1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego -Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem rebuscada nas suas memórias.
Pássaros que esvoaçavam os céus da Guiné
Guiné/Bissau e as suas histórias
O passageiro de além
Rapazes simples, fardados com um camuflado
em pleno palco de guerra, mas, sendo que na partida para terras de além-mar as
vestes que envergavam eram as de primeira propriedade. O momento passava por
uma cerimónia “vil” por parte dos senhores da Nação. As famílias na Cais de
Alcântara, ou no Conde de Óbitos, ou no aeroporto do Figo Maduro, em Lisboa,
fechavam-se em rosto que transmitiam dor. Aliás, uma dor que lhes vinha do
interior das entranhas, ou não fosse o momento deveras doloroso.
Os “miúdos” lá seguiam em grandes barcos
que enfrentavam ventos e marés rumo ao seu destino. As viagens, algumas mais
extensas, beneficiavam uma aproximação a um camarada que, entretanto,
aparentava desespero. Entretinham-se, nesses longos instantes, ao jogo da
lepra, ou, ainda, a outros passatempos ocasionais. Por vezes, a noiva, o seu
grande amor, já guardava no ventre um pequeno ser humano fecundado com afeto. A
mãe, sim aquela que o pariu, ficava desfeita e começa um “luto” com a ida do
seu filho para a guerra.
Depois, lá vinham os aerogramas onde o
militar, algures no mais incomum lugar das então províncias ultramarinas,
recomendava calma à família e amigos, dado que tudo seguia à sonoridade de
ventos sopravam (des) favoráveis. Nada de alarmismos. O rapaz, alguns com a barba
ainda a rebentar no seu jovial rosto, com as borbulhas a indicar jovialidade,
mandava fotografias para o pessoal descansar.
Lá longe, em Angola, Moçambique e Guiné,
os “putos” lá se iam defendendo, entrementes, de uma guerra que não dava
tréguas. Matar para não morrer era o slogan que todos, ou quase todos,
partilhavam, todavia, alguns encontravam infelicidade pelo caminho e a morte,
ou a incapacidade corporal, fora o fatídico selo que lhes impôs destinos
impiedosos.
Em Gabu, o passageiro do além, vislumbrava
que aquela guerrilha nefasta era tida como desigual. Não importava o bélico
contagiante das nossas tropas, cerca de 40 mil, na altura, que lutava com um
inimigo, PAIGC, ao que se comentava que tinham cerca de 10 mil. Outros motivos
explicavam tal razão. O contexto generalizado da guerra ditava fatores que
impunham ordens para um IN, sempre hábil, que aparentava superioridade nos
campos de batalha. Porém, nem sempre assim o era.
Por outro lado, nos céus da Guiné existia um rol de pássaros que eram imunes
aos conflitos no terreno. No mato viam-se diversas espécies de passarada, ou
animais, tipo macacos, lebres, de entre outras, que encantava camaradas com os
seus lindos chilreares.
Debruço-me, hoje, sobre a realidade dos abutres.
Abutres
Numa breve reflexão sobre a passarada
guineense, que era e é enorme, detenho-me perante uma veracidade que me fora
conhecida, ousando trazer à estampa o universo dos abutres, pássaros necrófagos
que proliferavam em todo o solo e que amiúde observava com algum interesse. O
seu aspeto atirava para um horripilante semblante e o habitat natural passava
pela procura sistemática de restos de cadáveres.
Não vacilo, porém, recordar Hitchcock na
sua análise psicanalítica sobre um filme onde o tema era, obviamente, “Os
Pássaros”. Os conteúdos do emaranhado de imagens remetiam-nos para o ataque dos
pássaros aos seres humanos. Um filme que se estreou nas telas cinematográficas
mundiais no ano de 1963 e que bom dinheiro rendeu à produção, sobrando as
inúmeras interpretações feitas pelos amantes do cinema que assumiam presumíveis
traduções que esbarravam em análises científicas.
Mas demos um passo em frente, ouçamos
abstratamente o clarinete e apresentemos armas numa infindável parada, falando
nos abutres conhecidos numa Guiné em tempo de guerra e não numa outra espécie
de “aves de rapina” que se multiplicavam na metrópole lusitana. Estes rapazes
de então, bem ou malvestidos de acordo com as circunstâncias propostas,
pareciam “bandos de pardais à solta” que esmiuçavam vidas e citavam, com
ênfase, a provável falsificada ideologia de um patriotismo entendido, por eles,
como inigualável.
Simultaneamente ao evoluir das desgraças
conhecidas onde a morte de camaradas se amontoavam nas frentes de combate, lá
vinham os senhores de gravatas acetinadas e fatos à príncipe de “Gales” que na
hora da despedida no cais portuário de Alcântara, incentivarem um contingente
de jovens mergulhados em porões de navios cuja etiqueta transportada era,
tão-somente, o pregão ao dito popular que a encomenda que seguia a bordo
registava “carne para canhão”.
Passemos licitamente à vanguarda porque esses fatídicos tempos foram maus de mais para ser verdade. Com efeito, concentremos atenções no respetivo pássaro e observemos que o abutre é uma ave accipitriforme e originária da família chamada de accipitridae. Refletindo em pormenor sobre estes necrófagos, diz-se que as aves são também conhecidas como abutres do velho mundo. A sua longevidade chega a atingir os 30 anos, sobretudo quando se encontram em cativeiro.
A hierarquia
dos abutres a devorarem uma carcaça (foto retirada via internet)
Conheci o seu esvoaçar num horizonte
interminável e os seus impulsos animalescos na procura de um lugar para
pernoitar. Conheci, também, a obstinada azáfama na procura de alimentos.
Conheci, ainda, as suas visitas quotidianas às proximidades do barracão do
Seidi, “magarefe-dia” onde o nosso quartel angariava carne de vaca fresca para
uma pontual refeição mais abastada, sendo que este rapaz, de etnia fula,
matava, esfolava e dividia a carcaça do animal de acordo com os pedidos
previamente feitos.
Lembro, e foram muitas vezes a que
assisti, o Seidi, após a trabalheira da matança lançar para o bando de abutres
pequenas dádivas para os pássaros se deliciarem com primor.
Recordo, simultaneamente, as lutas
desenfreadas travadas entre eles pelo melhor naco, ou, as guerras para limparem
parte das ossadas do animal, ficando a certeza que no grupo havia regras que os
mais desenfreados comilões, sempre de bico “afiado”, assumiam por inteiro,
tendo em conta o posto hierárquico emanado pelo bando.
Claro que as lutas dos pássaros desenhavam
ávidos momentos em que a prioridade era o encher o papo. Noutros lugares
existiam sequiosos “abutres”, mas estes literalmente curvados ao faustoso e
recheado prato que lhe fora colocado na mesa. A nutritiva refeição era tão-só
uma pausa pontual ao arroz com salsichas.
Para outros, pássaros de rapina imbuídos
num minucioso calculismo, a tal vaca morta e desmanchada pelo Seidi tinha os
seus dividendos. Restava a certeza que a mão “milagrosa” do Seidi jamais
recusou atirar para os abutres as sobras da carcaça que, por razões evidentes,
“não iam à mesa do rei”.
Hoje, ao lembrar as memórias de Gabu
detenho-me perante as minhas vulgares idas ao matadouro do Seidi. A sua azáfama
era de todo interessante. A túnica, veste que usualmente transportava no seu
corpo e que aparentava alguma sagacidade, estava normalmente manchada de
sangue, tal como as mãos que reproduziam um trabalho que ele próprio assumia com
dignidade. Era, aliás, dessa árdua faina constante que o nosso amigo recolhia
proveitos monetários para alimentar a família.
Retalhos de vidas que em tempo de guerra
abasteciam tabancas de gentes que faziam do momento imponderáveis desejos de
uma existência vergada pelos horripilantes sons vindos de outras batalhas
campais que ocorriam ali por perto.
Lá longe, muito longe, os arautos do
despotismo debitavam discursos, qual abutres esvoaçando sobre negros
horizontes, dizendo às massas que os militares portugueses lutavam nos palcos
de guerra com honra e dignidade.
Na verdade, nós jovens lutávamos como
heróis visando a essencial salvaguarda da nossa “carcaça”, mas numa guerra que
não era decididamente nossa. Os defuntos “abutres” que num limiar de cautas
razões que na época ostentavam, levantem-se dos sepulcros, escutem o julgamento
final e defendam a triste tese que certamente não transitará em julgado.
Histórias avulsas de incautos cenários onde fomos meros “pássaros” andantes de uma imigração obrigatória em território alheio.
Um
abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
___________
Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
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