OPERAÇÃO “GRANDE COLHEITA”
No obituário do Almirante Nuno Matias, antigo Chefe de Estado-Maior da Armada, consta a sua participação na operação "Grande Colheita" que ocorreu na região de Sambuiá, norte da Guiné, em janeiro de 1969.
Pelo sucesso da operação, o então 1.º Tenente Matias, à época Comandante do DFE13 estacionado em Ganturé junto ao rio Cacheu, presenteou-me com um canivete do Comando da Defesa Marítima / Guiné Portuguesa, recordação que guardo religiosamente.
Porque participei naquela ação e já li várias descrições da mesma que não coincidem com as recordações que guardo na minha memória, decidi registar por escrito os acontecimentos tal como então os vivi e recordo e que ainda se mantêm presentes ao fim de mais de 50 anos.
********************
Península de Sambuiá - © Luís Graça & Camaradas da Guiné - Infogravura da Carta de Binta 1:50.000
Operação "Grande Colheita" / Jan 1969
CART 1745 + CCAÇ 3 + CART 2412 + CCAV 2443 + DFE13 + CAÇ NAT
Naquela manhã de 1968 (já não recordo a data) a maioria dos oficiais da CART 1745 estava reunida no gabinete do comandante da companhia para interrogar o gila (contrabandista) saracolé (1) que periodicamente atravessava a fronteira com o Senegal para exercer o seu mister junto à população de Bigene. Entre várias notícias afirmava ele, com ar convicto, que o PAIGC tinha os depósitos de armas em Sambuiá, "dentro de água".
Solicitámos ao intérprete que confirmasse a tradução do discurso, já que a informação parecia perfeitamente inverosímil.
Sabíamos que, por uma questão de sobrevivência, a maioria (se não a totalidade) dos contrabandistas eram nossos informadores e também do PAIGC e que, para agradar aos inquiridores e obter algumas benesses, havia que dar algumas novidades, por mais disparatadas que pudessem parecer.
Assim, perante a perspetiva que nos pareceu absurda de que pudesse haver material de guerra dentro de água, trocámos olhares com um sorriso e rapidamente esquecemos o assunto. Em janeiro de 1969, já com a CART 1745 integrada no COP 3 (cujo comando estava atribuído ao saudoso Major Correia de Campos), foi programada uma operação à península de Sambuiá integrando diversas companhias.
Recebi a notícia com resignação, já que se aproximava o período da rendição da companhia e, com um pouco mais de sorte, pretendia chegar ao final da comissão vivo e com suficiente saúde física e mental para regressar para junto dos meus entes queridos.
Assim, pelas 22h00, reunimos o pessoal operacional junto às casernas e iniciámos a progressão no negrume da noite atravessando a tabanca (2) silenciosa, onde apenas alguns latidos e a persistência de uma mosca que teimosamente me acompanhou nas primeiras centenas de metros, davam sinais de existência de vida.
Progredimos pelo carreiro que nos levou até à bolanha (3) de Sindina, território que considerávamos seguro e onde o IN só se aventurava quando vinha atacar o quartel, atravessámos a cambança (4) para uma zona que o PAIGC e as NT patrulhavam e onde a confrontação era inevitável caso nos cruzássemos no caminho, facto que, felizmente, nunca ocorreu durante a minha comissão.
Percorrida essa área, fizemos a travessia de um pequeno ribeiro equilibrando-nos sobre um tronco de palmeira que por vezes nos proporcionava momentos hilariantes (que eram aumentados pelo nervosismo), sempre que alguém se desequilibrava e mergulhava nas águas pouco profundas do pequeno riacho. Entrámos então na península de Sambuiá onde o confronto com o IN era quase sempre obrigatório. A missão da CART 1745 era localizar e destruir a tabanca de Talicó, facto que ocorreu com a captura de uma arma e algumas poucas munições e sem que tivesse sido detetado qualquer guerrilheiro.
Completada a tarefa que nos fora atribuída, encetámos a retirada satisfeitos por regressar ao quartel sem baixas e sem grandes percalços. Porém, logo que alcançámos a cambança e antes de iniciarmos a travessia, recebemos ordens para atravessar toda a península de Sambuiá e socorrer as outras companhias que participavam na operação e que haviam tido forte contacto com o IN sofrendo várias baixas e que se encontravam com falta de munições.
Fizemos das tripas coração e após algum tempo e dificuldade, reencontrámos os restantes elementos das NT participantes da operação.
Receio que ao descrever o que se nos deparou (ou, pelo menos, o que guardo na memória dos momentos desse reencontro), seja mal interpretado ou quem me acompanhava possa ter outra visão dos acontecimentos. Mas a imagem que permaneceu durante todos estes anos na minha memória foi a de muita gente moralmente destroçada, chorando e lamentando a sua triste sina e manifestando a sua preocupação pelos acontecimentos que pressagiavam, dado que, tendo sido já detetados, anteviam novos e fortes contactos com os guerrilheiros.
É difícil descrever o impacto devastador que aquela visão me provocou e confesso que levei algum tempo até me recompor.
Colocava-se então a questão do regresso ao quartel, uma vez que já não existia o efeito surpresa e poucos ou nenhuns sucessos havia a esperar na continuação da operação.
No regresso pela via terrestre as hipóteses de novos confrontos em situação desvantajosa para as NT era mais que certa, pelo que foi solicitado ao comandante da operação (que acompanhava os acontecimentos por meios aéreos), permissão para o embarque numa LDM (5) que se encontrava a sul, no rio Cacheu, para eventual apoio às forças terrestres. Essa solicitação foi recusada, tendo sido dadas instruções para que o regresso ao quartel se efetuasse atravessando as bolanhas, situação que se antevia altamente problemática pois os guerrilheiros tinham já tido tempo para se posicionar devidamente e tal iria provocar, por certo, mais feridos e mortes nas NT.
Feitas mais insistências junto do comando, perspetivando um futuro que se antevia muito complicado, as recusas foram sucessivas.
Colocava-se, então, a questão de qual o grupo de combate que iria na frente da coluna que seria, por certo, a situação mais perigosa, pois seria o primeiro a receber a maior intensidade de fogo inimigo.
As discussões demoraram algum tempo pois todos tinham a noção de que seriam os elementos da frente da coluna os que ficariam mais expostos e, com a aproximação do final da comissão, não se afigurava agradável a nenhum de nós correr tão grandes riscos.
Por fim, atendendo a que a CART 1745 e a CCAÇ 3 eram as forças mais experientes, e tendo em consideração o desgaste emocional das outras companhias, foi decidido que na frente seguiria o primeiro grupo de combate da CART 1745 e na retaguarda da coluna a CCAÇ 3, ficando as restantes forças mais resguardadas.
Eu fazia parte do 1.º grupo de combate da CART 1745 e, pouco tempo após o início da marcha, um elemento da frente da coluna (que até hoje não consegui identificar) dirigiu-se-me solicitando autorização para encher o cantil junto de um riacho existente na zona, permissão que foi concedida com as necessárias recomendações e alertas.
Alguns minutos passados o referido soldado apareceu eufórico, exclamando: “Armas, muitas armas… venha ver e também certificar-se que o local não está armadilhado”.
Acorri ao lugar onde se encontravam as armas e, para meu espanto, as mesmas localizavam-se em estrados cobertos com panos de lona em zona que em fase de maré cheia apenas as canoas dos guerrilheiros teriam acesso, bastando acostar aos ditos estrados para recolher as armas e transportá-las para a outra margem do rio Cacheu, ou seja, para o interior do território da Guiné.
Identifiquei mais dois ou três locais onde se encontravam mais armas e munições. De imediato solicitei ao operador de rádio que contactasse o comandante da operação e requisitasse meios aéreos (helicópteros) para a recolha do armamento dado que a sua quantidade e tipo não permitia o seu transporte pelo pessoal da operação,
Ao mesmo tempo solicitei que a evacuação das tropas se efetuasse por via fluvial, através da LDM, que se encontrava estacionada no rio Cacheu, dado que era impraticável transportar o material apreendido por via terrestre. Perante esta evidência o pedido foi finalmente aceite.
Com a chegada dos meios aéreos, recuperamos uma significativa quantidade de material que íamos colocando nos helicópteros. Entretanto os guerrilheiros do PAIGC não ficaram parados e de longe efetuavam disparos de morteiro flagelando a zona, felizmente sem consequências, já que, por certo, desconheciam que tínhamos descoberto as arrecadações de material e também porque receavam que alguma granada as destruísse.
Recordo que um soldado do meu grupo de combate (também não consegui identificar quem foi), enquanto efetuava o transporte de algumas armas para um helicóptero apareceu coberto de lama e quase sem fala, por uma granada de morteiro ter caído perto dele. Sem hesitar, coloquei-o dentro do helicóptero, que o transportou para fora do local da operação.
Na pesquisa por mais armamento e munições deparei com um considerável volume de minas antipessoal e, ao mesmo tempo que constatava a impossibilidade de as transportar face ao seu volume, verifiquei que apenas eu e mais cerca de seis ou sete elementos do meu grupo de combate ainda permanecíamos no local, já que todos os restantes haviam iniciado a retirada em direção ao rio Cacheu onde se encontrava estacionada a LDM.
Sabendo que a maioria das baixas da companhia haviam resultado da ação de minas antipessoal, debatia-me com a solução a dar à questão, pois não concebia a hipótese de as deixar no local sujeitas a serem utilizadas e provocarem outras baixas nas nossas tropas. Optei, então, por lançar uma granada incendiária na tentativa (que presumo bem sucedida) de as destruir, após o que retiramos do local e seguimos em passo acelerado para alcançar os restantes elementos das NT que já se encontravam a alguma distância.
Quando por fim os alcançámos, fui instado a não revelar a eventualidade da existência de outras arrecadações de material do IN, pois tal poderia significar o retorno à zona de operações, situação que não agradava a ninguém e, obviamente, a mim também não encantava.
Regressei ao quartel sempre com a questão das minas antipessoais a remoer na minha consciência e, ao relatar a situação ao comandante do COP 3 (o comandante do DFE13 também estava presente), dei a entender que era possível que existissem mais depósitos de material mas que as tropas estavam já num estado de exaustão tal que o seu eventual regresso à zona de Sambuiá seria muito penoso.
Verdadeiro Comandante, o então Major Correia de Campos (comandante do COP3) apercebeu-se prontamente da situação e descansou-me dizendo que já tínhamos feito a nossa parte e que outras tropas iriam para o local procurar por mais armas e munições.
Assim, a operação prosseguiu com outras forças, tendo sido detetados mais depósitos de material na zona.
Recordei-me, então, do gila saracolé que afirmara que as armas se encontravam dentro de água.
E não é que ele tinha razão…?
Esta é a descrição da operação “Grande Colheita” como eu a recordo, em que, sem ter disparado um único tiro, a CART 1745 descobriu um dos maiores depósitos de armamento dos guerrilheiros do PAIGC (cerca de 10 toneladas), constituindo o que à época foi a maior captura de material de guerra nas três frentes de combate em África (Guiné, Angola e Moçambique).
Notas:
(1) Saracolé – Uma das muitas etnias existentes na Guiné Bissau
(2) Tabanca – Povoação indígena
(3) Bolanha – Zona alagadiça por vezes utilizada para o cultivo do arroz
(4) Cambança – Local de travessia de ribeiro, muitas vezes constituída por um tronco de palmeira
(5) LDM – Lancha de Desembarque Média
____________
Notas do editor
Pesquisando na internete,a Operação Grande Colheita terá ocorrido no dia 23 de Janeiro de 1969
Vd. poste de 24 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21387: Tabanca Grande (503): António Baltazar Valente Ramos Dias, ex-Alf Mil Art MA da CART 1745 (Ingoré e Bigene, 1967/69): senta-se no lugar n.º 819 do nosso poilão
7 comentários:
Mais do que evidente, o testemunho factual da "superioridade militar do PAIGC!" Vamos ser honestos, caros camaradas...
Abraço,
António Graça de Abreu
Olá Graça Abreu
Conheço a tua posição quanto à “superioridade militar do PAIGC” com a qual estou em parte de acordo, mas não compreendo o teu comentário, pois não acreditas que tivesse havido um “ronco” de tal envergadura? captura de cerca de 10 Ton de material ao IN ?, pois eu acredito e para além de ter ouvido falar em tal “ronco” também li vários testemunhos escritos, inclusive em entrevistas dadas pelo falecido Alm Vieira Matias.
Sendo assim, também não te acreditas no maior “ronco” de captura de material no total de 24 tonelas ao IN nas bolanhas de Faquina Mandinga e Fula junto à fronteira com o Senegal próximo de Cuntima, norte da Guiné, que se deu em Agosto de 1969 em conjunto de várias Forças, FAP; Páraquedistas; CCaç 2529; Pelotões da CCaç 2547; 2549 e dos “Roncos de Farim” do meu Bat Caç 2879 e que eu já relatei aqui no Blogue, para além de vir testemunhado nas Histórias das Unidades, Livro dos Páras, “ No Regresso Vinham Todos” do Cor Vasco Lourenço; EME-CECA – Campanhas de África, nos fascículos do CM complementados com fotos etc etc.
No caso aqui relatado o material estava em paletes nas bordas da bolanha e que ficavam submersas na água quando a maré enchia, mas no caso das 24 toneladas estavam soterradas em vários locais junto das árvores e que iam sendo descobertos de forma bizarra tendo sido transportado de hélis do local para Cuntima e para Farim e daqui de Dakota para Bissau. Esta acção foi designada po “Op Talião”
Considerado o maior ronco da captura de material bélico ao In durante todo o período da guerra.
Pois quer tu queiras acreditar ou não, são factos reais e nada tem a ver com a tua aversão à “ superioridade militar do PAIGC” que eu também concordo, na medida em que também palmilhei centenas de quilómetros do sector de Farim 69/71 e não vi nenhuma “zona libertada” etc etc, para não me alongar mais.
Uma coisa é a quantidade de material bélico capturado ao IN aqui relatada, factos indesmentíveis por quem quer que seja, a não ser pela propalada propaganda do PAIGC, outra é pretender interpretar a partir destes relatos que os mesmos pretendem transmitir a ideia da “ superioridade militar” do PAIGC que eu não interpreto assim.
Abraço
Carlos Silva
Carlos Silva
Parece que é outra coisa, com a reconquista da Ponta de Jabadá em 1965, a captura das 10 toneladas de material em Janeiro e estas 24 toneladas em Agosto, de 1969, eram favas contadas para acabar a guerra, eram mais uns mesinhos.
Infelizmente, em 6 de Abril de 1973 é abatido por um 'Strella' um avião causando a morte do Oficial Piloto, aliás esse dia foi fatídico para FAP em 3 horas foram abatidos mais três aviões e outros dois sofreram ataques, não contando com o cada vez mais abandono de muitas tabancas, incluindo as em auto defesa e com as NT, e brutal ataque a Canquelifá, de nada serviu a captura de toneladas de material para a guerra continuar até ao 25 de Abril de 1974.
Ab. e saúde da boa
Valdemar Queiroz
Rectifico.
O avião abatido por um 'Strella', em 6 de Abril de 1973, tratava-se dum DO de evacuações, transportando o Major grad. Jaime Martins que veio a morrer neste ataque.
Valdemar Queiroz
Olá Valdemar
Sim, foram abatidos aviões em 1973, mas continuamos com os aviões no ar.
Pelo facto de terem sido abatidos aviões, isso traduz a "superioridade militar do PAIGC" ? que é o que está aqui em causa.
Para mim e estou convicto que para a maioria dos militares protagonistas da guerra, não.
Abraço
Carlos Silva
Carlos Silva
Evidentemente que não se tratava, propriamente, da 'superioridade militar do PAIGC', tratava-se de se ir observando ao longo dos anos o efeito da acção da guerra de guerrilha.
Como sabes, aquela guerra era uma guerra de guerrilha, inicialmente até considerada como um assunto de polícia, o que não estava longe disso por se tratar de uma revolta de gente da população local, que depois deu aso ao eclodir de acções militares ao nível da guerra de guerrilha para resolver o assunto politico da autodeterminação e independência do território. Que era o que deveria ter sido feito pelas salazárias cabeças pensantes, evitando mais de uma década de guerra.
Repara, apenas em Bissau e outras localidades como Bafatá e Teixeira Pinto se podia andar à vontade, até Nova Lamego, que já tinha sido bombardeada por mísseis, foi atacada dentro da localidade, de resto as outras localidades, que com o tempo se iam reduzindo, estavam cercadas por valas, abrigos de defesa e arame farpado, não se podia viajar para lado nenhum, mesmo nas estradas já alcatroadas, sem escolta/segurança das NT e FA estava a ser atacada com abates frequentes.
Lembra-te que os Lusitanos do Viriato correram à pedrada os poderosos romanos e, neste nosso tempo, mesmo bombardeados com toneladas de bombas, os vietnamitas correram com o todo poderoso exército dos EUA.
Eu que eu contesto é a ideia de 'o PAIGC estava a perder a superioridade militar e por isso mais uns mesinhos estávamos todos de regresso a casa'. E, até, deixo uma pergunta: não tivesse havido o 25 de Abril de 1974, por mais quanto tempo duraria ou resolveria a guerra na Guiné?
Ab. e saúde da boa
Valdemar Queiroz
Caro António Dias.
O que O Gila vos contou, foi a confirmação daquilo que, em 1968 antes de eu ter sido evacuado, o soldado nativo Domna Sanhá, após o seu regresso de umas férias em Bissorã me contou.
Tal como vós não acreditei mas relatei o facto ao capitão, o nosso "arquitecto" miliciano Zé Maria Torre do Valle.
Enviar um comentário