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sábado, 21 de junho de 2025

Guiné 61/74 – P26945: Memórias de Gabú (José Saúde) (431): Pássaros que esvoaçavam os céus da Guiné (José Saúde)

1.   O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego -Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem rebuscada nas suas memórias.

Pássaros que esvoaçavam os céus da Guiné 

Guiné/Bissau e as suas histórias 

O passageiro de além

Rapazes simples, fardados com um camuflado em pleno palco de guerra, mas, sendo que na partida para terras de além-mar as vestes que envergavam eram as de primeira propriedade. O momento passava por uma cerimónia “vil” por parte dos senhores da Nação. As famílias na Cais de Alcântara, ou no Conde de Óbitos, ou no aeroporto do Figo Maduro, em Lisboa, fechavam-se em rosto que transmitiam dor. Aliás, uma dor que lhes vinha do interior das entranhas, ou não fosse o momento deveras doloroso.

Os “miúdos” lá seguiam em grandes barcos que enfrentavam ventos e marés rumo ao seu destino. As viagens, algumas mais extensas, beneficiavam uma aproximação a um camarada que, entretanto, aparentava desespero. Entretinham-se, nesses longos instantes, ao jogo da lepra, ou, ainda, a outros passatempos ocasionais. Por vezes, a noiva, o seu grande amor, já guardava no ventre um pequeno ser humano fecundado com afeto. A mãe, sim aquela que o pariu, ficava desfeita e começa um “luto” com a ida do seu filho para a guerra.

Depois, lá vinham os aerogramas onde o militar, algures no mais incomum lugar das então províncias ultramarinas, recomendava calma à família e amigos, dado que tudo seguia à sonoridade de ventos sopravam (des) favoráveis. Nada de alarmismos. O rapaz, alguns com a barba ainda a rebentar no seu jovial rosto, com as borbulhas a indicar jovialidade, mandava fotografias para o pessoal descansar.

Lá longe, em Angola, Moçambique e Guiné, os “putos” lá se iam defendendo, entrementes, de uma guerra que não dava tréguas. Matar para não morrer era o slogan que todos, ou quase todos, partilhavam, todavia, alguns encontravam infelicidade pelo caminho e a morte, ou a incapacidade corporal, fora o fatídico selo que lhes impôs destinos impiedosos.

Em Gabu, o passageiro do além, vislumbrava que aquela guerrilha nefasta era tida como desigual. Não importava o bélico contagiante das nossas tropas, cerca de 40 mil, na altura, que lutava com um inimigo, PAIGC, ao que se comentava que tinham cerca de 10 mil. Outros motivos explicavam tal razão. O contexto generalizado da guerra ditava fatores que impunham ordens para um IN, sempre hábil, que aparentava superioridade nos campos de batalha. Porém, nem sempre assim o era.

            Por outro lado, nos céus da Guiné existia um rol de pássaros que eram imunes aos conflitos no terreno. No mato viam-se diversas espécies de passarada, ou animais, tipo macacos, lebres, de entre outras, que encantava camaradas com os seus lindos chilreares.

            Debruço-me, hoje, sobre a realidade dos abutres.

Abutres

Numa breve reflexão sobre a passarada guineense, que era e é enorme, detenho-me perante uma veracidade que me fora conhecida, ousando trazer à estampa o universo dos abutres, pássaros necrófagos que proliferavam em todo o solo e que amiúde observava com algum interesse. O seu aspeto atirava para um horripilante semblante e o habitat natural passava pela procura sistemática de restos de cadáveres.

Não vacilo, porém, recordar Hitchcock na sua análise psicanalítica sobre um filme onde o tema era, obviamente, “Os Pássaros”. Os conteúdos do emaranhado de imagens remetiam-nos para o ataque dos pássaros aos seres humanos. Um filme que se estreou nas telas cinematográficas mundiais no ano de 1963 e que bom dinheiro rendeu à produção, sobrando as inúmeras interpretações feitas pelos amantes do cinema que assumiam presumíveis traduções que esbarravam em análises científicas. 

Mas demos um passo em frente, ouçamos abstratamente o clarinete e apresentemos armas numa infindável parada, falando nos abutres conhecidos numa Guiné em tempo de guerra e não numa outra espécie de “aves de rapina” que se multiplicavam na metrópole lusitana. Estes rapazes de então, bem ou malvestidos de acordo com as circunstâncias propostas, pareciam “bandos de pardais à solta” que esmiuçavam vidas e citavam, com ênfase, a provável falsificada ideologia de um patriotismo entendido, por eles, como inigualável. 

Simultaneamente ao evoluir das desgraças conhecidas onde a morte de camaradas se amontoavam nas frentes de combate, lá vinham os senhores de gravatas acetinadas e fatos à príncipe de “Gales” que na hora da despedida no cais portuário de Alcântara, incentivarem um contingente de jovens mergulhados em porões de navios cuja etiqueta transportada era, tão-somente, o pregão ao dito popular que a encomenda que seguia a bordo registava “carne para canhão”.

Passemos licitamente à vanguarda porque esses fatídicos tempos foram maus de mais para ser verdade. Com efeito, concentremos atenções no respetivo pássaro e observemos que o abutre é uma ave accipitriforme e originária da família chamada de accipitridae. Refletindo em pormenor sobre estes necrófagos, diz-se que as aves são também conhecidas como abutres do velho mundo. A sua longevidade chega a atingir os 30 anos, sobretudo quando se encontram em cativeiro.

 

A hierarquia dos abutres a devorarem uma carcaça (foto retirada via internet)

Conheci o seu esvoaçar num horizonte interminável e os seus impulsos animalescos na procura de um lugar para pernoitar. Conheci, também, a obstinada azáfama na procura de alimentos. Conheci, ainda, as suas visitas quotidianas às proximidades do barracão do Seidi, “magarefe-dia” onde o nosso quartel angariava carne de vaca fresca para uma pontual refeição mais abastada, sendo que este rapaz, de etnia fula, matava, esfolava e dividia a carcaça do animal de acordo com os pedidos previamente feitos.

Lembro, e foram muitas vezes a que assisti, o Seidi, após a trabalheira da matança lançar para o bando de abutres pequenas dádivas para os pássaros se deliciarem com primor.

Recordo, simultaneamente, as lutas desenfreadas travadas entre eles pelo melhor naco, ou, as guerras para limparem parte das ossadas do animal, ficando a certeza que no grupo havia regras que os mais desenfreados comilões, sempre de bico “afiado”, assumiam por inteiro, tendo em conta o posto hierárquico emanado pelo bando.

Claro que as lutas dos pássaros desenhavam ávidos momentos em que a prioridade era o encher o papo. Noutros lugares existiam sequiosos “abutres”, mas estes literalmente curvados ao faustoso e recheado prato que lhe fora colocado na mesa. A nutritiva refeição era tão-só uma pausa pontual ao arroz com salsichas. 

Para outros, pássaros de rapina imbuídos num minucioso calculismo, a tal vaca morta e desmanchada pelo Seidi tinha os seus dividendos. Restava a certeza que a mão “milagrosa” do Seidi jamais recusou atirar para os abutres as sobras da carcaça que, por razões evidentes, “não iam à mesa do rei”.

Hoje, ao lembrar as memórias de Gabu detenho-me perante as minhas vulgares idas ao matadouro do Seidi. A sua azáfama era de todo interessante. A túnica, veste que usualmente transportava no seu corpo e que aparentava alguma sagacidade, estava normalmente manchada de sangue, tal como as mãos que reproduziam um trabalho que ele próprio assumia com dignidade. Era, aliás, dessa árdua faina constante que o nosso amigo recolhia proveitos monetários para alimentar a família.

Retalhos de vidas que em tempo de guerra abasteciam tabancas de gentes que faziam do momento imponderáveis desejos de uma existência vergada pelos horripilantes sons vindos de outras batalhas campais que ocorriam ali por perto.

Lá longe, muito longe, os arautos do despotismo debitavam discursos, qual abutres esvoaçando sobre negros horizontes, dizendo às massas que os militares portugueses lutavam nos palcos de guerra com honra e dignidade.

Na verdade, nós jovens lutávamos como heróis visando a essencial salvaguarda da nossa “carcaça”, mas numa guerra que não era decididamente nossa. Os defuntos “abutres” que num limiar de cautas razões que na época ostentavam, levantem-se dos sepulcros, escutem o julgamento final e defendam a triste tese que certamente não transitará em julgado.

Histórias avulsas de incautos cenários onde fomos meros “pássaros” andantes de uma imigração obrigatória em território alheio.

Um abraço, camaradas 

José Saúde

Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

12 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 – P26146: (Ex)citações (430): Habitações palacianas de Gabu (José Saúde)

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