sábado, 29 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25699: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte V: O país da diversidade, onde umas vezes apetece partir, e outras vezes apetece ficar


Timor Leste > Liquiçá > Manati > Boebau > 1 de fevereiro de 2018 > "Propriamente, em Timor, só há duas estações: o verão e o inverno. Por incrível que pareça as noites mais frias (frescas) são no verão e, claro está, nas montanhas. É rara a árvore de folha caduca. Por isso o verde constante. Se nos distraímos, da noite para o dia aparecem novas flores, novas plantas."





Timor Leste > Liquiçá > Manati > Boebau > 2018 > As crianças gentis da Escola de São Francisco de Assis, fundada pela ASTIL.

Foto (e legenda): © Rui Chamusco (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Rui Chamusco, membro da nossa Tabanca Grande desde  10 de maio último,  é cofundador da ASTIL (Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste),  com a sua conterrânea, Glória Lourenço Sobral, professora do ensino secundário, e com o marido desta, Gaspar Costa Sobral, luso-timorense que, em Angola, antes da independência, foi topógrafo, e é hoje formado em direito.

A ASTIL,  criada em 2015 e com sede em Coimbra,  fundou e administra a Escola de São Francisco de Assis (ESFA), nas montanhas de Liquiçá (pré-escolar e 1º ciclo) e tem também em curso um programa de apadrinhamento de crianças em idade escolar. (Havia, então, em Boebau, 150 crianças sem acesso à educação.)

O Rui, professor de música, do ensino secundário, reformado, natural do Sabugal, e a viver na Lourinhã, tem-se dedicado de alma e coração a estes projetos solidários  no longínquo território de Timor-Leste.

Desde a sua primeira viagem a Timor-Leste, no 1º trimestre de 2016, que ele vai escrevendo umas "crónicas" para os membros da ASTIL e demais amigos de Timor Leste. Temos estado a recuperar essas crónicas, agora as da segunda estadia, em 2018 (*).

Em Dili ele costuma ficar na casa do Eustáquio, irmão (mais novo) do Gaspar Sobral, e que andou, com a irmã mais nova, a mãe e mais duas pessoas amigas da família,  durante três anos e meio,  refugiados nas montanhas de Liquiçá, logo a seguir à invasão e ocupação do território pelas tropas indonésias (em 7 de dezembro de 1975).

Em 2018 o Rui Chamusco partiu para Timor, em 25 de janeiro, com o Gaspar Sobral, numa acidentada viagem de 3 dias... O João Crisóstomo também partiu de Nova Iorque, em 2 de março, para se juntar, ao Rui e ao Gaspar Sobral, na sessão da inauguração da Escola, em Boebau, em 19 de março de 2018. Regressou a Nova Iorque em 28.




Lourinhã > 2017 > Rui Chamusco e Gaspar Sobral. A família Sobral tem um antepassado comum que foi lurai, régulo, no tempo dos portugueses. As insígnias do poder (incluindo a espada) estão na posse do Gaspar, que vive em Coimbra. A família Sobral andou vários anos pelas montanhas de Luiquiçá e de Ermera, tentando escapar à tirania dos ocupantes indonésios. O Gaspar esteve 38 anos fora da sua terra, só lá voltando em 2016, com o Rui. 

Foto: Arquivo do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2017)



1. Esta segunda viagem e estadia do Rui Chamusco (de 27 de janeiro a 14 de junho de 2018) (*), em Timor Leste, em  missão solidária,   culminaria  com a inauguração da Escola de São Francisco de Assis (ESFA), em 19 de março de 2018, em Boebau, Manati, nas montanhas de Liquiçá (*).

 Através da família Sobral, um exemplo de "resistência e resiliência", e das crónicas do Rui, vamos conhecendo melhor Timor-Leste, de ontem e de hoje:
 
Estas crónicas tem um enorme interessante para se perceber melhor  o que é hoje a República Democrática de Timor Leste, país membro da CPLP, com o qual mantemos laços históricos, e sobretudo afetivos, tal como mantemos com a Guiné-Bissau e outras antigos territórios que estiveram sob a administração portuguesa em África e na Ásia 

Enfim, estas crónicas, que o Rui Chamusco partilha connosco, acaba por ser um privilégio, para os nossos leitores, amigos de Timor Leste e/ou promotores da lusofonia.  Aqui fica  obrigado ao nosso cronista, extensivo ao Gaspar, ao Eustáquio,à Aurora, à Adobe e outros protagonistas destas histórias luso-timorenses.




II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL)

Parte V - O país da diversidade




29.03.2018, quinta feira  - Laços de sangue e outros

Quando aqui em Timor se fala de filhos tem que se perceber muito bem a questão da filiação. É frequente em cada família ou aglomerado familiar haver filhos adotivos que, sem qualquer descriminação, fazem parte da família em igualdade de circunstâncias.


Mas são filhos adotivos sem qualquer tipo de formalidades oficiais. Basta que por necessidade se bata à porta devido a qualquer conhecimento ou relação social anterior.

Assim encontramos a casa e a família do Abeka. Já foi abrigo para alguns filhos que, sem qualquer laço de sangue, ali se criaram. Falam com algum carinho do Rogério e do Eusébio, que hoje são já homens casados e pais de filhos. Hoje, ao fim da tarde, tivemos a  visita do Eusébio, de que eu já falei nas minhas primeiras crónicas de 2016, e volto a referi-lo porque a sua atitude passada prova com mais força o que venho descrevendo.

Perdeu o pai durante a guerra com a Indonésia de uma maneira imprevista. Por imprudência, acenderam o lume no local onde estavam escondidos, e as tropas indonésias fizeram o resto: limparam a rajadas todo o acampamento. Por isso, orfão de pai, recorreu a uma família de acolhimento. Então o Eusébio logo que pode lançou-se na sua vida ativa, deixando o espaço físico onde foi criado para fazer a sua própria vida. 

E tudo corria normalmente, até que um dia lhe chegou aos ouvidos que a sua irmã (adotiva) Assun, que entretanto tinha casado, era maltratada e agredida pelo marido.  O Eusébio não fez mais nada: pôs-se a caminho de Ailok Laran, deu uma valente soba no agressor que se pôs em fuga, e comentava furioso: “ nos meus irmãos ninguém bate!...”

Serviu de exemplo a muitos e serve de exemplo para todos nós. Criar filhos não é só gerá-los. É preciso criá-los e educá-los. Os laços de sangue são importantes, mas os laços afetivos não lhe ficam atrás.

30.03.2018, sexta feira - Após a tempestade
 vem a bonança

Não poderei dizer que esta sexta feira santa me foi fácil de suportar. Em confronto interior com costumes e hábitos do exterior, relembrando hábitos e proibições de há mais de cinquenta anos, nem sempre fui capaz de estar calado manifestando o meu desacordo e incumprimento. Porque é dia santo - morreu Jesus -” não se pode saudar ninguém “, “não se pode varrer”, “não se pode assobiar ou cantarolar”, etc...,etc... É pecado! 

E como eu sou um grande pecador, acho que transgredi todas as normas e imposições. Pior ainda, não penso ir confessar-me destes meus pecados.

Fosse como fosse, comecei a ficar mal disposto e a planear ausentar-me daqui. Mas o Senhor “que acalma os ventos e as tempestades” veio em meu socorro e trouxe-me a tranquilidade e a bonança.

Pois é! A aculturação não é só ao tempo meteorológico, ao regime alimentar, aos usos e costumes dos povos. Quantas vezes a nossa mentalidade não tem também de recuar, para vivermos felizes e contentes. Como dizia Bruno Bethleim, “coração consciente para mantermos a nossa identidade”.

31.02.2018, sábado - Prendas

É sempre com alegria que procedemos à distribuição das prendas (importância pecuniária) dos padrinhos e madrinhas aos seus afilhados. Já passou a ser um ritual que junta os contemplados, as famílias, os amigos. Sentado no seu telónio está o João Moniz (Eustáquio) que, um a um, vai chamando, faz assinar, e entrega a importância devida.

Mais um pequeno sermão para relembrar a finalidade destes donativos (apoio às necessidades escolares) e a importância de agradecer aos doadores nem que seja com um simples “ Obrigado, padrinho! Obrigado,  madrinha!”. 

O Eustáquio insiste que todo o que tem padrinho ou madrinha deve ter a vontade e fazer algo por aprender a escrever e a falar português. Alguns ficam mesmo atrapalhados porque não percebem nadinha da língua de Camões, mas se cada vez que aqui vêm já souberem duas ou três palavras novas, talvez um dia se desenrasquem pelo menos a entenderem o que ouvem.

A sessão termina com as fotos que testemunham sempre qualquer entrega e que depois são enviadas aos padrinhos. Um ato simples e transparente que faz inveja a muitos “governantes”. (...)

 01.04.2018, domingo  - Dia de Páscoa em Timor Lorosa’e

O sol já raiou. Já os galos cantam em alegre desgarrada, nesta madrugada serena e carregada de sentido religioso. Em Timor Leste a “colonização cristã” dos portugueses ainda está bem enraizada na fé e nos costumes da maioria das suas gentes. As cerimónias religiosas são massivamente participadas, e os fiéis participam ativamente nas preces, nos cantos, nos rituais. (...)

 
02.04.2018, segunda feira  - A diversidade

Não utilizaria esta palavra se ela não comportasse toda a riqueza de expressão do que penso escrever neste momento sobre Timor Leste. Com certeza que haverá por esta região orientam do globo outras sociedades e outras terras com idênticas características.

Mas é aqui que eu estou, é aqui que me ´é dado viver, é aqui que tomo consciência destes fatores. E por isso vou tentar descrever o que observo, dentro de um quadro de visão pessoal, que embora objetiva terá sempre pinceladas subjetivas. Assim, verifico que:

(i)  a monocultura é quase inexistente neste país. Fauna e a flora, tão exuberantes neste território, reproduzem-se quase por geração espontânea, graças às excelentes condições climatéricas, com calor húmido e chuva que baste. 

Propriamente, em Timor, só há duas estações: o verão e o inverno. Por incrível que pareça as noites mais frias (frescas) são no verão e, claro está, nas montanhas. É rara a árvore de folha caduca. Por isso o verde constante. Se nos distraímos, da noite para o dia aparecem novas flores, novas plantas.

Dizem que das boas coisas que os indonésios trouxeram para Timor foi a replantação ou implantação de algumas árvores. O resultado está à vista, basta olhar para o mundo que nos rodeia. Dizem os entendidos que a biodiversidade é o caminho certo para a nossa sobrevivência; que as plantas se protegem umas às outras. O caso mais flagrante que conheço é nas montanhas de Boebeu / Manati, onde os cafeeiros são abrigados por árvores com mais de cinquenta metros de altura (a Madre Cacau).

(ii)  A raça humana que povoa este território é a maior mistura possível. 

Embora haja o rosto tipicamente timorense, que sem favor é lindíssimo, é frequente encontrarmos à nossa volta rostos indonésios, chineses, japoneses, africanos, malaios (portugueses, australianos, ingleses, franceses, etc...) 

Todos em saudável convivência, exercendo cada um o seu dever ou realizando o seu trabalho. Será este um dos sinais da globalização, onde cada um comunga com o outro mas sem perder a sua individualidade e características.

(iii) A religiosidade imanente em cada um, que se manifesta através de diferentes crenças.

O povo timorense professa na maioria a religião católica, e são muitas as suas manifestações ao longo do ano litúrgico. O poder da igreja em Timor Leste é muito grande, sobretudo no campo social e religioso. Mas não podemos ignorar a sua influência de opinião no campo político. Igualmente apraz-me registar o lugar que outras igrejas e religiões ocupam nesta sociedade e que com respeito mútuo vão exercendo também a sua influência: a igreja protestante, a igreja evangelista, as
testemunhas de Jeová, a comunidade muçulmana.

Estando por diversas vezes nas montanhas, dei-me conta das religiões animistas que por lá subsistem e que determinam muitas vezes o presente e o futuro de muitos dos seus crentes. O timorense dá muito valor e respeita com veneração os seus antepassados que, apesar de ausentes, zelam pelos vivos compensando ou castigando como for o caso. Até o Ramiro, um rapaz novo de vinte anos, acredita que a sua queda do telhado, de que foi vítima durante a construção da escola, foi um castigo dos antepassados por ter ocultado a verdade do roubo de material. Também a nossa escola foi sujeita a um ritual pagão a fim de sabermos o seu futuro.

E creio que cada região do país terá as suas crenças e os seus rituais.

(iv) A língua de comunicação é oficialmente o tétum e o português. 

Mas pelas ruas, aos balcões, nas repartições, nos mercados, nas escolas o que ouvimos é uma mistura linguística que umas vezes facilita e outras vezes complica. A língua indonésia (o Bahassa) ainda está muito arraigada nesta gente. 

Primeiro porque foi imposta com a criação de uma boa rede escolar e com castigos (punição e morte) a quem ousasse falar o português. Depois porque os jovens e a gente dos trinta e quarenta, que são a garantia da sociedade futura, ainda falam corretamente esse idioma. Por fim, há uma grande comunidade de indonésios que mantêm o comércio timorense e que, como é natural, falam constantemente no seu idioma.

Acresce a tudo isto a vontade dos australianos desejando a todo o custo que este povo fale o inglês. Apesar das promessas com que acenaram, o governo timorense de então decidiu que a segunda língua oficial seria o português. Como diz o grande amigo João Crisóstomo “ Timor deve muito da sua independência à igreja e à língua portuguesa”.

O grande problema é saber como é que se vai expandir o ensino do português. Há outras línguas que estão a recuperar e a avançar, como seja o espanhol, por influência dos médicos cubanos, e o inglês graças à pressão australiana e léxico utilizado nos negócios e intercâmbios comerciais. Os governos de cá e de lá têm feito esforços para atenuar o problema. Mas, os que estamos no terreno, damo-nos conta de que isso não é suficiente.

Tem de ser feito muito, mas muito mais. Timor Leste é um pequeno território mas com muita variedade. E é assim que este pequeno país de vai edificando, com reconhecimento e apreço internacional no contexto
das nações, no mundo.

03.04.2018, terça feira - Prolongação de estadia

A data do regresso a Portugal aproxima-se. Mas, não sabendo ainda se há necessidade de prolongar a nossa estadia, pelo sim pelo não fomos ao Ministério da Administração Interna requerer o prolongamento por mais dois meses. 

Depois das formalidades cumpridas, incluindo o pagamento de setenta dólares por cabeça, cá estamos à espera do despacho que, se não vier em devido tempo, para nada nos servirá pois teremos de deixar este país o dia 21 de Abril.

Entretanto, outras tarefas estão a pedir o prolongamento da nossa estadia. Agora é a UNTL (Universidade) que decidiu comemorar o aniversário da independência, dia 20 de Maio, com a exposição “Lameta. Contributo das comunidades luso americanas para a independência de Timor Leste” do nosso amigo João Crisóstomo. Sendo nós (Escola São Francisco de Assis em Boebau) os depositários dos materiais para a referida exposição, e a solicitação do Dr. José Ascenso que é o elo de ligação com a UNTL, teremos de dar o corpo ao manifesto para que a exposição corresponda ao interesse manifestado.

Outras andanças relativas à escola em Boebau merecem o prolongamento da estadia: registos, professores, ano escolar de  2019, acabamentos e melhorias no edifício escolar, reuniões, encontros...

Vamos a ver até onde chegará a nossa resistência: umas vezes apetece partir; outras vezes apetece ficar. Com certeza que a necessidade determinará a nossa decisão.

(Continua)

(Título, excertos, revisão / fixação de texto, itálicos e negritos:  LG)
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2 comentários:

Maria Alice Ferreira Carneiro disse...

Os ocupantes indonésios perceberam, muito mais depressa e melhor do que os colonizadores portugueses, a importância da língua na identidade de um povo.

Não é por acaso que a geração que foi escolarizada por eles, e não fala português, é também a que mostra mais reticências, senão hostilidade, em relação as ligações com Portugal.

Valdemar Silva disse...

Portugal, do Minho a Timor.

"O primeiro contacto europeu com a ilha foi feito pelos portugueses quando estes lá chegaram em 1512 em busca do sândalo. Durante quatro séculos, os portugueses apenas utilizaram o território timorense para fins comerciais, explorando os recursos naturais da ilha. Díli, a capital do Timor Português, apenas nos anos 1960 começou a dispor de luz elétrica, e na década seguinte, de água, esgoto, escolas e hospitais. O resto do país, principalmente em zonas rurais, continuava atrasado."

Até 1956, em Afife, no Minho, a 12 quilómetros de Viana do Castelo, na casa da minha avó não havia electricidade, esgotos e água potável, e também havia rapazes e raparigas descalços na escola primária.


Valdemar Queiroz