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quarta-feira, 21 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26825: (Ex)citações (433): Ao pesquisar na Net informações relacionadas com o aquartelamento de Nova Sintra, li as crónicas do Fur Mil Joaquim Caldeira, da CCAÇ 2314, e numa delas com o título “Um tronco sem pernas e sem braços”, verifiquei que, pelas piores razões, eu era um dos protagonistas da história (Aníbal José da Silva, ex-Fur Mil Vagomestre)

1. Em mensagem enviada ao blogue, o nosso camarada Aníbal José Soares da Silva, ex-Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483 / BCAV 2867 (Nova Sintra e Tite, 1969/70), a propósito do seu incidente, contado no post P26820 de ontem, conta-nos como um acaso de pesquisa na net, o levou até um camarada da CCAÇ 2314, o ex-Fur Mil Joaquim Caldeira, que comandava a coluna apeada que saiu de Tite em direcção a Nova Sintra. Neste percurso, o malogrado soldado da CCAV 2483, de seu nome Domingos da Conceição Verdade Ventinhas, natural do Concelho de Moura, pisou uma mina antipessoal reforçada, que além da sua morte, originou ferimentos graves ao Aníbal que seguia muito perto dele.
O título do texto que se segue diz tudo.



1 - EMOÇÕES E AMIZADES FORTES

Ao pesquisar na Net informações relacionadas com o aquartelamento de Nova Sintra, na Guiné, tive acesso ao Blogue do Batalhão de Artilharia 1914, que o meu, Batalhão de Cavalaria 2867, rendeu na região do Quínara em Março de 1969.

Nele li as crónicas do Furriel Joaquim Caldeira, da CCAÇ 2314, e numa delas com o título “Um tronco sem pernas e sem braços”, verifiquei que, pelas piores razões, eu era um dos protagonistas da história (ver recorte de imprensa abaixo). Fiquei com muita curiosidade e vontade de falar com o Caldeira.

Através do mensenger do facebook fiz-lhe chegar, em 30/11/2016, a seguinte mensagem:

Amigo Joaquim Caldeira

Peço desculpa por o tratar assim, mas creio que não me levará a mal este tratamento. Não nos conhecemos pessoalmente, muito embora tivéssemos tido um contacto pessoal, no, para mim, trágico dia 04/08/69.

Na net, ao pesquisar informaçoes e relatos sobre Nova Sintra, encontrei as suas crónicas e numa delas a referência àquele dia trágico com o título “Um tronco sem pernas e sem braços”. Eu era o vagomestre da CCAV 2483 sediada em Nova Sintra, que naquela madrugada chuvosa, fomos comboiados de Tite para Nova Sintra, numa coluna apeada que o meu amigo comandava e que segundo refere na crónica “tinha perdido os dois olhos”.

As lesões que sofri nos olhos e de que tenho sequelas, não foram tão graves quanto à aparência daquele dia. Estive quarenta dias no Hospital Militar de Bissau, trinta dos quais internado e dez na consulta externa. Nos primeiros vinte dias não via rigorosamente nada, para além das dores horríveis nos olhos.

E passo a apresentar-me. O meu nome é Aníbal (...) e quero agradecer-lhe o muito que fez por mim naquele dia.


Dias depois o Caldeira telefonou-me, mas não foi possível estabelecer qualquer conversa, tendo ele enviado a seguinte mensagem:

“Boa tarde, sou o Caldeira. Ainda estou comovido com a notícia de que, o homem que ficou cego naquela manhã, afinal vê. Levei quase 50 anos com estes demónios que me atormentavam desde então. Desculpa não ter conseguido falar. È muita emoção para gerir. Temos muito que falar , muitas memórias para recordar. Afinal, consegues ver e estou muito feliz por isso. Em boa hora me lembrei de escrever aquela aventura. Sem isso nunca teria tido paz e sossego. Também nunca cheguei a saber quem foi que pisou a mina. Assim que puder eu ligo. Ficas a pertencer ao meu grupo de combate.

Um abraço sentido,
J Caldeira”.


********************

Poucos dias depois o Caldeira, já refeito das emoções, voltou a ligar e então lembramos o acontecimento do tal dia, falamos sobre a vida pessoal e profissional de cada uma. Passamos a trocar mensagens nos aniversários, pela Páscoa e pelo Natal, mas faltava um encontro cara a cara para um melhor conhecimento pessoal. Tal tornou-se realidade no dia 22 de Setembro de 2018, data em que a sua companhia (CCAÇ 2314) realizou no Porto mais um almoço/convívio.
Fui convidado e estive presente.

Houve uma missa na Igreja do Cristo-Rei, à Boavista, e foi aí o local de concentração do pessoal. Só conhecia o Caldeira pela fotografia do facebook, bem como ele a mim. Ao chegar ao local identifiquei-o, embora estivesse de costas para mim. Os camaradas que o rodeavam não me conheciam e não sabiam o que ia acontecer. Toquei-lhe no ombro, ele virou-se e disse “tu és o Aníbal”.

Seguiu-se um abraço forte e emocionado por breves momentos e um humedecer dos olhos. Depois fixou-me olhos nos olhos e disse sentir uma enorme alegria pelo facto dos seus receios, de que ficara cego, não serem reais. Novo abraço e a minha apresentação aos seus amigos, dizendo, lembram-se daquela coluna apeada de Tite para Nova Sintra, em que um soldado desta companhia pisou uma mina e morreu e um Furriel tinha ficado sem ver?

Pois é, o ceguinho é este que está aqui à vossa frente e com os olhos bem abertos. Ficaram surpreendidos e satisfeitos e um deles à boa maneira da linguagem da tropa disse: "Oh pá, tiveste uma sorte do c@r@lho, nunca pensamos que voltases a ver, tanta a lama que tinhas na cabeça".

Seguiu-se a missa em homenagem a um camarada que falecera no ano anterior e a deposição de um ramo de flores na sua sepultura no cemitério da Foz do Douro, no Porto, seguida de animado almoço em Leça da Palmeira.

E ficou para sempre, a amizade, forte, sincera e desinteresada, construída na adversidade.

Arcozelo, 17 de Abril de 2025
Aníbal Silva



2 - UM TRONCO SEM PERNAS E SEM BRAÇOS

Lá vou eu, de novo, a caminho de Nova Sintra, desta vez comboiar alguns militares da unidade lá aquartelada. Meus, eram para aí vinte homens. De Nova Sintra apenas quatro. Mas alguém havia de fazer segurança para que eles chegassem bem. Saímos de Tite pelas três horas, numa madrugada chuvosa e escura. Pedi ao Zé Carlos, o enfermeiro, que seguisse ao meu alcance. Sempre poderiamos falar se fosse preciso.

Desta vez não me fazia acompanhar de guia, pois que o caminho era já sobejamente conhecido, embora nunca trilhássemos o mesmo. Lá fomos seguindo perto da picada que já nos era familiar, umas vezes à direita, outras à esquerda. Tínhamos passado Gatangó e informei, via rádio, que tudo seguia normal. A chuva era cada vez mais intensa, mas chuva civil não molha militares. A previsão de chegada era pelas oito horas e tinha combinado que um pelotão de Nova Sintra viria ao meu encontro logo, que houvesse luz para nos podermos juntar sem problemas.

BUMMMMMMMMMM... grande estrondo. Alguém tinha pisado uma mina. Após os procedimentos que se impunham, tentei saber quem tinha sido o infeliz. Mas ninguém sabia quem teria sido e não se via nada que pudesse indicar homem ferido. Tanto pior. Um soldado dos meus, já não me recordo de qual, disse-me que tinha voado por cima de mim e estava bastante ferido num braço, provocado pela queda. Entrguei-o ao Zé Carlos e continuei as buscas ajudado por quem estivesse são. Três homens vieram ter comigo. Um caminhava amparado pelos outros dois e pensei que estivesse encontrado o infeliz. Mas não. Era mais um, Furriel de Nova Sintra, que nunca cheguei a conhecer, que tinha perdido os dois olhos. Já não tinha dúvidas de que ainda havia outro. Este tinha os dois pés. O Zé Carlos não tinha mãos a medir e o Lourenço, o radiotelegrafista, não parava de comunicar com o Furriel Garcia, este em Tite, o que se ia passando.

Após algum tempo de buscas, alguém tropeçou numa coisa que parecia um corpo. Sem luz não era fácil saber do que se tratava, porque até podia ser um animal que tivesse, ao fugir de nós, ter pisado a mina. Fui verificar e após ter revirado o que restava, apurei que era uma cabeça presa a um tronco sem pernas e sem braços. Despi o blusão e embrulhei-o o melhor que pude, pedi a alguém que o carregasse e pedi ao Zé Carlos que o mantivesse vivo. A Força Aérea não evacuava mortos. A única maneira, disponível, era injetar CORAMINA e, sem saber, abreviámos-lhe a morte.

Pobre dele. Já não sentia sequer que vivia. Nunca cheguei a saber quem era. Chegados a Nova Sintra, consegui convencer a enfermeira paraquedista a levá-lo no avião, como se ainda estivesse vivo. Ela não era trouxa, mas compreendeu o meu problema, pois sabia que eu teria de carregá-lo de regresso a Tite, o que só poderia acontecer no dia seguinte durante a noite.

E assim se passou mais um episódio. Júlio Garcia, tu lembras-te muito bem. Comenta este episódio, tal como poderás comentar os restantes. Tu também os viveste. Só o Zé Carlos não pode por ter falecido pouco tempo após termos regressado a Portugal.

Joaquim Caldeira
Furriel Miliciano da CCAÇ 2314

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Notas do editor

Vd. post de 20 de Maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26820: Vivências em Nova Sintra (Aníbal José da Silva, Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483/BCAV 2867) (11): O meu acidente

Último post da série de 4 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26764: (Ex)citações (432): Gosto de arquivar para mais tarde recordar e por vezes surpreender os amigos com peripécias vividas há anos (Aníbal José da Silva, ex-Fur Mil Vagomestre)

terça-feira, 20 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26820: Vivências em Nova Sintra (Aníbal José da Silva, Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483/BCAV 2867) (12): O meu acidente

CCAV 2483 / BCAV 2867 - CAVALEIROS DE NOVA SINTRA
GUINÉ, 1969/70


VIVÊNCIAS EM NOVA SINTRA

POR ANÍBAL JOSÉ DA SILVA


41 - O MEU ACIDENTE

04 de Agosto de 1969

A primeira vez que fui de férias à metrópole foi a 23/06/69, na companhia do inseparável furriel Lima. Iniciei a viagem de regresso à Guiné nos últimos dias de julho.

Chegados a Bissau fomos ao Hospital Militar visitar o nosso capitão, que dias antes tinha pisado uma mina e ficado sem a perna esquerda. Mal sabia eu que passados quatro dias também lá daria entrada.

Na Repartição de Transportes em Bissau, conseguimos transporte fluvial até o Enxudé e daqui até Tite, sede do batalhão, fomos de unimog. De Tite para Nova Sintra só havia duas hipóteses de transporte, aéreo ou a pé. O Lima teve a sorte de ir de helicóptero pois era de Transmissões e a sua presença era necessária, porque estava em curso a formação de uma operação. Em Tite também em trânsito, encontrei seis soldados da companhia que regressavam após consulta externa no Hospital Militar. No regresso a Tite o helicóptero trouxe as G3 e fardamento de nós sete. Na noite de dois de agosto Tite foi flagelado.

Desconhecendo os cantos à casa, não sabia onde me proteger, até que o furriel Rui Ferreira, puxou-me por um braço e corremos até à retrete do quarto dos furriéis. Lá havia alguma proteção com sacos de terra empilhados acima das nossas cabeças. Na tarde de dois de agosto foi-nos transmitido aquilo que já se esperava. Fazer o trajeto a pé integrados num grupo de combate da CCAÇ 2314, que ia fazer reforço a Nova Sintra, devido à operação que estava a ser preparada.

Saímos de Tite por volta das duas horas da madrugada do dia 04/08/69, acompanhados por quinze carregadores que também iam participar na operação. Chovia torrencialmente.

Passado o arame farpado entramos na mata. Estava muito escuro e dada a intensidade da chuva, mal conseguíamos ver quem ia à nossa frente. Atravessamos uma bolanha com água acima da cintura e os pés enterravam-se no lodo. A marcha era lenta. Finalmente amanheceu, a chuva parou e o sol apareceu, começando a secar o camuflado. Os sete da minha companhia seguiam na retaguarda. O soldado Ventinhas, que tinha ido a Bissau despedir-se do irmão, que tinha terminado a sua comissão, seguia à minha frente. O trilho era apertado ladeado por capim muito alto e verdejante. O cenário era bonito, só que daí a momentos BRUUMMM, um grande estrondo.

Eram sete da manhã. O Ventinhas provavelmente saiu fora do trilho, pois este fazia uma espécie de cotovelo e pisou uma mina antipessoal reforçada com trotil, que o desmembrou, provocando-lhe a morte. Com eu seguia atrás dele a dois metros de distancia, com a explosão a minha cabeça ficou cheia de terra, que entrou na boca, tapou o nariz e sobretudo os olhos. Imediatamente deixei de ver e com dores horríveis nos olhos, zumbidos agudos e tosse ao procurar expelir a terra da boca. Levantei-me e sem ver caí no buraco aberto pela explosão. A G3 voou das mãos e deve ter ido parar ao meio do capim. Na frente da coluna, embora ouvindo perfeitamente o rebentamento, não se aperceberam do que tinha acontecido. O furriel que comandava a coluna, veio atrás ver o que se passava e só então se apercebeu que tinha sido uma mina.

Aos berros chamou pelo cabo enfermeiro, que não teve muito a fazer. O Ventinhas estava moribundo e faleceu algum tempo depois. Segundo me disseram mais tarde, foi embrulhado num ponche de borracha e transportado no regaço de alguém para o quartel de Nova Sintra. Eu não tinha ferimentos visíveis e os que tinha ele não podia ajudar. Foi pedida imediata evacuação, só que as comunicações via rádio com Tite não funcionaram. Resolveram fazermos o resto do percurso, mais ou menos três quilómetros, a pé. Eu fui amparado aos ombros do cabo enfermeiro Henriques e do Arouca. Próximo do quartel estava a sair uma coluna que ia para S. João. Passamos por entre eles e segundo me disseram mais tarde, ninguém sabia quem era o ferido, tal a camada de terra agarrada à cabeça. Pelos vistos só o Tomás, miúdo de dez anos, orfão da guerra, disse que era eu atendendo à forma de caminhar. Já no quartel ouvia a pergunta, quem é? Quem é?

A comunicação com Tite continuava a não ser conseguida. O amigo Lima agarrado ao rádio berrava “india cinco sierra, zulu nove mike, chama“. À data eram os códigos dos postos de transmissões de Tite e de Nova Sinta. Durante o tempo da comissão estes códigos mudavam com frequência, mas estes ficarão para sempre gravados na minha memória e não haverá alzeimer que os retire. Enquanto não era possível efetuar a evacuação, despiram-me e puseram-me debaixo do chuveiro. Termia como varas verdes, de frio não seria porque estava calor, era talvez do estado de choque. A minha farda de passeio e sapatos tinham ficado em Tite. Alguém trouxe uma camisa, calças e calçado. Lembro que as calças eram muito apertadas. Entretanto a evacuação foi conseguida. Levaram-me de jeep para a pista, bem como os restos mortais do Ventinhas. Na avioneta veio uma enfermeira paraquedista, que segundo disseram era loira, talvez numa tentativa de me animar e que meses mais tarde conheci, quando voltou a Nova Sintra numa outra evacuação.

Chegado à base de Bissalanca segui de ambulância para o Hospital Militar. Fui colocado não sei onde deitado na maca. Não sabia se estava no chão ou em cima de qualquer coisa. Com a mão direita de fora da maca, tocava no que me rodeava e conclui que estaria no chão pois sentia uma superfície fria e lisa.

As pessoas passavam por mim mas não ligavam nenhuma. As dores nos olhos e o rubor na cara era escaldante. Comecei por insultar quem por mim passava, chamando-lhes filhos desta e daquela, até que alguém, creio que era um sargento pois chamaram-lhe assim, veio ter comigo e perguntou a outros o que é que aquele homem estava ali a fazer. Responderam que estava à espera do oftalmologista. Era uma segunda-feira e o médico devia ter ido passar o fim de semana à ilha dos Bijagós. Mas o sargento ordenou que eu fosse de imediato ao RX para a eventualidade de ter algum estilhaço no corpo, o que felizmente não se veio a confirmar. O médico chegou e mandou-me para a sala de observações, onde permaneci três dias.

Foi iniciado o tratamento prescrito, que consistia na lavagem dos olhos várias vezes ao dia e mesmo durante a noite, mais umas injeções não sei para quê. Ao fim da tarde desse dia, ouvi passos que vinham na minha direção. Abeiraram-se da cama e uma voz perguntou: “Rapaz de onde és e o que te aconteceu?”. Reconheci logo a voz do General Spínola e resumidamente respondi. O acompanhante habitual do general era o Capitão Almeida Bruno, que me perguntou se eu sabia com quem estava a falar. Respondi que era o General Spínola e ele o Capitão Almeida Bruno. No dia seguinte voltaram a visitar a sala de observações, tomando conhecimento dos que chegaram nesse dia. Era do conhecimento geral, que desde sempre, os dois ao fim da tarde iam ao hospital quase todos os dias. De madrugada entrou alguém na sala a gemer e a berrar. Era uma parturiente que horas mais tarde deu à luz uma bebé.

O barbeiro do hospital, de dois em dois dias, ia-me fazer a barba e eventualmente aparar o cabelo. Para ir ao refeitório, nos primeiros dias, era acompanhado pelo cabo enfermeiro, que me ensinou a fazer o percurso sozinho. Saía da porta da enfermaria, dava quatro passos em frente atravessando o corredor e tocava na parede, virava à esquerda e caminhava uns tantos passos ao longo da parede até ao início da escada, depois à direita, descia seis degraus, contornava o patamar e descia mais seis degraus até à entrada do refeitório. Quando entrava diziam, lá vem o ceguinho, quem é que lhe vai dar a sopa na boca e cortar o bife? Obviamente que meter a sopa na boca era exagero, era uma brincadeira, mas o restante sim, precisava de ajuda. No trajeto inverso contava os mesmos degraus e dava os mesmos passos. Na cama não podia estar de barriga para cima, porque a deslocação de ar provocado pelas enormes pás das ventoinhas colocadas no teto, ao bater nas pálpebras agravava as dores.

Outro problema, o correio. Não podia ler nem escrever, mas consegui uma boa solução para o resolver. O furriel Oliveira Miranda do 4.º Pelotão, andava na consulta externa do hospital, em tratamento da fratura de dois dedos sofrida aquando do rebentamento da mina de 24/07/69. Ia ao SPM (Serviço Postal Militar) levantar o seu correio e trazia o meu. Lia as minhas cartas e ajudava-me a responder. Colocava a minha mão direita que agarrava a esferográfica sobre a primeira linha do papel de carta e vagarosamente começava a escrever. Ao chegar ao fim de cada linha ele dizia, devagar pois vais ter de mudar de linha. Os meus pais não sabiam o que tinha acontecido. Escrevi dizendo que estava em Bissau a tratar de assuntos da companhia. Estava esperançado em voltar a ver, a curto prazo, adiando sempre contar a verdade. Só que o meu pai soube de uma forma abrupta, que mais adiante vou referir.

Às terças e quintas feiras recebíamos a visita das senhoras do Movimento Nacional Feminino e da Cruz Vermelha, respetivamente. Conversavam connosco dando-nos apoio moral, mostravam-se disponíveis para resolver alguma dificuldade e tomavam nota do que nos fazia falta, para eventualmente a satisfazer. Na expetativa de a breve prazo voltar a ver, pedi um estojo de barba. Na semana seguinte fui contemplado com o dito estojo, que me foi entregue por uma senhora e pelo conhecido artista Marco Paulo. Nestas entregas normalmente faziam-se acompanhar de figuras públicas, artistas, cantores, futebolistas e outros.

Ao iniciar a quarta semana de internamento, comecei a sentir melhoras, a manter os olhos abertos durante instantes e dores residuais. Numa ida à casa de banho, ao passar junto dos espelhos, parei diante de um e consegui ver a cara, muito desfocada mas vi. Era sinal que estava no bom caminho e chorei de contente. Nessa semana melhorei substancialmente e como tive conhecimento de que as coisas em Nova Sintra, não estavam a correr da melhor maneira, incluindo a gestão do depósito de géneros, de que era o principal responsável e fui pedir alta ao médico. Ela ficou surpreso e disse: “Oh homem você é maluco, quer ir outra vez para aquele buraco?” À minha insistência ele acedeu, prescrevendo as gotas que devia continuar a aplicar e uns óculos escuros. Tive alta e saí do hospital.

Fui ao Serviço de Transportes solicitar transporte aéreo, porque a pé nunca mais, nem que tivesse de alugar uma avioneta civil. Estava ansioso por voltar a Nova Sintra, acrescido do facto de não ter dinheiro para umas cervejas. Tive a sorte de encontrar o furriel Barriga Vieira, que acabara de chegar de férias e que me emprestou algum.

A primeira coisa que fiz ao chegar ao quartel foi consultar as ordens de serviço, para verificar como estava referido o acidente. Estava só no que dizia ao falecido Ventinhas e quanto a mim nada. Exigi ao alferes Carriço, que na altura comandava a companhia e ao primeiro sargento que o meu caso também fosse registado em ordem de serviço, o que foi feito. Esse documento foi anexo ao processo clínico do hospital e depois organizado um processo por ferimentos em combate.

Trabalhei bastante para repor a escrita em dia mas consegui.

Quanto ao modo como o meu pai teve conhecimento do sucedido foi assim. O Quim Marques, meu conterrâneo e amigo, estava destacado em Farim e tinha vindo passar férias a metrópole. Ele não sabia o que me tinha acontecido. No regresso à Guiné, o meu pai e a família dele, foram a Pedras Rubras despedir-se. No aeroporto o Quim, que era do Serviço de Material, encontrou o furriel do mesmo serviço da CCS do meu batalhão, que se conheciam por terem feito juntos a especialidade. O Quim na melhor das intenções, apresentou-o ao meu pai e disse, este meu amigo pertence ao batalhão do Aníbal. Na ânsia de informações a meu respeito, o meu pai perguntou-lhe, então conhece o Aníbal? Sabe como ele está? E não é que o camelo responde dizendo: “O seu filho está cego“!.. Quando ele veio de férias era a informação que havia em Tite. Não sei como o meu pai resistiu ao choque, pois era muito medricas e sofria do coração.

Dias antes tinha ido a minha casa o alferes Martinho, mostrando-se disponível para me levar alguma encomenda, tendo dito que eu estava em Bissau a tratar de assuntos da companhia e que estava bem. Mentiu a meu pedido. O meu pai chegado a casa vindo de Pedras Rubras, voltou ao Porto para ir tirar satisfações com o alferes. Quando chegou junto dele disse, o senhor alferes mentiu-me, pois acabo de saber que o meu filho está cego. O alferes ficou desarmado e disse: “Sim é verdade mas não é bem assim, menti a pedido do Aníbal e por uma boa causa. De facto ele foi vítima de um acidente grave, mas provavelmente na data de hoje já estará de regresso a Nova Sintra“, o que era verdade. Efetivamente já estava no mato, mais ou menos recuperado, mas ainda em tratamento ambulatório.

Então escrevi à família contando a ocorrência.

Na primeira vez que o amigo Oliveira Miranda me foi visitar ao hospital, eu ainda tinha marcas na cara provocadas pela projeção de areias e terra e disse que eu parecia um goraz de pinta.

De realçar, pela negativa, que o 1.º Comandante do Batalhão e os dois 2.ºs nunca me foram visitar ao hospital e o 1.º ia com frequência a Bissau pois tinha lá família.

Hospital Militar 241 - Bissau
Uma das enfermarias
Heliporto onde todos os dias chegavam feridos

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 13 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26796: Vivências em Nova Sintra (Aníbal José da Silva, Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483/BCAV 2867) (11): Uma jóia de criança; A Tombó; Abutres e pelicanos e As larvas de asa branca

quarta-feira, 7 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26775: Os nossos enfermeiros (20): Era preciso ser doido para se ser especialista na ciência & arte de montar e desmontar minas e armadilhas... O caso do nosso Vilas Boas (António Carvalho, ex-fur mil enf, CART 6520/72, Mampatá, 1972/74)




Guiné > Região de Tombali > Mampatã > CART 6520/72 (1972/74) > O Vilas Boas à esquerda, no meio um militar do Pel Caç Nat 68 , à direita eu próprio

Foto (e legenda): © António Carvalho (2025).  Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blog Luís Graça & Camaradas da Guiné]



O António Carvalho, mais conhecido como Carvalho de Mampatá, foi fur mil enf, CART 6250/72, Mampatá, 1972/74); integra a Tabanca Grande desde 13/9/2008; tem cerca de referências no blogue; tem publicado algumas das suas histórias na série "Os nossos enfermeiros" (*); é autor do livro de memórias "Um Caminho de Quatro Passos" (Rio Tinto: Lugar da Palavra Editora, 218 pp., ISBN: 978-989-731-187-1); tem em mãos uym segundo livro, de ficção histórica, centrado sobre a figura de um "brasileiro de torna-viagem"; mora em Medas, Gondomar, de que foi autarca (presidente da junta de freguesai)  há uns largos anos atrás

 

1. Mensagem de  António Carvalho

Data . Quinta, 1/05/2025, 17:35 

Assunto - Vilas Boas

Na sequência do meu encontro de ontem, na Tabanca de Matosinhos, com o Lopes da Régua, o Pinto de Famalicão, o Polónia e o Miranda Lopes do Porto, e o Vilas Boas de Braga, achei de algum interesse mandar-te esta estória que saiu por lá, da boca do próprio (Vilas Boas). Se entenderes podes torná-la pública no nosso blogue.

Carvalho de Mampatá


Os nossos enfermeiros (20) > Era preciso ser doido para se ser especialista na arte de montar e desmontar minas e armadilhas... O caso do nosso Vilas Boas

por António Carvalho


Estávamos na estação seca, no ano quente da guerra, em 1973. Havíamos de apoiar a
engenharia militar nos trabalhos de abertura e pavimentação da estrada entre Aldeia Formosa e Nhacobá, com passagem por Áfia, Mampatá, Ieroiel, Colibuia e Cumbidjã. Connosco, na protecção a esses trabalhos, estiveram ainda a CCaç 18, a Companhia de Cavalaria 8351, grupos do Batalhão 3852 e, mais tarde do 4514. 

Quanto mais a estrada se estendia, maior era a área sob a nossa protecção e sob a pressão do IN. Nas extensas áreas terraplanadas fácil era montar minas. Montavam-nas eles e nós também, segundo as estratégias concebidas pelos quadros especializados. 

Na minha companhia, CArt 6250 (1972/1974), o mais entendido na arte de as instalar e levantar era o Vilas Boas, fur mil Minas e Armadilhas. Levantava muitas, as que ele próprio instalava e as do IN. 

Tornou-se tão célebre nessa arte perigosa de neutralizar e levantar minas que um dia, no Café Bento, numa mesa de pessoal em trânsito por Bissau, se falava num gajo maluco que levantava minas a torto e a direito, lá para os lados de Aldeia Formosa. O que não sabiam os palradores era que o sujeito objecto daquela conversação estava ali mesmo, numa mesa ao lado. Por certo, algo envaidecido por ser o alvo daquele conclave de gente da guerra, levantou-se e puxou dos galões : 

− Pois não sabem que é esse gajo ? Sou eu próprio.

Não crendo nele, por terem preconcebido na sua mente, um militar avalentado, nunca um
finguelas de corpo como o que se arvorava em herói perante eles, riram-se de chacota. O
nosso Vilas Boas, natural e residente em Braga, aborrecido por não o tomarem a sério,
levantou-se e foi-se embora, não se esquecendo de os mandar abaixo de Braga.

Já não via o Vilas Boas há 30 anos, mas tive a sorte de o reencontrar no antigo Milho Rei, em
Matosinhos, na quarta-feira , dia 30, onde convivemos com mais quatro combatentes da nossa companhia. O rapaz contou-nos coisas do arco da velha, entre elas vai esta pérola.

Num dado momento, em 1973, o rapaz, saltava de um lado para o outro, numa área
terraplanada onde ele próprio tinha instalado algumas minas, na zona de Colibuia. Perante a
estupefacção e desespero do nosso Capitão, Luis Marcelino, arredado dez ou vinte metros, ele insistia que as minas que ali colocara, tinham detonado todas, não carecendo por isso de ser removidas.

Querendo comprová-lo arremessou a pica para longe e continuou a calcar a terra, aos saltos. 

O nosso Capitão, ajuizado, resolveu, logo que chegou a Mampatá, marcar-lhe uma consulta de psiquiatria, no Hospital Militar de Bissau. E o rapaz lá foi para Bissau passar uns dias merecidos de férias. 

Será que aquela dança (perigosa), avistada pelo nosso Capitão, arrepiado, não foi mais do que uma artimanha do Vilas Boas para se livrar das agruras do mato ?

Carvalho de Mampatá
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Nota

Último poste da série > 28 de março de 2024 > Guiné 61/74 - P25314: Os Nossos Enfermeiros (19) : Negócios Imobiliários em Mampatá (António de Carvalho, ex-Fur Mil Enf.º)

terça-feira, 6 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26770: Vivências em Nova Sintra (Aníbal José da Silva, Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483/BCAV 2867) (10): Os grandes azares; Insensatez; O ronco; Caso do Furriel Moreira e Chuveiro do abrigo dos Morteiros

CCAV 2483 / BCAV 2867 - CAVALEIROS DE NOVA SINTRA
GUINÉ, 1969/70


VIVÊNCIAS EM NOVA SINTRA

POR ANÍBAL JOSÉ DA SILVA


31 - OS GRANDES AZARES

O primeiro foi no dia 11/07/69 que vitimou o capitão Bernardo, por ter pisado uma mina antipessoal, que lhe amputou uma perna e ferimentos graves na outra. De salientar o extraordinário trabalho feito pelo furriel enfermeiro António Bettencourt, que sem luz e precário material de socorro consegui evitar males maiores.

O segundo foi no dia 24/07/69, numa coluna de reabastecimento a S. João. Houve o rebentamento de uma mina anti pessoal reforçada com TNT, causando a morte dos soldados Adelino Santos e Pedroso de Almeida e ferimentos no furriel Oliveira Miranda. Os falecidos eram cunhados pois tinham casado com duas irmãs.

O terceiro foi no dia 04/08/69, no rebentamento de uma mina antipessoal reforçada com trotil, que provocou a morte ao soldado António Ventinhas e em que eu fiquei ferido, assunto a que faço referência mais adiante.

O quarto foi no dia 17/11/69. Numa coluna a S. João para ir buscar cimento para construir abrigos à superfície, a camioneta mercedes acionou uma mina anticarro, que a projetou para o lado esquerdo da picada, de encontro a uma árvore, a três metros de distância do rebentamento, tendo ficado parcialmente destruída. Muitos dos sacos rebentaram provocando uma enorme nuvem de pó, prejudicando o socorro aos feridos, por falta de visão. Morreu o 1.º Cabo José Lomba e o soldado António Couto e provocou ferimentos graves em seis, um dele o furriel Barriga Vieira que sofreu fratura de costelas e de duas vértebras. Lamentável e incrédula atitude, teve um major do Serviço de Material que de deslocou de Bissau, no dia seguinte ao rebebtamento, propositadamente para vistoriar e fotografar a viatura danificada. Como ela ainda estava coberta de pó de cimento, o major queria dar uma sanção disciplinar ao Furriel Valente, pelo facto da viatura não estar ainda “devidamente lavada”, sem se importar que a maioria da malta nem banho tinha tomado, ocupada na prestação de auxílio e evacuação dos mortos e feridos. Esta atitude confirmava a tese de que o governo preocupava-se mais com uma perda material do que com uma ou mais perdas humanas. Depois, durante as poucas horas de permanência no quartel foi tratado com total indeferência por parte de todos e creio que até foi sozinho e a pé para a pista de aviação.

Em toda a comissão tivemos cinco mortos e onze feridos, alguns com gravidade.
As malditas minas
Mercedes destruída 17/11/69
Trilhos muitas das vezes minados


32 - INSENSATEZ

Foi o que aconteceu quando o Furriel Azevedo, tocando o seu acordeão foi com alguns soldados, até próximo do cruzamento de Nova Sintra, estrada que liga Nova Sintra, Tite, S. João e Jabadá, local muito perigoso dado ser propício a emboscadas. Felizmente nada de mau aconteceu

O Azevedo e o seu acordeão
Cruzamento de Nova Sintra


33 - O RONCO

Ronco é a palavra utilizada para designar um feito relevante.

O pessoal andava cansado e saturado de ir para Bissassema efetuar segurança à margem do rio Geba defronte a Bissau. O PAIGC já tinha o míssil terra- terra e havia a informação de que estaria previsto atacar Bissau do lado de Bissassema. O capitão Loureiro entendia que era preciso fazer algo mais e mais produtivo. Sabendo onde atuar resolveu efetuar uma operação para atacar e anular um posto avançado do IN.

Ao meio da tarde de determinado dia chamou os alferes e furriéis e disse que precisava de trinta voluntários, suficientemente armados para efetuar uma operação relâmpago e de surpresa. Não foi difícil constituir o grupo. Saíram de madrugada e chegaram ao destino ao nascer do dia. O objetivo foi totalmente alcançado, com a destruição do acampamento, provocando baixas ao IN e a captura de armamento e diverso equipamento. Sabem qual foi o prémio que o capitão teve por este ronco? Não vão adivinhar. Foi preso porque não pediu ao comando do Batalhão autorização para efetuar a ação. No dia seguinte, um helicóptero com a Polícia Militar foi prendê-lo e levá-lo para Bissau. Uma vez mais ficamos sem capitão

Armamento e material capturado


34 - CASO DO FURRIEL MOREIRA

O José Moreira era furriel do 4.º Pelotão e um bom operacional. Padecia de úlceras no estômago e comer ração de combate era certo e sabido que ficava incapacitado. O seu pelotão foi destacado para Fulacunda, a fim de participar numa operação a nível de batalhão, com a previsão de durar três dias. Sabendo ele que ao segundo dia teriam de o ir buscar, em virtude de ter de se alimentar com a ração de combate, foi à messe de oficiais falar com o capitão médico, pedindo para que fosse dispensado da operação e fundamentou o seu pedido. O médico praticamente não o ouviu e disse que ele o que tinha era medo de ir para o mato. O Moreira sem dizer nada virou costas e foi ao quarto buscar a G3, colocando-a sobre uns bidões cheios de terra que serviam de proteção. O médico estava à porta da messe, sentado numa cadeira de baloiço, feita das aduelas dos barris e a beber o seu wishy. O Moreira disparou três tiros. Um deles entrou numa cox,a fraturando o fémur e que ainda lhe esfacelou o pénis. Foram os dois para Bissau, o médico para o hospital e o Moreira para a prisão. Mais tarde veio para a prisão militar da Trafaria e o médico para o Hospital Militar Principal, na Estrela em Lisboa.

O capitão Bernardo, ferido em 11/07/69, também andava em tratamentos naquele hospital. Foi visitar os dois com a intenção de promover um encontro entre eles. Esse encontro foi realizado e ao que se sabe ter-se-ão perdoado um ao outro, mas continuou preso. Foi libertado após o 25 de abril sem ter sido julgado.

O rapaz resolveu casar e ao tratar da papelada foi verificado que o seu caso não estava encerrado. Foi novamente preso e a aguardar julgamento. Como era de Guimarães, foi transferido para o Porto, ficando na Casa de Reclusão, à rua de S. Brás no Porto. Na altura eu trabalhava no centro da cidade do Porto e tinha duas horas para almoçar, o que possibilitava lá ir visitá-lo uma vez por semana. Ajudei-o naquilo que era possível. O Luís Martinho ex-alferes da nossa companhia, trabalhava comigo na Tranquilidade na secção de contencioso. Conhecia vários advogados e conseguiu contratar um que o foi defender no julgamento, o que veio a acontecer. Realizado este, voltou a ser libertado e o rapaz provavelmente lá casou



35 - CHUVEIRO DO ABRIGO DE MORTEIROS

Habitualmente tomava banho neste chuveiro. Um dia após o duche, coloquei a toalha à cintura para ir para o meu abrigo vestir-me. Nesse momento começa uma flagelação. Só tive tempo de saltar para dentro do abrigo do morteiro, completamente nu, pois a toalha caíra ao chão. Era época das chuvas e como o abrigo estava enterrado no solo, talvez com um metro de profundidade, a água dava pelos joelhos. De imediato chegou o apontador e outro militar para ripostar ao fogo. A minha missão foi de municiador. Quando uma granada saía, o chamado prato onde assentava a base do tubo do morteiro, levantava e ao baixar salpicava água enlameada, até para fora do abrigo. Escusado será dizer que fiquei da cor do chocolate.
Passada a tempestade fui tomar outro duche.

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 29 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26743: Vivências em Nova Sintra (Aníbal José da Silva, Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483/BCAV 2867) (9): Messe de sargentos; O Correio; A Enfermagem; As Transmissões e A Ferrugem

terça-feira, 15 de abril de 2025

Guiné 61/74 - P26691: História de vida (57): o fur mil vagomestre António Fonseca que acabou por ter uma morte trágica no Algarve, em Albufeira, com a toda a família em 2009 (Luís Dias, ex-alf mil op esp, CCAÇ 3491, Dulombi e Galomaro, 1971/74)



Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Sector L5 (Galomaro) > CCAÇ 3491 (1971/74) > Dulombi > "O ex-furriel mil vagomestre Fonseca é o segundo a contar do lado esquerdo (com o seu aprimorado bigode)". (Da esquerda para a direita, furriéis Almeida, Fonseca, Gonçalves, E.Santo, 1º srgt . Gama, cap Pires, alf Luís Dias e Parente,  furriéis Machado (já falecido), Rodrigues e Reis; em pé, da esquerda para a direita,  fur Baptista, os 2 impedidos da messe,  furriéis Nevado e Carvalho.



Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Sector L5 (Galomaro) > CCAÇ 3491 (1971/74) > Dulombi > 1972 > "À porta da messe dos oficiais e sargentos: da equerda para a direita,  fur Fonseca (o nosso vagomestre), fur Batista (com a cara meio tapada), fur Gonçalves (só se vê a cara), fur Rodrigues (o nosso especialissimo mecânico auto rodas) e em primeiro plano o 1º srgt Raul Alves... Foto gentilmente cedida pelo camarada Manuel Rodrigues, ex-fur mil mecânico auto, que mantinha as nossas viaturas sempre operacionais".


Fotos (e legendas): © Luís Dias (2009). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar de: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



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Crachá da CCAÇ 3491 / BCAÇ 3872 (Dulombi e Galomaro,  dez 71 - mar 74)




Luís Dias
1. Mensagem de Luís Dias, o nosso especialista em armamentp, ex-alf mil op esp, CCAÇ 3491 / BCAÇ 3872 (Dulombi e Galomaro,  dez 71 - mar 74), inspetor da Polícia Judicionária reformado (tem 107 referências no nosso blogue que integra desde 30/5/2008):


Data - domingo, 13/04/2025, 21:52
Assunto -  O nosso vagomestre António Fonseca 
 

Caro Luís Graça:


Na CCAÇ 3491/BCAÇ 3872, que esteve na Guiné entre 24 de dezembro de 1971 e 28 de março de 1974, tínhamos como vagomestre o furriel miliciano António Fonseca. 

A CCAÇ 3491 foi colocada no Dulombi, Leste da Guiné, estando:

  •  isolada vários quilómetros da CCS (Galomaro - a cerca de 20km);
  • a sul,  a CCAÇ 3490 - Saltinho (não havia estrada ou picada para este aquartelamento, ida do Dulombi, pelo que a volta para lá chegar era ir através de Bambadinca, Xitole (150 km);
  • a norte,  ficava a CCAÇ 3489, com picada/estrada indo por Galomaro (40 km);
  • à nossa frente ficava o Rio Corubal (40 km), zona para a qual efetuávamos a maior parte das operações. 

Estávamos isolados. A comida não era e nunca foi grande coisa e estávamos sempre a apertar com o vagomestre (*). Ele raramente  participava nas colunas semanais que fazíamos a Bafatá e Bambadinca para ir buscar abastecimentos. 

Certa vez, um dos bidões de azeite, depois de abertos no quartel, estava adulterado por água (alguém "palmara" azeite e completara o bidão com água). Aliás houve também casos de adulteração de garrafas de uísque. Não se sabendo se a adulteração já vinha da metrópole ou era feita em Bissau. 

O capitão reagiu e passou a obrigar o  furriel a ir em todas as colunas de abastecimento para verificar os carregamentos. 

O furriel para se desenrascar teve de pedir alguns litros de fornecimento de azeite às outras companhias do batalhão, com a promessa de os devolver o mais breve possível. 

Houve um período, em 1972, em que devido às chuvas as colunas não conseguiam passar porque a picada ficou intransitável em vários pontos e também não se conseguiu largada de frescos pela aviação, pelo que houve que recorrer a rações de combate e até pagar a caçadores indígenas a compra de caça variada obtida.

Entretanto, a nossa companhia foi transferida praticamente toda para a sede do Batalhão, em Galomaro, isto em 9 de março de 1973 (quando era eu o comandante da mesma, porque o capitão estava de férias), deixando no Dulombi 2 pelotões de milícias e 13 elementos de apoio (1 auxiliar de enfermagem, pessoal de transmissões, cozinheiros, condutores, mecânicos, apontadores de morteiros 81 mm, professor da escola dos miúdos, etc.), comandados por um dos meus furriéis e tendo como adjunto o furriel de transmissões. 

Esta saída inopinada deveu-se a um forte ataque sofrido pela CCS, no dia 1 de dezembro de 1972 e depois de 2 ataques anteriores rechaçados muito bem no Dulombi e ter surgido o general, Comandante-chefe,  e o nosso comandante de Batalhão,  em visita inopinada ao Dulombi, onde tive de explicar a atividade operacional que realizávamos e os resultados obtidos.

Em Galomaro, a situação era diferente e passámos a depender, em termos de comida, da organização já montada para a CCS, pelo que o nosso furriel vagomestre foi enviado para Bissau, para ser o representante do Batalhão na administração de abastecimentos. 

A companhia a 3 grupos de combate (o outro grupo foi reforçar o batalhão de Piche) ficou a efectuar operações na zona de Galomaro e também na zona do Dulombi (ficámos com mais do dobro do território anterior). 

Depois de ser enviado com o meu grupo para Piche (onde se  comia muito bem - oficiais e sargentos, mas muito mal os soldados, o que me levou a ter problemas com o comandante), ainda estive a comandar o CIM de Bambadinca, depois fui para Nova Lamego, onde estava o meu grupo de combate e depois fui para Pirada, onde estive poucos dias, voltando a Nova Lamego. Nestes três últimos locais, em termos de comida, não posso dizer mal.

Em inícios de janeiro de 1974, recebi ordens de regressar ao Dulombi, onde voltei a reunir-me com a companhia (todos os elementos de apoio, onde estava também o furriel vagomestre, entretanto regressado de Bissau), porque os outros grupos de combate estavam 2 em Galomaro e 1 em Nova Lamego. 

Nesta altura fui incumbido de ser o responsável por realizar a parte operacional com os grupos de combate da nova companhia que vinha nos substituir (a 1ª CCAÇ/BCAÇ 4518).

Nessa preparação havia o cuidado de verificar se na nossa zona da frente (lado de onde normalmente partiam os ataques do PAIGC) havia material que tivesse ficado por explodir, para o neutralizar.

Aqui chegado, devo referir que o amigo António Fonseca tinha muito "respeitinho", direi mesmo receio,   de alinhar na parte operacional, o que se compreende, porque não lhe competia. Deste modo, se houvesse uma coluna de abastecimentos de 10 viaturas ele seguia na décima, se fosse de 3 ou 4 viaturas ele seguia sempre na última, com o justo receio de que podia apanhar com alguma mina A/C.

Tinha detetado,  a cerca de 100 metros do nosso arame farpado, uma granada de morteiro 81 mm GEGP que fora disparada num dos ataques que o quartel sofrera e que não explodira. 

Escavei uma defesa de terra, em relação ao quartel, coloquei um petardo de TNT 100g, com detonador eléctrico, junto à granada, sem lhe tocar e estendi o fio até ao quartel e coloquei-me por trás do edifício do comando e avisei as torres de sentinela, bem como o pessoal da companhia para que se protegesse e acionei o detonador. 

Deu-se a explosão e pronto, estava feito. De repente, reparo que,  em frente à messe de oficiais e sargentos, estava o nosso amigo vagomestre com a mão na cabeça e olhar incrédulo. Então não é que o furriel, em vez de se esconder por trás do edifício, ficou, sem proteção,  a ver a explosão, não tendo ligado às instruções que eu dera ?!...

O furriel António Fonseca, um recatado militar, que punha todos os cuidados quando era obrigado a sair em coluna, ficou de peito feito a ver o que acontecia. 

A sorte protege os audazes e foi o que aconteceu. A cabeça da granada de morteiro veio de lá, e caiu a cerca de 2 metros dos seus pés. Passado quase uma hora ainda estava quente, um pouco mais e tinha atingido o nosso vagomestre, e podia-lhe ter tirado a vida.

Os anos passaram e a companhia voltou a reunir-se em convívios, 25 anos após a nossa chegada à metrópole. Contávamos histórias, episódios acontecidos e lá vinha sempre à memória o que podia ter acontecido ao furriel vagomestre e dizíamos que "sorte tiveste". 

Contudo, uma horrível notícia, referia uns anos depois, que na Praia da D. Luísa, um grupo de pessoas tinha ficado debaixo de uma arriba que desabou. O infortúnio tinha acontecido, o nosso amigo e companheiro furriel António Fonseca, juntamente com a sua esposa e filhas,   eram algumas das vítimas do funesto desastre (**).

Que possam as almas desta família estar no eterno descanso.
Abraço
Luís Dias

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Notas do editor LG:

(*) Último poster da série > 13 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26681: Histórias de vida (56): Berta de Oliveira Bento, a Dona Berta da Pensão Central, Bissau (1924 -2012)

(**) Vd. poste de Blogue > Histórias da Guiné 71-74: A CCAQÇ 3491, Dulombi > Sábado, 29 de agosto de 2009 > Morte trágica de um camarada

(...) Caros Camaradas: cumpre-me a dolorosa missão de vos informar da morte trágica do camarada José Batista Mota Fonseca,  o nosso ex-furriel vagomestre. O Fonseca perdeu a vida juntamente com a sua esposa e as duas filhas, na derrocada que se deu no passado dia 21, na Praia da Maria Luisa, em Albufeira, onde se encontrava a passar férias.

Este triste acontecimento foi-nos participado pelo nosso camarada ex-furrriel Carvalho.
À família enlutada as nossas sentidas condolências.
Descansa em paz,  querido amigo.

Luís Dias (...)
 

segunda-feira, 17 de março de 2025

Guiné 61/74 - P25592: O melhor de ... Mário Gaspar (1943-2025) - Parte II: "Todas as vezes que via o alferes Gouveia, olhava-o bem nos olhos e dizia: – Você matou o Pestana e o Costa!... Mais tarde o ex-cap mil Mansilha informou-me: – O Gouveia suicidou-se na ilha da Madeira. Lançou-se ao mar de um penhasco!... Respondi-lhe: – Sou o único culpado!"





Lisboa > Belém > Forte do Bom Sucesso > Monumento aos Combatentes do Ultramar > Memorial dos Mortos do Ultramar > c. 2018 > O Mário Gaspar aponta os nomes dos seus camaradas António Lopes Costa, soldado, natural  de Vila Real,  e Victor José Correia Pestana, furriel, natural de Santarém, mortos em "acidente com arma de fogo", em 12 de outubro de 1967, perto de Ganturé, junto à fronteira com a República da Guiné-Conacri.


Fotos (e legenda) : © Mário Gaspar (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. O Mário Gaspar (Sintra, 1943 - Lisboa, 2025) teve, depois da "peluda", pelo menos duas grandes paixões (além de Alhandra da sua infância e adolescência): 

(i) a DIALAP- Sociedade Portuguesa de Lapidação de Diamantes, onde foi lapidador, sindicalizado, e delegado sindical (ficou desempregado, em 31/5/1996, por extinção do posto de trabalho); 

e (ii) a Apoiar - Associação de Apoio Aos Ex-Combatentes Vítimas de Stress de Guerra, de que foi sócio fundador e dirigente. Temos que relembrar, proximamente, estas duas facetas do nosso "Zorba".

Tanto quanto a sua saúde o permitiu (era DFA - Deficiente das Forlas Armadas, com 40% de incapacidade, e nos últimos conheceu o calvário dos lares, clínicas e  hospitais, sofrendo de problemas do foro cardíaco), teve uma presença ativas nas redes sociais (em particular no nosso blogue e na sua por vezes atribulada página do Facebook: queixava-se que lhe cortavam inúmeros comentários). 

Tinha um humor instável e truculento; detestava que lhe chamassem Mário Gaspar ou Mário Vitorino. Era o Mário Vitorino Gaspar.  Sofreu muito em vida.

Recorde-se que o Mário Gaspar, ex-fur mil at art, minas e armadilhas, CART 1659 (Gadamael e Ganturé, 1967/68),  era, como gostava de ser conhecido, "Lapidador Principal de Primeira de Diamantes, reformado"; e ainda "cofundador e dirigente da associação Apoiar"...

Tinha, além disso,  o curso de minas e armadilhas. E terá sido em Tancos e depois no teatro de operações no sul da Guiné que ele afinal iria descobrir o seu talento para o trabalho minucioso,paciente e... arriscado de lapidador de diamantes.

É autor do livro de memórias "Corredor da Morte" e da série, publicada no nosso blogue, "Recordações de um Zorba". Republicamos, dele, mais um poste, em que conta como é que a burocracia da tropa o matou (ou deu-o como morto) e relata  a tragédia da morte de três Zorbas, o Pestana, o Costa e o Gouveia. (*).



"Todas as vezes que via o alferes Gouveia, olhava-o bem nos olhos e dizia:  – Você matou o Pestana e o Costa!... Mais tarde o ex-cap mil Mansilha informou-me: – O Gouveia suicidou-se na ilha da Madeira. Lançou-se ao mar de um penhasco!... Respondi-lhe:  – Sou o único culpado!"    

por Mário Vitorino Gaspar (1943-2025)  (**)


Que interesse têm os portugueses de saberem que existiu uma Guerra Colonial? Já basta o “A
aquecimento global”, que nem sequer sabemos ao certo o que é, ainda para cúmulo essa guerra onde os nossos pais ou avôs combateram. Pois vou narrar-lhes aquilo que me sucedeu, talvez em agosto, no período das férias de 1969.

– Foi precisamente no dia 12 de o
utubro de 1967 que morri (*). Não sei como! Se por doença: paludismo; matacanha; outra.

– Mas o que é isso do paludismo ou matacanha? Compreendia antes se fosse da saudade!

– Esquece!

Morri, curiosamente só tive conhecimento de tal, no dia do meu casamento. Inicialmente fiquei preocupado, quando o padre na igreja de São João de Brito disse:

– Estou a casar o morto vivo!

– Se morreste, não compreendi essa, estás aqui, e vivo… Como a sardinha da Costa!

Sorri e tudo se sumiu como espuma!

Pois no dia que me desloco à sacristia para levantar a certidão de c-asamento, recordei aquele episódio rocambolesco na greja. Parei no topo da escadaria e abri a sinistra caderneta m-ilitar que deixara para que fossem feitas as alterações necessárias: data do casamento e mudança de residência.

Primeira surpresa. Leio, esfregando os olhos: 

 "Baixa de Serviço: – por falecimento a 12 de outubro de 1967!" ... Algumas páginas a seguir: "Morto a 12 de outubro".

Tudo sem explicações: quem o fez tinha plena consciência daquelas asneiras, podia no mínimo ressalvar esta «morte», uma mentira cruel, e um padre que tinha a obrigação de fazer menos comentários.

Verdade é que ia caindo na escadaria e rebolado até ao “passeio português”. Tinha consciência que da tropa podia esperar um pouco de tudo, agora matarem um combatente com tinta parker azul permanente…

Tive de saber o que estava por detrás daquela historieta.

Nas férias em agosto dirigi-me ao quartel mobilizador, o Regimento de Artilharia de Costa (RAC), em Oeiras. Encontrava-se na secretaria o major (julgo ser ainda major), o oficial que me colocara de sem erviço no último domingo que tinha a oportunidade de estar com a família antes de embarcar para a Guiné.

Quando lhe dei para as mãos a caderneta logo me arrependi. Leu e disse:

– Que mal faz estar aqui dado como morto? -Ao senhor pouco ou nada importa!

Interrompi-o ao escrever na caderneta com uma bic azul e outra vermelha.

– Mas você não pode, nem deve fazer emendas ou ressalvas. Nesse caso as rasuras faço eu. Não tem o direito.

Tirei-lhe a caderneta das mãos. Tinha sublinhado de um lado e fez uma ressalva.


Fotocópia da folha da caderneta militar, do Mário Gaspar, correspondente à página das "ocorrências extraordinárias", onde é de novo referida a sua morte...




Tratei-o mal, chamando a atenção àquilo que me fizera colocando-me no domingo anterior à partida de serviço:

– Sargento de Dia ao Regimento!

Ninguém aceitou fazer esse serviço por mim por ameaça a todos que de algum modo fizessem esse serviço, inclusive eu pagava bem.

Passado algum tempo desloquei-me ao departamento do Arquivo Geral do Exército que funcionava no antigo quartel na Avenida de Berna e nos dias de hoje emprestado à Universidade NOVA de Lisboa. Segundo consta, o imóvel foi vendido, esse quantitativo serve para o Fundo dos Combatentes.

Interessa neste caso a explicação sobre a minha morte. Logo que disse a razão da minha ida ,
os três indivíduos riram. Entreguei a caderneta e logo vi segurar uma pasta, diferente das outras, estava toda agrafada. Disse:
-
– Vi que tenho toda a razão: morri a 12 de outubro de 1967!

O sargento tirou os agrafos – eram os três sargentos – e referiu logo:

– Olhem, este camarada era nosso vizinho na Guiné!

Disse-me junto ao balcão:

– Aquele estupor esteve comigo em Guileje e o outro do canto era de Mejo.

Curioso, estivemos todos juntos. Respondi:

– Agora estou a reconhecê-los, estivemos mais de uma vez a comer juntos.

Referiram estar tudo na ordem, com o inconveniente de estar registado na caderneta. Não compreendiam a razão do major em Oeiras ter feito esta gatafunhada. Ninguém o autorizou.


O jovem Mário Vitorino Gaspar






Ainda fui a programas de Rádio; dei entrevistas para jornais e fui a dois programas de televisão. Um deles, da Fátima Lopes.

Talvez tivesse algo a ver com esta asneira, terem morrido o meu Amigo, vítima do rebentamento de uma granada armadilhada, o furriel miliciano Vítor José Correia Pestana, de Abitureiras, Santarém.  e o soldado António Lopes da Costa, de Cerva, Vila Real. Ambos mortos por acidente, um acidente, e grande, era estarmos na guerra.

Quando gozei férias fui entregar à família do Vítor pequenos utensílios que lhe pertenciam. Como o Vítor falasse muito no Mário, trataram-me como sendo o filho, primo, etc.. Custou-me imenso. 

Como tivessem morrido num período em que eu não estava, fui verificando não me terem narrado tudo sobre ambas as mortes, por saberem sermos muito amigos. A razão de tal é termos cumprido grande parte do serviço militar juntos.

Um dia insisti com um camarada que a chorar pelo telemóvel me contou. A CART 1659 iniciou uma patrulha até à fronteira com o fim de montarem armadilhas, o que foi feito. Esta patrulha era sempre no mesmo sentido, nunca no contrário nem com regresso pelo mesmo lado.

O alferes Gouveia que comandava, já na fronteira deu ordens para regressarem pelo mesmo trajeto da ida e o Vítor Pestana referiu ter feito o croqui mas no sentido da ida, não possuía pontos de referência no sentido contrário.

 Insistiu o alferes, eram ordens. O Costa disse ao furriel que o acompanhava, os dois avançaram. Pára o Pestana, olhando para os pés. Não podia escapar e lançou-se sobre a granada armadilhada que rebenta. O Costa fica encostado a uma árvore, parecia descansar, nem sequer tinha sinais de ter sido atingido, estava morto. O Pestana tinha braços e pernas seguros do restante corpo por linhas. No peito um buraco. Estava vivo. Ainda chegou vivo a Gadamael Porto e foi visto pelo médico do batalhão que se encontrava perto.

O Pestana pedia, e por favor, aos furriéis milicianos, que lhe dessem um tiro na cabeça. Morreu. Tive só conhecimento da sua morte ao regressar de licença de férias. A história que me contam é sobre o local das mortes e das ordens que recebeu.

Todas as vezes que via o alferes Luís Alberto Alves de Gouveia, olhava-o bem nos olhos e dizia:

– Você matou o Pestana e o Costa!

Ele nunca me respondeu. Anos depois, encontrei-me com capitão miliciano de infantaria Manuel Francisco Fernandes de Mansilha [nosso antigo comandante] que me informou:

– O Gouveia suicidou-se na lha da Madeira. Lançou-se ao mar de um penhasco!

Respondi-lhe:

– Sou o único culpado.


(Revisão / fixação de texto, título: LG)


2. Comentário do editor LG:

Faço questão de repetir aqui o que disse em 2018, em comentário ao poste P19093 (**),  mesmo sabendo que o Mário, lá no além, já não me pode ler nem muito menos responder:

Mário, é bom voltar a "ver-te" aqui na Tabanca Grande. Já tinha estranhado o teu silêncio. Esta "macabra" efeméride, já a tinhas relatado há uns anos atrás... Mas agora percebe-se melhor a origem do erro: em 12 de outubro de 1967, morrem os teus dois camaradas, no acidente com a granada armadilhada. Um deles, o Victor Pestana, é furriel... Houve uma troca de identidades... Lamentável, mas aconteceu, e seguramente que não foi caso virgem...

Quanto ao eventual suicídio do Gouveia, seria "monstruoso" tu assumires a "culpa" desse ato, tantos anos depois... Tira-me isso da cabeça!... Um grande abraço, Luis.

2018 M10 12, Fri 14:36:09 GMT+1
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Ficha de unidade >  Companhia de Artilharia n.º 1659

Identificação: CArt 1659
Unidade Mob: RAC - Oeiras
Cmdt: Cap Mil Art Manuel Francisco Fernandes de Mansilha
Divisa: "Os Homens não Morrem" - "Zorba"
Partida: Embarque em 11jan67; desembarque em 17Jan67 | Regresso: Embarque em 300ut68

Síntese da Actividade Operacional

Em 19jan67, rendendo a CCaç 798, assumiu a responsabilidade do subsector de Gadamael, com um pelotão destacado em Ganturé, e ficando integrada no dispositivo e manobra do BCaç 1861 e depois do BArt 1896 e ainda do BCaç 2834.

Em jul68, face à intensificação da actividade de patrulhamento de itinerários e emboscadas na linha de infiltração inimiga na região de Guileje, o destacamento de Ganturé foi reforçado, temporariamente, por outro pelotão da companhia.

Em 20out68, foi rendida no subsector de Gadamael pela CArt 2410 e recolheu seguidamente a Bissau, a fim de efectuar o embarque de regresso.

Observações - Tem História da Unidade (Caixa nº 81 - 2ª Div/4ª Sec, do AHM).

Fonte: Excerto de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: Fichas das Unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pág. 448

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 15 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26586: O melhor de... Mário Gaspar (1943-2025), ex-fur mil, MA, CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68) - Parte I: "Estou cego, cego..., não vejo, nada, merda!"


(**) Vd. poste d12 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19093: Efemérides (291): Faz hoje 51 anos: 12 de outubro de 1967, o dia em que eu morri....Por outro lado, sou o "único culpado" do suicídio do ex-alf mil, madeirense, Gouveia (Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)

sábado, 15 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26586: O melhor de... Mário Gaspar (1943-2025), ex-fur mil, MA, CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68) - Parte I: "Estou cego, cego..., não vejo, nada, merda!"

1. Mário Vitorino Gaspar (1943-2025) vai hoje descer à terra da verdade, no cemitério de Camarate, Loures (*). 

Em sua homenagem vamos selecionar alguns dos seus melhores postes. Além de ter escrito o livro "O Corredor da mortes" (2014), foi autor, no nosso blogyue, da série "Recordações de um Zorba".

 Foi fur mil, MA, CART 1659, "Zorba (Gadamael e Ganturé, 1967/68) (divisa,: "Os Homens Não Morrem").


Excerto do capítulo 15 do livro de memórias do “O Corredor da Morte” (ed. autor, 2014):


Dia 15 de Janeiro de 1968 (…), tinha sido chamado na véspera ao capitão que considerou a utilidade de irmos buscar o correio a Sangonhá, assim patrulharíamos a zona. (…).

As tabancas alinhavam-se à direita. Aproximavam -se os Soldados Nativos e as Praças “U”.

Dei um nó no lenço que colocara ao pescoço. Um lenço de seda que me dera a minha namorada quando estivera de licença em Portugal. Era também “ronco”, como lhe chamavam os nativos.

O cabelo estava demasiado comprido. Gostava assim. Além disso, a barba. Há quantos dias que não a fazia.

O camuflado, uma miséria, parecia que velhice o engolia aos poucos. Tinha que me confundir com os negros no mato. Assemelhava-me, talvez.

Com o pessoal todo preparado, encaminhámos os nossos passos para a “porta de armas”, se é que poderíamos chamar àquilo tal nome. Seriam duas secções e os Caçadores Nativos e as Praças “U”. O total seria de uns quarenta homens. Não ia qualquer Oficial, seria eu a comandar.

Logo que passada a porta de armas, ficámos automaticamente com as distâncias controladas. Nunca íamos a monte, nem sequer era necessário dizer-se. As picas avançavam ao solo, massacrando-o com ato delicioso. Os arames rompiam pela terra. O trilho estava seco. A pica chocava no terreno, procurando um objecto que impedisse a perfuração. Eram as “carícias” daqueles arames de ferro, instrumentos improvisados. Eram sem dúvida nenhuma os melhores detetores de engenhos explosivos.

À frente ia o guia, logo a seguir, a uma distância de sete ou oito metros, um soldado. Separava-nos por volta dos sete metros da frente para trás. À esquerda e à direita. Todos a picar. Eu seguia o guia, Praça “U”, que picava, com uma certa minúcia. 

Tinha notado, já há algum tempo, que dois soldados que iam à minha frente depois de eu recuar, mais parecia quererem brincadeira. Algo de estranho se passava entre os dois. Saltei para a berma direita, colocando-me entre os dois, fiz sinal para terem cuidado. Mudei-me logo para de trás dos dois soldados e continuei a picar.

No meio daquele silêncio profundo, senti um frio percorrer-me o corpo. O cérebro, a espaços, estagnara oco. Nem o vento, as folhas ou viva força da natureza.

 Vamos a ter cuidado  – disse-lhe em voz baixa – é picar como deve ser.



Capa do livro, publicado em 2014, em edição de autor.
Prefácio do psiquiatra Afonso de Albiquerque.


Olharam-me, quase como envergonhados, sorrindo de seguida. Transportava, como todos, a G3 sobre o ombro esquerdo, enquanto a mão direita segurava a pica. As Praças “U” e os Caçadores Nativos batiam com a pica na terra que parecia ser acarinhada pelo arame. Continuei a avisar os dois soldados que me antecediam. Afastei-me para a berma contrária. O silêncio preocupava-me.

Olhei para trás. Estavam algo eufóricos. Desconhecia o motivo de tal. Seria a correspondência? Não sabia explicar. A verdade é que a alegria é contagiante. Estávamos na guerra, ali não havia espaço nem tempo para a nostalgia daquelas paragens sufocantes e doentias. O meu lenço de seda estava encharcado em suor. Coloquei o nó mais à frente. Notava a anormalidade de comportamento nos dois soldados da minha secção, colocados na berma do lado direito.

A uns vinte metros à frente, do mesmo lado, o guia parou por instantes, enquanto picava. Os dois soldados seguiam-no, ouvindo aquilo que a Praça “U”, transmitira baixo. O soldado que vai à minha frente espeta a pica, com raiva. Um estoiro. Um rebentamento forte. O guia foge para a frente. Apontei-lhe a G3, não sabendo explicar tal ato.

 Alto! – gritei-lhe. – Para aqui já!

O militar negro parou e aproximou-se de nós. Num ápice todos se lançaram para a berma. Era o conhecimento prático, os ensinamentos daquela guerra de guerrilha. O guia estava entre nós.

 
– Mina! – gritou o soldado que vinha na minha retaguarda, respirando fundo.

Eu era o único que continuava de pé. Rebentando mina, armadilho ou fornilho, acontecia haver uma forte probabilidade de emboscada. De pé e o coração rompia do peito martelando-o, mas como sempre, mais lúcido, uma lucidez difícil de explicar. Numa fracção de segundo. Mais calmo que anteriormente. Também não entendo. A serenidade fazia parte integrante do “eu”. Era talvez como se tivesse ingerido um calmante. O cérebro respondia na íntegra. Deixei de tremer. Transformara-me,  como por milagre, num ser diferente.

Ouvi gritos que penetravam não só nos ouvidos, mas também no corpo e no espírito. Excluindo eu e o guia,  todos tinham sido atingidos pela mina. 

A minha experiência como especialista de explosivos, minas e armadilhas dizia-me que era, mais uma vez, uma PMD 6, vulgarmente conhecida por “saboneteira”. Uma antipessoal, que possuía mais o efeito psicológico. O que parecia estar pior era o soldado que ia à minha frente, com o rosto de menino, coberto de sangue. Fechava os olhos. O camuflado estava repleto de estilhaços e também de sangue que haviam atingido também o rosto, na zona da vista. Sofria. Aquele sangue do corpo jovem molhava o trapo.

O outro que o seguia era quase o vivo espelho do primeiro, com mais estilhaços talvez. Continuava a não entender porque teria picado com tanta violência. Quereria matar a mina? 

Gritei para o radiotelegrafista, depois de pedir a um soldado que o chamasse:

– Aqui já! – fiz sinal ao condutor para virar a viatura.

–  Informe Gadamael Porto que temos evacuações para fazer, umas seis ou sete.

Disse ao radiotelegrafista com calma: 

 – Não é grave!

A GMC tinha já dado a volta. Havia que evacuar os feridos. O soldado que tinha sido atingido no rosto, desabafou, com dores:

– Estou cego, cego..., não vejo nada, merda. Estes filhos de uma puta nem nos deixam ir buscar o correio!

Não via as lágrimas, elas agarravam-se ao sangue que continuava a correr do seu rosto.

 
– Calma rapaz, vamos para Gadamael, não fazemos aqui nada, as evacuações não podem ser feitas daqui! – disse eu.

Aproximei-me dos feridos. Um gemia em tom demasiado baixo:

– É pá como vai isso? – perguntei-lhe, sorridente, pretendo incutir-lhe a calma e fé que necessitava, enquanto pedia ao telegrafista que pedisse as evacuações.

–  Sinto picadas nas pernas. São os mosquitos todos da Guiné que me chupam o sangue – respondeu.

O sangue manchava os camuflados. Julgava serem os três únicos que necessitavam de evacuação, muito embora outros tivessem sido atingidos. A mina era de fraca potência. Feita de madeira, com algum arame. Disse para o condutor:

 
– É a abrir sempre até Gadamael, não é necessário picar... – disse-lhe em altos berros.

Logo que arrumados na caixa da GMC, a mesma arrancou, com sete feridos e mais quatros homens. Uma secção de Ganturé, chegava com três viaturas. Subimos todos e com alguma velocidade, chegámos ao cruzamento. A secção de Ganturé saiu e continuámos até Gadamael Porto. Não era necessário picar. Gadamael estava à vista. Já se viam os militares da nossa companhia de calções e tronco nu. A GMC estava junto daquilo a que chamavam pista. Todos aqueles a evacuar estavam deitados em macas.

O furriel enfermeiro e o 1º cabo auxiliar enfermeiro encontravam-se junto dando o apoio, limpando os ferimentos e retirando os camuflados. O primeiro soldado atingido, e o que estava em situação mais grave, estava mais sereno. Aproximei-me, eram cinco corpos.

Um murmúrio aqui, outro acolá, nasciam das gargantas daqueles jovens, mas homens de verdade. Homens com um “H” grande.

Ouvia-se o roncar dos helicópteros. Eram dois.

O meu cabelo comprido foi sacudido pelo ar em movimento. Vento.

O capitão estava junto do primeiro helicóptero. Desceu a enfermeira paraquedista de calça camuflada e camisola de um branco lavado. Sobressaíam uns seios rígidos. A enfermeira era de cor branca. A única branca naquele local afastado da civilização. Uma mulher branca, era impensável. Bem torneada!
Aproximou-se das macas, balanceando as ancas.

 
– Como está? – perguntou ao soldado que tinha sido atingido na vista. – Está bem?

- É muito boa! – respondeu rapidamente o soldado.


Via-se um sorriso naquele homem. Já havia ganho esse estatuto há algum tempo. O capitão, referiu:

– Não ligue, ele não sabe aquilo que diz!

– Já estou habituada! – respondeu a enfermeira com um sorriso.

Os helicópteros levantaram dos torrões da pista e desapareceram no horizonte.

(Revisão / fixação de texto, título: LG)


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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 15 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26585: In Memoriam (539): Mário Vitorino Gaspar (1943-2025), ex-fur mil art, MA, CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68)... O funeral é hoje, às 15h45, no Cemitério de Camarate, Loures