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domingo, 19 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23367: Op Grande Colheia, 21-23jan69: várias toneladas de material de guerra, apreendido ao PAIGC, no corredor de Sambuiá, fronteira com o Senegal (António Baltazar Dias, ex-Alf Mil Art MA, CART 1745, Ingoré e Bigene, 1967/69)


Foto (e legenda): CECA (2015), pág. 367 (com a devida vénia...)



Alf mil art MA António Baltasar Dias
(1967/69)
1. Mensagem de António Baltazar  [Valente Ramos] Dias, ex-Alf Mil Art MA da CART 1745 (Ingoré e Bigene, 1967/69):

Data - sábado, 18/06/2022, 20:27

Assunto - OP Grande Colheita

Caro Luís Graça, Longe vão os tempos de "A verdade é só uma... rádio Moscovo não fala verdade". Isto para vincar que a narrativa que se segue é a minha verdade e que, portanto, após mais de 50 anos, admito que possa ter sido vista por outros olhos de forma diferente. Contudo, é assim que a recordo, eventualmente com as incorreções que o tempo vem tecendo, mas sem outros propósitos que não sejam o de deixar registada "a minha verdade".

Abraço,
António Baltasar Dias
Ex- Alf Mil Art CART 1745


Operação Grande Colheita (*)

por António Baltazar Dias

No obituário do Almirante Nuno Matias, antigo Chefe de Estado-Maior da Armada, consta a sua participação na operação Grande Colheita, que ocorreu na região de Sambuiá, norte da Guiné, em janeiro de 1969.

Porque participei naquela operação e já li várias descrições da mesma que não coincidem com as recordações que guardo na minha memória, decidi registar por escrito os acontecimentos tal como os vivi e que ainda se mantém bem vivos ao fim de mais de 50 anos.

Naquela manhã de 1968 (já não recordo a data) a maioria dos oficiais da CART 1745 estava reunida no gabinete do comandante da companhia para interrogar o gila (contrabandista) saracolé (1) que periodicamente atravessava a fronteira do Senegal para exercer o seu mister junto à população de Bigene. Entre várias notícias afirmava ele, com ar convicto, que o PAIGC tinha os depósitos de armas em Sambuiá, "dentro de água".

Solicitámos ao intérprete que confirmasse a tradução do discurso, já que a informação parecia perfeitamente inverosímil.

Sabíamos que, por uma questão de sobrevivência, a maioria (se não a totalidade) dos contrabandistas eram nossos informadores e também do PAIGC e que, para agradar aos inquiridores e obter algumas benesses, havia que dar algumas novidades, por mais disparatadas que pudessem parecer.

Assim, perante a perspectiva que nos pareceu absurda de que pudesse haver material de guerra dentro de água, trocámos olhares com um sorriso e rapidamente esquecemos o assunto.

Em janeiro de 1969, já com a CART 1745 integrada no COP 3 (Comando Operacional 3, comandado pelo saudoso major Correia de Campos), foi programada uma operação à península de Sambuiá integrando diversas companhias. Recebi a notícia com resignação, já que estávamos no período final da comissão e, com um pouco mais de sorte, chegaria ao fim vivo e com suficiente saúde física e mental para regressar para junto dos meus entes queridos.

Assim, pelas 22h00 reunimos o pessoal operacional junto às casernas e iniciámos a progressão no negrume da noite atravessando a tabanca (2) silenciosa, onde apenas alguns latidos e a persistência de uma mosca que teimosamente me acompanhava nas primeiras centenas de metros, davam sinais de existência de vida.

Progredindo pelo carreiro que nos levava até à bolanha (3) de Sindina, uma zona em que um contacto com o IN nunca ocorreu durante o período da minha comissão.

Percorrida essa área, fizemos a travessia de um pequeno ribeiro equilibrando-nos sobre um tronco de palmeira que por vezes nos proporcionava momentos hilariantes (que eram aumentados pelo nervosismo), sempre que alguém se desequilibrava e mergulhava nas águas do ribeiro. 

Entrámos então na península de Sambuiá para efetuar o assalto a um acampamento do PAIGC que, supostamente, existiria junto à antiga povoação de Talicó. Na zona foram efetivamente detetadas algumas construções que se encontravam abandonadas e nas quais foram recolhidas duas armas tradicionais e um número pouco significativo de munições. Tratava-se, aparentemente, de local onde habitaria população de apoio aos guerrilheiros do PAIGC.

Completada a tarefa que nos fora atribuída, iniciámos a retirada satisfeitos por regressar ao quartel sem baixas e sem grandes percalços.

Porém, logo que alcançámos a cambança e antes de iniciarmos a travessia, recebemos ordens para atravessar toda a península de Sambuiá e socorrer as outras companhias que haviam tido forte contacto com o IN, sofrendo várias baixas e que estavam com falta de munições.

Fizemos das tripas coração e, após algum tempo, reencontrámos as outras companhias que participavam na operação, as quais haviam sofrido várias baixas e se queixavam de necessitar de reabastecimento de munições.

O estado anímico dos elementos das companhias que tinham estado em contacto com o IN era mais que deplorável. A imagem que me ficou gravada na memória foi a de dezenas de homens em desespero, lamentando-se, e clamando pelo regresso ao quartel o mais rapidamente possível. 

O impacto desta atitude derrotista no moral da minha companhia foi significativo. Perante a situação o comandante terrestre da operação contactou o COP3, solicitando autorização para regressar ao quartel utilizando a LDM (4) que se encontrava estacionada no rio Cacheu em apoio às forças em operações. A resposta do comandante do COP3 foi que a retirada seria autorizada mas apenas por via terrestre.

Dado que já tínhamos sido detetados pelo IN, tal recuo significaria sofrer uma ou mais emboscadas até conseguir atingir uma zona segura perto do quartel, com as consequências que facilmente se poderiam adivinhar.

Não obstante as diversas tentativas para que o comandante do COP3 mudasse de opinião, este manteve-se irredutível. Tinhamos, pois, que iniciar a marcha de regresso ao quartel. Porém, havia que decidir qual a companhia e qual o grupo de combate que iria na frente, abrindo o caminho de volta ao aquartelamento. A decisão não foi fácil pois todos sabíamos que a frente da coluna seria a mais exposta ao fogo inimigo e ninguém se apresentava disposto a correr esse risco. A discussão sobre quem iniciaria a marcha prolongou-se por longos minutos sem que ninguém se disponibilizasse para encabeçar a coluna de regresso. 

Foi então que o comandante da minha companhia (um tenente que havia sido castigado e que substituiu o saudoso Capitão Torre do Valle) me deu ordem formal para iniciar o regresso. Obviamente não fiquei nada agradado e perspetivei a ocorrência de acontecimentos funestos no cumprimento da ordem de retirada. Contudo, havia que cumpri-la e, fazendo das tripas coração, dei ordem de marcha aos soldados do meu grupo de combate.

Poucos minutos após termos iniciado a marcha fui interpelado por um soldado (de que não me recordo o nome) que me solicitou autorização para se afastar um pouco e ir encher o cantil a um braço do rio Cacheu que se situava nas imediações. Concedida autorização, retardei um pouco a marcha para dar tempo ao regresso do soldado. Minutos depois apareceu aquele militar, excitadissimo, a gritar "Armas, armas!... Venha ver se há armadilhas".

Mandei parar a coluna e fui verificar o achado. Tratava-se da existência de uns palanques em madeira, onde se encontravam as armas cobertas por oleados, e colocadas de tal modo que ficavam acessíveis a canoas na maré cheia e rodeados de lodo no caso de maré baixa.

Imediatamente instruí o meu radiotelegrafista para contactar o comandante do COP3,  dando conta da situação e solicitando a vinda de helicópteros para transporte do material, face à sua quantidade e volume. Ao mesmo tempo solicitei a autorização para a retirada via fluvial, perante o facto de transportarmos algum material mais leve, autorização que foi concedida.

Aquando da recolha do material pelo helicóptero,  o IN flagelou-nos com morteiros e recordo que um dos projecteis caíu perto do local onde nos encontrávamos a transferir o material para o helicóptero, quase atingindo um soldado que me apareceu coberto de terra e com ar de quem tinha sobrevivido por sorte. Empurrei-o para dentro do helicóptero e seguiu com o material para Bigene.

Permaneci na zona onde, com alguns soldados, continuávamos a descobrir novos locais com os mais diversos tipos de armamento.

Passados alguns minutos constato que todos os restantes elementos da operação tinham iniciado a retirada em direção à LDM, deixando-me com mais cerca de 7 ou 8 militares na zona dos depósitos de material.

Iniciámos a retirada com alguma relutância já que iríamos deixar no local diverso material e, principalmente, minas anti-pessoal, responsáveis por diversas baixas na companhia.

Lancei para o local uma granada incendiária que procurei destruísse as minas e iniciei a retirada com o restante pessoal, seguindo o considerável carreiro que a tropa foi deixando no capim. Passados alguns minutos que pareceram horas, conseguimos apanhar a coluna e onde fui abordado pelos comandantes das companhias que integravam a operação para que, junto do comandante do COP3,  afirmasse que já não existia mais material a recolher e, assim, nos furtarmos a um regresso ao teatro das operações.

Não me pronunciei sobre o assunto mas, ao chegar a Bigene,  e em conversa com o comandante do COP3, dei a entender que provavelmente haveria mais material a recolher mas que os homens, devido ao cansaço, já não estariam em condições de regressar ao local das operações.

Foi então que os fuzileiros foram indigitados para proceder à recolha do armamento restante, apresentando posteriormente a captura do material como tendo sido um "ronco" (5) da sua unidade.

Mais tarde constatou-se que a quantidade de material apreendida constituiu, na época (1969), a maior captura de armas e munições nas três frentes da guerra colonial.

Pelo resultado da operação o Comandante Nuno Matias ofertou-me uma navalha do Comando da Defesa Marítima/ Guiné - Portuguesa, objeto que guardo religiosamente entre as minhas mais apreciadas recordações.

Recordei, então, o gila saracolé que afirmara que as armas estavam dentro de água... E não é que ele tinha razão...?!
________

(1) saracolé - uma das muitas etnias da Guiné
(2) tabanca - povoação indígena
(3) bolanha - zona alagada onde normalmente se cultivava arroz.
(4) LDM - lancha de desembarque média
(5) ronco - feito notável


2. Sobre a Operação "Grande Colheita" - 21 a 23Jan69

Forças do COP 3, CCaç 3, CArt 1745 e 2412, CCav 2443, 10° Pel Art / BAC, DFE 13 e Caç Nat efectuaram emboscadas em Talicó, reconhecimento e batida na península de Sambuiá, 02.

Detectadas 4 arrecadações lN com diverso material de guerra num total de 10 toneladas. As NT foram flageladas pelo lN sem consequências.

Foi capturado:
  • 1 canhão sem recuo B-10, 
  • 1 metralhadora pesada Degtyarev de 12,7 cm,
  • 1 metralhadora ligeira Breda, 
  • 16 pistolas metralhadoras  M-25, 
  • 8 esp Mauser, 
  • 1 aparelho pontaria de morteiro, 
  • 2 cunhetes de gran art 12,7 cm, 
  • 130 granadas mort 60 mm e de LGFog RPG-2, 
  • granadas de mão defensivas, munições de armas ligeiras e documentos.

Fonte: Excertos de: Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo ads Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; Livro II; 1967-1970, 1.ª Edição; Lisboa (2015), pp,. 346/37 (Com a devida vénia...).


3. Ficha de unidade > Companhia de Artilharia n.º 1745

Identificação: CArt 1745
Unidade Mob: GACA 2 - Torres Novas
Cmdt: Cap Mil Art José Maria Torre do Vale Santos | Ten Mil Inf Jorge Vilar Gomes Gilde | Alf Mil Art António Baltazar Valente Ramos Dias

Divisa: -
Partida: Embarque em 20Ju167; desembarque em 25Jul67 | Regresso: Embarque em 07Jun69

Síntese da Actividade Operacional

Em 26Ju167, seguiu para Ingoré, a fim de efectuar o treino operacional até 19A9067, com a CCaç 1590, sob orientação do BCaç 1854 e seguidamente manter-se naquele sector como subunidade de intervenção e reserva do referido batalhão.

Em 30Ag067, rendendo a CCaç 1547, assumiu a responsabilidade do subsector de Bigene, ficando então integrada no dispositivo e manobra do BCaç 1887 e depois do BCaç 1932 e seguidamente do COP 3 e novamente do BCaç 1932. 

Tomou parte em diversas operações e acções sobre as linhas de infiltração do inimigo, com captura de cerca de 6 toneladas de armamento e material e causando-lhe muitas baixas, destacando-se as operações "Despeneirar", "Derrubante II", "Derrubante III" e, particularmente, a operação "Grande Colheita", entre outras.

Em 2Jun69, foi rendida pela CCaç 2527 e recolheu a Bissau para embarque
de regresso.

Observações - Tem História da Unidade (Caixa n." 120 - 2.A Div/4.ª Sec, do AHM).

Fonte: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 7.º Volume - Fichas de unidade: Tomo II - Guiné - (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2002), pág., 454
___________

Notas do editor:

(*) Vd. anterior versão > 29 de setermbro d  2020 > Guiné 61/74 - P21403: Operação "Grande Colheita", Península de Sambuiá, Janeiro de 1969: sem termos disparado um único tiro, descobrimos um dos maiores depósitos de armamento do PAIGC, cerca de 10 toneladas (António Baltazar Dias, ex-Alf Mil Art MA da CART 1745)

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21403: Operação "Grande Colheita", Península de Sambuiá, Janeiro de 1969: sem termos disparado um único tiro, descobrimos um dos maiores depósitos de armamento do PAIGC, cerca de 10 toneladas (António Baltazar Dias, ex-Alf Mil Art MA da CART 1745)

1. Em mensagem do dia 25 de Setembro de 2020, o nosso camarada António Baltazar Dias,(*) (ex-Alf Mil Art MA da CART 1745, Ingoré e Bigene, 1967/69), enviou-nos a narrativa da sua participação na Operação Grande Colheita, levada a efeito em Jabeiro de 1969.


OPERAÇÃO “GRANDE COLHEITA”

No obituário do Almirante Nuno Matias, antigo Chefe de Estado-Maior da Armada, consta a sua participação na operação "Grande Colheita" que ocorreu na região de Sambuiá, norte da Guiné, em janeiro de 1969.

Pelo sucesso da operação, o então 1.º Tenente Matias, à época Comandante do DFE13 estacionado em Ganturé junto ao rio Cacheu, presenteou-me com um canivete do Comando da Defesa Marítima / Guiné Portuguesa, recordação que guardo religiosamente.

Porque participei naquela ação e já li várias descrições da mesma que não coincidem com as recordações que guardo na minha memória, decidi registar por escrito os acontecimentos tal como então os vivi e recordo e que ainda se mantêm presentes ao fim de mais de 50 anos.

********************


Península de Sambuiá - © Luís Graça & Camaradas da Guiné - Infogravura da Carta de Binta 1:50.000


Operação "Grande Colheita" / Jan 1969

CART 1745 + CCAÇ 3 + CART 2412 + CCAV 2443 + DFE13 + CAÇ NAT

Naquela manhã de 1968 (já não recordo a data) a maioria dos oficiais da CART 1745 estava reunida no gabinete do comandante da companhia para interrogar o gila (contrabandista) saracolé (1) que periodicamente atravessava a fronteira com o Senegal para exercer o seu mister junto à população de Bigene. Entre várias notícias afirmava ele, com ar convicto, que o PAIGC tinha os depósitos de armas em Sambuiá, "dentro de água".

Solicitámos ao intérprete que confirmasse a tradução do discurso, já que a informação parecia perfeitamente inverosímil.

Sabíamos que, por uma questão de sobrevivência, a maioria (se não a totalidade) dos contrabandistas eram nossos informadores e também do PAIGC e que, para agradar aos inquiridores e obter algumas benesses, havia que dar algumas novidades, por mais disparatadas que pudessem parecer.

Assim, perante a perspetiva que nos pareceu absurda de que pudesse haver material de guerra dentro de água, trocámos olhares com um sorriso e rapidamente esquecemos o assunto. Em janeiro de 1969, já com a CART 1745 integrada no COP 3 (cujo comando estava atribuído ao saudoso Major Correia de Campos), foi programada uma operação à península de Sambuiá integrando diversas companhias. 

Recebi a notícia com resignação, já que se aproximava o período da rendição da companhia e, com um pouco mais de sorte, pretendia chegar ao final da comissão vivo e com suficiente saúde física e mental para regressar para junto dos meus entes queridos.

Assim, pelas 22h00, reunimos o pessoal operacional junto às casernas e iniciámos a progressão no negrume da noite atravessando a tabanca (2) silenciosa, onde apenas alguns latidos e a persistência de uma mosca que teimosamente me acompanhou nas primeiras centenas de metros, davam sinais de existência de vida.

Progredimos pelo carreiro que nos levou até à bolanha (3) de Sindina, território que considerávamos seguro e onde o IN só se aventurava quando vinha atacar o quartel, atravessámos a cambança (4) para uma zona que o PAIGC e as NT patrulhavam e onde a confrontação era inevitável caso nos cruzássemos no caminho, facto que, felizmente, nunca ocorreu durante a minha comissão.

Percorrida essa área, fizemos a travessia de um pequeno ribeiro equilibrando-nos sobre um tronco de palmeira que por vezes nos proporcionava momentos hilariantes (que eram aumentados pelo nervosismo), sempre que alguém se desequilibrava e mergulhava nas águas pouco profundas do pequeno riacho. Entrámos então na península de Sambuiá onde o confronto com o IN era quase sempre obrigatório. A missão da CART 1745 era localizar e destruir a tabanca de Talicó, facto que ocorreu com a captura de uma arma e algumas poucas munições e sem que tivesse sido detetado qualquer guerrilheiro.

Completada a tarefa que nos fora atribuída, encetámos a retirada satisfeitos por regressar ao quartel sem baixas e sem grandes percalços. Porém, logo que alcançámos a cambança e antes de iniciarmos a travessia, recebemos ordens para atravessar toda a península de Sambuiá e socorrer as outras companhias que participavam na operação e que haviam tido forte contacto com o IN sofrendo várias baixas e que se encontravam com falta de munições.

Fizemos das tripas coração e após algum tempo e dificuldade, reencontrámos os restantes elementos das NT participantes da operação.

Receio que ao descrever o que se nos deparou (ou, pelo menos, o que guardo na memória dos momentos desse reencontro), seja mal interpretado ou quem me acompanhava possa ter outra visão dos acontecimentos. Mas a imagem que permaneceu durante todos estes anos na minha memória foi a de muita gente moralmente destroçada, chorando e lamentando a sua triste sina e manifestando a sua preocupação pelos acontecimentos que pressagiavam, dado que, tendo sido já detetados, anteviam novos e fortes contactos com os guerrilheiros.

É difícil descrever o impacto devastador que aquela visão me provocou e confesso que levei algum tempo até me recompor.

Colocava-se então a questão do regresso ao quartel, uma vez que já não existia o efeito surpresa e poucos ou nenhuns sucessos havia a esperar na continuação da operação.

No regresso pela via terrestre as hipóteses de novos confrontos em situação desvantajosa para as NT era mais que certa, pelo que foi solicitado ao comandante da operação (que acompanhava os acontecimentos por meios aéreos), permissão para o embarque numa LDM (5) que se encontrava a sul, no rio Cacheu, para eventual apoio às forças terrestres. Essa solicitação foi recusada, tendo sido dadas instruções para que o regresso ao quartel se efetuasse atravessando as bolanhas, situação que se antevia altamente problemática pois os guerrilheiros tinham já tido tempo para se posicionar devidamente e tal iria provocar, por certo, mais feridos e mortes nas NT.

Feitas mais insistências junto do comando, perspetivando um futuro que se antevia muito complicado, as recusas foram sucessivas.

Colocava-se, então, a questão de qual o grupo de combate que iria na frente da coluna que seria, por certo, a situação mais perigosa, pois seria o primeiro a receber a maior intensidade de fogo inimigo.
As discussões demoraram algum tempo pois todos tinham a noção de que seriam os elementos da frente da coluna os que ficariam mais expostos e, com a aproximação do final da comissão, não se afigurava agradável a nenhum de nós correr tão grandes riscos.

Por fim, atendendo a que a CART 1745 e a CCAÇ 3 eram as forças mais experientes, e tendo em consideração o desgaste emocional das outras companhias, foi decidido que na frente seguiria o primeiro grupo de combate da CART 1745 e na retaguarda da coluna a CCAÇ 3, ficando as restantes forças mais resguardadas.

Eu fazia parte do 1.º grupo de combate da CART 1745 e, pouco tempo após o início da marcha, um elemento da frente da coluna (que até hoje não consegui identificar) dirigiu-se-me solicitando autorização para encher o cantil junto de um riacho existente na zona, permissão que foi concedida com as necessárias recomendações e alertas.

Alguns minutos passados o referido soldado apareceu eufórico, exclamando: “Armas, muitas armas… venha ver e também certificar-se que o local não está armadilhado”.

Acorri ao lugar onde se encontravam as armas e, para meu espanto, as mesmas localizavam-se em estrados cobertos com panos de lona em zona que em fase de maré cheia apenas as canoas dos guerrilheiros teriam acesso, bastando acostar aos ditos estrados para recolher as armas e transportá-las para a outra margem do rio Cacheu, ou seja, para o interior do território da Guiné.

Identifiquei mais dois ou três locais onde se encontravam mais armas e munições. De imediato solicitei ao operador de rádio que contactasse o comandante da operação e requisitasse meios aéreos (helicópteros) para a recolha do armamento dado que a sua quantidade e tipo não permitia o seu transporte pelo pessoal da operação,

Ao mesmo tempo solicitei que a evacuação das tropas se efetuasse por via fluvial, através da LDM, que se encontrava estacionada no rio Cacheu, dado que era impraticável transportar o material apreendido por via terrestre. Perante esta evidência o pedido foi finalmente aceite.

Com a chegada dos meios aéreos, recuperamos uma significativa quantidade de material que íamos colocando nos helicópteros. Entretanto os guerrilheiros do PAIGC não ficaram parados e de longe efetuavam disparos de morteiro flagelando a zona, felizmente sem consequências, já que, por certo, desconheciam que tínhamos descoberto as arrecadações de material e também porque receavam que alguma granada as destruísse.

Recordo que um soldado do meu grupo de combate (também não consegui identificar quem foi), enquanto efetuava o transporte de algumas armas para um helicóptero apareceu coberto de lama e quase sem fala, por uma granada de morteiro ter caído perto dele. Sem hesitar, coloquei-o dentro do helicóptero, que o transportou para fora do local da operação.

Na pesquisa por mais armamento e munições deparei com um considerável volume de minas antipessoal e, ao mesmo tempo que constatava a impossibilidade de as transportar face ao seu volume, verifiquei que apenas eu e mais cerca de seis ou sete elementos do meu grupo de combate ainda permanecíamos no local, já que todos os restantes haviam iniciado a retirada em direção ao rio Cacheu onde se encontrava estacionada a LDM.

Sabendo que a maioria das baixas da companhia haviam resultado da ação de minas antipessoal, debatia-me com a solução a dar à questão, pois não concebia a hipótese de as deixar no local sujeitas a serem utilizadas e provocarem outras baixas nas nossas tropas. Optei, então, por lançar uma granada incendiária na tentativa (que presumo bem sucedida) de as destruir, após o que retiramos do local e seguimos em passo acelerado para alcançar os restantes elementos das NT que já se encontravam a alguma distância.

Quando por fim os alcançámos, fui instado a não revelar a eventualidade da existência de outras arrecadações de material do IN, pois tal poderia significar o retorno à zona de operações, situação que não agradava a ninguém e, obviamente, a mim também não encantava.

Regressei ao quartel sempre com a questão das minas antipessoais a remoer na minha consciência e, ao relatar a situação ao comandante do COP 3 (o comandante do DFE13 também estava presente), dei a entender que era possível que existissem mais depósitos de material mas que as tropas estavam já num estado de exaustão tal que o seu eventual regresso à zona de Sambuiá seria muito penoso.

Verdadeiro Comandante, o então Major Correia de Campos (comandante do COP3) apercebeu-se prontamente da situação e descansou-me dizendo que já tínhamos feito a nossa parte e que outras tropas iriam para o local procurar por mais armas e munições.

Assim, a operação prosseguiu com outras forças, tendo sido detetados mais depósitos de material na zona.

Recordei-me, então, do gila saracolé que afirmara que as armas se encontravam dentro de água.
E não é que ele tinha razão…?

Esta é a descrição da operação “Grande Colheita” como eu a recordo, em que, sem ter disparado um único tiro, a CART 1745 descobriu um dos maiores depósitos de armamento dos guerrilheiros do PAIGC (cerca de 10 toneladas), constituindo o que à época foi a maior captura de material de guerra nas três frentes de combate em África (Guiné, Angola e Moçambique).

Notas:

(1) Saracolé – Uma das muitas etnias existentes na Guiné Bissau
(2) Tabanca – Povoação indígena
(3) Bolanha – Zona alagadiça por vezes utilizada para o cultivo do arroz
(4) Cambança – Local de travessia de ribeiro, muitas vezes constituída por um tronco de palmeira
(5) LDM – Lancha de Desembarque Média
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Notas do editor

Pesquisando na internete,a Operação Grande Colheita terá ocorrido no dia 23 de Janeiro de 1969

Vd. poste de 24 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21387: Tabanca Grande (503): António Baltazar Valente Ramos Dias, ex-Alf Mil Art MA da CART 1745 (Ingoré e Bigene, 1967/69): senta-se no lugar n.º 819 do nosso poilão

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11879 Os nossos enfermeiros (10): Tenho uma dívida de gratidão para com o fur mil enf Moita, da CART 1745, que tratou do corpo do meu infeliz 1º cabo enf Louro, o João Batista da Silva, o Louro, natural de Louro, Vila Nova de Famalicão, morto em combate em 21/9/1968, em Talicó, Sambuiá (Adriano Moreira)

Guiné > Região do Cacheu > Barro > CART 2412 (1968/70) > Pormenor onumento erigido à memória do 1º cabo enf João Batista da Silva, o Louro,  e que foi destruído a seguir à independência.

Fotos (e legenda): © Afonso M.F. Sousa (2006). Todos os direitos reservados.

1. Comentário do Adriano Moreiro (nome de guerra, Admor), com data de hoje, ao poste P11869

Agora digo eu: Porra Armando, Porra Luís!

Depois do Armando atirar aos olhos de toda a gente o nosso prestimoso e insignificante papel de enfermeiros e até de médicos nestas situações, ainda vem o Luís atirar-me aos olhos com o antigo poste do meu camarada Afonso Sousa e com o monumento lapidar do meu melhor e infeliz cabo enfermeiro,  morto numa emboscada em Talicó, Sambuiá [, vd. carta de Binta],  pelos guerrilheiros do PAIGC,  passado cerca de mês e meio de termos chegado à Guiné.

Sabem o que eu vejo naquele monumento erigido à sua memória? A cabeça do Louro,  só presa ao corpo pela cervical, quase decepada.

Sabem como o nosso malogrado camarada se chamava? JOÃO BAPTISTA da Silva [, de alcunha, Louro]

Só não acabo aqui o meu comentário, porque tenho uma dívida de gratidão muito grande em relação ao corpo de enfermeiros da CART 1745.(**)

O meu camarada Fur Enf Moita viu como eu estava e só me disse estas palavras:
─ Moreira vai para o bar ou para onde quiseres, eu e os meus enfermeiros vamos tratar do Louro e, quando ele estiver pronto,  eu mando-te chamar,  a ti e aos teus enfermeiros

E realmente assim se cumpriu. Foi uma autêntica escritura. Ainda bem que eu não tive de fazer o mesmo por mais ningúem.

Eu depois volto. (***)

Um grande abraço para todos.

Adriano Moreira
ex-fur mil enf, 
CART 2412, 
Bigene, Binta, Guidaje e Barro, 
1968/70
 ________________

Notas do editor:

(*) O João Batista da Silva era natural de Gandra, Louro, Vila Nova de Famalicão; 1º cabo enf, CART 2412, foi morto em combate em 21/9/1968. Está sepultado no cemitério da sau freguesia natal, Louro, concelho de Vila Nova de Famalicão.

(**) Unidades que passaram por Barro (nota de A. Marques Lopes)

(...) Companhia de Artilharia n.° 2412

Divisa: "Sempre Diferentes"

Partida: Embarque em 11 de Agosto de 1968; desembarque em 16 de Agosto de 1968;
Regresso: Embarque em de 4 de Maio de 1970

Síntese da Actividade Operacional

Em 28 de Agosto de 1968, seguiu para Bigene, a fim de efectuar o treino operacional com a CART 1745, sob orientação do COP 3 e seguidamente actuar nesta zona de acção em operações realizadas nas regiões de Talicó [, carta de Binta,]  e Farajanto [, carta de Bigene], entre outras.

Em 14 de Outubro de 1968, rendendo a CART 1648, assumiu a responsabilidade do subsector de Binta, com um pelotão destacado em Guidage, ficando integrada no dispositivo e manobra do COP 3. Em 17 de Outubro de 1968, a sede do subsector passou para Guidaje, ficando então com dois pelotões destacados em Binta, sendo a subunidade especialmente orientada para a contrapenetração no corredor de Sambuiá; a partir de 8 de Fevereiro de 1969, após troca de sectores, passou à dependência do BCAÇ 1932.

Em 9 de Março de 1969, por troca com a CCaç 3, assumiu a responsabilidade do subsector de Barro, ainda com um pelotão em Binta em reforço da guarnição local até finais de Abril, mantendo-se integrada no dispositivo e manobra do BCAÇ 1932, mas agora orientada para a contrapenetração nos corredores de Canja e Sano; em 1 de Agosto de 1969, após novo reajustamento das zonas de acção dos sectores, passou à dependência do BCAV 2876 até 7 de Fevereiro de 1970, data em que o subsector de Barro foi incluído na zona de acção do COP 3.

Após deslocamento de dois pelotões para Bissau, em 17 de Abril de 1970, a fim de substituírem, transitoriamente, a CART 2411 no dispositivo de segurança e protecção das instalações e das populações da área, foi rendida no subsector de Barro pela CCAÇ 2725 e recolheu seguidamente a Bissau, a fim de efectuar o embarque de regresso. (...)

(***) Último poste da série > 24 de julho de 2013 > Guiné 63/74 - P11866: Os nossos enfermeiros (9): No caso dos furriéis enfermeiros iam para a Escola do Serviço de Saúde Militar, em Campo de Ourique, tirar o seu curso de enfermagem do qual faziam parte as seguintes disciplinas: Primeiros Socorros, Enfermagem, Profilaxia Tropical, Higiene, Guerra Química e Táctica Sanitária (Adriano Moreira, ex-fur mil enf , CART 2412, Bigene, Binta, Guidaje e Barro, 1968/70)