Pesquisar neste blogue

Mostrar mensagens com a etiqueta minas e armadilhas. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta minas e armadilhas. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

Guiné 61/74 - P27503: Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci... (Jaime Silva, ex-alf mil pqdt, BCP 21, Angola, 1970/72) (7): o ferimento do 2º srgt pqdt Henrique Galvão da Silva





Angola > Luanda > s/d (c. 1970/72) > 3º Pel / 1ª CCP / BCP 21 (1970/72) > Os bravos do pelotão


O Jaime é o promeira da fila de pé, a contar da direita para a esquerda. 

Em  18 de fevereiro de 1970,  embarcou no eroporto de Figo Maduro num avião Dakota da Força Aérea rumo a Angola para se apresentar no BCP 21 (Batalhão de Caçadores Paraquedistas) a fim de iniciar uma Comissão de Serviço que só terminaria em 1 de julho de 1972.

"(...) Nessa madrugada lisboeta embarcaram três alferes milicianos (eu, Rosinha e Vítor Marques) e um tenente da Academia Militar (Sousa).

"Na madrugada do dia 19 tínhamos à nossa espera no aeroporto de Luanda o Comandante do BCP 21, tenente coronel Rafael Durão que, logo ali, após as boas vindas, não deixou escapar uns reparos quanto ao atavio da farda n.º 1 que vestíamos e de indicar as Companhias onde seríamos integrados. De seguida perguntou quem era o alferes  Silva e, após me identificar disse: «Você foi destacado para a 1.ª CCP (1.ª Companhia do BCP 21) e prepare-se para embarcar para o Leste no próximo avião onde, em Ninda, está destacada a sua companhia'-

"Um avião Nord Atlas transportu-me de Luanda à cidade de Henrique Carvalho e daqui um avião DO aterrou, finalmente, na pista de areia do destacamento de Ninda. Foi-me atribuído o comando do 3.º Pelotão, rendendo o tenente Grão, onde participai na minha primeira operação de combate, denominada  “ Operação Alfange” e onde fomos transportados nos helicópteros das Forças Armadas da África do Sul.

"Foram 29 meses de muitas operações de combate no Norte e no Leste, de algumas lutas renhidas frente a frente com o IN  e , em cujas refregas, abatemos alguns deles, tendo também eles conseguido roubar a perna ao Soldado Santos e a vida ao soldado Ramos!

"Foram também bons momentos de amizade cimentados na provação das operações de combate e no convívio nas horas livres no Batalhão ou nos 'botecos' espalhados pela cidade de Luanda!"

Fonte: Jaime Bonifácio da Silva > Página pessoal do Facebook > 18 de fevereiro de 2018 (com a devida vénia...)  (Foto editada por LG)


Foto à direita: Jaime Bonifácio Marques da Silva, autor do livro "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial" (Lourinhã: Câmara Municipal de Lourinhã, 2025, 235 pp., ISBN: 978-989-95787-9-1), 235 pp.

Jaime Silva (ex-alf mil pqdt, BCP 21, Angola, 1970/72, membro da nossa Tabanca Grande, nº 643, desde 31/1/2014, tendo já cerca de 130 de referências, no nosso blogue; reside na Lourinhã, é professor de educação física, reformado, foi autarcaa em Fafe, com o pelouro de "Desporto e Cultura": residiu lá durante cerca de 4 décadas): 



Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci (7) > o ferimento do 2º srgt pqdt Henrique Galvão da Silva


por Jaime Silva



Eu não esqueci quando o 2.º sargento paraquedista Henrique Galvão da Silva foi ferido durante a Operação “Bútio Encarnado”, realizada entre 6 a 10 de agosto 1970.

O acidente ocorreu na região da serra Vamba, Norte de Angola, depois de aquele ter tropeçado numa armadilha. 

O acidente deu-se já ao final da tarde, e não houve hipótese de ser evacuado por helicóptero. O seu corpo ficou crivado com alguns estilhaços de granada. Por isso, teve que ser transportado numa maca improvisada feita com troncos de árvores.

Conseguiu sobreviver, passando a noite com morfina e com o apoio dos cobertores de todos os elementos do grupo de combate. No dia seguinte, ainda se tentou o resgate e evacuação através do guincho do Helicóptero, mas, dada a altura das árvores e a densidade da mata, não foi possível fazê-lo.

Restou-nos caminhar, até ao meio da tarde, em direção a uma fazenda de exploração de café e madeira, cujas coordenadas me foram indicadas, via rádio, pelo Comandante de Companhia.

Acontece que, a poucos quilómetros da chegada a essa fazenda, onde iríamos ser recuperados, deparámo-nos com uma clareira de árvores abatidas por colonos portugueses.

Este facto, em local em que a tropa sofria emboscadas dos guerrilheiros do MPLA ou FNLA e, ao mesmo tempo, civis madeireiros conseguiam aí chegar e derrubar árvores e transportar a madeira sem problemas, demonstra “o que se dizia por lá”, acerca da eventual colaboração entre colonos e guerrilheiros dos Movimentos de Libertação.


Fonte: excerto de Jaime Bonifácio Marques da Silva,  "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial" (Lourinhã: Câmara Municipal de Lourinhã, 2025, 235 pp., ISBN: 978-989-95787-9-1), pp. 87-88.
________________

quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Guiné 61/74 - P27493: S(C)em comentários (82): a filha da mãe da guerra que não desgruda... (Jaime Silva, ex-alf mil pqdt, BCP 21, Angola, 1970/72)


1. Comentário do Jaime Silva,ex-alf mil pqdt, BCP 21 (Angola, 1970/72), membro da nossa Tabanaca Grande (*):


Luís, lembro-me como se fosse hoje: a operação não parou e decorreu durante três dias. Um outro soldado transportou o rádio que, por sorte, ficou intacto, e fui eu que assumi as transmissões. O trivial nestas circunstâncias da guerra!...

Ao que chegámos naquele nosso tempo de juventude!... O teu camarada ficou estropiado para a vida e tu continuas como se nada acontecesse!... e, sempre, na convicção de que a seguir podias ser tu!...

Já lá vão 55 anos e a filha da mãe daquela guerra não desgruda.

Abraço para todos os nossos camaradas combatentes naquela guerra

Jaime (**)


(**) Último poste da série > 31 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27368: S(C)em Comentários (81): O gen António Spínola e o major cav Carlos Azeredo que eu conheci, em julho de 1968, depois do ataque a Contabane (José Teixeira, ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, "Os Maiorais" , Buba, Aldeia Formosa, Mampatá, Empada, 1968/70)

domingo, 23 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27455: Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci... (Jaime Silva, ex-alf mil pqdt, BCP 21, Angola, 1970/72) (5): a mina A/P que ceifou a perna do soldado radiotelegrafista Santos, alentejano



1971, Norte de Angola, na zona de Nambuangongo, no final de uma operação e à espera do heli: o alf mil pqdt Jaime Silv, comandante do 3º Pel / 1ª CCP / BCP 21 (Angola, fev 70 / jul 72) com o Lopes dos Santos, na altura 2º  srgt pqdt, hoje capitão pqdt  na reforma  



Jaime Silva


Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci (5) > a mina A/P que ceifou a perna do soldado radiotelegrafista Santos, alentejano

por Jaime Silva



Não esqueci o primeiro estropiado do meu Pelotão, o soldado radiotelegrafista Santos. Esta tragédia aconteceu durante uma operação, na zona de Santa Eulália, no norte de Angola. Ele pisou uma mina antipessoal, logo minutos depois dos helicópteros nos terem lançado no alto de um morro.

Estou a ver o momento em que descemos a encosta do morro correndo. E, indo eu na frente, ao deparar com um trilho, ordenei que o grupo progredisse fora do mesmo, em virtude de ter detetado sinais evidentes de poder haver minas antipessoal dissimuladas. 

Minutos depois, há um rebentamento na curva do trilho, por onde eu e mais três paraquedistas tínhamos passado. Nessa altura, oiço o Santos a gritar:

– Eu vou morrer. Ai, minha mãe, eu vou morrer! 

Foi mesmo assim! Foi a primeira vez que vi a perna de um homem esfacelada: a perna tinha desaparecido abaixo do joelho. O enfermeiro injetou-o logo com morfina, um camarada levou-o às costas, morro acima, mas enquanto eu contactava o helicóptero, via rádio, para o evacuar, olhava, incrédulo, o que restava da tíbia e do perónio daquele meu camarada, cujo sangue jorrava e deixava um rasto vermelho no capim verde. 

Vinte minutos depois, empurrãmos o Santos para dentro do heli e, lembro-me, de lhe gritar:

Aguenta, já te safaste!

O Santos, safou-se.

E, entre muitas outras coisas da sua vida, casou e tem duas filhas. Vive no Alentejo.

Fonte: Jaime Bonifácio Marques da Silva, "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial" (Lourinhã: Câmara Municipal de Lourinhã, 2025, 235 pp., ISBN: 978-989-95787-9-1), pp. 84-86.


(Revisão / fixação de texto, título: LG)

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27388: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (113): Nunca desistir é a mensagem que pretendo transmitir aos camaradas que tenham em curso, ou venham a iniciar algum processo, para atribuição de incapacidade resultante de ferimentos sofridos em combate ou acidente, ocorridos durante a guerra colonial (Aníbal José da Silva, ex-Fur Mil Vagomestre)

1. Em mensagem de 1 de Novembro de 2025, o nosso camarada Aníbal José Soares da Silva, ex-Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483 / BCAV 2867 (Nova Sintra e Tite, 1969/70), descreve-nos a sua odisseia para conseguir provar que o incidente de que foi vítima no dia 4 de Agosto de 1969 lhe provocou lesões oculares irreversíveis com consequências para toda a vida.


NUNCA DESISTIR

Nunca desistir é a mensagem que pretendo transmitir aos camaradas que tenham em curso, ou venham a iniciar um processo, relativamente à atribuição de incapacidade resultante de ferimentos sofridos em combate ou acidente, ocorridos durante a guerra colonial.

Volto a dizer “nunca desistir”, porque o processo que iniciei naquele sentido, foi uma autêntica odisseia.

Resultante das lesões oculares sofridas no incidente de 04 de Agosto de 1969 (ver Poste 26820), que originou um processo por ferimentos em combate, restaram sequelas. Porque anos mais tarde sentia desconforto e diminuição da visão, no dia 2 de Abril de 1991 entreguei na Secção de Justiça do DRM – Porto, um requerimento ao qual juntei um relatório médico, solicitando ser obervado no Hospital Militar do Porto, para verificação das sequelas e eventual atribuição de uma incapacidade.

Em 17 de Dezembro de 1992 fui presente à consulta de Oftalmologia no HMR1, tendo o especialista declarado “Não se encontra abrangido pela Tabela Nacional de Incapacidades pelo que não se justifica qualquer taxa de incapacidade. Deve ser enviado à Exma. JHI para os devidos efeitos”.

Em 12 de Janeiro de 1993 fui presente à JHI que me julgou “Pronto para todo o Serviço Militar” e portanto sem atribuição de qualquer incapacidade. Uma Junta Médica (JHI) é sempre constituída por três médicos, mas aqui só estive perante um Capitão, eventualmente médico, que não me observou, não dialogou comigo, limitamdo-se a comunicar o atrás referido.

Porque os problemas oculares continuavam, no dia 12 de Outubro de 2005 fiz novo “REQUERIMENTO PARA PEDIDO DE REVISÃO DE PROCESSO POR ACIDENTE/DOENÇA EM SERVIÇO” ao qual juntei novo relatório médico. Daqui resultou que passados 18 meses, no dia 30 de Maio de 2007, fui presente a uma JHI (Oftalmologia) e desta vez sim, na presença de três médicos, que após observação emitiram a seguinte decisão “H.M.R 1 – incapaz de todo o serviço militar, apto, parcialmente para o trabalho com 23,5 de desvalorização”, baseando-se nas seguintes lesões: epíforas e conjuntivites crónicas e bilaterais.

Julgava eu que passados mais alguns meses passaria a receber uma indemnização, cujo valor monetário desconhecia totalmente. Puro engano, o processo andou a saltar durante SETE ANOS E MEIO, de organismo em organismo, tais como: Ministério da Defesa; Direção de Justiça e Disciplina; Arquivo Geral do Exército; Direção de Saúde, Comissão Permanente Para Informações e Pareceres e finalmente a Repartição de Reserva Reforma e Disponibilidade.

É aqui que nunca devem desistir, pois, apesar da atribuição da incapacidade em Junta Médica, não é certo que venhas a receber qualquer pensão, ou então, não na totalidade da incapacidade atribuída.

Os vários organismos vão tentar tudo para não te darem a merecida desvalorização e é preciso estar atento e contestar os pareceres que vão emitindo, tais como: a inexistência de nexo causalidade entre as lesões diagnosticadas e o acidente sofrido; alterando a profissão de modo a que incapacidade seja reduzida para metade (1) e referindo que as sequelas das lesões sofridas não podem ser resultantes do acidente (2), mas sim de causa orgânica (doença).

• (1) - na vida civil fui empregado de escritório, mas classificado como carpintero neste processo. Como o empregado de escritório necessita mais da visão que o carpinteiro, logo aqui e segundo a Tabela Nacional de Incapacidades, que eu conhecia bem por motivos profissionais, a desvalorizção baixava para metade. Tive de contestar, o que logo originou atrasos de meses na resolução do caso.
• (2) – A Direção de Saúde disse que as sequelas das lesões tinham origem em doença bacteriológia e não traumática (acidente), o que tive também de contestar e daí mais uns meses de espera.

Foram sete anos e meio de muita luta, muita paciência, mas consegui ganhar o processo e a desvalorização na totalidade. Ver anexo NOTAS, onde tudo registava, tal como: telefonemas; contactos pessoais, cartas e emails, etc, num total de 11 páginas.

Para concluir o processo e começar a receber a pensão, faltava uma última etapa, uma Junta Médica na Caixa Geral de Aposentações, a entidade pagadora, que foi feita e posterior publicação no Diário da Républica.

A Pensão é paga a partir da data da realização da Junta Medica que determinou a incapacidade, pelo que tive direito a receber os retroativos dos sete anos e meio e depois passei a receber mensalmente, por débito em conta, através da CGA.

Uma última questão, só quem tem uma incapacidade igual ou superior a 30% é que é considerado Deficiente das Forças Armadas, que para além da pensão, tem outras regalias.

Arcozelo/Gaia
01 de Novembro de 2025
Aníbal Silva

_____________

Notas do editor:

1 - Citando Aníbal José da Silva no seu Poste 26820 de 29 de Maio de 2025:

[...]
Chegado à base de Bissalanca segui de ambulância para o Hospital Militar. Fui colocado não sei onde deitado na maca. Não sabia se estava no chão ou em cima de qualquer coisa. Com a mão direita de fora da maca, tocava no que me rodeava e conclui que estaria no chão pois sentia uma superfície fria e lisa.

As pessoas passavam por mim mas não ligavam nenhuma. As dores nos olhos e o rubor na cara era escaldante. Comecei por insultar quem por mim passava, chamando-lhes filhos desta e daquela, até que alguém, creio que era um sargento pois chamaram-lhe assim, veio ter comigo e perguntou a outros o que é que aquele homem estava ali a fazer. Responderam que estava à espera do oftalmologista. Era uma segunda-feira e o médico devia ter ido passar o fim de semana à ilha dos Bijagós. Mas o sargento ordenou que eu fosse de imediato ao RX para a eventualidade de ter algum estilhaço no corpo, o que felizmente não se veio a confirmar. O médico chegou e mandou-me para a sala de observações, onde permaneci três dias.

Foi iniciado o tratamento prescrito, que consistia na lavagem dos olhos várias vezes ao dia e mesmo durante a noite, mais umas injeções não sei para quê. Ao fim da tarde desse dia, ouvi passos que vinham na minha direção. Abeiraram-se da cama e uma voz perguntou: “Rapaz de onde és e o que te aconteceu?”. Reconheci logo a voz do General Spínola e resumidamente respondi. O acompanhante habitual do general era o Capitão Almeida Bruno, que me perguntou se eu sabia com quem estava a falar. Respondi que era o General Spínola e ele o Capitão Almeida Bruno. No dia seguinte voltaram a visitar a sala de observações, tomando conhecimento dos que chegaram nesse dia. Era do conhecimento geral, que desde sempre, os dois ao fim da tarde iam ao hospital quase todos os dias. De madrugada entrou alguém na sala a gemer e a berrar. Era uma parturiente que horas mais tarde deu à luz uma bebé.

O barbeiro do hospital, de dois em dois dias, ia-me fazer a barba e eventualmente aparar o cabelo. Para ir ao refeitório, nos primeiros dias, era acompanhado pelo cabo enfermeiro, que me ensinou a fazer o percurso sozinho. Saía da porta da enfermaria, dava quatro passos em frente atravessando o corredor e tocava na parede, virava à esquerda e caminhava uns tantos passos ao longo da parede até ao início da escada, depois à direita, descia seis degraus, contornava o patamar e descia mais seis degraus até à entrada do refeitório. Quando entrava diziam, lá vem o ceguinho, quem é que lhe vai dar a sopa na boca e cortar o bife? Obviamente que meter a sopa na boca era exagero, era uma brincadeira, mas o restante sim, precisava de ajuda. No trajeto inverso contava os mesmos degraus e dava os mesmos passos. Na cama não podia estar de barriga para cima, porque a deslocação de ar provocado pelas enormes pás das ventoinhas colocadas no teto, ao bater nas pálpebras agravava as dores.

[...]

2 - Último post da série de 27 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27358: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (112): Através do nosso blogue, na pessoa do camarada Manuel Domingos Ribeiro, soubemos do falecimento do Fur Mil Art Silva da CART 6552/72 (João Ferreira / Manuel Domingos Ribeiro / Carlos Vinhal)

terça-feira, 30 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27271: O início da guerra (Armando Fonseca, ex-sold cond, Pel Rec Fox 42, mai 62 / jul 64) - Parte II: outubro de 1963: os primeiros grandes sustos com as minas A/C

 

Guiné > s/l >s/d > Pel Rec Fox 42 > A guarnição de viatura do "Alenquer" (o terceiro, a contar da esquerda para a direita, conforme indica a seta branca. Parece ser a viatura blindada canadiana GMC 4x4 M 957, armada com 2 metralhadoras Browning de 12,7mm (a do Armando usava a Borsig).   




N/M e T/T António Carlos > Navio misto, de carga e passageiros a motor, com 93m de comprimento, a sua construção data de 1946-1947 no estaleiro da Rocha, Administração Geral do Porto de Lisboa, da CUF - Companhia União Fabril. Foi encomenado pela Sociedade Geral de Transporte para aumentar a sua frota da marinha mercante. Deslocava c. 4,5 mil toneladas. Tinha 8 camarotes para passageiros.

A partir de 1959, esteve fretado ao ministério do Exército para transporte de tropas e material de guerra. Em 1971, foi vendido à Companhia Nacional de Navegação, de Lisboa, operando principalmente na carreira de Cabo Verde e Guiné. Em 1981, foi desmantelado no Cais Novo de Alhos Vedros.


Fotos (e legendas): © Armando Fonseca (2012). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Armando Fonseca, ex-sold cond cav, Pel Rec Fox 42, Bissau, Mansoa, Porto Gole, Buba, Bedanda, Guileje e Aldeia Formosa, 1962/64; também conhecido como o "Alenquer", integra a nossa Tabanca Grande desde 22 de setembro de 2010; tem cerca de 20 referências no nosso blogue. Julgamos que nasceu em 1941. Natural de Alenquer, vive na Amadora desde 1965, depois do regresso à "peluda". É autor da série "O Alenquer retoma o contacto" (de que se publicaram 7 postes, em 2012).
 

Fotos (e legendas): © Armando Fonseca (2012). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


I. O Armando Fonseca (conhecido como o "Alenquer", terra donde é natural, mas que vive na Amadora desde 1965), ex-soldado cond cav, Pel Rec Fox 42 (1962/64), foi dos primeiros militares, da arma de de Cavalaria, a chegar à Guiné, quando "oficialmente" ainda não havia guerra. Fiz ele que na guerra teve um "bom anjo da guarda". Não foi só ele, nós que ainda aqui estamos hoje, também podemos dizer o mesmo.

Cumpriu o serviço militar desde abril 1961 até julho 1964 (3 anos e 3 meses). Esteve 26 na Guiné, desde maio de 1962 até julho de 1964. Chegou ao CTIG em finais de maio de 1962. Escreveu ele:


(...) Nesta altura a guerra ainda estava muito no começo, havia aqui e ali algumas escaramuças e nós ficámos a fazer a segurança da cidade e do aeroporto. Então, fazia serviço durante 24 horas no aeroporto de Bissalanca, passando inspecções à pista e mantendo a segurança nas aterragens e nas descolagens dos aviões tanto civis como militares. Durante essas inspecções por vezes eram avistadas cobras que atravessavam a pista e nas cercanias junto do arame farpado viam-se também hienas e onças que procuravam o seu meio de subsistência.

Nos restantes dias estávamos às ordens para qualquer imprevisto a que tivéssemos que acorrer. Às vezes, muito raras, tinha um dia de folga que aproveitava para ir até à cidade, para ir ao cinema ou fazer algumas compras de certos artigos que não me eram fornecidos. (...)


Ao fim de 16 meses a sua Fox é colocada, em Mansoa, às ordens do BCAÇ 512, para fazer segurança às colunas logísticas a Mansabá e Bissorã.



 O início da guerra  (Armando Fonseca,  ex-sold cond, Pel Rec Fox 42,  mai 62 / jul 64) 

Parte II:  outubro de 1963:  os primeiros grandes sustos com as minas A/C



Regressados a Mansoa, vindos de Porto Gole (*), recomeçaram as escoltas diárias a caminho de Mansabá, Bissorã e Porto Gole, até que no dia 17 de outubro de 1963 ao dirigir-me para Mansabá, próximo de uma tabanca denominada Mamboncó foram encontrados na estrada dois buracos provocados pelo rebentamento de fornilhos dois dias antes.

Foi o primeiro grande sinal de perigo, porque até aí ainda não tinham aparecido minas por aqueles lados.

No dia 19 ao fazer outra escolta a Mansabá e depois de ter percorrido mais ao menos metade do percurso, rebentou uma mina mesmo na minha cara, mas por sorte minha e dos camaradas que seguiam no carro, foi comandada uns décimos de segundo antes do carro estar em cima dela, não provocando estragos.

Foram feitas umas rajadas para reconhecimento em todas as direcções pelas "Borsig" e entretanto um dos soldados da CCAÇ 413, que seguia na coluna e que se tinha apeado, viu um fio que vinha do mato para dentro da estrada e alertou o furriel de minas e armadilhas que seguia na coluna, tendo este verificado que havia outra mina montada e sobre a qual eu já tinha passado.

Essa mina, que pesava quatro quilos cento e cinquenta, foi levantada com as devidas precauções e a viagem foi recomeçada e seguiu até ao destino.

Como a reacção do apontador das metralhadoras foi imediata, não houve tempo para o IN despoletar a outra mina, caso contrário tinha sido uma chacina, haveria decerto mortes e muitos feridos.

Esta foi a primeira de muitas das intervenções do meu bom anjo da guarda.

Em 20 de outubro, pelas cinco da manhã, lá ia a caminho de Enxalé e uns quilómetros depois de Porto Gole, perto da tabanca de Flora, estava a estrada cortada não permitindo a passagem dos carros.

Depois da intervenção dos sapadores lá fomos passando mas passadas umas dezenas de metros começaram a rebentar sobre nós várias granadas e de seguida várias rajadas a baterem no carro. Agimos de imediato e a situação pareceu acalmar-se. 

Entretanto foram avistados vários elementos IN a fugir. Alguns camaradas foram em sua perseguição, mas como havia outra autometralhadora do outro lado do morro, era uma ação arriscada porque podiam ser confundidos com o IN e haver acidentes, como veio a acontecer.

Convencido de que o perigo tinha passado, avancei e, quando cheguei ao cimo do morro para me juntar ao restante grupo que se encontrava do outro lado, senti o rebentamento de outra granada mesmo em cima do carro e novas rajadas se notavam a bater no mesmo.

Voltamos a reagir e entretanto quando tudo ficou calmo. Fomos até aos camaradas que estavam do outro lado e verificamos que eles tinham feito fogo sobre o grupo que tinha ido em perseguição do IN. Sem acidentes ao que se julgava, visto se terem apercebido que eram camaradas e não elementos do IN.

Esta nossa missão consistia em fazer passar uma autometralhadora e um "granadeiro" para Enxalé e, como a zona de perigo já estava passada, eles seguiram tendo a restante coluna regressado a Mansoa convencidos de que tudo não tinha passado de susto.

Ao chegar verifiquei que tinha uma roda furada e no outro dia ao desmanchá-la encontrei uma bala de nove milímetros introduzida entre a jante e o pneu, mas não ficou por aqui, porque pela noite comecei a ouvir uns rumores de que faltava um camarada da CCAÇ 413, que decerto teria ficado na operação do dia anterior.

Assim, no dia 22, de manhã lá me vejo de novo a caminho da tabanca de Flora, só que, cerca de um quilómetro antes do local de destino, rebentou uma mina na frente do meu carro, mas de novo sem consequências para nós. Entretanto o rebentamento foi precedido de novo ataque com a mesma intensidade do anterior. Respondemos ao ataque, tendo então um pelotão ido mato fora em busca do camarada perdido, sem resultado algum.

Quando a escaramuça acabou, tanto eu como a restante guarnição do meu carro, estávamos intoxicados pelo fumo e pelos gases da pólvora que se acumularam dentro dele. Eu tive que ser assistido pelo médico, porque ao sair do carro se não me tivessem amparado tinha caído para dentro da bolanha.

O tempo continuou a passar com escoltas quase todos os dias, por vezes mais do que uma.

Entrou o mês de outubro e nem no dia dos meus anos (10) tive descanso, escoltas atrás de escoltas umas de dia outras de noite para colocar Pelotões ou a Companhia a fazer tentativas de emboscada ao IN.

Numa destas operações, no dia 15, eu sofri uma entorse no dedo polegar da mão direita que me deixou um pouco debilitado. Ainda continuei a fazer os serviços que me eram destinados, mas com algum esforço. Um certo dia, devido a algumas dores e a um pouco de ronha, fui queixar-me ao capitão dizendo que não podia continuar a trabalhar e teria que ir a Bissau fazer uma radiografia à mão. Ele ficou um pouco atrapalhado, mas compreendeu o meu esforço e pediu-me para ir ter com o furriel mecânico para ver se ele arranjava quem fosse capaz de me substituir.

Assim fiz e, em conjunto com o furriel, preparamos um condutor que depois de umas breves noções já se desenrascava, era um camarada de Freixo de Espada à Cinta que pertencia à CCAÇ 413.

A sua primeira e única saída, no dia 19, foi para Bissorã, e passado algum tempo da coluna ter partido de Mansoa chegou uma comunicação via rádio de que tinha rebentado uma mina debaixo da autometralhadora e que o condutor tinha ficado ferido.

Resultado, o carro ficou com a frente parcialmente destruída, tendo uma das rodas ido pelo ar e ficado em cima de uma árvore. Apenas o condutor tinha sofrido algumas escoriações no rosto e numa das pernas.

Mais uma vez o meu bom anjo intercedeu por mim e creiam que não ficou por aqui este meu fado.

Como o carro ficou inutilizado, no dia 18 de outubro regressei a Bissau, substituído por outro carro e outra guarnição.

(Continua)

(Seleção, revisáo / fixação de texto, título: LG)

___________________


Nota do editor LG:

(*) Últrimo poste da série > 30 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27269: O início da guerra (Armando Fonseca, ex-sold cond, Pel Rec Fox 42, mai 62 / jul 64) - Parte I: aquele terrível mês de setembro de 1963

quarta-feira, 21 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26825: (Ex)citações (433): Ao pesquisar na Net informações relacionadas com o aquartelamento de Nova Sintra, li as crónicas do Fur Mil Joaquim Caldeira, da CCAÇ 2314, e numa delas com o título “Um tronco sem pernas e sem braços”, verifiquei que, pelas piores razões, eu era um dos protagonistas da história (Aníbal José da Silva, ex-Fur Mil Vagomestre)

1. Em mensagem enviada ao blogue, o nosso camarada Aníbal José Soares da Silva, ex-Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483 / BCAV 2867 (Nova Sintra e Tite, 1969/70), a propósito do seu incidente, contado no post P26820 de ontem, conta-nos como um acaso de pesquisa na net, o levou até um camarada da CCAÇ 2314, o ex-Fur Mil Joaquim Caldeira, que comandava a coluna apeada que saiu de Tite em direcção a Nova Sintra. Neste percurso, o malogrado soldado da CCAV 2483, de seu nome Domingos da Conceição Verdade Ventinhas, natural do Concelho de Moura, pisou uma mina antipessoal reforçada, que além da sua morte, originou ferimentos graves ao Aníbal que seguia muito perto dele.
O título do texto que se segue diz tudo.



1 - EMOÇÕES E AMIZADES FORTES

Ao pesquisar na Net informações relacionadas com o aquartelamento de Nova Sintra, na Guiné, tive acesso ao Blogue do Batalhão de Artilharia 1914, que o meu, Batalhão de Cavalaria 2867, rendeu na região do Quínara em Março de 1969.

Nele li as crónicas do Furriel Joaquim Caldeira, da CCAÇ 2314, e numa delas com o título “Um tronco sem pernas e sem braços”, verifiquei que, pelas piores razões, eu era um dos protagonistas da história (ver recorte de imprensa abaixo). Fiquei com muita curiosidade e vontade de falar com o Caldeira.

Através do mensenger do facebook fiz-lhe chegar, em 30/11/2016, a seguinte mensagem:

Amigo Joaquim Caldeira

Peço desculpa por o tratar assim, mas creio que não me levará a mal este tratamento. Não nos conhecemos pessoalmente, muito embora tivéssemos tido um contacto pessoal, no, para mim, trágico dia 04/08/69.

Na net, ao pesquisar informaçoes e relatos sobre Nova Sintra, encontrei as suas crónicas e numa delas a referência àquele dia trágico com o título “Um tronco sem pernas e sem braços”. Eu era o vagomestre da CCAV 2483 sediada em Nova Sintra, que naquela madrugada chuvosa, fomos comboiados de Tite para Nova Sintra, numa coluna apeada que o meu amigo comandava e que segundo refere na crónica “tinha perdido os dois olhos”.

As lesões que sofri nos olhos e de que tenho sequelas, não foram tão graves quanto à aparência daquele dia. Estive quarenta dias no Hospital Militar de Bissau, trinta dos quais internado e dez na consulta externa. Nos primeiros vinte dias não via rigorosamente nada, para além das dores horríveis nos olhos.

E passo a apresentar-me. O meu nome é Aníbal (...) e quero agradecer-lhe o muito que fez por mim naquele dia.


Dias depois o Caldeira telefonou-me, mas não foi possível estabelecer qualquer conversa, tendo ele enviado a seguinte mensagem:

“Boa tarde, sou o Caldeira. Ainda estou comovido com a notícia de que, o homem que ficou cego naquela manhã, afinal vê. Levei quase 50 anos com estes demónios que me atormentavam desde então. Desculpa não ter conseguido falar. È muita emoção para gerir. Temos muito que falar , muitas memórias para recordar. Afinal, consegues ver e estou muito feliz por isso. Em boa hora me lembrei de escrever aquela aventura. Sem isso nunca teria tido paz e sossego. Também nunca cheguei a saber quem foi que pisou a mina. Assim que puder eu ligo. Ficas a pertencer ao meu grupo de combate.

Um abraço sentido,
J Caldeira”.


********************

Poucos dias depois o Caldeira, já refeito das emoções, voltou a ligar e então lembramos o acontecimento do tal dia, falamos sobre a vida pessoal e profissional de cada uma. Passamos a trocar mensagens nos aniversários, pela Páscoa e pelo Natal, mas faltava um encontro cara a cara para um melhor conhecimento pessoal. Tal tornou-se realidade no dia 22 de Setembro de 2018, data em que a sua companhia (CCAÇ 2314) realizou no Porto mais um almoço/convívio.
Fui convidado e estive presente.

Houve uma missa na Igreja do Cristo-Rei, à Boavista, e foi aí o local de concentração do pessoal. Só conhecia o Caldeira pela fotografia do facebook, bem como ele a mim. Ao chegar ao local identifiquei-o, embora estivesse de costas para mim. Os camaradas que o rodeavam não me conheciam e não sabiam o que ia acontecer. Toquei-lhe no ombro, ele virou-se e disse “tu és o Aníbal”.

Seguiu-se um abraço forte e emocionado por breves momentos e um humedecer dos olhos. Depois fixou-me olhos nos olhos e disse sentir uma enorme alegria pelo facto dos seus receios, de que ficara cego, não serem reais. Novo abraço e a minha apresentação aos seus amigos, dizendo, lembram-se daquela coluna apeada de Tite para Nova Sintra, em que um soldado desta companhia pisou uma mina e morreu e um Furriel tinha ficado sem ver?

Pois é, o ceguinho é este que está aqui à vossa frente e com os olhos bem abertos. Ficaram surpreendidos e satisfeitos e um deles à boa maneira da linguagem da tropa disse: "Oh pá, tiveste uma sorte do c@r@lho, nunca pensamos que voltases a ver, tanta a lama que tinhas na cabeça".

Seguiu-se a missa em homenagem a um camarada que falecera no ano anterior e a deposição de um ramo de flores na sua sepultura no cemitério da Foz do Douro, no Porto, seguida de animado almoço em Leça da Palmeira.

E ficou para sempre, a amizade, forte, sincera e desinteresada, construída na adversidade.

Arcozelo, 17 de Abril de 2025
Aníbal Silva



2 - UM TRONCO SEM PERNAS E SEM BRAÇOS

Lá vou eu, de novo, a caminho de Nova Sintra, desta vez comboiar alguns militares da unidade lá aquartelada. Meus, eram para aí vinte homens. De Nova Sintra apenas quatro. Mas alguém havia de fazer segurança para que eles chegassem bem. Saímos de Tite pelas três horas, numa madrugada chuvosa e escura. Pedi ao Zé Carlos, o enfermeiro, que seguisse ao meu alcance. Sempre poderiamos falar se fosse preciso.

Desta vez não me fazia acompanhar de guia, pois que o caminho era já sobejamente conhecido, embora nunca trilhássemos o mesmo. Lá fomos seguindo perto da picada que já nos era familiar, umas vezes à direita, outras à esquerda. Tínhamos passado Gatangó e informei, via rádio, que tudo seguia normal. A chuva era cada vez mais intensa, mas chuva civil não molha militares. A previsão de chegada era pelas oito horas e tinha combinado que um pelotão de Nova Sintra viria ao meu encontro logo, que houvesse luz para nos podermos juntar sem problemas.

BUMMMMMMMMMM... grande estrondo. Alguém tinha pisado uma mina. Após os procedimentos que se impunham, tentei saber quem tinha sido o infeliz. Mas ninguém sabia quem teria sido e não se via nada que pudesse indicar homem ferido. Tanto pior. Um soldado dos meus, já não me recordo de qual, disse-me que tinha voado por cima de mim e estava bastante ferido num braço, provocado pela queda. Entrguei-o ao Zé Carlos e continuei as buscas ajudado por quem estivesse são. Três homens vieram ter comigo. Um caminhava amparado pelos outros dois e pensei que estivesse encontrado o infeliz. Mas não. Era mais um, Furriel de Nova Sintra, que nunca cheguei a conhecer, que tinha perdido os dois olhos. Já não tinha dúvidas de que ainda havia outro. Este tinha os dois pés. O Zé Carlos não tinha mãos a medir e o Lourenço, o radiotelegrafista, não parava de comunicar com o Furriel Garcia, este em Tite, o que se ia passando.

Após algum tempo de buscas, alguém tropeçou numa coisa que parecia um corpo. Sem luz não era fácil saber do que se tratava, porque até podia ser um animal que tivesse, ao fugir de nós, ter pisado a mina. Fui verificar e após ter revirado o que restava, apurei que era uma cabeça presa a um tronco sem pernas e sem braços. Despi o blusão e embrulhei-o o melhor que pude, pedi a alguém que o carregasse e pedi ao Zé Carlos que o mantivesse vivo. A Força Aérea não evacuava mortos. A única maneira, disponível, era injetar CORAMINA e, sem saber, abreviámos-lhe a morte.

Pobre dele. Já não sentia sequer que vivia. Nunca cheguei a saber quem era. Chegados a Nova Sintra, consegui convencer a enfermeira paraquedista a levá-lo no avião, como se ainda estivesse vivo. Ela não era trouxa, mas compreendeu o meu problema, pois sabia que eu teria de carregá-lo de regresso a Tite, o que só poderia acontecer no dia seguinte durante a noite.

E assim se passou mais um episódio. Júlio Garcia, tu lembras-te muito bem. Comenta este episódio, tal como poderás comentar os restantes. Tu também os viveste. Só o Zé Carlos não pode por ter falecido pouco tempo após termos regressado a Portugal.

Joaquim Caldeira
Furriel Miliciano da CCAÇ 2314

_____________

Notas do editor

Vd. post de 20 de Maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26820: Vivências em Nova Sintra (Aníbal José da Silva, Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483/BCAV 2867) (11): O meu acidente

Último post da série de 4 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26764: (Ex)citações (432): Gosto de arquivar para mais tarde recordar e por vezes surpreender os amigos com peripécias vividas há anos (Aníbal José da Silva, ex-Fur Mil Vagomestre)

terça-feira, 20 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26820: Vivências em Nova Sintra (Aníbal José da Silva, Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483/BCAV 2867) (12): O meu acidente

CCAV 2483 / BCAV 2867 - CAVALEIROS DE NOVA SINTRA
GUINÉ, 1969/70


VIVÊNCIAS EM NOVA SINTRA

POR ANÍBAL JOSÉ DA SILVA


41 - O MEU ACIDENTE

04 de Agosto de 1969

A primeira vez que fui de férias à metrópole foi a 23/06/69, na companhia do inseparável furriel Lima. Iniciei a viagem de regresso à Guiné nos últimos dias de julho.

Chegados a Bissau fomos ao Hospital Militar visitar o nosso capitão, que dias antes tinha pisado uma mina e ficado sem a perna esquerda. Mal sabia eu que passados quatro dias também lá daria entrada.

Na Repartição de Transportes em Bissau, conseguimos transporte fluvial até o Enxudé e daqui até Tite, sede do batalhão, fomos de unimog. De Tite para Nova Sintra só havia duas hipóteses de transporte, aéreo ou a pé. O Lima teve a sorte de ir de helicóptero pois era de Transmissões e a sua presença era necessária, porque estava em curso a formação de uma operação. Em Tite também em trânsito, encontrei seis soldados da companhia que regressavam após consulta externa no Hospital Militar. No regresso a Tite o helicóptero trouxe as G3 e fardamento de nós sete. Na noite de dois de agosto Tite foi flagelado.

Desconhecendo os cantos à casa, não sabia onde me proteger, até que o furriel Rui Ferreira, puxou-me por um braço e corremos até à retrete do quarto dos furriéis. Lá havia alguma proteção com sacos de terra empilhados acima das nossas cabeças. Na tarde de dois de agosto foi-nos transmitido aquilo que já se esperava. Fazer o trajeto a pé integrados num grupo de combate da CCAÇ 2314, que ia fazer reforço a Nova Sintra, devido à operação que estava a ser preparada.

Saímos de Tite por volta das duas horas da madrugada do dia 04/08/69, acompanhados por quinze carregadores que também iam participar na operação. Chovia torrencialmente.

Passado o arame farpado entramos na mata. Estava muito escuro e dada a intensidade da chuva, mal conseguíamos ver quem ia à nossa frente. Atravessamos uma bolanha com água acima da cintura e os pés enterravam-se no lodo. A marcha era lenta. Finalmente amanheceu, a chuva parou e o sol apareceu, começando a secar o camuflado. Os sete da minha companhia seguiam na retaguarda. O soldado Ventinhas, que tinha ido a Bissau despedir-se do irmão, que tinha terminado a sua comissão, seguia à minha frente. O trilho era apertado ladeado por capim muito alto e verdejante. O cenário era bonito, só que daí a momentos BRUUMMM, um grande estrondo.

Eram sete da manhã. O Ventinhas provavelmente saiu fora do trilho, pois este fazia uma espécie de cotovelo e pisou uma mina antipessoal reforçada com trotil, que o desmembrou, provocando-lhe a morte. Com eu seguia atrás dele a dois metros de distancia, com a explosão a minha cabeça ficou cheia de terra, que entrou na boca, tapou o nariz e sobretudo os olhos. Imediatamente deixei de ver e com dores horríveis nos olhos, zumbidos agudos e tosse ao procurar expelir a terra da boca. Levantei-me e sem ver caí no buraco aberto pela explosão. A G3 voou das mãos e deve ter ido parar ao meio do capim. Na frente da coluna, embora ouvindo perfeitamente o rebentamento, não se aperceberam do que tinha acontecido. O furriel que comandava a coluna, veio atrás ver o que se passava e só então se apercebeu que tinha sido uma mina.

Aos berros chamou pelo cabo enfermeiro, que não teve muito a fazer. O Ventinhas estava moribundo e faleceu algum tempo depois. Segundo me disseram mais tarde, foi embrulhado num ponche de borracha e transportado no regaço de alguém para o quartel de Nova Sintra. Eu não tinha ferimentos visíveis e os que tinha ele não podia ajudar. Foi pedida imediata evacuação, só que as comunicações via rádio com Tite não funcionaram. Resolveram fazermos o resto do percurso, mais ou menos três quilómetros, a pé. Eu fui amparado aos ombros do cabo enfermeiro Henriques e do Arouca. Próximo do quartel estava a sair uma coluna que ia para S. João. Passamos por entre eles e segundo me disseram mais tarde, ninguém sabia quem era o ferido, tal a camada de terra agarrada à cabeça. Pelos vistos só o Tomás, miúdo de dez anos, orfão da guerra, disse que era eu atendendo à forma de caminhar. Já no quartel ouvia a pergunta, quem é? Quem é?

A comunicação com Tite continuava a não ser conseguida. O amigo Lima agarrado ao rádio berrava “india cinco sierra, zulu nove mike, chama“. À data eram os códigos dos postos de transmissões de Tite e de Nova Sinta. Durante o tempo da comissão estes códigos mudavam com frequência, mas estes ficarão para sempre gravados na minha memória e não haverá alzeimer que os retire. Enquanto não era possível efetuar a evacuação, despiram-me e puseram-me debaixo do chuveiro. Termia como varas verdes, de frio não seria porque estava calor, era talvez do estado de choque. A minha farda de passeio e sapatos tinham ficado em Tite. Alguém trouxe uma camisa, calças e calçado. Lembro que as calças eram muito apertadas. Entretanto a evacuação foi conseguida. Levaram-me de jeep para a pista, bem como os restos mortais do Ventinhas. Na avioneta veio uma enfermeira paraquedista, que segundo disseram era loira, talvez numa tentativa de me animar e que meses mais tarde conheci, quando voltou a Nova Sintra numa outra evacuação.

Chegado à base de Bissalanca segui de ambulância para o Hospital Militar. Fui colocado não sei onde deitado na maca. Não sabia se estava no chão ou em cima de qualquer coisa. Com a mão direita de fora da maca, tocava no que me rodeava e conclui que estaria no chão pois sentia uma superfície fria e lisa.

As pessoas passavam por mim mas não ligavam nenhuma. As dores nos olhos e o rubor na cara era escaldante. Comecei por insultar quem por mim passava, chamando-lhes filhos desta e daquela, até que alguém, creio que era um sargento pois chamaram-lhe assim, veio ter comigo e perguntou a outros o que é que aquele homem estava ali a fazer. Responderam que estava à espera do oftalmologista. Era uma segunda-feira e o médico devia ter ido passar o fim de semana à ilha dos Bijagós. Mas o sargento ordenou que eu fosse de imediato ao RX para a eventualidade de ter algum estilhaço no corpo, o que felizmente não se veio a confirmar. O médico chegou e mandou-me para a sala de observações, onde permaneci três dias.

Foi iniciado o tratamento prescrito, que consistia na lavagem dos olhos várias vezes ao dia e mesmo durante a noite, mais umas injeções não sei para quê. Ao fim da tarde desse dia, ouvi passos que vinham na minha direção. Abeiraram-se da cama e uma voz perguntou: “Rapaz de onde és e o que te aconteceu?”. Reconheci logo a voz do General Spínola e resumidamente respondi. O acompanhante habitual do general era o Capitão Almeida Bruno, que me perguntou se eu sabia com quem estava a falar. Respondi que era o General Spínola e ele o Capitão Almeida Bruno. No dia seguinte voltaram a visitar a sala de observações, tomando conhecimento dos que chegaram nesse dia. Era do conhecimento geral, que desde sempre, os dois ao fim da tarde iam ao hospital quase todos os dias. De madrugada entrou alguém na sala a gemer e a berrar. Era uma parturiente que horas mais tarde deu à luz uma bebé.

O barbeiro do hospital, de dois em dois dias, ia-me fazer a barba e eventualmente aparar o cabelo. Para ir ao refeitório, nos primeiros dias, era acompanhado pelo cabo enfermeiro, que me ensinou a fazer o percurso sozinho. Saía da porta da enfermaria, dava quatro passos em frente atravessando o corredor e tocava na parede, virava à esquerda e caminhava uns tantos passos ao longo da parede até ao início da escada, depois à direita, descia seis degraus, contornava o patamar e descia mais seis degraus até à entrada do refeitório. Quando entrava diziam, lá vem o ceguinho, quem é que lhe vai dar a sopa na boca e cortar o bife? Obviamente que meter a sopa na boca era exagero, era uma brincadeira, mas o restante sim, precisava de ajuda. No trajeto inverso contava os mesmos degraus e dava os mesmos passos. Na cama não podia estar de barriga para cima, porque a deslocação de ar provocado pelas enormes pás das ventoinhas colocadas no teto, ao bater nas pálpebras agravava as dores.

Outro problema, o correio. Não podia ler nem escrever, mas consegui uma boa solução para o resolver. O furriel Oliveira Miranda do 4.º Pelotão, andava na consulta externa do hospital, em tratamento da fratura de dois dedos sofrida aquando do rebentamento da mina de 24/07/69. Ia ao SPM (Serviço Postal Militar) levantar o seu correio e trazia o meu. Lia as minhas cartas e ajudava-me a responder. Colocava a minha mão direita que agarrava a esferográfica sobre a primeira linha do papel de carta e vagarosamente começava a escrever. Ao chegar ao fim de cada linha ele dizia, devagar pois vais ter de mudar de linha. Os meus pais não sabiam o que tinha acontecido. Escrevi dizendo que estava em Bissau a tratar de assuntos da companhia. Estava esperançado em voltar a ver, a curto prazo, adiando sempre contar a verdade. Só que o meu pai soube de uma forma abrupta, que mais adiante vou referir.

Às terças e quintas feiras recebíamos a visita das senhoras do Movimento Nacional Feminino e da Cruz Vermelha, respetivamente. Conversavam connosco dando-nos apoio moral, mostravam-se disponíveis para resolver alguma dificuldade e tomavam nota do que nos fazia falta, para eventualmente a satisfazer. Na expetativa de a breve prazo voltar a ver, pedi um estojo de barba. Na semana seguinte fui contemplado com o dito estojo, que me foi entregue por uma senhora e pelo conhecido artista Marco Paulo. Nestas entregas normalmente faziam-se acompanhar de figuras públicas, artistas, cantores, futebolistas e outros.

Ao iniciar a quarta semana de internamento, comecei a sentir melhoras, a manter os olhos abertos durante instantes e dores residuais. Numa ida à casa de banho, ao passar junto dos espelhos, parei diante de um e consegui ver a cara, muito desfocada mas vi. Era sinal que estava no bom caminho e chorei de contente. Nessa semana melhorei substancialmente e como tive conhecimento de que as coisas em Nova Sintra, não estavam a correr da melhor maneira, incluindo a gestão do depósito de géneros, de que era o principal responsável e fui pedir alta ao médico. Ela ficou surpreso e disse: “Oh homem você é maluco, quer ir outra vez para aquele buraco?” À minha insistência ele acedeu, prescrevendo as gotas que devia continuar a aplicar e uns óculos escuros. Tive alta e saí do hospital.

Fui ao Serviço de Transportes solicitar transporte aéreo, porque a pé nunca mais, nem que tivesse de alugar uma avioneta civil. Estava ansioso por voltar a Nova Sintra, acrescido do facto de não ter dinheiro para umas cervejas. Tive a sorte de encontrar o furriel Barriga Vieira, que acabara de chegar de férias e que me emprestou algum.

A primeira coisa que fiz ao chegar ao quartel foi consultar as ordens de serviço, para verificar como estava referido o acidente. Estava só no que dizia ao falecido Ventinhas e quanto a mim nada. Exigi ao alferes Carriço, que na altura comandava a companhia e ao primeiro sargento que o meu caso também fosse registado em ordem de serviço, o que foi feito. Esse documento foi anexo ao processo clínico do hospital e depois organizado um processo por ferimentos em combate.

Trabalhei bastante para repor a escrita em dia mas consegui.

Quanto ao modo como o meu pai teve conhecimento do sucedido foi assim. O Quim Marques, meu conterrâneo e amigo, estava destacado em Farim e tinha vindo passar férias a metrópole. Ele não sabia o que me tinha acontecido. No regresso à Guiné, o meu pai e a família dele, foram a Pedras Rubras despedir-se. No aeroporto o Quim, que era do Serviço de Material, encontrou o furriel do mesmo serviço da CCS do meu batalhão, que se conheciam por terem feito juntos a especialidade. O Quim na melhor das intenções, apresentou-o ao meu pai e disse, este meu amigo pertence ao batalhão do Aníbal. Na ânsia de informações a meu respeito, o meu pai perguntou-lhe, então conhece o Aníbal? Sabe como ele está? E não é que o camelo responde dizendo: “O seu filho está cego“!.. Quando ele veio de férias era a informação que havia em Tite. Não sei como o meu pai resistiu ao choque, pois era muito medricas e sofria do coração.

Dias antes tinha ido a minha casa o alferes Martinho, mostrando-se disponível para me levar alguma encomenda, tendo dito que eu estava em Bissau a tratar de assuntos da companhia e que estava bem. Mentiu a meu pedido. O meu pai chegado a casa vindo de Pedras Rubras, voltou ao Porto para ir tirar satisfações com o alferes. Quando chegou junto dele disse, o senhor alferes mentiu-me, pois acabo de saber que o meu filho está cego. O alferes ficou desarmado e disse: “Sim é verdade mas não é bem assim, menti a pedido do Aníbal e por uma boa causa. De facto ele foi vítima de um acidente grave, mas provavelmente na data de hoje já estará de regresso a Nova Sintra“, o que era verdade. Efetivamente já estava no mato, mais ou menos recuperado, mas ainda em tratamento ambulatório.

Então escrevi à família contando a ocorrência.

Na primeira vez que o amigo Oliveira Miranda me foi visitar ao hospital, eu ainda tinha marcas na cara provocadas pela projeção de areias e terra e disse que eu parecia um goraz de pinta.

De realçar, pela negativa, que o 1.º Comandante do Batalhão e os dois 2.ºs nunca me foram visitar ao hospital e o 1.º ia com frequência a Bissau pois tinha lá família.

Hospital Militar 241 - Bissau
Uma das enfermarias
Heliporto onde todos os dias chegavam feridos

(continua)
_____________

Nota do editor

Último post da série de 13 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26796: Vivências em Nova Sintra (Aníbal José da Silva, Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483/BCAV 2867) (11): Uma jóia de criança; A Tombó; Abutres e pelicanos e As larvas de asa branca

quarta-feira, 7 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26775: Os nossos enfermeiros (20): Era preciso ser doido para se ser especialista na ciência & arte de montar e desmontar minas e armadilhas... O caso do nosso Vilas Boas (António Carvalho, ex-fur mil enf, CART 6520/72, Mampatá, 1972/74)




Guiné > Região de Tombali > Mampatã > CART 6520/72 (1972/74) > O Vilas Boas à esquerda, no meio um militar do Pel Caç Nat 68 , à direita eu próprio

Foto (e legenda): © António Carvalho (2025).  Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blog Luís Graça & Camaradas da Guiné]



O António Carvalho, mais conhecido como Carvalho de Mampatá, foi fur mil enf, CART 6250/72, Mampatá, 1972/74); integra a Tabanca Grande desde 13/9/2008; tem cerca de referências no blogue; tem publicado algumas das suas histórias na série "Os nossos enfermeiros" (*); é autor do livro de memórias "Um Caminho de Quatro Passos" (Rio Tinto: Lugar da Palavra Editora, 218 pp., ISBN: 978-989-731-187-1); tem em mãos uym segundo livro, de ficção histórica, centrado sobre a figura de um "brasileiro de torna-viagem"; mora em Medas, Gondomar, de que foi autarca (presidente da junta de freguesai)  há uns largos anos atrás

 

1. Mensagem de  António Carvalho

Data . Quinta, 1/05/2025, 17:35 

Assunto - Vilas Boas

Na sequência do meu encontro de ontem, na Tabanca de Matosinhos, com o Lopes da Régua, o Pinto de Famalicão, o Polónia e o Miranda Lopes do Porto, e o Vilas Boas de Braga, achei de algum interesse mandar-te esta estória que saiu por lá, da boca do próprio (Vilas Boas). Se entenderes podes torná-la pública no nosso blogue.

Carvalho de Mampatá


Os nossos enfermeiros (20) > Era preciso ser doido para se ser especialista na arte de montar e desmontar minas e armadilhas... O caso do nosso Vilas Boas

por António Carvalho


Estávamos na estação seca, no ano quente da guerra, em 1973. Havíamos de apoiar a
engenharia militar nos trabalhos de abertura e pavimentação da estrada entre Aldeia Formosa e Nhacobá, com passagem por Áfia, Mampatá, Ieroiel, Colibuia e Cumbidjã. Connosco, na protecção a esses trabalhos, estiveram ainda a CCaç 18, a Companhia de Cavalaria 8351, grupos do Batalhão 3852 e, mais tarde do 4514. 

Quanto mais a estrada se estendia, maior era a área sob a nossa protecção e sob a pressão do IN. Nas extensas áreas terraplanadas fácil era montar minas. Montavam-nas eles e nós também, segundo as estratégias concebidas pelos quadros especializados. 

Na minha companhia, CArt 6250 (1972/1974), o mais entendido na arte de as instalar e levantar era o Vilas Boas, fur mil Minas e Armadilhas. Levantava muitas, as que ele próprio instalava e as do IN. 

Tornou-se tão célebre nessa arte perigosa de neutralizar e levantar minas que um dia, no Café Bento, numa mesa de pessoal em trânsito por Bissau, se falava num gajo maluco que levantava minas a torto e a direito, lá para os lados de Aldeia Formosa. O que não sabiam os palradores era que o sujeito objecto daquela conversação estava ali mesmo, numa mesa ao lado. Por certo, algo envaidecido por ser o alvo daquele conclave de gente da guerra, levantou-se e puxou dos galões : 

− Pois não sabem que é esse gajo ? Sou eu próprio.

Não crendo nele, por terem preconcebido na sua mente, um militar avalentado, nunca um
finguelas de corpo como o que se arvorava em herói perante eles, riram-se de chacota. O
nosso Vilas Boas, natural e residente em Braga, aborrecido por não o tomarem a sério,
levantou-se e foi-se embora, não se esquecendo de os mandar abaixo de Braga.

Já não via o Vilas Boas há 30 anos, mas tive a sorte de o reencontrar no antigo Milho Rei, em
Matosinhos, na quarta-feira , dia 30, onde convivemos com mais quatro combatentes da nossa companhia. O rapaz contou-nos coisas do arco da velha, entre elas vai esta pérola.

Num dado momento, em 1973, o rapaz, saltava de um lado para o outro, numa área
terraplanada onde ele próprio tinha instalado algumas minas, na zona de Colibuia. Perante a
estupefacção e desespero do nosso Capitão, Luis Marcelino, arredado dez ou vinte metros, ele insistia que as minas que ali colocara, tinham detonado todas, não carecendo por isso de ser removidas.

Querendo comprová-lo arremessou a pica para longe e continuou a calcar a terra, aos saltos. 

O nosso Capitão, ajuizado, resolveu, logo que chegou a Mampatá, marcar-lhe uma consulta de psiquiatria, no Hospital Militar de Bissau. E o rapaz lá foi para Bissau passar uns dias merecidos de férias. 

Será que aquela dança (perigosa), avistada pelo nosso Capitão, arrepiado, não foi mais do que uma artimanha do Vilas Boas para se livrar das agruras do mato ?

Carvalho de Mampatá
_____________

Nota

Último poste da série > 28 de março de 2024 > Guiné 61/74 - P25314: Os Nossos Enfermeiros (19) : Negócios Imobiliários em Mampatá (António de Carvalho, ex-Fur Mil Enf.º)

terça-feira, 6 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26770: Vivências em Nova Sintra (Aníbal José da Silva, Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483/BCAV 2867) (10): Os grandes azares; Insensatez; O ronco; Caso do Furriel Moreira e Chuveiro do abrigo dos Morteiros

CCAV 2483 / BCAV 2867 - CAVALEIROS DE NOVA SINTRA
GUINÉ, 1969/70


VIVÊNCIAS EM NOVA SINTRA

POR ANÍBAL JOSÉ DA SILVA


31 - OS GRANDES AZARES

O primeiro foi no dia 11/07/69 que vitimou o capitão Bernardo, por ter pisado uma mina antipessoal, que lhe amputou uma perna e ferimentos graves na outra. De salientar o extraordinário trabalho feito pelo furriel enfermeiro António Bettencourt, que sem luz e precário material de socorro consegui evitar males maiores.

O segundo foi no dia 24/07/69, numa coluna de reabastecimento a S. João. Houve o rebentamento de uma mina anti pessoal reforçada com TNT, causando a morte dos soldados Adelino Santos e Pedroso de Almeida e ferimentos no furriel Oliveira Miranda. Os falecidos eram cunhados pois tinham casado com duas irmãs.

O terceiro foi no dia 04/08/69, no rebentamento de uma mina antipessoal reforçada com trotil, que provocou a morte ao soldado António Ventinhas e em que eu fiquei ferido, assunto a que faço referência mais adiante.

O quarto foi no dia 17/11/69. Numa coluna a S. João para ir buscar cimento para construir abrigos à superfície, a camioneta mercedes acionou uma mina anticarro, que a projetou para o lado esquerdo da picada, de encontro a uma árvore, a três metros de distância do rebentamento, tendo ficado parcialmente destruída. Muitos dos sacos rebentaram provocando uma enorme nuvem de pó, prejudicando o socorro aos feridos, por falta de visão. Morreu o 1.º Cabo José Lomba e o soldado António Couto e provocou ferimentos graves em seis, um dele o furriel Barriga Vieira que sofreu fratura de costelas e de duas vértebras. Lamentável e incrédula atitude, teve um major do Serviço de Material que de deslocou de Bissau, no dia seguinte ao rebebtamento, propositadamente para vistoriar e fotografar a viatura danificada. Como ela ainda estava coberta de pó de cimento, o major queria dar uma sanção disciplinar ao Furriel Valente, pelo facto da viatura não estar ainda “devidamente lavada”, sem se importar que a maioria da malta nem banho tinha tomado, ocupada na prestação de auxílio e evacuação dos mortos e feridos. Esta atitude confirmava a tese de que o governo preocupava-se mais com uma perda material do que com uma ou mais perdas humanas. Depois, durante as poucas horas de permanência no quartel foi tratado com total indeferência por parte de todos e creio que até foi sozinho e a pé para a pista de aviação.

Em toda a comissão tivemos cinco mortos e onze feridos, alguns com gravidade.
As malditas minas
Mercedes destruída 17/11/69
Trilhos muitas das vezes minados


32 - INSENSATEZ

Foi o que aconteceu quando o Furriel Azevedo, tocando o seu acordeão foi com alguns soldados, até próximo do cruzamento de Nova Sintra, estrada que liga Nova Sintra, Tite, S. João e Jabadá, local muito perigoso dado ser propício a emboscadas. Felizmente nada de mau aconteceu

O Azevedo e o seu acordeão
Cruzamento de Nova Sintra


33 - O RONCO

Ronco é a palavra utilizada para designar um feito relevante.

O pessoal andava cansado e saturado de ir para Bissassema efetuar segurança à margem do rio Geba defronte a Bissau. O PAIGC já tinha o míssil terra- terra e havia a informação de que estaria previsto atacar Bissau do lado de Bissassema. O capitão Loureiro entendia que era preciso fazer algo mais e mais produtivo. Sabendo onde atuar resolveu efetuar uma operação para atacar e anular um posto avançado do IN.

Ao meio da tarde de determinado dia chamou os alferes e furriéis e disse que precisava de trinta voluntários, suficientemente armados para efetuar uma operação relâmpago e de surpresa. Não foi difícil constituir o grupo. Saíram de madrugada e chegaram ao destino ao nascer do dia. O objetivo foi totalmente alcançado, com a destruição do acampamento, provocando baixas ao IN e a captura de armamento e diverso equipamento. Sabem qual foi o prémio que o capitão teve por este ronco? Não vão adivinhar. Foi preso porque não pediu ao comando do Batalhão autorização para efetuar a ação. No dia seguinte, um helicóptero com a Polícia Militar foi prendê-lo e levá-lo para Bissau. Uma vez mais ficamos sem capitão

Armamento e material capturado


34 - CASO DO FURRIEL MOREIRA

O José Moreira era furriel do 4.º Pelotão e um bom operacional. Padecia de úlceras no estômago e comer ração de combate era certo e sabido que ficava incapacitado. O seu pelotão foi destacado para Fulacunda, a fim de participar numa operação a nível de batalhão, com a previsão de durar três dias. Sabendo ele que ao segundo dia teriam de o ir buscar, em virtude de ter de se alimentar com a ração de combate, foi à messe de oficiais falar com o capitão médico, pedindo para que fosse dispensado da operação e fundamentou o seu pedido. O médico praticamente não o ouviu e disse que ele o que tinha era medo de ir para o mato. O Moreira sem dizer nada virou costas e foi ao quarto buscar a G3, colocando-a sobre uns bidões cheios de terra que serviam de proteção. O médico estava à porta da messe, sentado numa cadeira de baloiço, feita das aduelas dos barris e a beber o seu wishy. O Moreira disparou três tiros. Um deles entrou numa cox,a fraturando o fémur e que ainda lhe esfacelou o pénis. Foram os dois para Bissau, o médico para o hospital e o Moreira para a prisão. Mais tarde veio para a prisão militar da Trafaria e o médico para o Hospital Militar Principal, na Estrela em Lisboa.

O capitão Bernardo, ferido em 11/07/69, também andava em tratamentos naquele hospital. Foi visitar os dois com a intenção de promover um encontro entre eles. Esse encontro foi realizado e ao que se sabe ter-se-ão perdoado um ao outro, mas continuou preso. Foi libertado após o 25 de abril sem ter sido julgado.

O rapaz resolveu casar e ao tratar da papelada foi verificado que o seu caso não estava encerrado. Foi novamente preso e a aguardar julgamento. Como era de Guimarães, foi transferido para o Porto, ficando na Casa de Reclusão, à rua de S. Brás no Porto. Na altura eu trabalhava no centro da cidade do Porto e tinha duas horas para almoçar, o que possibilitava lá ir visitá-lo uma vez por semana. Ajudei-o naquilo que era possível. O Luís Martinho ex-alferes da nossa companhia, trabalhava comigo na Tranquilidade na secção de contencioso. Conhecia vários advogados e conseguiu contratar um que o foi defender no julgamento, o que veio a acontecer. Realizado este, voltou a ser libertado e o rapaz provavelmente lá casou



35 - CHUVEIRO DO ABRIGO DE MORTEIROS

Habitualmente tomava banho neste chuveiro. Um dia após o duche, coloquei a toalha à cintura para ir para o meu abrigo vestir-me. Nesse momento começa uma flagelação. Só tive tempo de saltar para dentro do abrigo do morteiro, completamente nu, pois a toalha caíra ao chão. Era época das chuvas e como o abrigo estava enterrado no solo, talvez com um metro de profundidade, a água dava pelos joelhos. De imediato chegou o apontador e outro militar para ripostar ao fogo. A minha missão foi de municiador. Quando uma granada saía, o chamado prato onde assentava a base do tubo do morteiro, levantava e ao baixar salpicava água enlameada, até para fora do abrigo. Escusado será dizer que fiquei da cor do chocolate.
Passada a tempestade fui tomar outro duche.

(continua)
_____________

Nota do editor

Último post da série de 29 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26743: Vivências em Nova Sintra (Aníbal José da Silva, Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483/BCAV 2867) (9): Messe de sargentos; O Correio; A Enfermagem; As Transmissões e A Ferrugem