segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21400: Notas de leitura (1311): “I Reunião Internacional de História de África - “Relação Europa-África no 3.º Quartel do Século XIX”; Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisboa 1989 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Dezembro de 2017:

Queridos amigos,
René Pélissier descobriu o testemunho de um alemão que apareceu inopinadamente em Buba, quando Alfa Yaya atacou o importantíssimo entreposto da mancarra, assistiu aos confrontos e resolveu passar o seu testemunho a escrito, foi editado em Leipzig, em 1884.
O ponto de partida de Pélissier, figura fundamental da investigação do Império Colonial Português, é de que os portugueses e os Fulas estiveram longe de ter uma relação amistosa, foi preciso a aprovação da Convenção Luso-Francesa, de 12 de Maio de 1886 para se ter chegado à renúncia da beligerância, os Fulas perceberam rapidamente que só tinham a ganhar não conflituando com aquela potência que possuía na ordem internacional a autoridade para ali mandar.
O mito da aliança luso-Fula fez muito jeito durante a guerra da libertação, tanto PAIGC como Bissau procuraram usar esse mito a seu favor.

Um abraço do
Mário


Fulas e portugueses em guerra: um testemunho alemão de 1881

Beja Santos

Foi no decurso da I Reunião Internacional de História de África que decorreu sobre a consigna “Relação Europa-África no 3.º Quartel do Século XIX”, cujo acervo de publicações apareceu em 1989 por iniciativa do Instituto de Investigação Científica Tropical que René Pélissier apresentou uma curiosa intervenção revelando um testemunho inédito, entre nós.

René Pélissier
A sua comunicação intitulava-se exatamente “Fulas e Portugueses em Guerra: Um testemunho alemão de 1881”. Passamos a sintetizar a massa das suas informações. Inicia a sua intervenção recordando que para luso-africanistas e o seu público o ter começado a saber os termos da conquista de Angola e Moçambique nos séculos XIX e XX foi uma experiência dolorosa, dada a multiplicidade de campanhas e operações indispensáveis (mais de 180 em Angola, entre 1845 e 1926, mais de 160 em Moçambique, de 1854 a 1918). Mas esquece-se o que aconteceu na Guiné, onde foram necessárias mais de 80 campanhas e operações importantes para que a Administração portuguesa se considerasse ali implantada.

Seguidamente, debruçou-se sobre o mito do acordo luso-Fula. É que praticamente todas as etnias resistiram de armas na mão aos portugueses e às suas tropas, por vezes vindas de outras parcelas do Império, como Cabo Verde, Angola e Moçambique. 

Espalhou-se a falsa ideia de que os Fulas tinham sido auxiliares ou Aliados da administração para subjugar as outras etnias – este foi um elemento importante na propaganda tanto do lado do PAIGC como do governo de Bissau. Vejamos os factos. Após a extinção da ameaça de Mussá Molô, em 1892-1893, rei dos Fulas Pretos do Firdu, o antigo Gabu Mandinga foi considerado aliado de Bissau. É curioso como estes elementos deixaram a historiografia francesa bastante indiferente.

René Pélissier introduz na sua comunicação o testemunho desconhecido de um observador alemão acerca de um combate entre Fulas e Portugueses em 1881, trata-se do alemão Cornelio Doelter, que foi publicado em Leipzig em 1884. Este alemão desembarcou em Buba em 1881, quando esta última povoação era a ultimada localidade portuguesa junto do Futa Djalon, ele caiu por acidente no meio de uma contenda, sem entender minimamente o que se estava a passar. Por isso se pode dizer que o seu relato goza da chamada neutralidade, é incontornável em qualquer investigação.

Buba era um importante entreposto comercial, tinha uma guarnição nesta extremidade do Rio Grande de Buba (ou Bolola). Buba fora salva das ambições dos britânicos da Serra Leoa devido à sentença arbitral de Ulysses Grant. O Rio Grande era o grande fornecedor de mancarra, artéria vital do comércio francês entre as “pontas” e Bolama, em plantações ribeirinhas ao longo do Forreá, onde os Beafadas tinham sido submetidos aos Fulas locais para o Futa Djalon, esta região convulsiva do Forreá e do Rio Grande de Buba era simultaneamente uma terra de “missão” e de razias e também um corredor obrigatório para o comércio de Buba e Bolama (armas e pólvora). Santa Cruz de Buba era um entreposto relativamente florescente no século XVIII, mas foi gradualmente perdendo importância até se revitalizar cerca de 1876. As “pontas” pagavam um tributo aos chefes Fulas e um imposto direto ao fisco português.

Os portugueses pretendiam que os chefes Fulas se considerassem vassalos da Coroa Portuguesa, mesmo que não passasse de uma “vassalagem de papel”. Depois do “desastre de Bolor”, em 1878, em que Felupes massacraram tropas portuguesas sobretudo cabo-verdianos, no Noroeste da Guiné, em 1879 desafetou-se esta colónia de Cabo Verde.

Nesta viragem vão começar bem cedo as contendas entre o governo de Bolama, pois logo o primeiro governador, Agostinho Coelho fez uma proposta aos Fulas-Forros do chefe Mamadu Paté Bolola, do Forreá, a proposta assentava em pagar-lhe um montante anual para que os Fulas deixassem em paz os comerciantes sem lhes cobrar qualquer imposto. Importa recordar que estamos no início da abolição da escravatura, Agostinho Coelho é abolicionista e franco partidário dos Fulas Pretos, procurou implementar uma política indígena ativa, atraiu para o seu lado o chefe Fula-Forro Sambel Tombom, e este declarou-se vassalo de Portugal. Resta dizer que Buba nesta época passa a ter a maior concentração militar portuguesa entre Lisboa e Luanda.

Em 1 de Fevereiro de 1881, ao romper da manhã, Buba foi atacada por Alfa Yaya, do Labé. Veio fortemente equipado mas utilizou uma tática completamente desadequada para enfrentar a artilharia. Mal começou a fuzilaria as tropas Fulas foram forçadas a retirar deixando uma centena de mortos no terreno. É neste ínterim que o alemão Doelter chega a Buba e faz o seu relato. Ele descreve o entreposto, quem ali vive, as edificações, diz que a povoação não possui fortificações, tinha unicamente uma paliçada. A artilharia não disponha de abrigo e só não foi atingida devido à inépcia do inimigo. A guarnição era composta por uma centena de homens, incluindo um capitão, um tenente e dois alferes. A tropa era maioritariamente constituída por angolanos e cabo-verdianos, pertenciam ao regimento de caçadores, sediado em Bolama.

O capitão estava enfermo, mas os outros oficiais receberam-no de braços abertos, o alemão preferiu ficar em casa de um civil. Mostra-se atónito, pois enquanto dura a fuzilaria os artesãos Mandingas trabalhavam tranquilamente. Um aristocrata francês dirigia o fogo de uma peça de artilharia junto da igreja. Depois daquela primeira tentativa de ataque, fez-se uma pausa; enquanto os sitiantes enterravam os seus mortos, os sitiados apetrechavam-se, pois sabiam que se tratava somente de um armistício. No dia seguinte, nova tentativa de ataque dos Futa-Fulas que se aproximaram da paliçada, infantaria e cavalaria, foram novamente repelidos, mais uma centena de mortos. 

Na noite desse dia, Alfa Yaya enviou um parlamentar, fazia saber aos militares portugueses que tinha como prisioneiros três senegaleses, aceitava a troca por prisioneiros Fulas, estava incumbido de testemunhar a amizade de Alfa Yaya, que era amigo dos brancos, houvera um mal-entendido, apresentava pretextos bem fúteis para aquele desencadear das hostilidades. Pretendia vir a Buba para saudar o governador, o que foi categoricamente recusado.

No dia seguinte, os Fulas retiraram-se totalmente de Buba, muitos deles, na retirada, ao descer a margem esquerda do Rio Grande incendiaram as “pontas” que encontravam.

Na análise sumária que René Pélissier faz ao relato deste alemão, tece três considerações: 

“A cooperação do exército com os civis; a categórica inépcia dos guerreiros africanos que não sabiam atacar fortes ou campos entrincheirados, pelo que eram sempre desfeiteados na retirada; técnica e taticamente os Fulas não estavam à altura de enfrentar quaisquer concentrações de artilharia".

Vitória pírrica, poucos anos depois o entreposto de Buba voltou a arruinar-se. O governador português tentou celebrar um tratado com os Fulas. Alfa Yaya irá regressar a Buba em fins de 1886, para celebrar um tratado de vassalagem. Houvera em 12 de Maio de 1886 a assinatura da Convenção Luso-Francesa, estava criada a Guiné Portuguesa, aqueles guerreiros vindos do Futa Djalon tinham percebido que houvera uma viragem na História para a qual eles não tinham resposta.
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21394: Nota de leitura (1310): "38ª Companhia de Comandos, 'Os Leopardos': a História": João Lucas (coord. lit. ), Porto, Fronteira do Caos Editores, 2018, 322 pp. - Parte I (Luís Graça)

3 comentários:

Cherno Baldé disse...

Caros amigos,

Pela sua relevancia na desmistificaçao de um mito criado pelo Partido de Amilcar Cabral e seus aliados destaco dois aspectos importantissimos nesta recensao do nosso Mario Beja Santos relativamente a aliança entre Fulas e Portugueses no territorio que viria a ser a Guiné (Portuguesa):

O ponto de partida de Pélissier, figura fundamental da investigação do Império Colonial Português, é de que os portugueses e os Fulas estiveram longe de ter uma relação amistosa, foi preciso a aprovação da Convenção Luso-Francesa, de 12 de Maio de 1886 para se ter chegado à renúncia da beligerância, os Fulas perceberam rapidamente que só tinham a ganhar não conflituando com aquela potência que possuía na ordem internacional a autoridade para ali mandar. O mito da aliança luso-Fula fez muito jeito durante a guerra da libertação, tanto PAIGC como Bissau procuraram usar esse mito a seu favor.

“Seguidamente, debruçou-se sobre o mito do acordo luso-Fula. É que praticamente todas as etnias resistiram de armas na mão aos portugueses e às suas tropas, por vezes vindas de outras parcelas do Império, como Cabo Verde, Angola e Moçambique. Espalhou-se a falsa ideia de que os Fulas tinham sido auxiliares ou Aliados da administração para subjugar as outras etnias – este foi um elemento importante na propaganda tanto do lado do PAIGC como do governo de Bissau. Vejamos os factos. Após a extinção da ameaça de Mussá Molô, em 1892-1893, rei dos Fulas Pretos do Firdu, o antigo Gabu Mandinga foi considerado aliado de Bissau ».

Alfa Yaya irá regressar a Buba em fins de 1886, para celebrar um tratado de vassalagem. Houvera em 12 de Maio de 1886 a assinatura da Convenção Luso-Francesa, estava criada a Guiné Portuguesa, aqueles guerreiros vindos do Futa Djalon tinham percebido que houvera uma viragem na História para a qual eles não tinham resposta.

Cont...

Cherno Baldé disse...

Continuaçao:


« Alfa Yaya irá regressar a Buba em fins de 1886, para celebrar um tratado de vassalagem. Houvera em 12 de Maio de 1886 a assinatura da Convenção Luso-Francesa, estava criada a Guiné Portuguesa, aqueles guerreiros vindos do Futa Djalon tinham percebido que houvera uma viragem na História para a qual eles não tinham resposta ».

« Buba era um importante entreposto comercial, tinha uma guarnição nesta extremidade do Rio Grande de Buba (ou Bolola). Buba fora salva das ambições dos britânicos da Serra Leoa devido à sentença arbitral de Ulysses Grant. O Rio Grande era o grande fornecedor de mancarra, artéria vital do comércio francês entre as “pontas” e Bolama, em plantações ribeirinhas ao longo do Forreá, onde os Beafadas tinham sido submetidos aos Fulas locais para o Futa Djalon, esta região convulsiva do Forreá e do Rio Grande de Buba era simultaneamente uma terra de “missão” e de razias e também um corredor obrigatório para o comércio de Buba e Bolama (armas e pólvora). Santa Cruz de Buba era um entreposto relativamente florescente no século XVIII, mas foi gradualmente perdendo importância até se revitalizar cerca de 1876. As “pontas” pagavam um tributo aos chefes Fulas e um imposto direto ao fisco português”

Efectivamente, perante a recusa da adesao dos Chefes fulas a causa da sua luta de libertaçao que, aos olhos destes nao era mais do que uma manobra de substituiçao dos portugueses nos lugares da administraçao do territorio, o PAIGC desencadeou uma forte campanha de desinformaçao e de odio contra os fulas, caracterizando-os de traidores a patria e auxiliares dos colonizadores, cujas consequencias foram terriveis nos anos de pos-independencia e ainda hoje se fazem sentir e cujo ultimo episodio aconteceu nas ultimas eleiçoes presidenciais quando certos sectores pretenderam que o presidente vencedor carece de legitimidade nacional invocando a luta para a «independencia» do pais.

Os factos historicos nao confirmam estas alegaçoes, porque todos os grupos etnicos, de uma forma ou outra tentaram, numa primeira fase, resistir a colonizaçao e na fase seguinte, colaboraram na «pacificaçao» do territorio. Sejam eles fulas ou mandingas do Leste guineense, sejam eles Papeis, Mancanhas ou Manjacos disfarçados sob a capa de Grumetes e/ou civilizados Cristaos das praças de Cacheu, Bissau, Geba, Farim e Bolama.

E quanto aos portugueses que sempre deram um destaque especial ao papel do Honorio Barreto na defesa e extençao do territorio « portugués » da Guiné, esquecem que sem a participaçao dos Chefes fulas que dominavam toda a regiao Leste (antigo feudo mandinga de Gabu), na sua resistencia contra o dominio de Mussa Molo (Rei de Firdu) e Alfa Yaya (Rei de Labé e de Futa-Djalon), provavelmente esta parte seria considerada parte do territorio francés a quando do tratado Luso-francés de 1886. De notar que tanto o Mussa Molo como o Alfa Yaya eram, em certa medida, figuras ao serviço da republica francesa e os seus territorios serao depois incorporados ao Senegal e a Republica da Guiné.

E por confirma-se que, de facto, o territorio hoje conhecido por Quinara esteve, durante muito tempo sob dominio dos fulas que ali povoavam depois de expulsar (mais uma vez ?), os Beafadas que, so voltariam a possui-lo com a ajuda da administraçao portuguesa que, a coberto de acordos de vassalagem e de protecçao, jogavam a favor dos Biafadas e dos chamados Fulas Pretos, posto que, tendo em conta os seus interesses a longo prazo, se sentiam mais a vontade com os destroçados Biafadas do que os imprevisiveis e numeros Chefes fulas com fortes ligaçoes ao estado teocratico de Futa-Djalon.

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé

Valdemar Silva disse...

Pois, Cherno Baldé.
Nada disso, ou melhor dizendo nada disto que o Beja Santos nos dá notícias e esta tua explicação, nos foi ensinada/falada na Escola ou, depois, em livros ou conferências e, nem sequer, soubemos por outras informações consideradas anti patrióticas que apenas falavam de meia dúzia de colonos que escravizavam as populações nativas.
Tudo isto fará confusão aos nossos netos, quando questionam os avós que 'lutaram com honra e dignidade para preservar o que nos tinha sido legado', como nos escreve o Mário Santos, e toda a verdadeira história dos 500 anos dos Portugueses na Guiné, e que afinal, verdadeiramente, foram há menos de 100 anos em que a metade andamos nós na guerra para travar a independência desse território.
A história, também, é isto mesmo: o conhecimento e o estudo do passado servindo-nos de bases documentais.

Ab., saúde da boa e saudações no ANIVERSÁRIO DA INDEPENDÊNCIA DA GUINÉ-BISSAU
Valdemar Queiroz