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quarta-feira, 18 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26931: Manuscrito(s) (Luís Graça) (269): o azul, o preto e o vermelho, aliás, camesim








Lisboa > 8 de junho de 2025 > O mês da feira do livro e dos jacarandás

Fotos: © Luís Graça (2025). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


O azul, o preto e o vermelho, aliás, carmesim

por Luís Graça



Não gostavas de escrever a azul.
Também não gostavas de escrever a vermelho.
Sempre gostaste de escrever a preto.
Em papel liso.

Sempre detestaste as linhas
mas nem sempre havia papel liso
nem esferográficas pretas.

Vermelho, não, carmesim (*),
como se dizia antigamente
no tempo em que o vermelho era proibido
nas repartições públicas do Estado de Direito.
E muito menos
nos registos paroquiais 
de batizados, casamentos e óbitos.

Carmesim e não vermelho,
era a cor das vestes dos cardeais,
carmesim, flamejante.

Também se usava o carmesim
nas provas tipográficas dos livros 
no tempo em que os tipógrafos eram anarcossindicalistas
e tinham três ódios de estimação:
Deus, o Rei e o Capital.

Branca e azul era a bandeira,
depois passou a ser verde e vermelha,
por pudor dizia-se verde-rubra.
Rubra da cor das faces das moçoilas do povo
que era pouco republicano
e muito temente a Deus.
Rubra como o tomate saloio.

Deus que, nesse tempo,
escrevia direito por linhas tortas,
mas sempre a azul,  celestial,
Deus, Pátria e Família
também só podiam ser escritos a azul.
Era a única tinta que se usava
na tua Escolinha do Conde Ferreira.

Ainda hoje gostas de escrever à mão.
Mas às vezes não tens esferográficas pretas,  à mão.
E, depois, nem todas as esferográfica pretas prestam.
Nem todas são válidas e fiáveis,
como as escalas,
sociométricas, biométricas e psicométricas,
devem ser.

Ficas pior que estragado 
quando o bico (ou a ponta ?)
arranha o papel liso do bloco de notas gráfico.
Dizia-se bico no tempo da Bic.
Gostavas da Bic, passe a publicidade.
Mas agora a Bic é feita em países
que são pouco fiáveis mas que têm futuro.

O teu país era fiável,
no tempo em que o ouro se mordia com os dentes.
Mas  agora, dizem, não tem futuro.
Há 500 anos que perdeu a bússola
e passou a navegar à bolina,
em linguagem náutica.
Ou à deriva,
 em termos mais comesinhos.

Do azul só gostavas das flores dos jacarandás.
Não gostavas do azul
no tempo em que se embrulhava um homem 
em papel selado,
que era azul,
e tinha linhas,
25 linhas.
E não havia tira-linhas.

Não gostavas do papel selado,
azul,
de 25 linhas.
Não gostavas do azul 
nem do vermelho, aliás, carmesim,
do tempo em que os coronéis da censura
usavam lápis azuis e vermelhos, aliás, carmesins.

Quando foste para a tropa,
gostavas do preto.
Usavas boina preta, 
camisola preta, 
calças pretas, 
luvas pretas...
E esferográfica preta.
Mas hoje, dizem-te, 
é politicamente incorreto o preto.
Por causa não-sei-quê-de-conotações-racistas.
Diz-se negro, e não preto.
Mas houve uma altura em que o preto dava  jeito.
E, depois, dizia o capelão
no princípio era o mundo.
E o mundo era a preto e negro.

Ainda te lembras das fitas 
a preto e vermelho, aliás, carmesim,
com que batias à máquina
poemas sem pés nem cabeça,
só com tronco e braços decepados.
No tempo em que era proibido escrever a vermelho,´
por isso dizia-se carmesim.
E até os sinais de proibição do código da estrada
eram a carmesim.
Não se podia dizer nem escrever
vermelho.

E os próprios jornais, sobretudo os do reviralho,
só podiam publicar títulos de caixa alta
a carmesim.
Em dias de festa.
Ficava cara a impressão.
O preto não era cor, logo era mais barato.
Mas o azul também não vendia jornais.

O preto era a ausência de cor.
Não havia o preto na paleta das cores do arco-íris,
explicava-te o teu professor de química.

Os espanhóis, esses, eram daltónicos
e  foram mais pragmáticos:
só havia os rojos e os blancos.
E mataram-se uns aos outros.


Alfragide, 17 de junho de 2025


© Luís Graça (2025)

(*) carmesim

carmesim
(car·me·sim)

Imagem

Gradação muito carregada da cor vermelha.

nome masculino

1. Gradação muito carregada da cor vermelha.

adjectivo de dois géneros

2. Que tem essa cor.

Origem etimológica: árabe qirmezi, tingido de vermelho, de qirmiz, vermelhão, encarnado.

"carmesim", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2025, https://dicionario.priberam.org/carmesim.
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Nota do editor:

Último poste da série > 20 de março de 2025  > Guiné 61/74 - P26599: Manuscrito(s) (Luís Graça) (268): A velha Amura dos tugas, agora panteão nacional...

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