gente não tem de parar para se safar dos buracos ou de algum ser vivo (vacas, cabras, porcos, galinhas que instantaneamente se cruzam na estrada). 

Mesmo assim, a vontade de chegar é tão forte que tudo aguenta. À chegada, com o corpo todo partido, as pernas mal se aguentavam em pé, e só depois de alguns momentos de recuperação foi possível dar alguns passos. Refeitos do desgaste, começam as visitas e os contactos. 

Como o dia seguinte era domingo, tivemos algum tempo para falar do porquê desta pequena estadia. E logo à noite em casa do AbôZé travamos algumas conversas importantes que deram o mote para colóquios do dias seguintes. E “vamos para la cama, que hay que descansar. Para que mañana possamos trabajar”.


15.04.2018, domingo  - A contemplar as montanhas


Talvez por ser domingo, passei uns bons momentos a contemplar as montanhas e o mundo que nos rodeia. Aqui a natureza é pródiga na oferta que nos faz. Um sem número de paisagens deslumbrantes, com o sol a fecundar todos os sinais de vida. Coqueiros, mangueiras, madre cacau, bananeiras, e tantas outras árvores de fruta e de flores. Aqui é fácil e agradável contemplar e agradecer ao criador que dá a vida e a sustenta. Cabe-nos a nós cuidar dela.

Neste contexto, deparo com a Escola de São Francisco de Assis, com o padroeiro e amante da natureza que, na sua simplicidade, chama mãe à terra e irmãs a todas as outras criaturas: irmão sol, irmã lua, irmã água, irmão vento, irmão fogo, etc,etc... Sei que a sua proteção nunca nos vai falhar, saibamos nós ser reconhecidos.

À tarde, tive uma das experiências que irá acompanhar-me para sempre: plantação de coqueiros nas traseiras da escola. O Abô Zé surgiu com a ceira (espécie de cesta feita em palapa) cheia de cocos já com rebentos, e foi então que me ofereci para o ajudar na plantação. As dificuldades de equilíbrio eram tantas, que me lembrei da técnica para dançar o tango, a saber: dois passos lentos para a frente e três passos rápidos para trás. Ou seja, demorei um tempo enorme a subir o que já tinha descido. 

Missão cumprida, ficou a satisfação de ter plantado algo que quero ver crescer, à semelhança de outras coisas menos visíveis.


Histórias que são verdade


À noite depois da ceia, começam as conversas de sobremesa. Sentados nas cadeiras de encosto ou em qualquer lado, vão se contando cenas do dia a dia que foram acontecendo. Passo a relatar as duas que mais me impressionaram.

Na semana passada foram encontradas duas raparigas mortas, uma de treze anos e outra de dezoito, trazidas nas enxurradas da ribeira Laoeli. Segundo contam, uma delas já meia comida por alguns cães ou bichos carnívoros que por ali passaram. As vítimas que não são conhecidas,  são provavelmente do concelho de Ermera, do outro lado que divide a ribeira.

Já tinha ouvido dizer as dificuldades e riscos que estes habitantes das montanhas correm quando têm que atravessar, a pé porque não são navegáveis. Alguns contam, já do tempo da guerrilha e da ocupação indonésia, que a melhor maneira de passar de uma margem para a outra é em corda, de mãos dadas, mas que de vez em quando a corrente é tão forte  que algumas pessoas se desprendem e são arrastadas pela força das águas, sem possibilidade se serem apanhadas.

O Abô Zé descreve também com um realismo impressionante, em que os gestos tudo dizem, como durante a guerrilha armavam emboscadas aos soldados indonésios. Faziam grandes buracos nas veredas e caminhos, levavam a terra para longe a fim de que não desconfiassem, lá dentro colocavam canas de bambu bem afiadas, disfarçavam com ervas e mato na esperança de que por ali passassem e fossem desta forma eliminados ou apanhados. 

Imaginem a crueldade e o sofrimento das pobres vítimas. Mas, como diz o ditado “em tempo de guerra não se limpam armas”.

O que mais me impressiona é o realismo que os protogonistas destes relatos revelam ao contar estas histórias.

(Continua)

(Título, seleção de excertos, revisão / fixação de texto, inegritos: LG)

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Nota do editor:

segunda-feira, 8 de maio de 2017

Guiné 61/74 - P17331: Notas de leitura (954): Ruy Cinatti e uma viagem a Bolama, 1935, em “O Mundo Português”, revista de cultura e propaganda, arte e literatura coloniais, o seu número 24, de Dezembro de 1935 (Mário Beja Santos)


Guiné > Bolama > Agosto de 1935 > A chegada do vapor "Moçambique", com os participantes do 1.º Cruzeiro de Férias às Colónias, entre os quais se contaria Ruy Cinatti (1915-1986), engenheiro agrónomo, poeta, antropólogo que iria mais tarde estabelecer uma relação especial com Timor.

Fonte: O Mundo Português, Vol II, nºs 21-22, Setembro-Outubro de 1935 (Exemplar  pessoal de Mário Beja Santos; digitalização e  edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné).


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Fevereiro de 2016:

Queridos amigos,
Entre chuviscos intermitentes, aquele sábado de manhã na Feira da Ladra permitiu-me adquirir esta preciosidade, ao longo dos anos em que entabulei grande amizade com o Ruy Cinatti, este nunca me fizera referência à sua visita à Guiné e muito menos mencionara existir texto de tal viagem. A sua grande recordação fora a Ilha do Príncipe, deu-lhe fulgor para escrever uma pequena gema literária, o conto "Ossobó".
É bom recordar que este antropólogo e poeta tinha 20 anos quando escreveu estas recordações de viagem.

Um abraço do
Mário


Ruy Cinatti e uma viagem a Bolama, 1935

Beja Santos

O 1º Cruzeiro de Férias às Colónias, coordenado por Marcello Caetano, constituiu uma novidade pelo modo como se pretendia atrair a juventude aos conhecimentos das parcelas do império. Guardaram-se vários testemunhos dessa viagem em que o regime procedera a uma rigorosa seleção de universitários de elevada craveira.
Um dos escolhidos foi Ruy Cinatti (1915-1986) que se irá afirmar como grande poeta, etnólogo, antropólogo e defensor da causa timorense. Tive o privilégio de receber alguns dons da sua amizade benfazeja. Conheci-o quando era membro da direção do jornal “Encontro”, a publicação da JUC – Juventude Universitária Católica, em 1966, fui pedir-lhe um poema, ofereceu-nos “O cego”, o primeiro dos seus “Sete septetos”, livro que viria a ser premiado com o Prémio Nacional de Poesia.
O meu livro “A Viagem do Tangomau”, arranca com um encontro em sua casa, convidar-me para jantar na véspera de eu partir para Mafra, para frequentar a recruta. Leu-me poemas de safra recente, que virão a ser publicados a título póstumo. E na correspondência que com ele troquei na Guiné, deu-me sábios conselhos, foi um lenitivo para a minha alma, daí o ter tratado sempre por “Dear father”.

Encontrei em “O Mundo Português”, revista de cultura e propaganda, arte e literatura coloniais, o seu número 24, de Dezembro de 1935, o seu texto “A Mocidade Académica e o 1º Cruzeiro de Férias às Colónias”. Chamou-me à atenção, na chegada a S. Vicente, a descrição crua que nos faz da vida dolorosa do cabo-verdiano:

“A vegetação em S. Vicente está reduzida a pequenos oásis de verdura – as ribeiras – regiões sobrejacentes aos leitos de ribeiras subterrâneas, onde se desenvolvem plantas dos climas quentes, e a pequenas extensões de vegetação arbórea cuja ramaria, passada certa altura, se estende, se inclina horizontalmente, se prostra ante a fúria niveladora do vento do deserto, que sibila, que ecoa doidamente nos recôncavos da rocha.
O resto são campos de calhaus partidos, triturados, onde a vida vegetal é impossível, porque as águas que nas épocas de chuva se despenham em torrentes pelas encostas arrastam o pouco húmus que se tenha depositado ou os materiais terrosos provenientes da desagregação da rocha.
Todos estes aspetos, geológico, climático, ausência de vegetação na maior parte das ilhas, motivada ou pela falta de chuvas ou pelo seu desperdício quando cai, conduzem à grande tragédia do arquipélago – a fome.
Em 1924, só em S. Tiago morreram à fome 20 mil pessoas. No Fogo, o colmo é arrancado das casas indígenas para ser cozido e servir assim de alimento. As crioulas levavam os filhos já mortos ao colo, iludindo os administradores, para receberem maior ração”.

E conclui:
“Foram S. Vicente e depois o Príncipe, as ilhas que, no desfilar tumultuante de visões sucessivas, mais indelével recordação deixaram no meu espírito”. 

E assim chegaram à Guiné, registará a sua viagem a Bolama:
“O mar muda de cor. Já não é azul ultramarino nem azul-cobalto. As águas são barrentas, com reflexos esverdeados provenientes dos aluviões arrastados pelo Geba e outros rios. A ondulação é mínima, apenas provocada pelo deslocamento do navio.
Atravessámos o dédalo das ilhas Bijagós, cobertas de intensa vegetação verde-amarelada, que me dá uma sensação muito diferente do que eu supunha vir a encontrar.
Costas baixas, em praia, abundantes em recortes e braços de mar, prolongando-se a perder de vista, a ponto de se julgar que a vegetação nasce das águas.
Era já tarde e o sol velado pela fímbria das nuvens caminhava para o ocaso. Não bulia uma folha. Estava tudo parado, tudo embebido num banho morno.
Caminhava ao longo de uma rua de Bolama, com os muros e as casas cobertas de musgo, onde o branco da cal há muito tempo dera lugar ao cinzento esverdeado da terra e das plantas. Andava e não via ninguém. Tudo estava deserto. Só ouvia o ecoar das minhas passadas no cimento do passeio.
Envolvia-me um silêncio sepulcral. Invadia-me um aniquilamento absoluto. Qualquer coisa me amolecia, tornava mais vagaroso o andar. Com a face, com o corpo a escorrer suor, bebi grandes golos de água do cantil; quanto mais bebia mais a sede me torturava.
De repente, em poucos minutos, o céu tapou-se de nuvens; uma ligeiria brisa baloiçou a folhagem dos poilões; começou a chover torrencialmente e a água, rejeitada pela terra saciada de humidade, corria em regatos para as margens lodosas do mar. Ali, refrescando a alma, refrescando o corpo com a deliciosa chuva a escorrer-me pelos cabelos e pela face, reagi.
Com outra alma, caminhei com energia, embebendo-me na paisagem tropical verde cinzenta. Nas margens do rio, onde o lodo borbulhava, o mangal de folhagem miúda muito cerrada estendia-se indefinidamente numa estreita faixa, com as raízes brutescas saindo da água.
Com o mesmo imprevisto com que tinha aparecido, as nuvens foram-se, e de novo o sol inundou a terra. Atravessei a cidade; segui por uma estrada onde, dentre o verde brilhante das bananeiras, das árvores de fruta-pão e dos poilões, surgiam as tabancas cor de argila.
Em volta, em porções de terreno sem área nem contorno definido, estendem-se as plantações de mancarra cultivada pelos negros. Grupos de indígenas, diferentes na aparência física e no vestuário, seguiam ao longo da estrada e estacionavam à porta das tabancas.
Uns, quase nus, com as costas tatuadas em relevo, com folhas de palmeira-leque e um grande cutelo nas mãos. Outros, vestidos com grandes camisas grandes que quase chegam ao chão, com o peitilho bordado e um alfange pendente a tiracolo. Mulheres, ora de tanga, ora envoltas em grandes panos, caminhavam com os filhos às costas e com grandes cabaças sobre o lenço amarelo enrolado em volta da cabeça.
Entrei numa tabanca de Fulas. Casas retangulares e circulares, o telhado de colmo estendendo-se para fora das paredes a servir de alpendre ou galeria. Sentados em volta os homens conversam, as mulheres entram e saem. As crianças brincam indiferentes ao que em volta se passa.
Lá ao longe, mas dentro da tabanca, o barulho de muita gente junta a falar atraiu-me. Fui lá.
Formando uma roda, homens e mulheres olhavam, gesticulando, o começo de um batuque. O tambor começou a suar e logo um negro despindo a camisa branca, descalçando as chinelas vermelhas, saltou para o meio, os músculos salientes a brilhar, exibindo o corpo atlético de um deus grego queimado pelo sol.
Começou a andar em volta, olhando a multidão que o cercava, saracoteando o corpo, batendo ritmicamente os pés, em flexões que iam aumentando com rapidez. Dirigiu-se às raparigas que em monte o olhavam embevecidas, num conjunto de cores em que o vermelho e o amarelo predominam.
Cantava a mesma frase com intervalos em que o som fica suspenso no ar e continuava cada vez mais excitado, na sua movimentada dança, dando saltos mortais.
De vez em quando chegava-se ao pé do tocador de tambor, dobrava-se, batendo com os dedos no chão e levantava-se me seguida bem alto, apontando para alguns dos que ali estavam. Era o desafio para a luta.
Ninguém veio. Mais alguns saltaram para o centro e com as mesmas atitudes desafiaram outros. Ninguém veio. Tudo se parecia temer. Em volta, homens e mulheres procuravam animar, batendo compassadamente as palmas, acompanhamento o canto intermitente dos lutadores. Nada conseguiram. Em breve começaram a dispersar. O sol já tinha desaparecido lançando apenas no horizonte um pálido clarão, que mais fazia realçar a beleza eternas das palmeiras.
Em redor os homens, sentados à porta das cubatas, lavavam os pés, preparando-se para a oração muçulmana”.

Ruy Cinatti escreve este texto com 20 anos. Chamou-me à atenção a dedicatória que ele apõe:
“Para o muito caro José Vaz Pinto, esta recordação do nosso cruzeiro de maravilha com a amizade de Ruy Cinatti Vaz Monteiro Gomes”.

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Nota do editor

Último poste da série de 5 de Maio de 2017 > Guiné 61/74 - P17321: Notas de leitura (953): "Buruntuma - Algum Dia Serás Grande - Guiné-Gabú - 1961-63", por Jorge Ferreira (Mário Beja Santos)

terça-feira, 1 de junho de 2010

Guiné 63/74 - P6512: A viagem de Tangomau, o meu próximo romance (II) (Mário Beja Santos)

1. Segunda parte da apresentação do próximo romance de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), A Viagem de Tangomau:


A recepção no convento: passei a ser soldado recruta

O edifício, para se equilibrar, tem portas descomunais, aliás tudo emerge em desmesura, de qualquer ângulo que se aviste, tal o peso dos votos do rei magnânimo. Como se tivéssemos a inteligência das formigas, progredimos em fila para uma porta referenciada, mesmo à direita da escadaria que conduz ao templo. Havia a recordação, muito mais de 40 anos depois, que aquela porta abria para outra porta, também pintada de vermelho escuro, onde os esperava a praxe do comité de recepção. Aliás, tanto quanto ele se recordava, havia um claustro e até uma fonte cristalina, também mesmo ali perto funcionavam serviços públicos, a Câmara Municipal, as conservatórias, coisas assim. Essa recordação parecia-lhe tão decisiva que mais tarde, para deter com alguma precisão o particular e o geral, voltara ao convento, fizera-se convidado da Escola Prática de Infantaria, alegando razões de verosimilhança com tudo o que os cinco sentidos tinham captado. Na visita, o que estava difuso naturalmente ficou mais iluminado, até a lembrança dos sons pelos corredores com nomes alusivos à I Guerra Mundial, o cheiro dos materiais de limpeza nas arrecadações, as portas ao fundo, a ligar com a parada, para o ritual do princípio da instrução, em cada manhã da semana útil.

Quando lá esteve de visita, em Fevereiro de 2010, ainda trazia bem viva a lembrança daquele entardecer em que um senhor que lhe gritou: “Trate-me por nosso cabo!” e lhe disse com a malícia mal contida: “A menina vem com os caracóis muito grandes, isto aqui é uma casa de homens, aqui aprende-se a ser militar, ser militar é ter o cabelo aparado, a barba bem-feita, a farda irrepreensivelmente arranjada, a bota a brilhar. Vá já ali ao barbeiro, à tosquia. O recém-chegado aguentou o embate, resignou-se e foi cortar o resto do cabelo que lhe restava. E depois seguiu para a arrecadação, para receber o fardamento, mais outra peças, como uma arma. Uma voz dominadora, quando sairam todos da arrecadação com um capacete, um capote, uma Mauser com baioneta, fardas, botas e umas coisas que alguém chamou “arreios”, bradou: “Não perca tempo, não questionem, sigam por aquele corredor à direita!”. O Tangomau olhou à direita e à esquerda, era um corredor enorme, nunca mais o esquecerá, aqui vai desenvolver-se o umbigo da sua guerra: é o corredor La Couture.


Ainda hoje me sinto impressionado com esta extensão, a natureza do lajedo, a quase autonomia que as instalações davam a cada uma das companhias de instruendos. Ao fundo, a porta para a parada. Quando aqui voltei, em Fevereiro deste ano, contive a custo a emoção mas não cedi à curiosidade, queria ir às arrecadações, ao refeitório, em ambas as direcções havia o insólito das militares nos baterem a pala... era impensável imaginar-se mulheres naquele convento, dos anos 60.

Esmagado pela carga, segue docilmente outros que procuram a caserna que dá pelo nome de “a capela”. A subida não é fácil, são vários lanços de escadas, caem sacos, capacetes, desprendem-se capotes. Ouve-se o murmúrio da água, escorre em bica, alguém diz que é uma cisterna. Uma voz à frente exclama: “Olha, isto deve ter sido mesmo uma capela, tem altar e tudo!”. É neste instante que se ouve um carrilhão, parece uma saudação de boas vindas para tanta gente deslumbrada, surpresa. Cada um experimenta as fardas, as botas, faz as camas, assenhoreia-se do espaço, ouvem-se brados, pragas, interjeições de vária ordem: “Porra, que grandes cagadeiras, tudo de porta aberta!”, “Pedi botas 43, estas não me servem”, “Olha, as calças são enormes, é para levar a uma costureira, o que é que se deve fazer, será melhor trocar? Fazem-se camas, há gritaria pelos beliches, soam estrondos de armários a abrir e a fechar, estalos de loquetes, há quem suba e desça a pretexto de substituições, volta-se àquela arrecadação que alguém disse que corresponde à companhia (já explicaram que uma companhia tem quatro pelotões e cada pelotão cerca de trinta cadetes).

Um ingénuo perguntou se havia um plano do convento, um outro cabo quarteleiro olhou furioso, respondeu pedagógico e até sereno: “Isto não é turismo, estes lugares metem-se na cabeça, terá tempo de saber onde é o jardim do Cerco, a porta de armas, o salão Nuno Álvares, o jardim do Buxo, a capela dos Sete Altares, para já fixe o nome La Couture, olhe para o chão, são estas lajes brancas e pretas, a saída é sempre para a parada, é ali que começa e acaba o dia da instrução, com tempo habitua-se a tudo, a saber onde está o bar, os refeitórios, a sala Elíptica, depois descobre as correspondências entre o primeiro, o segundo, o terceiro e o quarto pisos, quando se perder grita ou olha para as paredes, veja os nomes La Lys, Bussaco, Marracuene, Coollela, Chaimite, mais acima Ferme de Bois, Fauquissart, Neuve Chapelle, para já assine o recibo como vai receber um pré de um escudo e noventa centavos, que lhe entregaram lençóis, fronha e duas mantas, despache-se, a sua companhia daqui a um bocado vai formar, dali seguem para o jantar, hoje jantam naquele refeitório lá ao fundo, amanhã têm tempo de aprender mais, vão conhecer as divisas, a saber o nome do nosso comandante da unidade, em que pelotão vai ficar, esteja atento a tudo, se cometer faltas apanha logo detenção, tiram-lhe o fim-de-semana ou as saídas ao fim da tarde”.

O Tangomau capta cheiros que conservou até hoje: a humidade, manifesta nas bolhas e nas chagas do salitre, no negrume das paredes, no cheiro da eternidade de tanta água infiltrada; as massas lubrificantes na arrecadação, odores insubstituíveis, indubitáveis, que vão ficar ligados aos panos de lona, à limpeza da Mauser com um escovilhão e uns óleos estranhos, matéria ensebada; os do corpo, ao levantar e ao deitar, a camarata é enorme, mais enorme será quando, pela madrugada entrar um corneteiro a anunciar uma saída inusitada, a voz de um alferes em grande clamor exigindo “A pé, têm dez minutos para formar no corredor!”, são os odores de quem se levanta e vai aos sanitários a correr; a graxa, aquela película viscosa que ilustra a bota, lhe dá um tom envernizado, de azeviche esmaltado, sempre de curta duração, a bota engraxa-se ao fim do dia de instrução e para o início de fim-de-semana, obrigatoriamente, tão imperativamente quanto o corte de cabelo, a barba feita mesmo com lenhos ensanguentados, mesmo a dormir em pé, a remoer palavrões; o pesadelo dos refeitórios, são os odores indirectos das cozinhas onde se prepara o rancho, as mesas onde seguramente comeram frades, em tempos joaninos, a mistura de café, as fatias de pão e a marmelada, os odores do amanhecer, um pouco antes do início da instrução; o pó da História, circula ou prende-se às janelas, às lamparinas e lampiões, aos tectos monumentais, são odores que dão que pensar, dizem que há subterrâneos, com a Primavera rescende o jardim do Buxo, há plátanos por toda a parte, isto ainda não é nada, quando os soldados cadetes se familiarizarem com o jardim da Alameda, com a abertura do portão Norte, seguirem para o Pinhal da Vela, passarem pela agro-pecuária e chegarem ao Forte Juncal, de onde se desfruta uma vista soberba, seguindo daqui para uma carreira de tiro, ou até ao portão da Murgeira, ou mesmo ao Vale Escuro, teremos os cheiros da natureza, estes cheiros parecem convergir para aquele Jardim do Cerco, quando se está a preencher o teste, decisivo para obter um fim-de-semana.

Estamos a ir depressa demais, estes cheiros são uma camada cultural, sedimentada numa recruta e numa especialidade, fazem parte da floração dos cinco sentidos, impregnados, sem remissão, o que importa agora, e o Tangomau não esquece, é que o refeitório onde jantou pela primeira vez no convento é um espaço amplo, um género de arrecadação exterior, muito próximo de garagens de viaturas, dar-lhe-ão uma sopa de manga de capote olorosa e altamente comestível, a seguir apareceram umas sardas a nadar em banhos de fritura como se trouxessem restos de carvão, e batatas cozidas, apetecíveis, por sinal. Por razões do pudor, aceitou não trazer nada da caserna para comer à mesa. A sopa soube-lhe bem, o casqueiro era saboroso, recusou a sarda, esmagou as batatas, souberam-lhe bem logo à primeira garfada. Só que nada era singelo, linear, naquela refeição de estreia conventual. Como em todas as refeições há sempre um vigilante, pois teme-se pela indisciplina ou pelo motim, que nestas coisas da tropa dá pelo nome de levantamento de rancho, uma suprema blasfémia. É nisto, comia o Tangomau placidamente as batatas esmagadas, sonhando já com um pedacinho de proteína lá no armário, de fumeiro ou em lata de conserva, quando se aproximou o oficial vigilante: “O nosso cadete não tirou sarda, tem de comer, isto não é casa para gente caprichosa, aqui a gente da tropa come de tudo e não refila. Ó nosso soldado, traga cá a bandeja, ponha dois pedaços de sarda no prato do nosso cadete, regue as batatas com óleo!” O nosso cadete ainda olhou súplice para o nosso soldado em funções de criado de mesa, este dispunha do seu poder soberano que era ver o nosso cadete massacrado, de antemão agoniado, espetou-lhe com duas metades de sarda no prato, ambas com a cabeça calcinada, e ter-lhe-á dito ao ouvido: “O nosso cadete coma tudo, só deixe as espinhas, o nosso tenente se ficar zangado participa de si, adeus ao fim-de-semana!”. E comeu tudo, com o estômago revoltado, até foi ao bar dos cadetes emborcar um bagaço (aguardente 1920), coisa rara, hábito perdido de quem tinha andado dois anos a tratar de uma úlcera gastroduodenal, seguiram-se deambulações vadias com gente lá da caserna, tudo inquieto com a novidade, os tais odores, o feitiço da disciplina, da ordem unida, o mundo novo de um convento com gente exclusivamente fardada, toques de cornetim a mandar recolher, a vozearia impenitente das ordens, o ressoar das botas pelos corredores, tudo parecia uma agitação de almas penadas.


Um dos nossos refeitórios. Ninguém se sentava sem autorização superior, o mesmo para sair, depois das refeições. Comia-se melhor no convento que na Tapada ou nas marchas. Aqui, do que guardo mais saudade é das sopas. O meu ódio de estimação era a comida na carreira de tiro, nunca mais voltei a ver um arroz nauseabundo com patas de e as cabeças com as cristas, bicos e olhos. Julguei então que a instituição militar tinha atingido o grau zero da depravação gastronómica.


Nem o Tangomau sonha como todo este barroco medonho se irá tornar natural no seu quotidiano. Décadas mais tarde, é muito fácil rememorar e até sonhar que a gente se ajeita a tudo, nesta vida. Alguns farrapos desses locais aparecem como em fotografia. O jardim da Alameda, por onde começa o fim-de-semana, por aqui também se entra quando se regressa ao domingo à noite, ou depois do passeio à tarde. Tem plátanos lindíssimos, desconformes com a paisagem militar que se vive lá dentro. O jardim da Alameda situa-se na ala Sul, é o mundo de Nuno Álvares, o patrono da Infantaria: ali fala-se em Valverde, Atoleiros e Aljubarrota, imprevistamente menciona-se Ceuta. Não haverá soldado cadete que ignore ser aqui o território do oficial de dia e do sargento da guarda. É uma entrada carregada de símbolos, placas comemorativas, quem não tem orgulho em ser infante aqui o descobre, estão aqui referentes para esse novo estado de alma. Mais adiante temos o salão Nuno Álvares, a escada La Lys, majestosa para quem gosta do classicismo, feito da imponência de alturas. A estátua de D. Nuno Álvares Pereira vigia quem por ali passa. Não foi por aqui, repete-se, que entrou o Tangomau, este entardecer; foi pela fachada principal, hoje tudo mudou, até lá instalaram um museu, um posto de turismo. As mudanças são muitas, passados estes anos todos. Aquela arrecadação que era o centro nervoso da logística, desde o fuzil alemão ao pano de tenda, transformou-se numa arrecadação de transmissões, por toda a parte há mulheres fardadas a fazer continência, quando o Tangomau se lembra do caminho para a capela, o seu acompanhante, em 2010, logo previne que lá para cima, no espaço das casernas, o visitante sentirá um choque, logo a seguir ao que era a enfermaria dos feridos graves, depois de se passar pela sala de ensaios da banda de música. É neste tropel de recordações que se corre o risco de perder o fio à meada. Retornemos onde se estava, depois do bagaço para esquecer duas sardas de vómito. Para se saber da boa saúde do Tangomau, certifica-se que se despiu numa caserna aos berros, entre arrotos e peidos. Com uma toalha no braço, levou pasta e escova de dentes até uma inacreditável casa de banho, depois das abluções e demais higiene se deitou, confiou-se a Deus e teve um sono de pedra. A manhã sim, essa foi inacreditável, todo aquele maralhal aos palavrões, seguiu-se o frenesim das lavagens matinais, a correria para o pequeno-almoço, alguém gritou: “Sentido, firme, podem sentar!”, o pão era apetecível, tudo limpo mesmo com os odores intensos a vacaria, oriundos da cozinha. Subiram-se a correr as escadas, alguém avisou que aquele primeiro dia era muito administrativo, apaziguado. Aliás, este maralhal já sabia da sua sina quando formados no refeitório, no corredor La Couture: pertenciam à 5ª companhia.

Os recrutas ou cadetes formaram à ordem de alguém a quem se ouviu chamar “o nosso furriel” que por sua vez apresentou aquele grupo vestido de um verde intenso, a cheirar a novo imaculado, a alguém a que chamaram “meu capitão” (e pediram licença, ao apresentar a formatura), secundado por outros que, veio-se a saber, eram dois tenentes e dois alferes, a imporem-se pelo olhar de quem sabe que vai mandar sem ser contestado. E em marcha semi-ordeira, o contingente partiu para a parada, saiu pelo portão Norte, assentou no tal jardim tão importante para as suas vidas, quem fazia os testes nas manhãs de sábado e tinha positiva partia para fim-de-semana. Alguém informou: “Ali é o portão do CMEFD, faz-se ali equitação, iremos fazer instrução por aquela porta à direita, já me disse um meu irmão que temos uma linha de plátanos e castanheiros, ali é o nosso caminho para muita ginástica e dar tiros”.

Aqui a memória é difusa, falava-se de horários, de semanas de instrução, de responsabilidades na manutenção do equipamento, esvoaçavam recomendações sobre a muita prudência no relacionamento com os instrutores e a exaltação dos primores da disciplina; exibiram-se quadros para se saber diferenciar, mesmo nesse dia, o que difere, em cima dos ombros, entre ser soldado, cabo, furriel, segundo e primeiro-sargento, depois aspirante, alferes, capitão até chegar a coronel, quem comandava aquela escola era alguém naquele posto, indispensável será conhecê-lo desde este preciso instante. Falou-se pois de horários, de alguma substância da instrução, suavemente se chegou aos porquês da guerra em que, com muita probabilidade, quase todos os cadetes iriam ser envolvidos. Tal como estava noticiado, grupos terroristas, gente a soldo de interesses vermelhos, tinham invadido parcelas de Portugal, trucidado gente, aniquilado bens, dificultando as comunicações e os transportes., em diferentes locais remotos, para lá do oceano. Os cadetes iriam ser instruídos para agirem como contra-guerrilheiros, repor a ordem, reordenar as populações, fazer desfraldar a bandeira das quinas. Havia muito a saber, e convinha desde já pôr a conversa em dia sobre o jogo diabólico que nos estava reservado, na Guiné, em Angola ou em Moçambique: emboscadas, minas, flagelações. Devíamos sair dali preparados para combater em clima tórrido um inimigo por vezes muito bem equipado, intoxicado com ideias do demónio, mente sã em corpo são, era uma frase muito antiga com aplicação contemporânea ao que o futuro reservava a todo aquele que recebesse a bênção de ser infante, artilheiro, cavaleiro, mesmo fuzileiro, pára-quedista, comando ou pouco menos, das minas e armadilhas até amanuense. Instrução para o corpo: ginástica apurada para os patrulhamentos e operações; caminhadas de imitação às realidades da guerra para se perceber que é muito pior dentro da floresta galeria ou a atravessar os pântanos; endurecimento e conhecimento, montar e desmontar armas, não ter medo das alturas, caminhar de dia e de noite, com sol abrasador ou chuva, instrução não faltaria; aprender pois a táctica e ganhar aos poucos noções sobre a realidade da guerra, o papel das forças armadas, a diferença entre um regimento e um batalhão, etc., havia até um livro chamado “Manuel do Oficial Miliciano” que seria divulgado para se aprenderem coisas importantes. Por exemplo, a infantaria é a arma mais poderosa das forças terrestres, é essencialmente a arma do combate próximo, todas as outras armas deverão actuar em seu proveito; a artilharia é a arma que actua principalmente pelo fogo, havendo a considerar a artilharia de campanha, a artilharia anti-aérea e a artilharia de costa, certamente os cadetes iriam ouvir falar em obuses e morteiros, armas prendadas para afugentar terroristas; a cavalaria é a arma da rapidez, usa pelotões de reconhecimento, carros de combate e até canhões anti-carro; a engenharia é essencialmente a arma do trabalho especializado, tem sapadores, peritos em comunicações e até reabastecimentos; no extremo, os serviços, gente dos transportes, dos serviços gerais ou de manutenção, serviços tão diversos como o correio, a justiça militar, a cartografia, a contabilidade e pagadoria, até a assistência religiosa. Acima de toda esta gente, os comandos, é sempre necessário que haja alguém que superiormente conceba, prepare e conduza a acção. Que todos se habituassem a saber que quem comanda tem uma equipa auxiliar, o Estado Maior.

Pelo meio de toda esta longa e acutilante peroração, os nossos cadetes almoçaram num refeitório vasto, de tecto abobadado, muito lá no alto, comeram em mesas de mármore, tiveram direito a uma sopa adubada com feijão e macarronete, com olhinhos de gordura, uns bifinhos espalmados com arroz de cenoura e depois uma fruta da época, havia jarros de água e até um vinho de mesa, lotado corrente, relativamente tragável, dava um copinho para cada um. Repasto excessivo, havia gente a dormitar, encostada ao cano da arma, alheia a informações tão importantes e à notícia que muitas outras se seguiriam, sobretudo sobre táctica, não se pode ser oficial sem se saber o que é a ofensiva e a defensiva, o princípio de manobra, como se usam as transmissões, como se marcha para o contacto, o que é a manobra para o ataque, até a retirada. Porque a táctica é uma das chaves mestras da guerra, como é evidente não se iria combater numa guerra convencional, em África era tudo diferente, dada a natureza do inimigo, acantonado no mato como bichos, a natureza do relevo, toda essa história da guerrilha, que devia pôr os cadetes a reflectir sobre colunas, nomadizações, vida dentro dos quartéis no ventre da floresta.

É a única fotografia que possuo de ambiente de caserna. Lamento ter esquecido os nomes dos dois camaradas à esquerda e à direita. Foi tirada no beliche de cima da nossa caserna conhecida por “a capela”. Uns preparavam-se para sair, alguém mostra a meia rota, eu e o Paulo estamos em farda de trabalho, havia que estudar as matérias da táctica, que eu odiava, tanto como desmanchar a arma e limpar a Mauser.

Não parece mas esta fotografia tirada pelo Ruy Cinatti mostra uma paisagem perto da Ericeira. Logo a seguir, fomos tomar uma banhoca, penso que foi na Praia dos Pescadores, era uma tarde magnífica de Junho, em 1967. Tudo acabou com peixinho frito na vila da Ericeira. A seguir, fomos depositados no convento, a instrução prosseguia, implacavelmente.

O instrutor, um homem de estatura meã, de olhos azuis metalizados, ergueu o dedo indicador da mão direita e apontou: “Contem com muita preparação, contem com o meu entusiasmo, logo de manhã, e muitas vezes ao anoitecer, porque nos serão reservadas marchas nocturnas, sairemos aqui pelo portão Norte, não se esqueçam que esta é a casa da infantaria, aqui a nossa divisa é “saber fazer”, estamos cercados do que há de melhor da história de Portugal, os vossos corpos serão preparados nos crosses que faremos até à Ericeira, nos exercícios no Alto da Vela, ao pé do pinhal do mesmo nome, ireis aprender a técnica individual de combate, a tapada é o vosso espaço de instrução, teremos aqui carreiras de tiro, o Vale Escuro, há um campo de lançamento de granadas, ireis receber aulas de táctica lá para os 4 Caminhos, aprendereis a bivacar; saireis daqui atléticos e com saudades da Aldeia dos Macacos, da Lagoa do Meio, do Muro das Osgas e do Pórtico. Hoje aprenderam muito. Amanhã ganhareis confiança nas vossas capacidades, no brio, na disciplina, sereis dóceis à voz do comando. Vamos regressar, engraxar as botas, mudar de farda, conhecer Mafra.”

Um dia combinei com o Ruy Cinatti que ele viria com a minha mãe para jantarmos na Ericeira. Ele trouxe-me os “Sete Septetos”, escreveu “Exemplar nº 2”, milagrosamente não foi para a Guiné. Veio munido da sua Hasselblad, era uma máquina espantosa, tenho tirado com esta máquina uma fotografia do régulo de Baucau, que vou quase todos os dias espreitar. A minha mãe era muito brincalhona e estava muito feliz. Fizemos um número para a câmara de dois VIP que queríamos passar incógnitos. O Paulo, padrinho de baptismo da Joana, também foi connosco. Que tarde inesquecível!
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Nota de CV:

Vd. poste anterior de 31 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6504: A viagem de Tangomau, o meu próximo romance (I) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Guiné 63/74 - P3836: Álbum das Glórias (51): Santo Tirso, 1963, o almirante (Teixeira da Mota) e o poeta (Ruy Cinatti) (Beja Santos)

Conferência Internacional de Etnografia > Santo Tirso > 1963 > No intervalos dos trabalhos, o Amirante Teixeira da Mota e o poeta Ruy Cinatti.

Foto: © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


1. Mensagem do Beja Santos, com data de 29 de Dezembro último:


Assunto - Almirante Teixeira da Mota e poeta Ruy Cinatti, em 1963 (*)


Malta, a remexer nos milhares de fotografias da heroína do meu próximo livro, Mindjer Garandi [, Mulher Grande], encontrei este inesperado encontro entre Teixeira da Mota e Cinatti, figuras constantes da minha correspondência, que circulou na "Operação Macaréu à Vista".

Lê-se na legenda: "Num intervalo durante a Conferência Internacional de Etnografia, Santo Tirso, 1963".

Foi graças ao Cinatti que conheci Teixeira da Mota, talvez em Abril de 1968. Neste tempo, o maior historiador da Guiné está no auge das suas faculdades, já escreveu a maior parte da sua bibliografia fundamental sobre a Guiné, o seu nome corre mundo como grande cartógrafo, depois das comemorações henriquinas.

Por seu turno, Cinatti é neste tempo um poeta irregular mas já um conceituado estudioso da etnografia timorense. Era tempo destes dois responsáveis por muito apoio que me deram na Guiné, terem fotografia no blogue. E por uma razão especial: o que eles vieram dizer nesta conferência internacional aparece em O Tigre Vadio (**).

Teixeira da Mota apresenta uma comunicação sobre os sonós, essas raríssimas esculturas em metal dos régulos biafadas, símbolo do seu poder. Teixeira da Mota possuía uma das maiores colecções, hoje em poder de coleccionadores estrangeiros. Pediu-me informações se havia sonós no Cuor e na região da Bambadinca, não só não encontrei nenhum como ninguém sabia da sua existência.

Cinatti apresenta uma comunicação sobre a criação da casa timorense. Escreveu um belo poema a tal propósito, enviou-mo e incluiu-o também em O Tigre Vadio.

Ambos faleceram na década de 80, o primeiro amargado com o que se passava na Guiné, o segundo amargado com o que se passava em Timor. Tenho muito orgulho em mostrar-vos como eles eram mais ou menos ao tempo em que me deram coragem e incentivo na guerra que vivi, foram expoentes culturais luminosos inesquecíveis.

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Notas de L.G.:

(*) Vd. último poste da série Álbum das Glórias > 26 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3794: Álbum das Glórias (50): Jobo Baldé, o dedicado padeiro de Missirá depois de Julho de 1969 (Beja Santos)

(**) Vd. poste de 8 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3422: O Tigre Vadio, o novo livro do Beja Santos (2): O exemplar nº 1, autografado, dedicado à malta do blogue

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Guiné 63/74 - P2720: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (26): Cartas de amor e de amizade

Guiné > Zona Leste > Bambadinca > Cuor > Gambiel > É a única ilustração que encontrei. Penso que a empresa não viveu muito mais. Soube da sua existência através da referência que lhe fez Teixeira da Mota no aerograma que me enviou em Fevereiro de 1970. A ilustração vem no artigo de Armando Cortesão, «A Guiné como colónia de comércio e plantação»,publicado no Boletim da Agência Geral das Colónias,nº37,1928. As belíssimas palmeiras de Samatra que vi no Gambiel pertenciam a esta Sociedade. Armando Cortesão viveu em Missirá.(BS)


O último aerograma que o Texeira da Mota me enviou da Guiné


Importância: Alta... Pronto, não me vais ver tão cedo!... Fui irresponsavelmente avisando a família e amigos que tinha uma reserva na TAP para 19 de Fevereiro,um ano depois de me ter sido aplicada a punição de 2 dias de prisão simples. Entretanto, houve mudança no RDM, de um ano passou a dois sem direito a férias. Foi com a maior amargura que expedi em Bambadinca este telegrama. A Cristina entrou em estado de choque. (BS)


Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.

Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), enviado em 16 de Janeiro de 2008:

Luís, eu nem acredito que cerca de metade do livro já esteja escrito. Começo agora a compreender perfeitamente porque é que os escritores são pessoas tão difíceis, ao ter que acarretar com o peso da ficção-realidade, da invenção-reinvenção, da fantasia disfarçada da sinceridade do autor. Tens aí praticamente todas as propostas de ilustração, agora vou ganhar coragem para falar da morte do Carlos Sampaio e daquele mês de Março em que andei do princípio ao fim à morteirada. Um abraço do Mário



Operação Macaréu à vista - II Parte > Episódio n.º XXVI: CARTAS DE UMA AMIZADE INQUEBRANTÁVEL

por Beja Santos

(i) De Bambadinca para a ponte de Udunduma

Este mês de Fevereiro [de 1970] tem sido de pura nomadização, vadiagem do Bambadincazinho para os Nhabijões, de Amedalai para Bricama, correio a Bafatá e depois um turno de quatro dias na ponte de Udunduma, fora os ameaços. Aqui, perdemos a paciência de viver no meio da espelunquice, com uma fila de arame farpado apodrecido, a simular que podia resistir a uma ofensiva vinda do Buruntoni e arredores.

Em conversa com o capitão Figueiras, assentou-se que iríamos em meados do mês para a ponte, e com um projecto de benfeitorias: uma nova fila de arame farpado, abrigos com cibes e uma cobertura de bidão reforçada com cimento, para substituir aquelas valas onde chafurdávamos à noite, aguardando uma flagelação estarrecedora. O delegado do batalhão de engenharia nem quis acreditar quando apareci com uma lista de sacos de cimento, chapas de bidão, tesouras corta-arame, pás, picaretas, resmoneou, alegando que tudo era insuficiente para os Nhabijões, de forma azeda dei-lhe a saber que ele viria connosco passar as noites na ponte para aprender, amansou e garantiu que os materiais e ferramental seriam cedidos na próxima semana.

A ponte de Udunduma, para quem comandava tropa africana, tinha uma outra questão transcendente que ultrapassava as noites passadas a afugentar os mosquitos: a comida a tempo e horas para soldados desarranchados. Não era aceitável que cada um dos soldados andasse com o seu saco de arroz às costas ou fizesse a sua fogueira, estas acabaram definitivamente quando vi um cunhete de granadas de bazuca a menos de um metro de uma fogueira. Após discussão, acordou-se que em determinadas horas do dia os familiares dos soldados entregavam ao motorista os respectivos farnéis, a que se juntava a comida oriunda de três messes e um conjunto razoável de vidro cheios de água potável (quem tivesse sujo do corpo, que usasse sabão e a água barrenta do rio Udunduma). Tal operação era precedida de uma lista de compras que incluía cervejas, laranjadas, tabaco e outros bens aceitáveis para aquele isolamento temporário. Não seria por acaso que muitas vezes acordava a trautear o tema do filme A ponte do rio Kwai.

No Udunduma, estávamos todos obrigados a uma vigilância permanente, pelo menos com duas secções. E com os pelotões de milícias de Amedalai, Taibatá e Demba Taco fazíamos patrulhamentos tendo como limite o rio Cuiana e Samba Silate, à procura de indícios da passagem do inimigo.

É um período que nos vai recordar os tempos áureos de Missirá: patrulhamentos a sério, obras e operações, tudo sem desfalecimento. Como foi.

Chegou o Cruz, que veio substituir o Alcino, então no Hospital Militar Principal a tratar de uma fractura no calcâneo. Trazia experiência na construção do quartel de Madina Mandinga, junto a Mansabá, revelou-se muito útil nas obras de Udunduma e um excelente operacional. Tanto o Domingos como o Benjamim aceitaram que podíamos aproveitar as horas paradas de Udunduma voltando aos livros escolares, através do Vacas de Carvalho apareceram livros, ardósias, tabuadas e algum papel. Mesmo com estes eventos triviais, não deixou de haver surpresas ou imprevistos que ia registando nos aerogramas para a Cristina. Assim, escrevo a 20 de Fevereiro:

“Fui anteontem finalmente informado que não tenho direito a férias. Mandei logo telegrama, pedindo-te para avisar todos que não contem comigo. Imagino a tua dor, podes imaginar o meu desapontamento. Estava a montar segurança à pista em Bambadinca, não havia médico em Pirada para fazer uma evacuação, vieram buscar o Vidal Saraiva, o piloto convidou-me a acompanhar o nosso médico, lá fui até este quartel junto da fronteira senegalesa. Foi uma experiência muito interessante. Pirada tem uma grande povoação, algumas casas de comerciantes e um quartel sólido. Enquanto o Vidal Saraiva trabalhava, beberiquei um uísque e conversei com os meus camaradas. Um deles perguntou-me: 'Vens cá almoçar com o Sr. Mário Soares?'. Apurei que o Sr. Mário Soares era um conceituado comerciante local que convidava toda a gente para a sua mesa, acho que o seu cabrito assado era lendário. Mas nada comi em Pirada, regressámos imediatamente a Bambadinca.Tu sabes que eu mexo em todos os papéis que vejo, descobri no meio de Flamas e Séculos Ilustrados velhíssimos um Vampiro Magazine, coisa estranha, era uma revista de 1951 com contos de Conan Doyle, Ellery Queen e Georges Simenon, o soldado da messe, vendo-me tão interessado disse para eu o levar, estava destinado a ir para o lixo. Peço-te que penses muito seriamente se não queres vir até Bissau e aqui casarmos.

"Chegou um sargento alentejano, o Cascalheira (de nome completo Manuel das Dores Tecedeiro Cascalheira) e agora, com o Pires e o Ocante tenho o rol completo dos sargentos. Como te disse, o Queirós recebeu um louvor e foi proposto para o prémio 'Governador da Guiné'. Penso que nos próximos dias vais receber a visita do Pires mandatado para te narrar tudo o que por aqui se tem passado. Não sei se já te escrevi a contar-te que a guerra se reacendeu na nossa região, ardeu uma importante tabanca no Enxalé e voltaram os ataques às embarcações civis perto do Xime. Para a semana tenho duas colunas ao Xitole e vamos refazer abrigos e um pequeno refeitório na ponte de Udunduma. Deixei completamente os Valium para dormir. D. Violete, a professora de quem já te falei, pediu-me para dar aulas de ginástica à miudagem, a ver vamos.

"Despeço-me, estamos a conferir todo o fardamento do pelotão, não tenho palavras para te pedir desculpa da confusão que eu fiz sobre a leitura do Regulamento da Disciplina Militar, pensava que um ano após a punição de 19 de Fevereiro de 1968 me dava a possibilidade de gozar férias no ano seguinte. O próprio tenente Pinheiro, chefe de secretaria, desconhecia a alteração de 12 para 24 meses para todos os militares punidos com prisão simples. Entende-se por licença excepcional o caso de nascimento de filhos ou falecimento de pais, os casamentos não contam. Não te esqueças de ir visitar o Jolá, o Fodé e o Paulo, dá-lhes um pouco de ternura e companhia. Nunca li com tanto entusiasmo e não percebo como é que aqui se encontram todos os livros que são apreendidos pela censura, aí. Na última vez que estive em Bafatá comprei 'Católicos e Política' do Padre Felicidade Alves e 'Para onde vai a economia portuguesa?', de Francisco Pereira de Moura. Reli o Marc Bloch e confesso-te que o meu amor às ciências históricas rivaliza com aquele que eu te dedico. Muitos beijinhos para a minha senhora dona”.



(ii) Uma lindíssima carta de Ruy Cinatti

Quinze dias antes, enviara-lhe uma longa carta, um pouco desconchavada, por sinal, falando-lhe do feitiço guineense, dando-lhe conta de que tinha lido sobre o padre Marcelino de Marques Barros, os artigos de Teixeira da Mota no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, a descrição de tabancas no Badora e no Cossé, falei-lhe de Abdul Injai, o triunfador que depois foi desterrado, descrevi as conversas com a D. Violete e a islamização na Guiné Portugesa.

A resposta foi calorosa, e pela primeira vez falou-me de Ossobó. Cinatti tinha feito um cruzeiro por várias colónias, creio que em 1935, ficara impressionado com São Tomé. Ia agora publicar uma nova edição do seu conto “Ossobó”, que tivera a sua primeira publicação na revista O Mundo Português, em Junho de 1936. Ossobó é um conto soberbo, cheio de cor, sonoridades e aromas:

“Pousado num ramo da acácia, Ossobó canta e alisa as penas do peito com o bico humedecido... Por momentos, qualquer coisa o atrai lá abaixo, no chão e rápido desce, pousando sobre a macia cama de folhas secas ali acomodadas há tanto tempo... Um raio de sol conseguiu atravessar, antes dos outros, a ramaria alta das amoreiras, e espelha a água depositada no limbo das folhas. Com os pés mergulhados, Ossobó alonga o pescoço e sorve com o bico uma das pequenas gotas transparentes... Amanhece dentro da floresta. Um denso nevoeiro a subir do chão e da torrente ainda envolve o espaço. Tudo reanima do torpor da noite. As sensitivas intumescem, abrem devagar as suas folhas, e as flores do paul lírio lançam baforadas de perfume... Os bicos de lacre pararam de brincar e olham inquietos qualquer coisa que se move e que em filas tortuosas vem a subir pelas pedras roliças das margens. Eles lembram-se das cobras traiçoeiras, que, em noites escura, os vêm surpreender no sono, mas o periquito depressa os pacifica... Ossobó olha os vapores que se escondem cada vez mais nos cipós entrelaçados. Por causa deles é que o sol manda daquela maneira os seus raios, e a toalha de água que se despenha das rochas parece uma placa dourada de metal... Ossobó desdenha dos avisos dos celestes. Não é ele quem canta melhor no obó? O próprio periquito dissera que os homens lhe chamavam o rouxinol da ilha. Despreocupado, perscruta por entre as folhas e depois saltita atraído pelo vermelho de um insecto que zumbe mais embaixo. Ossobó continua no seu canto triste e suplicante; meneia a cabeça em direcções opostas, e os seus olhos pequeninos não se desviam de um tronco meio apodrecido que ali estava. O silêncio é enorme quando um silvo cortante talha o ar. Por detrás do tronco surge a cobra negra com as estrias vermelhas na cabeça e os dois dentes curvos saindo da bocarra. Rastejando, o seu corpo manchado amarelo descreve longos ss em direcção a Ossobó, mas este só sente dois pontos brilhantes que cada vez mais se aproximam e entram pelos olhos dentro”.

A carta que me manda é muito bela, pergunta-me se ainda estou na Guiné ou se já estou em Lisboa, quando é que eu parto para um sitio militarmente menos perigoso, agradece as fotografias que lhe mandei e fala-me na actividade do Almeida Faria, que lhe anda a corrigir alguns textos, anuncia que vão seguir por via marítima mais livros de Ramos Rosa e René Char.

Talvez devido a Ossobó, e ao tom impetuoso e terno da sua carta, respondo-lhe com o que tinha aprendido sobre a guerra santa dos fulas e dos mandingas, da nova conversa com D. Violete em que falámos de hienas, onças, gazelas e búfalos, na falta de caça grossa, no desaparecimento dos elefantes e dos leões, nas lembranças que guardava das onças e dos pequenos antílopes, das garças e das galinhas azuis que tantas vezes vira nas bolanhas e lalas entre Gambana e Saliquinhé. E sempre com o meu jeito em ensarilhar contactos, perguntei-lhe se podia ajudar o Padre Fazenda, que insistia em saber mais sobre a presença dos jesuítas em Cabo Verde e na Guiné, perguntei-lhe se tinha “O Mundo Português”, onde Fernão Guerreiro publicara a história das missões dos jesuítas na Guiné. Revelo-lhe a verdade sobre a impossibilidade de ir fazer férias a Portugal e despeço-me cheio de saudades.

(iii) Carta de Teixeira da Mota, mais achas para os mistérios guineenses

É a remexer nos livros que descubro um aerograma de Teixeira da Mota, datado de Agosto de 1969, onde ele fala do nosso encontro em Bissau quando eu fui ao julgamento de Ieró Djaló. É a primeira e única vez em que ele fala de assuntos militares:

“Aquele navio onde esteve e viu sair subrepticiamente no silêncio e na escuridão lá levou os fuzos para Porto Gole de onde no dia seguinte foram largados de heli no Poidom e Darsalame Baio, onde destruíram vários acampamentos sem avistar viv’alma (os helis espantam as gentes, e os turras não se afoitam a fazer emboscadas com medo de ser emboscados do ar)”.

Depois refere as suas investigações mais recentes:

“Continuo na pista dos sónós (creio que lhe falei desses antigos irãs metálicos dos beafadas e mandingas bebedores), mas não há maneira de pôr a vista em nenhum. Quando cá voltar, mostrar-lhe-ei fotos de alguns que localizei nos outros tempos; por aí também os deve ter havido, pois foi chão de beafadas”.

Aproveito a deixa para lhe escrever e pedir mais informações. Tal como fiz com o Cinatti, perguntei-lhe se podia ajudar o Padre Fazenda e o seu interesse nas missões de jesuítas na Guiné. Disse-lhe depois que soubera da existência de uma sociedade agrícola que funcionou no Gambiel, perguntei-lhe que sociedade fora aquela, se tinha a ver com Armando Cortesão. Por último, li informações sobre Galona, um régulo beafada que recebera em Setembro de 1893, por parte das autoridades de Bolama, uma pensão de 15000 réis mensais por ter ajudado a combater os rebeldes do Geba capitaneados por Mussá Molô. Ora, dizia-se no despacho da pensão que Galona vivia em Sambel-Nhanta, que a professora Violete dizia ser Caranquecunda, no Cuor. Começava a ganhar consciência de que esta correspondência me era benéfica para esquecer as durezas da guerra, mas inquietava-me usar o meu isolamento e a distância para atormentar amigos com questões que diziam só praticamente respeito aos meus enigmas guineenses. Felizmente que fui levado a sério, tão a sério como a documentação que vim a receber ou, mais tarde, andei a catar, em nome da história dos Soncó e do chão de beafadas ondes eles exerceram o seu poder.

(iv) Carta de Carlos Sampaio

Chegaram hoje dois aerogramas seus, uma caligrafia sempre aprumada, escritos com tinta verde. Carlos descreve-me as últimas operações mas no essencial olha o futuro e o nosso projecto profissional comum. Continua a sonhar com uma reforma profunda da Livraria Sampedro, onde os dois seremos importantes. Regresso a Bambadinca, estes dois aerogramas ficam em cima da minha mesa, vou responder em breve. Desgraçadamente para mim, nunca mais escreverei para aquele SPM em Moçambique. Dentro de dias, chegará uma “carta-bomba” que irá desfazer estes sonhos que alimento todos os dias, a pensar numa profissão estimulante, a par do meu casamento e dos meus estudos. O destino trocou-me as voltas. Já estou a aprender que a guerra me deu muito mas roubou-me mais.

Os mortos podem voltar, de Howard Philips Lovecraft. Uma capa espantosa de Cândido da Costa Pinto para o nº 103 da Colecção Vampiro, tradução de Silas Cerqueira. Não é livro policial, nem cabe na classificação de literatura de mistério. Lovecraft distinguiu-se pela procura de temáticas à volta do sobrenatural, o horror, o conhecimento maldito ou proíbido. É um romance muito bem estruturado em torno de uma transmigração, com descrições espantosas de demonismo. Não se percebe como não conhece reedições regulares. (BS)

(v) As minhas leituras do outro mundo

Leitura de substância passou por Os mortos podem voltar, um livro de culto de H.P. Lovecraft, que nada tem a ver com literatura policial mas a Colecção Vampiro fez bem em dá-lo a conhecer aos leitores policiais. Lovecraft era para mim um escritor do horror, do gótico e dos conhecimentos impuros.

Este livro fala-nos da transmigração de Charles Dexter Ward, afinal Joseph Curwen. Tudo começa muito antes da independência norte-americana, em Providence. Lovecraft exibe segura e profusa cultura desde o cabalismo à demonologia, tudo quanto o que é conhecimento obscuro, proibido pelas principais religiões e envolvendo o esforço de alcançar a imortalidade é aqui referido. Este livro é uma descida aos infernos e a descrição do Dr. Willett nas catacumbas da casa de Charles Ward/Joseph Curwen é digna de constar em qualquer antologia da vinda de Satanás à terra. A capa de Cândido da Costa Pinto é simplesmente notável.

Capa de O Túmulo Etrusco, de Jacques MartinComprei-o na Casa Taufik Saad, uma verdadeira caverna de Ali Babá. Considero-o uma das obras primas de Jacques Martin, pelo rigor do desenho, um colorido espantoso, uma reconstituição histórica sem mácula. Alix é amigo de Octávio, sobrinho de César, e como sempre vivemos naquela extraordinária época do Império Romano em que se confrontam homens tão poderosos como César, Pompeu e Crasso. Uma águia anuncia um prodígio da Júpiter, que deposita um pão ao pé de Octávio, augúrio sublime. Depois descobrimos que há uma horda terrorista que tenta reconstituir o reino etrusco. Jacques Martin não é Hergê nem Edgar Jacobs, mas prestou revelantíssimos à BD e deu-me muita alegria na Guiné.


E li O Túmulo Etrusco de Jacques Martin o criador de Alix, esse gaulês romanizado que assiste às grandiosas transformações do Império Romano , no tempo do triunvirato César, Pompeu e Crasso. Alix viaja na companhia de Octávio, o sobrinho de César, assiste ao anúncio prodigioso feito por uma águia de que Octávio está fadado para ser o senhor do mundo. Entretanto revela-se o banditismo do grupo etrusco que sonha com a separação deste povo dos romanos. Os maus serão punidos, Alix vencerá uma corrida de quadrigas, do tipo Ben-Hur. Jacques Martin não é Hergé, mas prestou revelantíssimos serviços à BD, pelo traço, pelo escrúpulo das constituições, pela riqueza do colorido.

Vampiro Magazine foi a mais prestigiada publicação que tivemos,no tocante ao conto policial.Era da responsabilidade de Vitor Palla,tinha capa e vinhetas de Cândido da Costa Pinto,foi aqui que se deu conhecimento aos interessados que existiam Frank Gruber, William Irish, Margery Allingham,Nicholas Blake,nomes sonantes para qualquer leitor policial.Como, demonstradamente, viver na guerra não é muito diferente que viver em paz, deram-me este número em Pirada,quando acompanhei o médico do batalhão, Vidal saraiva, que ali foi chamadao de urgência para fazer uma evacuação.Folheava este Vampiro Magazine enquanto olhava para a fronteira com o Senegal...

E portanto estamos a viver os últimos dias de Fevereiro, trabalha-se afincadamente na ponte de Udunduma, estou ansioso de voltar a ligar à Cristina nos correios de Bambadinca. No dia em que regresso sou chamado ao major Sampaio e recebo a notícia de que devo preparar e comandar a [Op] Rinoceronte Temível. Em todo o mês de Março andarei a ferro e fogo, como nunca acontecera anteriormente. E o ponto culminante será a [Op] Tigre Vadio, a mais sangrenta de todas as minhas operações.
_________

Nota dos editores:
(1) Vd. último poste, desta série: 28 de Março de 2008> Guiné 63/74 - P2693: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos (25): A festa do meu casamento, 7 de Fevereiro de 1970

sexta-feira, 21 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2668: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (24): Cartas de Bambadinca, Janeiro / Fevereiro de 1970

"Foi uma imprevista prenda de Natal de 1969. A minha relação com Rigoletto nunca foi das mais estimáveis. Continuo a pensar que Verdi pactuou com os facilitismos, as cenas retumbantes meio vazias, momentos de dramatismo inadmissíveis. Contudo, poucas vezes uma ópera pediu tanto a um barítono. Rigoletto é de uma grande complexidade: o bobo é maldoso e mavioso; satânico e lírico; cruel e terno; eterno derrotado e sedento de felicidade. Não é por acaso que os maiores barítonos do mundo querem incarnar Rigoletto".

"Esta versão do São Carlos de Nápoles com o grande condutor Francesco Molinari-Pradelli, de 1958, não é muito boa mas nunca conheci tanta intensidade como nesta versão de Capecchi: as cambiantes de voz espelham a pulhice, a bajulação, o sofrimento de um pai conduzido à extrema humilhação, o acusador dos cortesãos que se prostituem ao Duque de Mântua. Nem Dietrich Fischer-Dieskau nem Piero Cappuccilli conseguiram este arrebatamento aos céus. Os meus camaradas de quarto em Bambadinca ouviram Capecchi emocionados. É com imensa saudade que os recordo juntamente com esta Rigoletto".


Foto (e legenda): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), remetido em 8 de Janeiro de 2008:


Luís, Aqui vai o episódio n.º 24. A ilustração do Rigoletto já seguiu, os dois livros referidos seguem depois. Não te esqueças que aguardo a tua disponibilidade para almoçarmos muito em breve. Um grande abraço do Mário


Operação Macaréu à vista > Episódio n.º XXIV

CARTAS DE UM MILITAR DE ALÉM-MAR EM ÁFRICA PARA AQUÉM EM PORTUGAL (3) E OUTRAS PARAGENS EM ÁFRICA (*)

por Beja Santos

(i) Para Comandante Avelino Teixeira da Mota

Meu muito estimado amigo,

Soube pelo Ruy Cinatti que vai ser colocado em Luanda, felicito-o e desejo-lhe as maiores felicidades.

Estou em Bambadinca desde Novembro e percorro regiões que seguramente conhece muito bem, entre Xime e Xitole, é o caso dos regulados de Badora e Cossé. É o que se chama a intervenção, deixei de ir a Mato de Cão, participo num número episódico de operações, monto vigilâncias, estou de segurança na ponte de Udunduma, comando colunas de abastecimento de Bambadinca ao Xitole e Saltinho, colaboro no reordenamento dos Nhabijões, faço emboscadas, recenseamentos, patrulhamentos ofensivos no Joladu, vou ao correio, levo e trago doentes, levo e trago mantimentos e munições, enfim, sou um recoveiro militar, de manhã à noite.

Estou a pôr os meus papéis em ordem, só recentemente é que percebi porque é que o Sr. comandante queria saber quais as populações que viviam em Bucol, numa carta que me escreveu para Missirá falou várias vezes em beafadas e soninqués, e foi a estudar o António Carreira que me apercebi do significado das suas perguntas.

Li o António Carreira para procurar perceber a influência e consolidação do islamismo na Guiné. Os fulas, como sabe com tanta autoridade, foram os verdadeiros arautos do islamismo, submetendo os soninqués bebedores (animistas), em aliança com os soninqués mouros. Os mandingas misturaram-se com os beafadas, caso do Cuor, descubro agora que os Soncó eram
beafadas mandinguizados (leio no Carreira que Joladu significa chão de beafadas).

Quando tiver tempo e paciência, gostava muito que me indicasse literatura sobre este dinamismo da islamização, que foi animada pela presença europeia, pela submissão dos infiéis beafadas e dos fula-pretos animistas. Também no estudo do Carreira descobri que Boncó Sanhá (seguramente familiar do actual tenente Mamadu Sanhá, régulo de Badora) era sobrinho de Infali Soncó.

A outra pergunta que lhe deixo no ar tem a ver com Abdul Injai, que Teixeira Pinto premiou fazendo dele régulo do Oio e do Cuor, depois das campanhas de 1913-1914. Leio que ele suscitou o ódio das gentes do Oio e foi deportado para Cabo Verde. Foi mesmo assim?

Muito obrigado pelos seus esclarecimentos. A sua antiga aluna Cristina Allen e eu casaremos em breve. Acabo de descobrir que não tenho direito a férias, tudo resultado daqueles dois dias de prisão simples, depois da visita do Felgas e do Spínola a Missirá. Ultrapassei uma depressão, estou física e psiquicamente muito melhor, tenho pelo menos mais sete meses pela frente neste teatro de operações. Peço-lhe por tudo que me continue a enviar notícias e a literatura disponível. Receba a muita estima e admiração deste seu devedor.


(ii) Para Cristina Allen

Meu adorado Amor,

No dia do nosso casamento estarei na ponte de Udunduma, mas asseguro-te que virei telefonar-te aos correios de Bambadinca, por volta do meio dia. Por aqui está tudo na mesma, andamos sempre em movimento e, não te querendo cansar com banalidades, dou-te conta do que foi o nosso dia, logo que regressei da Topázio Valioso, no último dia de Janeiro.

Ao amanhecer, mandaram-nos a Queca, que é a tabanca de Sadjo Baldé, aquele meu soldado que morreu em Missirá em Março Passado, é uma tabanca situada entre Sansacuta e Afiá, no regulado de Badora, a fim de transportar mandioca, amendoim, algodão e arroz. Os soldados que foram comigo eram voluntários, tinham lá familiares ou queriam ir às compras. O chefe de tabanca gostou de mim e ofereceu-me ovos que reverteram para a messe das praças.

A Colecção «Novos», da Portugália Editora, foi um grande acontecimento cultural dos anos 60.Por ali passaram Fiama Pais Brandão, Gastão Cruz, Baptista Bastos,Rebordão Navarro,Yvette Centeno, entre tantos outros.Este Herberto Helder anuncia o grandecíssimo poeta que renovou a nossa língua.

Foto (e legenda): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


No regresso, ainda fomos a Samba Juli, trouxemos a caixa do Unimog 404 cheia de cibes destinados à construção de novas casas nos Nhabijões. Depois, isto tudo ainda de manhã, fomos escoltar uma legião de trabalhadores que iniciaram o alcatroamento da estrada do Xime, acima de Amedalai, já perto da Ponta Coli. Ficou lá o pelotão de milícias de Amedalai a montar segurança, em Amedalai conheci o filhinho de Mamadu Djau, o nosso bazuqueiro, deixámos sacos de cimento na ponte de Udunduma, viemos almoçar.

À tarde, levámos doentes a Bricama, depois da consulta de Vidal Saraiva, e seguimos para Bafatá, para entregar aprovisionamentos no agrupamento e trazer correio. Ainda estava a jantar quando saímos precipitadamente para Mero e Santa Helena, havia o rumor de que andava por ali um grupo de Madina a saquear e a raptar. Felizmente, era boato falso. Acabei por trazer um bêbedo para o quartel e uma criança abandonada, de quem ninguém conhecia a origem, coisa inacreditável.

No dia seguinte, recomeçou a dança, e logo a seguir chegará a nossa vez de irmos para a ponte de Udunduma. Pelos intervalos, tenho o serviço de justiça militar, acabei o auto da granada incendiária da Fatu Conté e comecei outro sobre um acidente grave que ocorreu há dias na rampa de Bambadinca, em que ficaram dois soldados sinistrados por terem tombado de uma viatura, com a cara rasgada.

Acabei de ler um livro soberbo, Os Passos em Volta, de Herberto Helder, veio na fornada do presente que me mandou o meu Padrinho. Gosto muito da poesia do Helder e não entendo como podem dizer que isto são contos, é um vendaval lírico, talvez poemas tempestuosos sob a forma de relatos vividos na Bélgica. Escuta como ele escreve:

“Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio... Enfim, às vezes já não sei como arrumar tudo isso. Porque, sabe?, uma noite acorda-se às quatro da manhã, num quarto vazio, acende-se um cigarro... Está a ver? A pequena luz do fósforo ergue de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganho um volume impossível, a nossa vida... Compreende?... a nossa vida apresenta-se então ali como algo... como um acontecimento excessivo... Tem de se arrumar tudo muito depressa. Há, felizmente, o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é aquela maneira subtil de transferir a confusão e violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação, Faço-me entender? Não? Bem, não aguentamos esta desordem estuporada da vida. Então, pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam”.

Lembra muito o Poemacto, de que tanto gostei. É o próprio Cinatti que me fala com admiração desta alquimia que se autonomizou do surrealismo. Vou enviar-te por correio. Li também o “Ateneu”, de Raul Pompeia, recorda-me Machado de Assis.

Como a minha vida mudou, Cristina. Exactamente há um ano, eu percorria o Cuor de um extremo ao outro, tinha ânimo e tropas. Neste mesmo dia, há um ano, fui a Quebá Jilã, em pleno território do PAIGC, de onde trouxemos um prisioneiro.

Hoje, saí daqui pelas seis da manhã, numa coluna ao Xitole, que decorreu sem incidentes, excepto a má recepção dos nossos camaradas que ficaram azedos com o envio de muito arame farpado e cimento em vez de géneros, como se nós fossemos os responsáveis pela intendência! Éramos setenta militares, vinte viaturas, mais de quarenta toneladas de carga. Fui com as tropas do alferes Moreira, meu companheiro de quarto, que também participou. É um itinerário com más tradições e por isso levámos dez mil cartuchos de reserva, metralhadoras, lança roquetes e morteiros.

Espero que no domingo me contes tudo sobre o nosso casamento. Os meus soldados acreditam que eu vá de férias e já tenho aqui uma relação de pedidos, desde calças de boca de sino até sapatos de palhinha. Vais ter notícias do alferes Carlão, da companhia operacional de Bambadinca, ele vai-te levar uma pulseira e outras lembranças, envia, por favor, livros, peúgas e uma lista de suplementos vitamínicos. A realizar-se o casamento religioso aí, temos que ser cuidadosos a elaborar a lista de convidados, para não provocar mais melindres.
Beijo a minha senhora dona, a saúde está óptima, estou a cair de cansaço e esta noite vou dormir na missão de sono no Bambadincazinho.

(iii) Para Carlos Sampaio

Meu querido Carlos,

As tuas cartas encheram-me de alegria, mas não posso esconder-te a minha preocupação com os relatos que me fazes da tua vida operacional. Na Guiné, é quase impossível passarmos uma semana a fazermos batidas, ao fim de um dia precisamos de água e comida, ninguém consegue dormir no mato, todos os ruídos parecem ensurdecedores, tememos ser referenciados e não sei o que se costuma fazer quando o inimigo faz fogo de morteiro à noite, perto de nós, imagino que é o caos completo.

Fico feliz pelo que dizes sobre o meu casamento e as felicidades que me desejas. Quero que saibas que estou muito melhor depois do tratamento que fiz em Bissau, ando com um apetite esfaimado, durmo muito bem, deve de ser de um psicotrópico chamado amytal sódico que me põe a dormir nove horas até em sítios horríveis com aquela ponte de que já te falei, para garantir a segurança a Bambadinca.
Nem tudo é canseira nas nossas actividades, embora haja sempre a tensão de sermos emboscados ou apanhados por uma mina. Às vezes conseguimos um jeep e vamos até às tabancas das redondezas petiscar, fazer compras de artesanato, mesmo que no dia seguinte voltemos aos mesmos locais com aparato militar. Uma vez fui a Mero com o nosso médico e dois soldados, o médico queria comprar uma corneta balanta e tábuas com inscrições islâmicas, que são muito belas, depois fomos petiscar à destilaria de Ponta Brandão, e no dia seguinte já não viemos fazer turismo mas sim numa patrulha de reconhecimento.

Casamos pois no domingo e confesso-te a minha tristeza por não gozar da tua companhia nesse dia. O que me consola é que a guerra acabará para nós este ano e temos lindos projectos para o nosso trabalho e para os nossos estudos. A Cristina fala-me sempre das cartas que recebe de ti, ela sente-se muito inquieta com os perigos que corres. Continuo sem saber se vou a Portugal, sabes melhor do que ninguém que tenho sérios problemas familiares que não sei enfrentar com esta distância toda pelo meio.
Escreve-me depressa e rezo a Deus que te proteja muito, cada carta que escreves é sinal da tua saúde mas em cada correio que não tenho notícias tuas estou sempre a temer por ti. Tu mereces o maior abraço do mundo, és um devotado irmão.


(iv) Para Ângela Carlota Gonçalves Beja

Minha querida Mãezinha,
Ainda estou a ler os livros que me mandou pelo Natal. Acabei os Retalhos da Vida de um Médico, primeira série, é um Fernando Namora de quem sempre gostei muito, comovem-me aquelas experiências de recém-licenciado que andou pelas serras bravias, pelas planuras alentejanas e pelas veredas do Diabo onde assistiu a partos, acompanhou doentes terminais, viu misérias, foi admirado e exacrado pelas populações onde trabalhou. Não querendo abusar da sua paciência, e porque aqui não consigo encontrar Domingo à Tarde, peço-lhe o grande favor, quando for possível de mo enviar.

No próximo domingo casarei por procuração e ainda não sei se poderei gozar férias perto de si. A seu tempo será informada. Há muito pouco a dizer sobre a vida que levo neste quartel de Bambadinca: visitamos as populações, recenseamos as armas distribuídas pelas tabancas, fazemos colunas a diferentes quartéis, montamos segurança numa ponte e num outro local perto de Bambadinca, é canseira de manhã à noite, mas com menos riscos que as minha idas diárias a Mato de Cão e as noite de Missirá. De vez em quando fazemos operações, a maior parte delas não têm graça nenhuma, chegamos a andar trinta e seis horas às voltas, não se consultam os soldados que conhecem as regiões por onde passamos, é um fracasso que nos entristece.

Aproveito para lhe recordar que ainda faltam sete meses para acabar a minha comissão, agradeço-lhe do coração as visitas que faz regularmente aos meus soldados feridos, as lembranças que lhes oferece, alguns deles ficam espantados quando lhes fala da sua África e do norte de Angola que a Mãezinha tão bem conhece.
Quando visitar o Quebá Soncó diga-lhe que o filho Malã está muito melhor dos estilhaços que tinha na cara, o jovem ficou ferido numa flagelação e o médico do batalhão retirou-lhe mais estilhaços da cara, está muito mais aliviado e já não tem dores.

Muitos beijinhos do filho que nunca a esquece.

As Publicações Europa- América foram felizes com o design gráfico desta edição dos anos 60. Estes «retalhos» foram publicados em 1966,11ª edição

Foto (e legenda): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.

(v) Para Ruy Cinatti

Ruy, dear Father,

Finalmente, tive notícias suas. Gostei muito da sua prenda de Natal, um espantoso Rigoletto que me anda a aquecer a alma. Creio que fazia parte da sua discoteca, o que, como lembrança, é um valor acrescentado. O que ando a fazer desde Novembro são missões de protecção e boa vontade, nada tenho a adiantar ao que desde então tenho escrito.

Melhorei muito depois de Bissau, tomei a decisão de voltar a dar aulas aos meus soldados e renovar alguma coisa naquele quartel de que lhe falei, a ponte de Udunduma. Não gosto nada das operações que faço, revelam-se inúteis, os soldados estão desanimados, não aceitam percorrer locais que alguns conhecem bem sem lhes pedir colaboração. É evidente que estamos na época seca, o capim está muito crescido, a natureza muda bastante, a bússola por si só não chega, é preciso entrar no mato denso, espiolhar tudo à procura dos itinerários dissimulados. Nem mesmo na ponte de Udunduma podemos fazer patrulhas mais vezes como seria conveniente e até desejável para as populações em autodefesa. Estou muito pessimista com o evoluir desta condução da guerra. Durante as horas com luz, leio e escrevo. Aqui vão os meus últimos rabiscos, embora eu tenho decidido que isto é lirismo sem préstimo:

Há fontes que não secam

Aguardo a tua carta neste estio prolongado; os bissilões quietos,
os mangueiros com as raízes gretadas. Aguardo
a imprevisibilidade de um acidente atmosférico, tufão ou furacão.
Ou mesmo enxurrada.
Olhamos ao longe a mata cerrada, há quem sonhe ver arados
a rasgar estes campos, tudo sem sobressalto nem emboscadas.
Há mesmo quem delire com nevões suaves
que se espalhem pelo arame farpado, com búzios,
carapaças de tartarugas, sob céus em trovoada, um granizo
a imitar pedras de gelo.

Nós, na verdade, esperamos por uma paz inquestionável,
cercados que estamos de latas de graxa, lâminas de barbear,
atacadores, conservas de atum, água abundante
nestes açudes à escuta da energia das rias e das lalas encharcadas
que separam este oceano, entre mim e a tua carta.
Porque há fontes que não secam: a tua carta é a paz dos altos fornos.
Nada esmaga a esperança neste estio prolongado. Juro. Por Deus.

Obrigado pela companhia que dá aos meus soldados. Obrigado por os levar domingo a casa da Cristina. Obrigado por tudo. Receba o maior abraço que me é possível mandar desta ponte de Udunduma.
____________

Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste de 14 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2637: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (23): Buruntoni: um topázio muito pouco valioso