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domingo, 16 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27430: (Ex)citações (440): Estar com o amok, passar-se dos carretos, perder as estribeiras, estar f*dido dos c*rnos, estar apanhado do clima ou cacimbado... serão expressões equivalentes?


ºSíndroma de Amok"... Ilustração criada,
para o blogue, pelo Chat Português / GPTOnline.ai , sob instruções do editor LG


1. Escreveu o nosso camarada Jaime Silva, numa nota de leitura sobre o livro "Amok", de Stefan Zeig (*):


(...) "Recordou-me o momento, em que, pela primeira vez, ouvi pronunciar a frase: "deu-lhe o amok". Foi em Ninda, leste de Angola – Terras do Cú de Judas. Em fevereiro de 1970, quando fui render o tenente paraquedista Grão, no comando do 3.º Pelotão da 1.ª CCP / BCP 21. A companhia estava em plena fase operacional e, segundo me fui apercebendo, cada um dos 4 pelotões tinham encontrado forte resistência na zona.

"Entretanto, nas conversas que ia travando com os meus novos camaradas de armas, ouvia-os pronunciar, regularmente, uma expressão que nunca tinha ouvido e desconhecia: 'deu-me o amok, assaltámos a base e demos cabo daquilo tudo'; ou, ainda, 'cuidado com o gajo porque ele hoje, está com o amok'; ou, ainda, 'ninguém pode falar contigo, vai-te curar, estás com o amok'.

"Com o tempo fui interiorizando o significado desse termo. Fui percebendo que se referia a alguém que se tinha 'passado dos carretos', 'não via nada à sua frente' ou que 'estava apanhado do clima'!... Foi neste contexto que fui assimilando o sentido do termo, de tal modo que, ao longo da vida, com alguma frequência e, em circunstâncias de menor ânimo, dizia para comigo: 'hoje, não estás bem!... Hoje, estás com o amok'!" (...) (**)


2. Pesquisa do editor LG + assistente de IA / ChatGPT, Gemini, Perplexity,  sobre o termo "amok" / "amoque".

Existe o termo amok (em francês e inglês). Amoque ou amouco, em português.

A síndroma de Amok é, em psiquiatria, uma perturbnação que consiste em uma súbita e espontânea explosão de raiva selvagem, que faz a pessoa afetada atacar e matar indiscriminadamente pessoas e animais que aparecem à sua frente, até que o sujeito se suicide ou seja morto,

A definição foi dada pelo psiquiatra norte-americano Joseph Westermeyer em 1972.

É ainda hoje udsada como sinónimo de "loucura assassina". Mas na aceção que lhe davam os paraquedistas em Angola, ao tempo do Jaime Silva (1970/72),  parece ser mais  sinónimo de, em linguagem de caserna:

  • "estar fodido dos cornos",
  • "passar-se dos carretos",
  • "perder as estribeiras",
  • "estar cacimbado", 
  • "estar apanhado do clima"
  • "estar à beira de um ataque de nervos"...
É uma condição piscológica que pode predispor à violência (física ou verbal). Ora, amok  é já a exteriorização da violência até então latente. 

O nome vem do malaio meng-âmok, que significa “atacar e matar com ira", "atacar furiosamente ou lançar-se sobre alguém num estado de raiva incontrolável".

O termo entrou nas línguas europeias através dos relatos de viajantes e colonizadores portugueses e, mais tarde, ingleses, que observaram este fenómeno no Sudeste Asiático, especialmente na Malásia e Indonésia.


(ii) Registos portugueses do séc. XVI

Os portugueses foram os primeiros europeus a testemunhar e a descrever este comportamento. Aparece em registos logo do início do séc. XVI.

Nos textos de cronistas como Tomé Pires, autor da Suma Oriental (1515), e Duarte Barbosa (1516), já se menciona o termo “amouco”. Eles descrevem guerreiros malaios que, após um insulto, humilhação ou perda da honra, “se lançavam ao combate sem razão aparente, matando quantos encontravam, até que fossem mortos”.

Eis uma descrição típica (em ortografia moderna):

“Há entre eles alguns que, tomados de raiva e desesperação, correm pelas ruas com a espada desembainhada, ferindo e matando quem encontram; a isto chamam amouco.” (Duarte Barbosa, 1516)

Aqui está um excerto adaptado da Suma Oriental de Tomé Pires (c. 1515), um dos primeiros registos europeus do termo “amouco”, como era grafado então. Este texto é considerado uma das fontes mais antigas sobre o fenómeno que viria a ser conhecido em inglês como amok:

“Há entre estes malaios alguns que, de súbito e sem razão conhecida, tomam uma fúria tamanha que, correndo pelas ruas com uma adaga na mão, matam quantos acham pelo caminho, até que os matem.

Dizem que, nesse tempo, não sentem dor nem razão, e que é o diabo que os toma. A este furor chamam amouco.” (Tomé Pires, Suma Oriental, c. 1515)

(iii) Contexto histórico:

Tomé Pires era um boticário (farmacêtico) e diplomata português que viveu em Malaca logo após a sua conquista (1511). O seu livro descreve em detalhe as gentes e costumes do Oriente. A referência ao “amouco” mostra como os portugueses foram os primeiros a documentar este comportamento que, séculos mais tarde, seria objeto de estudo da etnopsiquiatria.

Mais tarde, exploradores ingleses e holandeses adotaram o termo, passando a escrever “amok”. No século XIX, a palavra tornou-se conhecida na Europa através da literatura colonial e da medicina tropical.

(iv) Significado em etnopsiquiatria:

A síndroma do “amok” descreve um estado súbito e extremo de fúria homicida em que o indivíduo, geralmente homem, entra num transe violento e ataca indiscriminadamente pessoas à sua volta, frequentemente terminando com a sua própria morte (por suicídio ou pelas mãos de outros). Se for apanhado e desarmado, pode ter um ataque de choro e não se lembrar de nada...

Tradicionalmente, acreditava-se que este comportamento estava ligado a crenças culturais, questoes honra pessoal ou possessão demoníaca.

Os estudiosos modernos (como Linton, Benedict ou Yap) interpretam o amok como uma resposta culturalmente moldada ao stress social e psicológico, comum em sociedades onde a repressão das emoções e a importância da honra (caso do Japão, por exemplo) são grandes.

Os portugueses interpretaram o fenómeno em termos religiosos e morais (como “possessão demoníaca”), enquanto os estudiosos modernos o entendem como uma crise psicossocial aguda, associada a contextos de pressão cultural e perda de honra.

O conceito de amok evoluiu na medicina ocidental, desde os relatos coloniais até à sua inclusão no DSM-4

(v) Uso moderno na psiquiatria:

Na psiquiatria contemporânea, o termo é usado para descrever um comportamento impulsivo, súbito e violento, muitas vezes associado a perturbações psicóticas, depressivas ou dissociativas.

No DSM-4, o “amok” era classificado como uma síndrome culturalmente específica (culture-bound syndrome). No DSM-5 essa categoria desapareceu. (DSM-5 é a sigla de Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, Quinta Edição, publicada pela APA - Associação Americana de Psiquiatria).

(vi) Curiosidades linguísticas:

Em português antigo, “amoucar-se” chegou a ser usado figuradamente, com o sentido de enfurecer-se subitamente ou perder o controlo, embora hoje esteja praticamente em desuso.

A expressão inglesa “to run amok” (correr como um doido / descontrolar-se completamente) é hoje usada de forma figurada para descrever alguém que fica  fora de controlo.

(Pesquisa, condensaçáo, revisão / fixação de texto, negritros: LG)

________________

Notas do editor LG:

(*) Vd.. poste de 7 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27395: Notas de leitura (1859): "Amok", por Stefan Zweig; Lisboa: Relógio D'Água, 2022 (Jaime Bonifácio da Silva, ex-Alf Mil Paraquedista)

(**) Último poste da série > 28 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27360: (Ex)citações (439): Ainda a propósito dos bravos de Contabane... "O maluco do Carlos Azeredo está a bombardear a Guiné-Conacry", dizia, em pânico, o QG... (Carlos Nery, ex-cap mil, CCAÇ 2382, 1968/70)

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27420: (In)citações (281): Praxes assassinas... para "maçarico", "periquito" ou "checa" se começar a habituar...


Angola > Moxico >Léua  > c. 1970 > O alf mil pqdt Jaime Siva com uma criança da aldeia.


Foto (e legenda): © Jaime Bonifácio Marques da Silva (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O episódio que o Jaime Silva partilha connosco (*),  é forte, tenso e revelador da dureza mas  também da profunda ambiguidade moral, que marcaram muitos momentos da guerra colonial, vividos por nós.  Nem todos, por outro lado, teriam coragem de o contar, em público, em livro. 

Há vários aspetos que vale a pena comentar, e que são comuns às experiências por que passámos no CTIG.

Recorde-se que o  Jaime Silva. de rendição individual, era comandante, "maçarico", de um pelotão da 1ª CCP/ BCP 21 (Angola, 1970/72). E que na Op Broca (c. 20-29 de maio de 1970), no norte de Angola, tem o seu "batismo de fogo". O seu pelotão já tinha experiêwncia operacional, e pôde contar com a dois bons graduados, o 1º cabo Onofre e srgt Mirra.

(i) O choque do “batismo de fogo”

O  Jaime Silva descreve algo comum entre jovens oficiais enviados para cenários de guerra: a passagem abrupta da formação teórica (neste caso, recebida na EPI, em Mafra, e depois em Tancos, no RCP) para a realidade pura e dura  da guerra de guerrilha e contraguerrilha (fosse em Angola, na Guiné ou em Moçambique),

O “maçarico” (em Angola), o " periquito" (na Guiné) ou o "checa" (em Moçambique) era confrontado de imediato com a imprevisibilidade do IN,   e a brutalidade do combate num terreno que lhe era desfavorável.  E isso marcava-o para sempre. O dia e o local do batismo de fogo.

(ii) O contraste entre comportamentos

A narrativa mostra três tipos de comportamento operacional num momento de grande tensão:

  • serenidade, a coragem e a experiência  do 1º cabo Onofre, que representa o militar que já tem traquejo  e sabe agir com sangue-frio:  

(...) "E 'vejo'.,  ainda hoje, o local e o momento em que um guerrilheiro armado progride na nossa direção e faço sinal ao cabo Onofre, que se encontrava à minha frente, para estar atento. Este correu na direção… do combatente e capturou-o, à mão! " (...)
  • lucidez e a maturidade do sargento Mirra, que confirma o papel fundamental dos graduados na estabilidade dos pelotões:  

"(...) Com efeito, os dois pelotões conseguiram desalojar os guerrilheiros e chegar ao paiol. Nunca vi tanto material durante a minha comissão em Angola: armas, granadas, outro material de guerra, medicamentos, material de apoio escolar, etc.! " (...)

(...) " Você é doido, meu alferes. Primeiro – ordena o sargento Mirra – saia de trás dessa cubata e proteja-se nessa árvore grossa que se encontra ao seu lado. Não vê as balas a saltar à sua frente? Saia daí e depressa! Depois, agarre no rádio e peça ajuda ao 1.º pelotão que se encontra na zona para nos vir ajudar no assalto". (...)
  • e, por fim,  a conduta chocante do tenente miliciano, comandante de outro pelotão da 1ª CCP, cuja atitude ultrapassa qualquer ética militar,  revelando como, em cenários de guerra, alguns indivíduos cruzavam fronteiras morais sob o pretexto da “praxia” ou da necessidade de endurecer os mais novos, os "maçaricos", liquidando crua e friamente um prisioneiro indefeso:


 "(...)  Face ao guerrilheiro sentado à nossa frente, rapa de um sabre de uma espingarda Simonov e, sem que nenhum dos três militares presentes (eu, o comandante de companhia e um soldado) esperássemos, num ápice, dá uma “saibrada”  no coração do guerrilheiro e, depois, outra nos temporais, matando-o a sangue frio.  Estupefacto, o comandante de companhia repreende-o daquele ato ignóbil e cobarde. Como se tudo aquilo fosse o mais natural, ele respondeu: – É para praxar, aqui, o alferes maçarico. É para ele aprender. Tem de se habituar." (...)

(iii) “Habituação": uma lógica perversa

A ideia de que um ato de extrema violência como aquele serviria como “lição” para um oficial recém-chegado, "maçraico", e logo ali "praxado".  mostra bem como a guerra pode distorcer valores, normalizar atrocidades e criar um ambiente em que o desprezo pela vida humana se disfarça do mais miserável militarismo.

(iv) A importância do testemunho

Ao relatar o episódio, o Jaime Silva não só expõe uma realidade dura da época, como também reafirma a importância de não "romantizar" a guerra dos paraquedistas, tropa de elite. Como ele diz, "na guerra não vale tudo".

O facto de ainda recordar esse momento (traumático),  demonstra que, para muitos de nós, a guerra colonial foi menos uma aventura turistico-militar e mais um conjunto de situações -limite (que deixaram  cicatrizes, nalguns casos, físicas, mas sobretudo morais, psicológicas e humanas).

É um relato que merece ser preservado e discutido, aqui no blogue, mas também nas academias militares, porque ajuda a compreender o que significou, realmente, para milhares de nós, jovens portugueses,  sermos enviados para África como "maçaricos", "periquitos" ou "checas"(**)


quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27417: Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci... (Jaime Silva, ex-alf mil pqdt, BCP 21, Angola, 1970/72) (4): o meu batismo de fogo e a praxe ao alferes “maçarico”


Espingarda semiautomática Simonov SKS-45, calibre 7,62 x 39mm M43, 1945 (Origem: ex-URSS). Uma das caracte5rístcias distintivas é incluir uma baioneta, em forma de faca,  dobrável permanentemente anexada e um carregador fixo articulado. Como a SKS não tinha capacidade de tiro seletivo e seu carregador era limitado a dez tiros, tornou-se obsoleta nas Forças Armadas Soviéticas com a introdução da AK-47 na década de 1950. Na Guiné, era usada sobretudo pelas milícias do PAIGC.

Fonte: Cortesia de Wikipedia
Monumento aos combatentes
do Ultramar. Lourinhã. Pormenor.
Foto: LG (2025)



Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci (4): o meu batismo de fogo e a praxe ao alferes “maçarico”

por Jaime Silva

Não esqueci que o meu batismo de fogo aconteceu no decorrer da “Operação Broca”, realizada no Norte de Angola, na Mata Bala, entre 20 e 29 de maio de 1970.

Participaram nessa operação, em que esteve presente o general Luz Cunha, comandante da Região Militar Norte, várias companhias: 
  •  uma companhia do exército, sediada em Zalala,
  •  a 19ª companhia de comandos 
  • e 1ª e 2ª companhias de paraquedistas, sediadas em Luanda. 
O objetivo era destruir a Base COBA, da FNLA. Foi a minha primeira operação com a responsabilidade de comandar um grupo de combate, cujos soldados já tinham meses de experiência operacional no Norte e no Leste. 

Os dois sargentos tinham participado na guerra da Guiné e/ou de Moçambique e eu era um “maçarico” inexperiente, acabadinho de aterrar do “Puto” [#].


Jaime Silva, em 2013.
Foto LG
Na véspera, ainda em Luanda, tinha participado no briefing de preparação da operação, juntamente com os responsáveis das várias forças intervenientes.

 O que mais me impressionou, para além de uma parafernália de normas e indicações a seguir rigorosamente para o êxito da operação, foi, no final, o Oficial de Operações ter anunciado “as baixas previsíveis” nas nossas tropas:  3 a 4 mortos.

No contexto dessa operação, fomos transportados pelos helicópteros,  Alouette III. Após o assalto à base, sem oposição, ficámos na zona.

E “vejo”, ainda hoje, o local e o momento em que um guerrilheiro armado progride na nossa direção e faço sinal ao cabo Onofre, que se encontrava à minha frente, para estar atento. Este correu na direção… do combatente e capturou-o, à mão! 

Depois de interrogar o guerrilheiro, este revelou o local onde os seus camaradas guardavam o material de guerra, provisões, material médico e escolar, etc.

O paiol encontrava-se dissimulado numa caverna no alto de um morro e, ainda, no sopé do mesmo. Seguimos um trilho indicado pelo guerrilheiro, mas fomos atacados com um forte poder de fogo de metralhadoras, armas ligeiras e morteiro 60.

Nesse momento, pondo em prática os “ensinamentos” sobre “a arte de bem fazer a guerra” (que tinha recebido e treinado exaustivamente, primeiro em Mafra, na EPI, durante o COM e, depois, no RCP, em Tancos, durante o tirocínio após o curso de paraquedismo), dou ordens ao sargento Mirra, que já tinha experiência de cumprimento de uma comissão em Moçambique:

–  Mirra, envolva pela direita com a sua seção. Eu vou pelo centro com a segunda e vamos desalojá-los.

 –  Você é doido, meu alferes. Primeiro – ordena o sargento Mirra – saia de trás dessa cubata e proteja-se nessa árvore grossa que se encontra ao seu lado. Não vê as balas a saltar à sua frente? Saia daí e depressa! Depois, agarre no rádio e peça ajuda ao 1.º pelotão que se encontra na zona para nos vir ajudar no assalto.

Com efeito, os dois pelotões conseguiram desalojar os guerrilheiros e chegar ao paiol. Nunca vi tanto material durante a minha comissão em Angola: armas, granadas, outro material de guerra, medicamentos, material de apoio escolar, etc.!

 A Base até tinha uma escola com quadro preto pendurado numa árvore!

Nunca mais esqueci estes factos da minha primeira operação: 
primeiro, a lição de serenidade e coragem do Cabo Onofre, a sua lucidez e experiência naquela contexto;  depois, a do sargento Mirra;  por último, e inversamente, a atitude “sacana” do meu camarada, tenente miliciano, comandante do outro pelotão, que, face ao guerrilheiro sentado à nossa frente, rapa de um sabre de uma espingarda Simonov e, sem que nenhum dos três militares presentes (eu, o comandante de companhia e um soldado) esperássemos, num ápice, dá uma “saibrada” [## ] no coração do guerrilheiro e, depois, outra nos temporais, matando-o a sangue frio.

Estupefacto, o comandante de companhia repreende-o daquele ato ignóbil e cobarde. Como se tudo aquilo fosse o mais natural, ele respondeu:

 
– É para praxar, aqui, o alferes maçarico. É para ele aprender. Tem de se habituar.

O alferes maçarico era eu!

Foi assim! Um mundo surreal!



Notas de JS / LG:

[#] Puto, era a designação comum para referir Portugal (Continente), dada a sua dimensão reduzida em relação ao tamanho de Angola (e Moçambique).

[##] Saibrada, termo usado na gíria oral da guerra quando se uso o sabre (arma branca perfurante) para matar ou ferir o inimigo; o termo correto e que está grafado nos dicionários é "sabrada":

O uso do terno "saibrad"pode ser explicado por "contaminação (ou cruzamento Lexical)". Isto não é uma regra fonética, mas sim um lapsus linguae (lapso de língua) ou um ato falho. A contaminação ocorre quando o falante, ao tentar dizer uma palavra, a "contamina" inconscientemente com outra palavra que está semanticamente ou foneticamente próxima no seu cérebro. Neste caso, o falante queria dizer: "Sabrada" (o golpe de sabre). Mas o cérebro misturou com a palavra "Saibro" (o tipo de terra/cascalho, muito comum em campos de treino militar, "pistas de saibro", etc.).

A proximidade sonora (ambas começam com "Sa-") e a possível proximidade contextual (ambas as palavras existem no ambiente militar) levam o cérebro a fundir as duas, resultando em "Saibrada"


1. Com a devida vénia e autorização do autor, Jaime Bonifácio Marques da Silva (antigo alf mil pqdt, 1º CCP / BCP 21, Angola, 1970/72, conterrâneo do nosso editor LG; membro da Tabanca Tabanca desde 21/1/2024, com c. 120 referências no nosso blogue), passámos a criar uma nova série "Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci..."

É natural de Seixal, Lourinhã. Foi condecorado com a medalha de Cruz de Guerra de 3* Classe. Foi professor de educação física e autarca em Fafe. Está reformado. É sócio de várias associações de antigos combatentes, incluindo a AVECO - Associação de Veteranos Combatentes do Oeste, com sede na Lourinhá,  e a Associação de Pára-Quedistas da Ordem dos Grifos63,com sede em Vila Nova da Barquinha.

Este é o quarto poste da série (que terá 15 postes, correspondentes a excertos das pp. 75-98 do seu livro, Capítulo Dois):


Fonte: Jaime Bonifácio Marques da Silva, "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial" (Lourinhã: Câmara Municipal de Lourinhã, 2025, 235 pp., ISBN: 978-989-95787-9-1), pp. 84-86.

(Revisão / fixação de texto: LG)
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quinta-feira, 6 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27390: Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci... (Jaime Silva, ex-alf mil pqdt, BCP 21, Angola, 1970/72) (3): estive sempre no "gastalho", em guerra comigo e contra o IN

1. Com a devida vénia e autorização do autor, Jaime Bonifácio Marques da Silva (antigo alf mil pqdt, 1º CCP / BCP 21, Angola, 1970/72, conterrâneo do nosso editor LG; membro da Tabanca Tabanca desde 21/1/2024, com c. 120 referências no nosso blogue), passamos a criar uma nova série "Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci..."

É natural de Seixal, Lourinhã. Foi condecorado com a medalha de Cruz de Guerra de 3* Classe. Foi professor de educação física e autarca em Fafe. Está reformado. É sócio de várias associações de antigos combatentes, incluindo a AVECO - A
ssociação de Veteranos Combatentes do Oeste, com sede na Lourinhá,  e a Associação de Pára-Quedistas da Ordem dos Grifos63,com sede em Vila Nova da Barquinha.

Este é o terceiro poste da série (que terá 15 postes, correspondentes a excertos das pp. 75-98 do seu livro, Capítulo Dois):

Fonte: Jaime Bonifácio Marques da Silva, "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial" (Lourinhã: Câmara Municipal de Lourinhã, 2025, 235 pp., ISBN: 978-989-95787-9-1), pp. 83-84.



Quem foi obrigado a fazer a guerra, 
não a esquece: eu não esqueci (3):
estive sempre no "gastalho", em guerra comigo e contra o IN 

por Jaime Silva


Jaime Silva (2013). Foto: LG

Eu não esqueço que, a partir do primeiro dia da minha entrada na guerra, até 30 de julho de 1972, estive sempre no “gastalho” - em guerra comigo e contra o inimigo. E nunca mais a esqueci...

Combati nas matas dos Dembos, no Norte e nas “chanas” do “Cú de Judas” (#), no Leste de Angola, ao comando do 3º pelotão, da 1ª CCP do BCP 21 (1ª Companhia do Batalhão de Caçadores Paraquedistas nº 21) e, sempre com um objetivo de “fazer a guerra” sem que nenhum dos (meus) camaradas, sobre os quais tinha a responsabilidade de comandar, tombassem ou ficassem estropiados. Não o consegui: ficou lá uma perna e um morto! Penalizo-me, ainda hoje, por não o ter conseguido evitar!

Iniciei a rotina da guerra a 2 de março de 1970, pelas 06 horas da manhã, quando embarquei na BA3, em Luanda, num avião Nord Atlas e marchei para Ninda, o Leste, as terras do Cú de Judas, para me integrar na 1ª CCP. Uma vez chegado lá, até 18 de abril, integrei-me na atividade operacional da Companhia, sendo transportado para as operações, em helicópteros da África do Sul, pintados com as cores da bandeira de Portugal.

A partir dessa data, comecei a ter perfeita consciência de que,  ao iniciar o meu percurso no serviço militar obrigatório, tal como todos os jovens portugueses, na mesma circunstância, não representava mais do que uma ínfima gota, descartável para o sistema. Estava no meio da engrenagem trituradora da organização militar da guerra.

Apercebi-me que, no cenário da guerra, uma viatura militar tinha mais valor do que um homem, porque este, uma vez morto ou ferido, poderia ser imediatamente substituído por outro homem, enquanto as viaturas ou as peças para as reparar demoravam um tempo infinito e, muito vezes, nem sequer chegavam, para desespero dos Comandantes de Companhia do Exército sediadas no Norte e Leste.

Foi uma experiência atroz, a guerra!… Isto, sobretudo, porque regia a minha vida por princípios humanistas e cristãos, fundamentados no respeito pelos outros. Apontar a matar, para que eu próprio e os meus camaradas não morressem, foi uma experiência brutal.

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Nota do autor:

(#) "Cu de Judas" era o nome atribuído pelos militares a esta região inóspita do Leste de Angola, que conheci muito bem. A expressão inspirou o escritor António Lobo Antunes, para título do seu conhecido livro, "Os Cus de Judas". Este autor cumpriu uma comissão de serviço nesta região como alferes miliciano, médico, integrado numa companhia do exército comandada pelo capitão Melo Antunes. Participei em operações militares conjuntas com estes na região de Ninda e Chiume junto ao rio Cubango

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Nota do editor LG:

Último poste da série> 31 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27369: Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci... (Jaime Silva, ex-alf mil pqdt, BCP 21,Angola, 1970/72) (2): perante a hipótese Comandos, decido pelos Paraquedistas

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27369: Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci... (Jaime Silva, ex-alf mil pqdt, BCP 21,Angola, 1970/72) (2): perante a hipótese Comandos, decido pelos Paraquedistas





Figura 1 > Estudo prévio para monumento em memória dos combatentes da guerra colonial (2005), Arq. Augusto Vasconcelos  (Fafe) (Fonte: Silva,  op. cit, 2025, pág. 7)




Capa do livro de  Jaime Bonifácio Marques da Silva, "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial" (Lourinhã: Câmara Municipal de Lourinhã, 2025, 235 pp., ISBN: 978-989-95787-9-1), 235 pp.



1. Com a devida vénia e autorização do autor, Jaime Bonifácio Marques da Silva (antigo alf mil pqdt, 1º CCP / BCP 21, Angola, 1970/72, conterrâneo do nosso editor LG; membro da Tabanca Tabanca desde 21/1/2024, com c. 120 referências no nosso blogue), passamos a criar uma nova série "
Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci..."

É natural de Seixal, Lourinhã. Foi condecorado com a medalha de Cruz de Guerra de 3* Classe. Foi professor de educação física e autarca em Fafe. Está reformado.

Segundo poste da série (que terá 15 postes, correspondentes a  excertos das pp. 75-98 do seu livro, Capítulo Dois).


Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci... 

2. Perante a hipótese Comandos, decido pelos Paraquedistas

por Jaime Silva


Eu não esqueci esse verão de 1968 em que terminava um ciclo de formação, isolado do mundo real, em que me inculcaram valores da salvaguarda da vida humana e respeito pelos outros, nomeadamente: “não matarás”.

 Acabara de sair voluntariamente pela porta nova do Seminário de S. Paulo em Almada. Porém, poucos meses depois, a 8 de janeiro de 1969, com 22 anos, sou obrigado a transpor uma nova porta. Desta vez, a porta de armas da EPI (Escola Práticva de Infantaria, em Mafera) para iniciar o Curso de Oficiais Milicianos (COM) e, com um único objetivo: treinar para fazer a guerra!

Quando, a 28 de maio de 1969, termino o COM é-me atribuída a especialidade de Atirador de Infantaria e, ainda, para surpresa minha e, porque nunca me tinha oferecido para nada na tropa, o comandante da minha companhia me integra no grupo de cadetes selecionados para se apresentarem no CIOE (Centro de Instrução de Operações Especiais), em Lamego.

Fiquei siderado! Nunca me tinha oferecido para nada na tropa, nem tentado destacar-me na instrução, em coisa nenhuma!

Vim a saber (e a perceber), mais tarde, que esta era uma prática recorrente nos cursos de oficiais milicianos. Os comandos tinham, também, como método, para suprir a falta de voluntários necessários para comandar os seus grupos de combate, selecionar os cadetes durante os cursos de oficiais milicianos, como relata, por exemplo, José Luís Sousa:

“(…) foi a 30 de outubro de 1971 que embarquei com destino a Luanda para fazer o curso de comandos. Esta tinha sido especialidade que o capitão da Academia Militar e dos Comandos, chegado a Mafra com a missão de selecionar de entre os instrumentos do 1.º Ciclo, me atribuiu e forçou sem remissão a seguir. Já tinha reagido interiormente a fazer tropa em Mafra, mas bem mais o fazia agora por ser obrigado a ir para os comandos.

(…) Entre ir avulso para a Guiné, que diziam a ferro e fogo, e seguir para Luanda a frequentar o curso, empenhar-me ia por Angola. Comando seria se o desejasse”. (Sousa, 2021:10)


No meu caso aconteceu que, no final dessa última formatura, na parada do quartel em Mafra, um dos meus amigos, também selecionado, consegue demover cinco dos cadetes selecionados a rejeitar a ida para os Comandos, a favor da opção Paraquedistas, com o seguinte argumento:

– Nós já não conseguimos escapar à mobilização para a guerra, por isso, é melhor oferecermo-nos para os Paraquedistas.

Enumerou, a favor da opção Paraquedistas  um conjunto de fatores muito mais favoráveis em relação à nossa ida para os Comandos em Lamego: fins de semana à 6.ª feira depois do almoço; melhor salário, acrescido de um subsídio de risco de salto, no valor de 500$00 após o término do curso, etc. 

Mas, o principal argumento era o seguinte: como os paraquedistas pertenciam à Força Aérea, esse facto, permitiria que tivéssemos sempre o apoio dos helicópteros no transporte para as operações no mato, além de termos apoio imediato, nos momentos mais difíceis, nos combates mais duros e nas evacuações dos feridos e mortos. 

E rematou: 

– Além disso, ainda vamos ter o prazer de saltar da porta de um avião em andamento, o que é fantástico!.

Vim a concluir, mais tarde, durante o curso, que tinha razão!…

Durante a guerra, vim a apurar que o meu camarada Peralta, expulso da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, após as greves académicas de 1968, estava bem informado e tinha razão.

Na verdade, no início da minha Comissão, o soldado Santos, do meu pelotão, pisou uma mina antipessoal, numa das primeiras operações de combate que comandei no Norte de Angola, ficando com a perna esquerda completamente esfacelada. Menos de trinta minutos depois, já o tínhamos conseguido evacuar num helicóptero e salvou-se.

A mesma sorte não teve o meu primo Arsénio, soldado pertencente a uma companhia do exército, que, na mesma zona, pisou, também, uma mina. Foi ao fim da manhã (cerca das 13 horas) que se deu o acidente e só, às quatro da tarde, teve o helicóptero para o evacuar para o hospital, onde veio a morrer!

Foi para não irmos para Lamego que, em julho de 1969, um grupo de cinco cadetes, vindo da EPI, deu entrada no RCP (Regimento de Caçadores Paraquedistas), em Tancos, para iniciar, durante mais oito meses, um novo ciclo de instrução militar, sempre com um único objetivo: treinar para a guerra 

– Instrução dura, combate fácil – era o lema!

Depois de uma fase de adaptação à filosofia de atuação das tropas paraquedistas, iniciámos, no RCP, o 52º curso de paraquedismo, vindo a terminá-lo a 29 de agosto, sendo-me atribuído o Brevet nº 7343. 

A 8 de setembro, seguiu-se: o Estágio de Aperfeiçoamento de Combate para oficiais e sargentos milicianos, o Curso de Instrução de combate, a 29 de outubro, e o Estágio de Nomadização que terminou em janeiro de 1970.

Após, mais este longo ciclo, passados treze meses de instrução militar, em janeiro de 1970, sou nomeado para prestar serviço no Batalhão de Caçadores Paraquedistas BCP 21, por imposição de serviço. Fomos todos mobilizados para a guerra de África.

No dia 18 de fevereiro de 1970, pelas 10 horas, embarcámos, conjuntamente com três alferes milicianos (Rosinha, Vítor Marques e Martins) e um do quadro permanente  (Sousa, da Academia Militar). Embarcámos no Aeroporto Figo Maduro em Lisboa, num avião DC 6, da FA, rumo a Angola, em rendição individual. Aterrámos na Base Aérea nº3, em Luanda, às 9 horas do dia seguinte. A partir desta data, “passámos a contar” 100% de aumento do tempo de serviço.

(Continua)

(Revisão / fixação de texto: LG)
_______________

Nota do autor 

(#) Sousa, José Luís Costa -  Não à Guerra! Ser coamndo não quero. (Ed. autor, 2021)

_____________

Nota do editor LG:

(*) Último poste da série > 29 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27363: Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci... (Jaime Silva, ex-alf mil pqdt, BCP 21,Angola, 1970/72) (1): A minha (im)possibilidade de desertar

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27363: Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci... (Jaime Silva, ex-alf mil pqdt, BCP 21,Angola, 1970/72) (1): A minha (im)possibilidade de desertar


Figura 6 > Regresso de uma operação no Norte de Angola - Montes Mil e Vinte. Resultado: um soldado morto do 3º pelotão. (Arquivo de Jaime Silva) (Fonte: Jaime Bonifácio Marques da Silva, "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial" (Lourinhã: Câmara Municipal de Lourinhã, 2025, 235 pp., ISBN: 978-989-95787-9-1), pág,. 751 (*)





Figura 1 > Estudo prévio para monumento em memória dos combatentes da guerra colonial (2005), Arq. Augusto Vasconcelos  (Fafe) (Fonte: Silva,  op. cit, 2025, pág. 7)



1. Com a devida vénia e autorização do autor, Jaime Bonifácio Marques da Silva (antigo alf mil pqdt, 1º CCP / BCP 21, Angola, 1970/72, conterrâneo do nosso editor LG; membro da Tabanca Tabanca desde 21/1/2024, com c. 120 referências no nosso blogue), passamos a criar uma nova série "Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci..."

Foi condecorado com a medalha de Cruz de Guerra de 3* Classe,

A série que vamos agora iniciar, tem o seu nome.  Iremos publicar cerca de 15 postes, com excertos das pp. 75-98 do seu livro, correspondentes ao Capítulo Dois:



Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci...  

1. A minha (im)possibilidade de desertar


por Jaime Silva


Neste ponto do texto pretendo contar experiências e aspetos marcantes do meu percurso na guerra colonial, enquadrando-o na minha circunstância cultural, social e local até chegar às portas da guerra em Angola.


Jaime Silva
Da ideia à concretização final deste meu trabalho permeiam já vários anos. A ideia nasce da experiência pessoal, da dureza da vida e da guerra em Angola. Experiência que, num primeiro momento, se revestiu de solidão, na tentativa de esquecimento da guerra para anos mais tarde, se abrir a algo que fizesse jus e reconhecimento sobre uma geração que merece sair do esquecimento individual e coletivo. Assim, fui participando em várias iniciativas e empenhando-me em pequenos contributos.

Porém, só há cerca de uma década, com o regresso à minha terra natal, Lourinhã, começa a fervilhar a ideia de fazer um trabalho que revisitasse e recuperasse para a memória coletiva os meus conterrâneos que combateram e morreram pela pátria que os chamou e obrigou a fazer a guerra. Com efeito, sofreram e perderam a vida às mãos de uma guerra injusta e de uma nação que os votou ao esquecimento. Participei na guerra, durante dois anos e meio e, como alferes miliciano, comandei um pelotão de soldados e sargentos, integrado nas tropas paraquedistas, sempre no “gastalho”.

Como combatente lourinhanense, sobrevivente de uma guerra a que não pude fugir, sinto-me agora mobilizado para contribuir para a reposição da história desta injusta guerra. Partilho com muitos outros e outras, o dever de memória às vítimas desta, particularmente, de todos os que nela pereceram. Esta é a razão do meu testemunho no contexto deste livro.

Voltando à minha circunstância, direi apenas que nasci e cresci num Portugal de obscurantismo bafiento e de “pobreza descarada e generalizada” (Tavares, citado Sousa, 2024: 09); vim à luz do dia, no mês de julho, do ano de 1946, numa aldeia de trabalhadores rurais, pertencente ao concelho da Lourinhã. 

A realidade escolar desse tempo era de uma grande percentagem de crianças que não terminava a 4.ª classe (vindo, muitas deles a concluí-la, mais tarde, na tropa). Muito menos tinham oportunidade de pensar em continuar os seus estudos.

Neste contexto de miséria alargada, também no concelho da Lourinhã, calhou-me, na minha sorte, ter tido a oportunidade de ir para o seminário. Foi nos finais da década de 50. Tinha doze anos, quando transpus o portão de acesso a uma casa desconhecida. 

Nos primeiros tempos, senti-me completamente desenraizado, vivendo num ambiente de dilemas, semelhantes aos tão bem retratados por Vergílio Ferreira na sua obra, "Manhã Submersa", e, depois, por Lauro António, no filme com o mesmo nome. 

No verão de 1968, abandono o seminário. Era um jovem de 22 anos, politicamente ignorante, mas com uma certeza - teria, imediatamente, que cumprir o serviço militar obrigatório.

Relatarei, nesta parte do trabalho, vários momentos marcantes que vivi na guerra sendo que, estes e outros são uma recordação penosa, continuam a fazer, quotidianamente, parte da minha guerra. (...)
___________

Nota de JS/LG:
 . 
(#) O termo "gastalho", na gíria dos paraquedistas portugueses durante a guerra colonial em Angola (1961/75), é equivalente a porrada, mato, situação de dificuldade, combate intenso ou local perigoso, onde as tropas pára-quedistas muitas vezes combatiam; o vocáculo ainda náo foi grafado nos nossos dicionários com esta aceção (Fonte: JS/LG + assistente de IA / Gemini).


1. Eu não esqueci: a minha (im)possibilidade de desertar



Eu não esqueci que, em finais de setembro de 1968, no período entre a inspeção militar e a incorporação na EPI (Escola Prática de Infantaria) em Mafra, um dia, já perto da meia noite, sou desafiado pelo meu amigo José Manuel Dionísio a desertar para França, “a salto”.

Nem sequer pude pensar nem concretizar essa possibilidade, porque não tive 10 contos  para pagar ao “passador”. O episódio passou-se mais ou menos assim:

− Jaime, eu vou desertar, não quero ir para África para morrer na guerra. Vamos cinco, a “salto”, e tenho um lugar para ti, no táxi. Se quiseres, tens uma hora para ir a casa. Traz uma mala pequena com roupa e dez contos para pagar ao passador. Temos de atravessar os Pirenéus "a salto".

Olhei para o meu amigo e respondi-lhe:

−  Ó Zé Manel, onde é que eu tenho dez contos?!

−  Então, vai o Vítor em teu lugar.

Ele saiu a correr… E eu fiquei!...

(Continua)
____________

Fonte: Excertos de: Jaime Bonifácio Marques da Silva, "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial" (Lourinhã: Câmara Municipal de Lourinhã, 2025, 235 pp., ISBN: 978-989-95787-9-1), pp. 75-79.

(Revisão / fixação de texto, negritos, LG)~

___________________


Notas do editor LG:

(*) Vd. postes de 

23 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26949: Notas de leitura (1811): O livro do Jaime Bonifácio Marques da Silva, "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial" (2025) (235 pp.) - Parte I: apresentação de Luís Graça

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P27027: Manuscrito(s) (Luís Graça) (270): Salve, Jaime, ao km 79 da tua picada da vida!

1. O meu concidadão, conterrâneo, vizinho, colega, companheiro, camarada, grão -tabanqueiro, amigo e  'mano',  Jaime Bonifácio Marques da Silva, faz hoje 79 anos.  E vou comer umas sardinhas grelhadas com ele, e outros amigos tabanqueiros como o Pinto Carvalho (somos todos membros da Tabanca do Atira-te ao Mar... e Não Tenhas Medo). Faz cá falta o João Crisóstomo, o régulo da Tabanca da Diáspora Lusófona...  Que preza a nossa amizade e adora as nossas sardinhas.

Respiguei uns tantos tópicos da  vida do Jaime,  já longa, mas também sofrida... Vou-lhe oferecer como prenda de anos, a "Arte de Amar", de Ovídio (edição bilingue, português e latim com tradução, introdução e anotações de Carlos Ascenso André; Lisboa, Quetzal Editores, 2023, 221 pp.). 



Cortesia de Quetzal
Em  honra do Jaime (e também do grande poeta romano Ovídio, séc. I a.C.), e mostrando-o como exemplo da arte e engenho  não só de amar e ser amado como de promover o envelhecimento saudável e ativo, pedi a vários assistentes de IA que me fizessem  uns versinhos de parabéns, a ele Jaime, à moda do romano Públio Ovídio Nasão, em dístico elegíaco. Em português e depois em latim.  (Uma brincadeira, já que não tive tempo para mais.)

As versões, em português e em latim, foram revistas e fixadas por mim, em curto espaço de tempo , e  tanto quanto me permite o meu já muito esquecido e agora limitado domínio do latim clássico. (Já lá vai o tempo em que eu lia com fluência, e o Jaime também, os clássicos romanos, do Cícero ao Virgílio!).

Jaime Bonifácio Marques da Silva

(i) Nasceu no Seixal, Lourinhã, Portugal, na margem direita do Rio Grande que no tempo do poeta Ovídio, século I a.C., foi navegado pelas naus romanas... E em 711 era conquistada pelos mouros, novos senhores da Península Ibérica... Quatro séculos depois, em 1147, o primeiro rei português, Afonso Henriques, na sua marcha para Lisboa, conquista aquelas terras, donde se avista o "Mare Nostrum" de quinhentos, o Atlântico. A Lourinhã foi entregue aos cavaleiros francos, feros cruzados, cristãos. 

(ii)  Nasceu numa família de gente honesta e trabalhadora, tem ainda 3 irmãs vivas, que o adoram, sendo ele o mais velho. O pai trabalhou as terras dos senhores, a fértil várzea do Seixal e Areia Branca, até conseguir, por fim, montar o seu próprio negócio, como comerciante de frutas e legumes no mercado  da vila da Lourinhã. 

(iii)  Teve uma infância dura, uns vizinhos, ricos e com terras mas sem filhos, quiseram em vão adotá-lo. Era um menino pobre, lindo, de olho azul... Triunfou o amor dos pais e dos irmãos. 

(iv) Feita a escola primária, e sendo um miúdo inteligente, cursou o seminário, na esperança de vir a ser padre. Deus chamou-o mas o não ungiu, como um dos seus eleitos.

(v)  Fez a tropa e a depois a guerra colonial, em Angola, onde comandou um bravo grupo de paraquedistas (1ª CCP / BCP 21, Angola, 1970/72). Foi forte e leal. Mas sempre atento aos seus valores humanos, portugueses e cristãos: na guerra não valia tudo.  Tem a cruz de guerra de 3a. classe.

(vi)  Ainda em Angola,  antes da independência, começou a tirar o curso de educação física. Foi professor nesta área, e durante 40 anos viveu e trabalhou  em Fafe, no Norte de Portugal. Para lá foi levado pela paixão pela Dina, que lhe deu dois filhos, o Pedro e a Sofia. Tem muito orgulho neles, que se doutoraram e são hoje professores. 

(vii)  Tem também muito orgulho no seu trabalho, como autarca, no município de Fafe onde foi vereador, em três mandatos, dos pelouros do desporto e da cultura (1986/97). Fala com um brilho nos olhos do seu legado em Fafe: sendo ele "mouro", português do Sul, levou a gente nobre, minhota,  do Norte,  a gostar tanto da música sinfónica tanto como do andebol feminino... 

(viii)  Foi um cuidador excecional da sua Dina, atingida pela terrível doença do Alzhemeir, e já falecida (Fafe, 1946-Lourinhã, 2022). Nunca se deixou abater pelo desânimo, a desesperança, a solidão, minas e armadilhas da sua picada da vida,  ou as suas próprias mazelas... 

(ix)  Cultiva a amizade como poucos e mais recentemente, há uns anos, deixou-se atingir novamente pela seta de Cúpido. O seu coração foi ganho por uma temível feminista e socióloga da Lixa, Felgueiras. Uma mulher culta, inteligente, lutadora e de coração ardente. A doutora Laura, amiga da Alice Carneiro e do padre Mário da Lixa. 

(x) E, com todo o mérito, arte e engenho, o Jaime tem sabido manter e conservar não só a sua saúde física e mental, bem como os seus amores (pela Laura, pelos filhos Pedro e Sofia, pelas manas, Natália, Esmeralda e Maria João, pelos amigos...).

(xi) Gosta de música, toca cavaquinho. Escreveu recentemente, em 2025, o livro "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial"

2. Resposta dos assistentes de IA ao meu desafio. Interessante como a IA pega nas diferentes facetas da biografia do Jaime e quase instantaneamente (mais depressa que o diabo a esfregar um olho)  faz um poema em dístico elegíaco, conforme lhe foi pedido... E nunca sai igual. E tem, a IA,  a "humildade" de por enquanto  aceitar as sugestões e correções dos humanos... (Seleção, revisão / fixação de texto: LG)

Perplexity ia

Eis os versos em honra do teu amigo Jaime Bonifácio Marques da Silva, primeiro em português e depois em latim, à maneira dos dísticos elegíacos de Ovídio:

Em Português:

Ó Jaime, que o Tempo não doma, menino do Seixal, herói de Angola,
tua vida é poema que se entrelaça: guerra, amor, dever, voz que não cala!

Da Lourinhã a Fafe, foste luz, levando a música aos rudes corações;
e até no luto, firme como a cruz, guardaste a graça em todas as estações.

Agora, aos setenta e nove anos (mais sábio que um romano, mais audaz),
mostras que o amor, em seus verdes anos, vence a velhice e o viço do rapaz.


In Latinum Versum (Dactylico Elegiaco):

O Iacome, quem Numen nihil domat, puer Seixalensis, heros Angoli,
Vita tua carmen est, quod contexit arma, amor, officiumque voxque silentis.

A Laurinhâ Fafemque tulisti lux, ferens musicam duris cordibus;
Et quoque in luctus stans pede certa crux, gratia servasti omni tempore.

Iam septuagenus et novem annos tuos, praeclari prudentior Romanis, audax,
Ostendis amorem viridi praesente aetate vincere senemque iuvenemque.

____

Notas da IA;

(i) Forma e métrica geral: o dístico elegíaco é composto por um verso hexâmetro seguido por um verso pentâmetro. Tentei respeitar esse ritmo clássico para que o poema soe realmente como um epigrama ou elegia de Ovídio;

(ii) Primeiro dístico: “O Iacome, quem Numen nihil domat, puer Seixalensis, heros Angoli"...

  • “O Iacome” (forma latina de Jaime);
  • "Numen” (uma força divina ou o espírito do tempo, uma palavra-poética para o tempo);
  • “quem Numen nihil domat” (quem o poder divino não subjuga);
  • “puer Seixalensis” (menino do Seixal, adjetivo derivado do nome), etc.

Gemini IA

Parabéns para o Jaime, à Maneira de Ovídio

Setenta e nove anos celebra o valoroso Jaime,
Nascido onde o Rio Grande outrora as naves romanas viu.
Do Seixal, terra fértil, onde o Atlântico se espraia,
Um homem de virtude, cujo espírito floresceu.

Em tenra idade, o trabalho e a honra o guiaram,
Dos pais, que o amaram, o pobre menino se fez forte.
Do seminário à guerra, onde a lealdade brilhou,
Comandou bravos, em Angola, mas a humanidade foi seu norte.

Em Fafe, o amor da Dina e filhos, Pedro e Sofia,
Na educação, um mestre, em quarenta anos de paixão.
Como autarca, a cultura e o desporto enriqueceu,
Unindo Norte e Sul, num só coração.

Na dor, cuidador fiel, sem se render ao desespero,
Sua Dina viu partir, mas sua alma permaneceu.
A amizade cultiva, e o amor o reencontrou,
Com a Laura, a feminista, seu coração renasceu.

Saúde e amores guarda, com arte e sabedoria,
Pelos filhos, irmãs, e amigos, o carinho infindo.
No cavaquinho a melodia, na escrita a memória,
Jaime, és exemplo de vida, um presente tão lindo!


Em Latim (em Dístico Elegíaco)

Septem et septuaginta annos Jaime noster celebrat fortis,
 Ubi flumen magnum naves Romanas olim vidit. 
Seixal terra fecunda, ubi Oceanus se ostendit, 
Vir virtutis, cuius animus floruit per saecla.

In teneris annis, labor et honor eum duxerunt, 
Parentes dilexerunt, puer pauper factus est fortis. 
A seminario ad bellum, ubi fides resplenduit, 
Ducens audaces, sed humanitas eius finis fuit.

Fafe in urbe, amor Dinae, filiorumque, Petri et Sophiae, 
In doctrinis magister, quadraginta annis cum amore. 
Ut magistratus, culturam et ludum auxit, 
Septentrionem et Meridiem univit, in uno corde.

In dolore, custos fidelis, spe non victus tristis,
Dina decessit, sed anima eius mansit integra. 
Amicitiam colit, et amor eum invenit rursus, 
Cum Laura, feminista, cor eius rediit iuvenile.

Salutem et amores servat, arte et sapientia mira, 
Filiis, sororibus, amicis, amor est infinitus.
 In cavaquinho melos, scriptis memoria vivit, 
Iacobe, vitae exemplum es, donum tam pulchrum!

Chatpgt

Parabéns elegíacos para o  Jaime (em português)

Jaime, que o tempo honra, com passos de herói persistente,
Setenta e nove outonos, vividos com alma ardente.

Da margem do Rio Grande, nasceu sob o céu lusitano,
De olhos de céu azul, menino pobre mas soberano.

Não foi o ouro que o moldou, mas o amor fiel dos pais,
Rejeitou adoções ricas, escolheu raízes reais.

No seminário sonhou com Deus, mas o destino era outro,
Na guerra foi justo e firme, com coração resoluto.

Em Angola, e depois em Fafe, ensinou corpos e almas,
Com saber e com paixão, promoveu saberes e palmas.

Do andebol ao concerto, o “mouro” domou o Norte,
Fez da Cultura um brasão, do Desporto, força e sorte.

Cuidou a sua Dina, com devoção e ternura,
E o Amor, como o vinho velho, voltou com nova doçura.

Hoje é pai, avô, amigo, guardião de um tempo digno,
E mostra como se vive com sentido e com ritmo.


 Salve, Jaime (em latim)

Iamus, quem decorat tempus, gressibus heros,
Septuaginta novem vitae complevit amoros.

Ex ripa fluminis magni natus sub caelo Lusitano,
Caeruleis oculis, pauper puer, sed urbano.

Non aurum formavit eum, sed amor parens fidelis,
Divites sprevit adoptantes, amplexus est originis melis.

In seminario deum quaesivit, sed fata vetabant,
In bello justus et firmus fuit, cor non vacillabat.

In Angola docuit, postea Favae manebat,
Corpora mensque regebat, scientia palmas dabant.

A ludo ad musicam, Maurus domuit Aquilonem,
Cultus signum fecit, ludum fortem coronem.

Dinam curavit amore, dulcedine plena fide,
Et amor rediit, ut vinum vetus, dulci ridente ride.

Nunc pater, avus, amicus, temporis custos honesti,
Et monstrat vivere sensu plenoque motu festi


Em português (à maneira de Ovídio):

Jaime, flor de virtude e vigor, na serena alvorada dos anos,
Tece com mãos firmes a trama do tempo: justo e fiel.

Filho da várzea pura, onde o vento romano passou,
Sul e Norte unindo, em teu peito há um fado imortal.

Nem guerra nem dor dobraram teu estofo de ferro e ternura,
Com alma cristã, encheste o mundo de luz sem igual.

A Dina, teu porto, amaste até à mais doce saudade,
E depois a Laura, chama viva, amante e igual.

Ergues os dias com riso, cavaquinho e memória,
Do passado fazes honra, teu ideal é real.

Aos filhos das tuas entranhas deixaste um legado de estrelas,
E a Fafe do teu labor canta-te em hino triunfal.

Hoje, ao sopro do tempo, brindamos à tua jornada,
Jaime, que sejas eterno, como o amor sem final.


 Em latim (meticulosa adaptação ao estilo elegíaco):

Iámius, exemplo virum, sub lucida tempora vitae,
Dextra tenet vitam, iustus et aequus homo.

Natus in ubertate, Seixale, ubi flamina Romae,
Cordis in ore canis,  lusus et arma tenens.

Nec bellum fractum, nec dolor flexere viriles,
Sed pietate valens, lumen in orbe tulit.

Dinam amavisti, dulcem usque ad limina somni,
Et Lauran postea, fortis amore pari.

Cantibus et risu surgis cum luce diei,
Praeteritae memorem, vivis et arte fide.

Filiis et Fafae lucem reliquisti perennem,
Te celebrant vates, gloria longa manet.

Nunc, inter annos, carmina tibi damus alma,
Iámi, vive diu,  amor aeternus erit!

_____________

Notas da IA sobre a composição:

O dístico elegíaco é composto por um hexâmetro seguido de um pentâmetro, utilizado pelos romanos sobretudo na poesia amorosa (elegia), mas também em epigramas laudatórios.

Busquei conservar o ritmo, a imagética, e sobretudo o tom celebratório e inesquecível que Ovídio poderia usar para um herói moderno como o Jaime.

Parabéns ao Jaime! Que continue a ser uma inspiração e que a sua vida seja celebrada como um verdadeiro clássico da humanidade!


Dísticos Elegíacos – Ao Jaime, aos 79 anos

Nas margens do Rio Grande  nasceu o Jaime, de olho azul,
Homem de honra e memória, firme como rochedo ao sul.

Na infância pobre e bela, recusou adoção dourada,
Preferiu o lar humilde, a alma pela fé guardada.

Serviu a pátria em Angola, bravo, íntegro, decidido,
Mas foi brando no gesto, jamais o ódio o teria vencido.

Fez-se mestre do corpo, e no Norte deixou marca viva,
Fafe ganhou com cultura, e com desporto em deriva.

Foi amante fiel, cuidador de alma e de dor,
Guardião de memória, um farol contra o temor.

Hoje, aos setenta e nove, Jaime é arte de viver,
Sabe amar, resistir, sem jamais se perder.

Louvor ao homem que canta, que escreve, que não cede,
Que viva cem anos, ou mais, com graça, saúde e sede!

Em Latim:

In Ripa Magna natus est Jaime, oculis caeruleis,
Virtute clarus erat, firmus ut rupes australis.

Pauper et pulcher puer, adoptari noluit umquam,
Parentes, patriamque fovit corde benignum.

In Angola militavit, fortis et mente valens,
Sed lumen humanum secutus, mitis et acer.

Magister motus factus, terras Borealis amavit,
Fafam donavit cultu, lusibus atque docuit.

Fidus amator erat, custos memor atque dolorum,
Firmus in adversis, lux inter nocte malorum.

Septem novem annos nunc Jaime laetus agit,
Amor et virtus illi sunt arma quibus sapit.


Laus tibi, qui cantas, scribis, sperasque serenum,
Vivas centenos annos, plus, si fata sinerent!

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Nota do editor:

Último poste da série: 18 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26931: Manuscrito(s) (Luís Graça) (269): o azul, o preto e o vermelho, aliás, carmesim

segunda-feira, 23 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26949: Notas de leitura (1811): O livro do Jaime Bonifácio Marques da Silva, "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial" (2025) (235 pp.) - Parte I: apresentação de Luís Graça



Capa do livro do Jaime Bonifácio Marques da Silva, "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial" (Lourinhã: Câmara Municipal da Lourinhã, 2025, 235 pp, il, ISBN: 978-989-95787-9-1) (*)




Nota biográfica di autor



Índice da obra



I. Texto do essencial da apresentação, por Luís Graça, do livro do Jaime Bonifácio Marques da Silva, "Não esquecemos...",  Lourinhã, 21 junho 2025, 11h00 (**)



1. As minhas saudações lourinhanenses ao Jaime,e aos restantes membros da mesa.
A todos os demais antigos combatentes. Aos familiares
dos jovens lourinhanenses mortos na guerra do ultramar / guerra colonial que se voltam a homenagear com este livro. A todos os demais presentes nesta sala que é também, fisica e simbolicamente, a casa do poder autárquico democrático.

Já prefaciei e apresentei cerca de um dezena de livros de memórias, ficção e poesia, escritos por antigos combatentes da Guiné.

Mas este livro do nosso Jaime tem um particular significado para mim. Acompanhei o seu "making of". E fala da nossa terra e e da nossa gente. Foram vinte os nossos conterrâneos, mortos na guerra do ultramar / guerra colonial. Já homenageados na pedra, em monumento inaugurado em 2005.

Hoje este livro traz-nos mais informação, proveniente dos arquivos militares e outras fontes, sobre a vida e a morte destes bravos lourinhanenses. Traz a sua foto, e detalhes sobre a sua vida civil e militar, incluindo as circunstâncias em que morreram, 11 em combate e 9 por acidente ( incluindo com armas de fogo).

Alguns estavam mais próximos de nós, pela idade, o parentesco, a vizinhança, etc.

Por exemplo, o Arsénio Bonifácio Marques da Silva, do Seixal, era primo direito do Jaime. Morreu em Angola em 1972. Numa mina. Ou o José Henriques Mateus,da Areia Branca, seu colega de escola: desapareceu, no decurso de uma operação, no sul da Guiné, em 1966, ao atravessar o rio Tompar. O corpo nunca foi econtrado.

Já o José António Canoa Nogueira, o primeiro lourinhanense a morrer na Guiné, em combate, em 1965, era meu parente. O seu pai e a minha mãe eram primos direitos. As nossas avós eram irmãs. Ele tinha mais cinco anos do que eu. Não éramos íntimos mas o seu funeral, três meses e meio depois, tocou-me profundamente.

Eu tinha 18 anos e na altura, eu era o redactor do nosso jornal "Alvorada"... Fui eu próprio que fiz a notícia do seu funeral. E publiquei uma das últimas cartas que ele escreveu, dirigida ao diretor. Foi-me entregue pelo pai, um homem destroçado. Fazia parte do seu espólio.

Já não chegou a tempo de ser enviada pelo SPM (Serviço Postal Militar). O Nogueira morreria 13 dias depois, em em combate, com um estilhaço de morteiro na cabeça.

Em boa hora o Jaime transcreve no seu livro, na página 119, esta carta singela e comovente. O Nogueira chamou-lhe "Um domingo do mato" (sic).

Escrevi, no jornal, em 23/5/1965, há 60 anos (!) que o texto revelava muito da solidão, da saudade e da sensibilidade dos nossos militares em África.

Os restos mortais do Nogueira, em urna de chumbo, foram transportados, de barco, a expensas não do exército mas dos seus camaradas. Onze contos. 5 mil euros a preços de hoje.

Só a partir de 1968 o Estado chamou assim esse encargo, o de trasladar para a metrópole os restos mortais dos seus soldados.

A cerimónia fúnebre, na qual se incorporou "uma multidão anónima e inumerável" (sic), para além das autoridades civis e militares e os Bombeiros Voluntários, foi das mais emocionantes que eu já vi em vida:

(...) À chegada do autofúnebre militar, com a urna, os clarins dos Soldados da Paz tocaram a silêncio. E o préstito atravessou a Vila, sob uma impressionante atmosfera de recolhimento e dor. (...)

2. Feita esta incursão pelas minhas própias memórias, deixem-me fazer duas perguntas a que os próprios leitores deste livro devem poder responder no final, e a quem o autor não deixa de dar a sua própria resposta:

(i) Qual o sentido destas mortes ?

(ii) Qual a dimensão desta guerra e o preço que tivemos de pagar, nós, lourinhanenses, a nossa terra ?


Permitam-me que vos mace com alguns números que, às s vezes, valem mais do que mil palavras.

Estas mortes não podem ter sido em vão. A nossa participação na guerra também não pode ser vista como totalmente absurda. Afinal “soubemos fazer a guerra e a paz”.

Servimos a Pátria, que está acima dos regimes políticos. Não desertámos. Pagámos o nosso imposto de sangue. Reafirmámos o direito de continuar a ser portugueses e a viver em Portugal.

E mais: como militares, assegurámos as condições que permitiriam ao regime da época encontrar soluções politicas para uma guerra que nunca poderia ter uma solução estritamente militar.

Para além do testemunho pessoal sobre a sua própria vivência da guerra, o Jaime reconstitui as histórias de vida de 20 combatentes da Lourinhã que não sobreviveram para as poder contar.

Ficamos a conhecer melhor pelo menos quem foram os nossos conterrâneos que pagaram com a vida o brutal esforço de guerra (militar, logístico, demográfico, financeiro, económico, social, político, diplomático, etc.) que o país fez entre 1961 e 1975.

Estima-se em c. 25 mil milhões de euros, a preços de hoje, o custo da guerra. São quase 8,8% do nosso PIB nominal

Mas a perda e vida e o sofrimento físico e psíquico não mais difíceis de contabilizar em termos de custos, diretos, indiretos e ocultos.

Reforço o que o Jaime escreveu no capítulo Um: a guerra colonial (1961/75) foi seguramente o acontecimento mais marcante da nossa Pátria no Séc. XX.

Em rigor dever-se-ia falar em guerras coloniais, e que remontam à expansão colonial europeia, na sequência da Conferência de Berlim, em 1884/85.

A última foi mais do que uma sucessão de operações militares: implicou também, paralelamente, uma aposta, se bem que tardia, no desenvolvimento socioeconómico do “ultramar português”.

Cedo se percebeu (até pelo exemplo de outras potências colonizadoras como a Inglaterra, a França e a Holanda) que aquela guerra não podia ser ganha pelas armas.

O seu desfecho levou não só à restauração da democracia em Portugal, com o 25 de Abril de 1974, mas também ao desmantelamento do velho império colonial e ao aparecimento de novas nações lusófonas, mais de cento e cinquenta anos depois da independência do Brasil (em 1822).

Resta saber se fizemos (ou soubemos fazer) o luto de tantas perdas (físicas e simbólicas).

Já no passado, a Lourinhã tinha pago a sua quota-parte do "imposto de sangue de sangue, suor e lágrimas" nas guerras que direta ou indiretamente a tocaram, desde pelo menos as invasões napoleónicas.

Mais próximo de nós, não posso esquecer o caso dos nossos 4,6 mil prisioneiros na Índia (1961/62) (dos quais 13 eram lourinhanenses).

Mas a Lourinhã, desde a batalha do Vimeiro, em 1808, e as guerras civis oitocentistas, não conheceu felizmente a brutalidade da guerra à sua porta.

Estas de que aqui falamos,  passaram-se a milhares de quilómetros de distância: 4 mil na Guiné, 8 mil em Angola, 12 mil / Moçambique, 8,3 mil na India (via Canal Suez) etc.

Quantos militares (e/ou civis) nossos conterrâneos, mesmo os que não tenham morrido nestas guerras e expedições, pagaram o "imposto de sangue, suor e lágrimas" ?

Será bom não esquecê-los, incluindo as famílias dos militares mobilizados, a população civil que "retornou" a Portugal, na sequência da descolonização (mais de meio milhão), etc.

Mas restringindo-nos ao período da guerra do ultramar / guerra colonial, podemos avançar com alguns números:

Estima-se em cerca de 1300 o número de mobilizados, da nossa terra

No total foram mobilizados para Angola, Guiné e Moçambique cerca de 800 mil militares portugueses (número no qual se incluem também cerca de 30% de oriundos do recrutamento local, ou sejam, africanos como os meus soldados).

Em 1970, a população portuguesa era de 8,6 milhões e a da Lourinhã, não chegava aos 20 mil.

Portanto, 65 lourinhanenses em cada mil foram à guerra. E morreram 20 (11 por ferimentos em combate e 9 por acidente e outras causas), o que corresponde a uma taxa de letalidade de 1,56.

No total, morreram (por todas as causas) 10,4 mil militares portugueses, dos três ramos das Forças Armadas (incluindo os do recrutamento local).

E pelo menos 60 dos nossos militares lourinhanenses foram feridos gravemente. No cômputo geral houve 10 feridos (dos quais 3 graves) por cada morto.

O total de feridos da guerra foi de cerca de 117 mil.

Houve cerca de 28 mil feridos evacuados para os hospitais, metade dos quais metade foram classificados como deficientes.

Nestas baixas todas, para além das mortais, há lourinhanenses. Não sabemos quantos nem quem.

Também sabemos que um 1/5 dos mancebos em idade militar, em todo o país, não se apresentaram para cumprir o serviço militar. Estamos a falar de um total de mais 220 mil. Cerca de 500 seriam lourinhanenses.

Os números podem discriminar-se do seguinte modo:  faltosos (c. 202 mil), refratários (c. 
20 mil), desertores (c. 9 mil) (também os houve na nossa terra).

Neste número de faltosos e refratários estão muitos emigrantes. E é bom não esquecer que ao longo deste período (1961/74) a emigração em Portugal ultrapassou o milhão e meio.

Na década de 60, a Lourinhã perdeu cerca de 3,3 mil habitantes (c. 15%).

1300 homens em África foram também 1300 famílias. Fora o meio milhar que escapou a guerra.

Milhares de lourinhanenses (familiares, vizinhos e amigos) viveram a guerra à distância, com os oceanos Atlântico e Índico de permeio.

Dez toneladas de correspondência (aerogramas, cartas, jornais e revistas, encomendas, etc.) circulavam todos os dias através do Serviço Postal Militar, criado em 1961.

Calculamos, por baixo, que 250 milhões de aerogramas escritos, uns de cor amarela (reservados aos militares) e outros de cor azul (reservados às famílias), terão circulado num sentido e no outro. Sem falar das cartas pelo correio normal. Os aerogramas eram distribuídos pelo Movimento Nacional Feminino (mais de 30 milhões de impressos por ano).

À Lourinhã, com uma população a rondar os 20 mil, caberão c. 600 mil aerogramas  durante a guerra, enviados e recebidos pelos militares, famílias e amigos.

3. Passo o desafio à professora Leonor Bravo, a quem sugeri, através do Jaime, que falasse do direito e do dever de memória dos combatentes e da sua comunidade (incluindo a escola, professores, alunos, pais, avós) .

Mais de meio século depois (e quando mais de um terço dos antigos combatentes já terá morrido), não é tarde ainda para que a nossa comunidade (incluindo as escolas e as autarquias) se empenhe na recolha e salvaguarda de todo a documentação dessa época, com destaque para os álbuns fotográficos e a correspondência,

O Jaime dedica o seu livro ao seu neto David e a todos os netos dos antigos combatentes bem como aos cerca de 3,5 mil estudantes do concelho.

Há intencionalmente aqui uma “passagem de testemunho” e uma partilha de memória intergeracional.

4. Uma nota final: a guerra tem sempre um preço muito alto para qualquer combatente ou para quem a sofreu, a população. A guerra, e as suas múltiplas histórias, com h pequeno e com H Grande, as suas sequelas, os seus fantasmas, as suas memórias, as suas perplexidades... nunca acaba, mesmo quando morre o último combatente.

O músico e cantor Diogo Picão, que se orgulha das suas raízes lourinhanenses, diz isso, magistralmente:

“O meu tio (refere-se ao materno) fala muito da guerra. Ainda bem, fico mais tranquilo. Imaginem quem guardou aquelas explosões e aquele mato, aquelas entranhas todas dentro do peito.

" O meu outro tio (refere-se ao paterno) nunca me falou da guerra, mas sei que alguma coisa também morre dentro dele todas as noites”

Caros amigos e conterrâneos, leiam o livro e falem dele aos vossos netos: a palavra é agora do Jaime, que legitimamente reivindica, para ele e todos os demais antigos combatentes, o direito de não ficar na “vala comum do esquecimento”.

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Notas do editor:


(*) Vd. poste de 22 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26947: Agenda cultural (890): Lançamento do livro do Jaime Bonifácio Marques da Silva, "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial": Lourinhã, 21 de junho de 2025: fotogaleria

(**) Último poste da série > 20 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26943: Notas de leitura (1810): A presença portuguesa no Gabu, a relação colonial com os Fulas, por José Mendes Moreira (Mário Beja Santos)