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segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27197: Notas de leitura (1836): O uso do napalm na guerra da Guiné, na Revista de Relações Internacionais de Junho de 2009 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Outubro de 2024:

Queridos amigos,
Não encontro somente na Feira da Ladra correspondência que já devia estar guardada no Arquivo Histórico-Militar, os vendedores de espólios permitem-nos adquirir pequenos tesouros informativos, obras desconhecidas, artigos inseridos em publicações onde não era imaginável encontrar um artigo como este, como o uso de napalm na Guiné. De 2009 à presente década, têm surgido relatos, sobretudo de oficiais da Força Aérea, que sugerem o uso de tais bombas e desfolhantes. Há que aguardar com expectativa o derradeiro livro que o José Matos está a escrever sobre o Santuário Perdido (história da Força Aérea na Guiné, falta o período 1973-1974) para saber se esta questão das bombas de napalm é pelos autores equacionada.

Um abraço do
Mário



O uso do napalm na guerra da Guiné

Mário Beja Santos

Na revista Relações Internacionais R:I, n.º 22, junho de 2009, António Araújo e António Duarte Silva publicaram o artigo intitulado O uso de napalm na guerra colonial. O ponto de partida foi o conjunto de quatro documentos localizados no Arquivo da Defesa Nacional: 

  • um documento datilografado, classificado “muito secreto”, com a assinatura do Tenente-Coronel José Luís Ferreira da Cunha, do Gabinete do Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, de 9 páginas, com a data aproximada de 9 de maio de 1973; 
  • um documento em papel timbrado do Comando-chefe das Forças Armadas da Guiné, classificado “secreto”, datado de Bissau, 27 de maio de 1974 e assinado pelo Comandante-Chefe Carlos Fabião; 
  • um documento com indicação “Comando-chefe das Forças Armadas da Guiné – Quartel General, 3.ª Repartição”, datado de 28 de maio de 1974;
  • documento datado de 19 de junho de 1974, não assinado, classificado como “secreto”, do Chefe do Gabinete do Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas, Tenente-Coronel Ferreira da Cunha, destinado ao Chefe do Gabinete do Chefe de Estado-Maior da Força Aérea, o assunto é “bombas napalm”.

Da análise interna feita por estes autores, pode apurar-se: um documento anterior ao 25 de abril, muito provavelmente do início de maio de 1973, que justifica a posse e utilização de napalm e outras armas incendiárias pelas Forças Armadas Portuguesas nos três teatros de operações; um ofício, de 27 de maio de 1974, do Comandante-Chefe Carlos Fabião, solicitando instruções quanto ao destino a dar às bombas napalm existentes naquele território, quantificadas em 1170 bombas NAP de 350 litros e 790 bombas NAP de 100 litros, sugere-se a sua transferência para a Ilha do Sal. Documentos de incontestável valor histórico, com o condão de exigir uma reflexão mais aprofundada quanto ao uso de bombas incendiárias em combate por parte das Forças Armadas portuguesas.

À data da publicação deste artigo dizia-se não existirem estudos especificamente dedicados ao tema. Havia algumas menções como, por exemplo, num artigo de Mário Canongia Lopes publicado na revista Mais Alto, e o livro de Luís Alves Fraga intitulado A Força Aérea na Guerra em África – Angola, Guiné e Moçambique, Prefácio, 2004. 

Estas referências aludem a napalm utilizado contra objetivos militares bem definidos, tais como posições de artilharia antiaérea, napalm carregado em depósitos de origem norte-americana havendo combustível fornecido por Israel. Adiantam os autores que era reconhecido o uso de bombas de 50 quilos de 60 litros de napalm em certas operações de destruição de meios antiaéreos do PAIGC, caso das operações Resgate e Estoque.

Parece claro, aceitando o depoimento do Marechal Costa Gomes, que no seu tempo de Comandante-Chefe em Angola nunca se utilizou napalm, embora reconhecendo que havia napalm e desfolhantes no território, que tais desfolhantes foram usados só no Leste. Publicadas estas declarações, vários oficiais vieram negar veementemente que as nossas tropas algum dia tivessem utilizado napalm. E os autores voltam a observar que, pelo menos até meados de 1973, as Forças Armadas portuguesas utilizaram napalm e outras bombas incendiárias nos três teatros de operações em África.

Napalm e bombas incendiárias são uma das matérias mais controversas quanto ao seu uso durante as guerras, daí o silêncio quase absoluto do assunto. A Guiné era o território onde mais se recorria a este tipo de armamento. O consumo médio mensal era de 42 bombas incendiárias de 300 kg, de 72 bombas incendiárias de 80 kg e de 273 granadas incendiárias M64. 

O napalm foi utilizado na Guiné desde 1965, nomeadamente na operação Resgate, realizada na Península do Cantanhez, e tudo indicia que as bombas incendiárias foram usadas até ao 25 de Abril de 1974.

Voltando ao indisfarçável incómodo que se traduzia no uso destas armas, sabia-se que a opinião pública tinha um horror visceral pelo uso destes líquidos inflamáveis à base de gasolina gelificada. E os autores adiantam um elemento histórico informativo sobre o uso do napalm e o pavor da opinião pública, referindo que a partir da guerra do Vietname os seus efeitos sobre os seres humanos apareceram ilustrados em imagens crudelíssimas, divulgadas por todo o mundo. 

É o caso da célebre fotografia de uma rapariga sul-vietnamita de 9 anos, gravemente queimada pelo napalm, a fugir dos bombardeamentos, publicada em 1972. De acordo com a informação disponível não foram captadas imagens deste teor.

Igualmente os autores recordam os preceitos do direito internacional, ao tempo ainda não se podia falar rigorosamente de interdição das armas bacteriológicas (ou biológicas) e, muito menos, das armas químicas. Seja como for, em agosto de 1968, Amílcar Cabral enviara uma petição à Comissão de Descolonização da ONU, assinalando que as forças portuguesas bombardeavam intensamente o território com napalm e fósforo branco e se preparavam para recorrer a produtos químicos desfolhantes e tóxicos contra as populações locais, uma matéria que levou à resolução condenando Portugal. 

No ano seguinte, Cabral voltou a denunciar o uso de napalm pelas forças militares da Guiné, na sua intervenção oral o líder do PAIGC denunciou tais bombardeamentos, estavam comprovados com testemunhos.

Voltando à análise dos quatro documentos constantes do Arquivo da Defesa Nacional, o marechal Costa Gomes despachou favoravelmente a proposta de Fabião para a retiradas das bombas da Guiné, o que não deixa de nos provocar uma certa estupefação já que Costa Gomes tinha afirmado nada saber contra o uso de napalm na Guiné. 

Quanto a António de Spínola, apesar de nunca se ter pronunciado expressamente sobre o tema, podem citar-se alguns testemunhos inequívocos constantes no livro sobre a guerra da Guiné publicado em 1973 na África do Sul, foi seu autor Al Venter, o uso de bombas napalm armazenadas no aeroporto de Bissau, não correspondiam a marcas da NATO ou dos Estados Unidos, alguns dados sugeriam que Portugal se encontrava a produzir as suas próprias bombas. Também da leitura à informação do Tenente Manuel Ferreira da Cunha se pode depreender que havia justificação para a continuação do recurso àquele tipo de armamento.

No termo do seu artigo, os autores realçam um ponto: até ao 25 de Abril uma quantidade apreciável de bombas incendiárias permaneceu em África – ou, pelo menos, na Guiné. Se continuaram a ser utilizadas após a informação de Ferreira da Cunha, é algo que se desconhece. Mas estes documentos revelam que a incómoda e desconfortável presença do napalm em África se prolongou, pelo menos, até maio de 1974.

Napalm montadas em T6, na BA 12. Foto de Arnaldo Sousa
Guiné 1969, T6 com bombas de napalm. Foto de Alberto Cruz
BA 12 - Fiat armado com bomba de Napalm.
Imagens retiradas do blogue Clube de Especialistas do AB4
Imagens retiradas de um artigo do Major General Piloto Aviador Krus Abecasis sobre o uso do napalm em operações para destruição de sistemas antiaéreos do PAIGC, publicado na Revista Militar, dezembro de 2008

********************

Nota do editor CV:

Por pura coincidência, e uma vez que as recensões do nosso confrade Mário Beja Santos, são publicadas, normalmente, por ordem de chegada, o assunto de hoje tem a ver com o que andamos a discutir actualmente no Blogue, o uso de bombas incendiárias/napalm na Guiné.
Fica a justificação, mesmo que desnecessária.

_____________

Nota do editor

Último post da série de 5 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27188: Notas de leitura (1835): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 10 (Mário Beja Santos)

domingo, 7 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27191: A nossa guerra em números (38): Em 27 de maio de 1974, existiriam no CTIG 1960 "bombas de napalm" (1170 de 350 litros e 790 de 100 litros)... ou apenas os invólucros

FIAT G-91 R4 em voo. 
Foto: Mário Correia (editada por Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, 2025)


No TO da Guiné, pelo menos em 1972/73, de até à entrada dos Strela (março de 1973), 5%  das missões do Fiat G-91 eram de bombardeamento com napalm a objetivos estritamente militares (de acordo com a caderneta de voo do António Martins de Matos, cuja comissão vai de maio de 1972 a fevereiro de 1974)



Gráfico (nº 1)  com as missões de Fiat G-91 (a laranja) (n=386)  e DO-27 (a azul) (n=114), realizadas pelo então ten pilav António Martins de Matos (de maio de 1972 a fevereiro de 1974) (Total=500)  

Infografia: António Martins de Matos (2010) (**)

Legenda do autor:
  • A laranja estão as minhas missões em Fiat-G91, e a azul as de DO-27;
  • Nos meses de nov72 e ago73 estive de férias;
  • Os mísseis Strela apareceram em abr73;
  • Guidaje, Guileje e Gadamnael foram em maio/junho 73;
  • Canquelifá e Copé em janeiro de 1974.


Gráfico (nº 2)  com as missões de Fiat G-91, realizadas pelo então ten pilav António Martins de Matos (de maio de 1972 a fevereiro de 1974): missões de alerta (a laranja)(n=78)  e missões planeadas (a verde)(n=308). Total=386

Infografia: António Martins de Matos (2010) (**)

Legenda do autor:

  • As missões a verde eram planeadas,  de véspera (por ex. ida a Cumbamori, no Senegal);
  • As missões a laranja eram as solicitadas pela rede do Exército para apoio urgente;
  • Em termos práticos representam o número de quartéis a quem fui dar apoio imediato (n=78);
  • Quanto mais “laranja” apresentar o gráfico,  tanto mais violenta estaria a guerra;
  • Em maio73 o apoio foi maioritariamente a Guidage e Guileje; em janeiro74 a Canquelifá e Copá.

I.  O nosso tabanqueiro António Martins de Matos, ex-ten pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74, hoje ten gen ref, não podia ser mais claro ao comentar no poste P27184 (*):


Da minha caderneta de voo, [ constam ] 17 missões napalm, entre 20mai72 e 1fev73 [ em oito meses,  foram 2 em média, por mês ].
 
Os alvos eram instalações dissimuladas nas orlas das matas. 

Como agora em Gaza, “à procura do Hamas, a população a sofrer”.  É sempre assim.

AMM

sexta-feira, 5 de setembro de 2025 às 14:12:18 WEST

Recorde-se que o AMM era o nº 2, na escala hierárquica da Esquadra 121 (Fiat G-91, T-6 e DO-27), tendo 6 pilotos de Fiat, "Os Tigres", que voavam também um dos outros aviões; e mais 14 pilotos, milicianos, alferes e furriéis, que voavam indistintamente o T-6 e o DO-27.

O número de missões que executou no Fiat G-91, de maio de 1972 a fevereiro de 1974, com dois meses de férias (novembro de 1972 e agosto de 1973) totalizou as 386 (77% do total, Fiat G-91 + DO-27)... 

As 17 missões com napalm representam apenas 4,4% do total das missões com Fiat G-91, realizadas até fevereiro de 1973 (**).
 
Segundo o António Martins de Matos, deixaram-se de realizar bombardeamentos de napalm a partir de março de 1973, quando os Strela passaram a ser usados pelo IN.

De qualquer modo, as suas missões  dos Fiat G-91 intensificaram-se, na segunda metade da comissão, apesar do aparecimento do Strela nos céus da Guiné. O que só prova que o PAIGC não "calou" a FAP, e muito menos o ten pilav António Martins de Matos; mandou para o "estaleiro" o Miguel Pessoa, mas também não o "arrumou", porque ele voltou ao CTIG...).

II. Sabemos, por outro lado, que no final da guerra havia, na BA 12, Bissalanca, na Guiné, um "pequeno arsenal" de bombas de napalm (ou, pelo ,menos os seus "invólucros", segundo o testemunho do nosso António Martins de Matos)...  

Reproduz-se a seguir um  documento  que vai ter que passar pelo crivo do contraditório:

 

Repartição de Operações 

AO GENERAL CHEFE DO ESTADO-MAIOR GENERAL DAS FORÇAS ARMADAS 

Nº 10.078/C 

 PARA CONHECIMENTO: 

Pº  CZACVG 

ASSUNTO: BOMBAS NAPALM

 1. Existem no TO.

 – 1170 bombas NAP de 350 litros

 – 790       "          "   de 100 litros


2. Dado que, pelo seu volume, não é possível subtraí-las das vistas a possíveis observadores, e ainda porque a utilização de Napalm tem sido motivo de acérrimas críticas feitas pelo In, na sua campanha diplomática e psicológica, torna-se necessário retirá-las do TO.

3. De contacto havido entre a ZACVG e o Estado-Maior da Força Aérea foi estabelecido, com o que este Comando concorda, que as bombas em referência fossem transportadas para a Ilha do Sal, de onde lhes seria dado posterior destino, salvaguardando, no entanto, uma dotação de emergência, a manter no TO. 

4. Solicita-se a V. Exa. uma decisão sobre o assunto. 

Bissau, 27 de Maio de 1974 

O COMANDANTE-CHEFE 

CARLOS ALBERTO IDÃES SOARES FABIÃO, BRIGADEIRO 


III. O documento que acima se transcreve é um dos quatro que os investigadores António de Araújo e António Duarte Silva  publicam em artigo de 2009, numa publicação académica ("O uso de napalm na Guerra Colonial - quatro documentos", Relações Internacionais R:I, n.º 22, junho de 2009, pp. 121-139). (***)

Os documentos reproduzidos pelos autores foram localizados no Arquivo da Defesa Nacional, em Paço de Arcos, onde se encontram sob a cota Cx. 1011, 1011/12, tendo sido desclassificados, a seu pedido,  por despacho de 17 de setembro de 2008. 

O documento em questão (o n º 2 de 4):

(i) é um oficio em papel timbrado do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné (Quartel-General – Repartição de Operações), classificado «Secreto», datado de Bissau, 27 de Maio de 1974;

(ii) está assinado pelo comandante-chefe, brigadeiro graduado Carlos Alberto Idães Soares Fabião;

(iii) é um ofício, os dactilografado, de uma página, dirigido ao chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, gen Costa Gomes; 

(iv)  Com conhecimento ao Comando da Zona Aérea de Cabo Verde e Guiné (CZACVG);

(v) em que se solicita instruções quanto ao destino a dar às "bombas de napalm" (sic) existentes no CTIG (1170 bombas NAP de 350 litros e 790 bombas NAP de 100 litros). 

(v) possui um carimbo a óleo que certifica a sua recepção no Gabinete do Estado-Maior General das Forças Armadas, em 6 de junho de 1974, com as indicações «Pº 2034, N.º 3107»:

(vi) à margem, encontra-se exarado um despacho manuscrito, do seguinte teor: «Urgente. Ao CEMFA para proceder de acordo com o n.º 3. Lisboa 15-6-74. ass). Francisco da Costa Gomes». 

Nesse ofício, sugere-se a  transferência das "bombas de napalm" (sic) para a ilha do Sal, em Cabo Verde, salvaguardando-se, todavia, uma «dotação de emergência» (sic), que permaneceria no CTIG.  Esta sugestão é feita após ter sido estabelecido um contacto com o Estado-Maior da Força Aérea. 

De acordo com o despacho manuscrito, de 15 de junho de 1974, os autores inferem  que tal sugestão foi acolhida (não se podendo no entanto saber qual foi o destino final dado ao material).

Citemos ainda os autores, a respeito do uso do napalm no teatro da guerra do ultramar:

(...) "Apesar de ainda ser controversa, a presença de bombas incendiárias nos territórios portugueses em África é relativamente conhecida, não tendo, porém, sido divulgados, ao que sabemos, elementos comprovativos da sua utilização em combate por parte das Forças Armadas Portuguesas. (...)

 Mário Canongia Lopes («A história do F-84 na Força Aérea Portuguesa». In Mais Alto. Revista da Força Aérea. Suplemento. Ano XXVI. N.º 258. Março-Abril de 1989, p. 12), citado pelos autores,  "afirma ter sido o napalm 'utilizado contra objectivos militares bem definidos, tais como posições de artilharia antiaérea (AAA) ou veículos', acrescentando que o napalm era carregado 'em depósitos de origem americana de 750lbs. [340 kgs] ou portuguesa de 660 lbs. [300 kgs] sendo o pó [combustível] fornecido por Israel' ".

" (...) Por outro lado, é reconhecido o uso de bombas de 50 quilos e de 60 litros de napalm em certas operações de destruição de meios antiaéreos do PAIGC (por exemplo, nas operações com o nome de código «Resgate» e «Estoque»)" (Fonte citada pelos autores: Luís Alves Fraga, "A Força Aérea na Guerra em África – Angola, Guiné e Moçambique (1961-1974)". Lisboa: Prefácio, 2004, pp. 109-111).

Não restam dúvidas, que os documentos publicados por António Araújo e António Duarte Silva.   "permitem afirmar, com um elevado grau de fiabilidade, que, pelo menos até meados de 1973, as Forças  Armadas Portuguesas utilizaram napalm e outras bombas incendiárias nos três teatros de operações em África." (...)

Veremos, em próximo poste, com mais detalhe os outros documentos (nº 1, 3 e 4). Mas, para já,  adiantaremos, citando  os autores, que "a Guiné era o território onde mais se recorria a este tipo de armamento", sendo "o consumo médio mensal" o seguinte;

  • 42 bombas incendiárias de 300 quilos;
  • 72 bombas incendiárias de 80 quilos; 
  • 273 granadas incendiárias M/64
Convertido em litros de napalm, teríamos um consumo médio mensal de 22 mil litros de napalm. Total anual médio (estimado): 264 mil...  (****)

A utilização de napalm no TO da Guiné, por parte de Portugal, foi repetidas vezes denunciada por Amílcar Cabral nas instâncias internacionais, e nomeadamente na ONU (Comissão de Descolonização, Comissão de Direitos do Homem, Assembleia Geral, Conselho de Segurança),  tendo-se tornado um cavalo de batalha na frente diplomática e uma dor de cabeça para o governo português.   

Os autores estranham que "Costa Gomes haja afirmado nada saber quanto ao uso de napalm na Guiné".

 Já quanto a António de Spínola, escrevem que, "apesar de nunca se ter pronunciado expressamente sobre o tema (...)  havia reconhecido, numa entrevista concedida a Peter Hannes Lehman, da revista alemã Stern, que as armas químicas eram usadas 'para limpar o mato de ambos os lados das estradas, para evitar emboscadas' " (o que nos parece uma "blague").

IV. Comentário de António Martins de Matos, âs 11.15 de hoje:

.(...) Na Guiné, em 1974 não existiam 1960 bombas napalm, quanto muito os seus invólucros, vazios. Ainda menos os fantásticos meio milhão de litros, capazes de incendiar a Terra.

 O napalm era fabricado apenas e só na quantidade necessária para as saídas programadas.

Isto para dizer que:

  • Em 1974, havia na Guiné zero bombas napalm, apenas invólucros;
  • Napalm larga-se junto à copa das árvores;
  • Em 1974, e por via do Strela, deixou de ser utilizado;
  • Napalm em stock, só no ChatGPT;
  •  O ChatGPT é uma merda;
  • O Brig Fabião sabia de napalm tanto ou menos que eu sei de submarinos;
  • O Blogue costumava ser mais cuidadoso com o que vai divulgando;
  • Não gostei de ver a minha foto num poste tão aldrabado.(...)
 
domingo, 7 de setembro de 2025 às 11:15:00 WEST 

3. Comentário do editor LG

Obrigado, António.

Tens toda razão, devia ter-te consultado previamente, a ti e ao Miguel Pessoa. Vou tentar,  se possível,  reparar os estragos. E ter mais cuidado no futuro...Retiro a tua foto, mas os gráficos são oportunos e elucidativos...O documento do QG/CIFAG reproduzido existe (foi publicado num artigo académico, que eu cito).  Os autores deveriam também ter mais cuidado no que escreveram, levando o leitor, leigo como eu,  a confundir "bombas" com "invólucros"... 

Acredito que o Carlos Fabião soubesse pouco ou nada de napalm... Eu ainda menos sei, que não andei na Academia Militar.  Eliminei a segunda parte do poste, baseada em pesquisas do assistente de IA... 

Apresento as minhas desculpas à malta da FAP, e aos nossos leitores.  Aceita tu, também, as minhas desculpas. E os protestos da minha amizade e camaradagem. Luís

Observações - Posso concluir, depois das explicações dadas pelo ten gen ref António Martins de Matos, que, a Guiné, durante a guerra colonial, o napalm não vinha em “bombas” prontas a largar, como  muitos "leigos" (como eu) imaginam.

O que havia eram invólucros ou depósitos (bombas de queda livre, por exemplo de 350 ou 100 litros) que podiam ser carregados com diferentes recheios. 

O napalm era preparado localmente, “na hora”, a partir de gasolina misturada com espessantes (por vezes alumínio em pó ou sabões metálicos) que lhe davam a consistência gelatinosa e adesiva.

Assim, o “stock" mantido era sobretudo de gasolina e aditivos, não de bombas já cheias de napalm. O enchimento dos invólucros era feito na BA 12, Bissalanca, conforme a necessidade das operações. Daí a confusão que por vezes se gera entre o conceito de bomba (o invólucro, reutilizável em termos logísticos) e o de carga incendiária (o napalm, preparado "ad hoc")

Obrigado, António, pela lição. Espero não ter dececionado o professor, com este resumo.


(Revisão / fixação de texto, negritos: LG)

______________



(i) é a revista do Instituto Português de Relações Internacionais, da Universidade NOVA de Lisboa (IPRI-NOVA), 

(ii)  é publicada desde março de 2004;:

(iii) é uma publicação académica trimestral, de reflexão e debate sobre questões internacionais;

(iv) tem como objetivos abordar as grandes questões da atualidade internacional numa perspetiva pluralista e multidisciplinar, e fomentar o debate teórico na área das Relações Internacionais;

(v) áreas primordiais de publicação: política internacional, história, estratégia, segurança e defesa, política comparada, economia, direito internacional.


segunda-feira, 30 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26969: Notas de leitura (1815): Guiné - Os Oficiais Milicianos e o 25 de Abril; Âncora Editora, 2024 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Junho de 2024:

Queridos amigos,
Não devemos esquecer que a cada um que aqui vem testemunhar a sua participação no MFA Guiné foi pedido um relato pessoal e daí parecer por vezes que se repetem as memórias de como todos eles se foram encontrando e atuando, como se institucionalizou o MAPOS, logo em 4 de maio, exigindo negociações com o PAIGC, a efervescência do ambiente social em Bissau depois do 25 de Abril, o papel da Voz da Guiné, a vida no mato, seja em Empada seja em Caboxanque, trata-se de um documento que se poderá classificar como de referência, na justa medida em que complementa tudo quanto já está escrito pelo lado de oficiais do quadro permanente e até de investigadores deste período, como é o caso dos trabalhos de António Duarte Silva. É pois de leitura obrigatória para quem pretende estudar quem foi quem no final do Império, no território da Guiné.

Um abraço do
Mário



Os milicianos no MFA da Guiné (3)

Mário Beja Santos

Na sequência do texto dado à estampa na semana anterior e referente ao livro recentemente publicado e intitulado "Guiné, Os Oficiais Milicianos e o 25 de Abril", Âncora Editora, 2024, onde se dá voz a um conjunto de depoimentos de milicianos, alguns deles ligados à crise académica de 1969 e a Coimbra, já deu para entender que por um feliz acaso ocorreu uma gradual convergência entre estes oficiais milicianos sediados em Bissau e o núcleo de oficiais do quadro permanente onde, entre outros, estavam ativos Sales Golias, Duran Clemente e Carlos de Matos Gomes e estreitamente relacionados com o capitão miliciano José Manuel Barroso.

Dada a diversidade de olhares, deu-se a palavra a um acervo de intervenientes como Álvaro Marques, Amaro Jorge, Canhoto Antunes, Celso Cruzeiro, Eduardo Maia Costa, João Teixeira, José Manuel Barroso e J. M. Correia Pinto. Põe-se termo a esta digressão pelos testemunhos destes oficiais milicianos, começa-se por José Pratas e Sousa, alferes-miliciano da CCAV n.º 8352, SRI e secretariado do MFA. Como outros intervenientes, Pratas e Sousa logo alude à derrota das tentativas de desenvolvimentos de soluções neocolonialistas, como foi repudiado o projeto de Spínola de manter a Guiné numa comunidade lusíada. Faz menção de que o que procura relatar é a sua experiência pessoal, como viveu e sentiu acontecimentos do período de abril a setembro de 1974. Mafra, a Escola Prática de Cavalaria, o Regimento de Cavalaria n.º 3 onde se formou a sua companhia, chegaram à Guiné em 4 de novembro de 1972, o destino era Caboxanque, na região do Cantanhez. “Tinha cerca de 800 habitantes e a nossa tropa instalou-se dentro da povoação que era habitada por velhos, mulheres e crianças. Não havia jovens. Estavam no mato com o PAIGC, que até então tinha controlado todo o Cantanhez. Esta situação contribuiu para acentuar a sensação de sermos ocupantes ilegítimos de uma terra que não era nossa.” Fazem patrulhamentos intensivos, são flagelados, normalmente sem consequências maior, terão dois mortos. Frutificaram amizades, que permanecem, refere Rui Silva, o capitão miliciano que comandava a companhia, com quem mais tarde se encontrará no secretariado do MFA em Bissau.

Deixa a companhia em agosto de 1973 (esta ir-se-á manter em Caboxanque até junho de 1974), foi transferido para Bissau, irá dirigir o Programa de Línguas Nativas, um programa de rádio militar integrado no Serviço de Rádio e Difusão de Imprensa. O noticiário oficial procurava iludir o agravamento da situação militar: os aviões derrubados pelo PAIGC eram noticiados em Lisboa como alvos de mísseis disparados a partir da Guiné-Conacri ou quedas devidas a acidentes. Dá-nos conta de como viveu o 25 de Abril, como foi determinante o papel do capitão Jorge Golias, era o oficial de maior prestígio dentro do MFA, não esquece o papel importante do capitão miliciano José Manuel Barroso, que desempenhou funções de adjunto de Carlos Fabião, Barroso foi o único miliciano que esteve desde o início envolvido nas reuniões conspirativas do Movimento dos Capitães da Guiné. Não esquece a referência ao MAPOS, o Movimento pela Paz que agregou oficiais, sargentos e praças, constituído em 4 de maio.

Observa que a guerra da Guiné acabou no dia 26 de abril. “É certo que ainda houve alguns combates, havendo a lamentar, nos cinco meses seguintes, cinco mortos entre os militares portugueses. Sem querer desvalorizar o significado destas mortes, ainda mais absurdas num tempo em que estavam abertos os caminhos da paz, é de lembrar que nos onze anos de guerra na Guiné morreram em média cinco militares portugueses em cada dez dias. O que houve foi o resultado de alguns incidentes provocados na sua maioria por comandantes do PAIGC, que no mato tomaram iniciativas individuais, que foram logo reprimidas pela direção do partido.” E lembra o papel que tiveram as sessões de esclarecimento em muitas unidades do interior.

Tem agora a palavra Luís Araújo, da Repartição da ACAP do Comando-Chefe em Bissau. Desembarcou em Bissau em março de 1973, engenheiro de formação, regista as primeiras impressões, a atuação dos oficiais milicianos, os acontecimentos do 25 de Abril e dias imediatamente posteriores. “A minha função era a recolha e processamento de informação que permitisse ao Comando-Chefe acompanhar a opinião da evolução pública, quer nacional, quer internacional, sobre a situação da Guiné. Produzia relatórios periódicos de divulgação interna reservada, baseados em fontes de informação internas do território e em posições expressas na imprensa portuguesa e nacional.” Irá colaborar depois com comissões de apoio às funções de Carlos Fabião.

O último depoimento pertence a Rui Pedro Silva, nome já mencionado por José Pratas e Sousa. Ele comandava a companhia de Caboxanque, pela rádio ouviu falar no golpe de Estado. Vem de férias em março de 1974, no regresso é confrontado com a notícia da morte de dois soldados. Fazendo um balanço desse mês de março, observa que no Cantanhez houvera uma forte manifestação na capacidade do PAIGC. Faz uma alargada digressão sobre os acontecimentos políticos em Portugal, como correu a sua mobilização, foi enviado para Angola em 1971 e 1972, esteve nos Dembos, volta a Mafra para o curso de comandante de Companhia, como se processou em termos efetivos a operação Grande Empresa, encetada em 6 de dezembro de 1972. Tem importância o que escreve a seguir sobre a quadricula para Cafal, Jemberem, Cobumba e Chugué, lembrando que o relato detalhado desta operação é da lavra do Coronel Moura Calheiro no seu livro "A última Missão", ele foi o coordenador da operação desde o seu início. Em 27 de setembro de 1972, a CCAV n.º 8352 é transferida para Caboxanque. “Nos primeiros cinco meses em Caboxanque, a maioria dos militares dormia em valas, a comida era distribuída por uma viatura que percorria o limite do aquartelamento por onde estavam distribuídas as três secções de cada um dos quatro pelotões, cerca de quilómetro e meio, chegando já fria à últimas secções, utilizavam uma vala como latrina, partilhavam sem privacidade.”

Conta várias peripécias, até de um estranho acidente com uma arma de fogo, como se procedia a ação psicológica, desde a melhoria das habitações da população local à assistência de enfermagem. Também escreve a sua versão sobre os acontecimentos de 1973, e assim chegamos ao encontro com o PAIGC em maio de 1974, que ele descreve assim:
“Reuni os chefes da tabanca, poucos dias após os 25 de Abril, informei-os que íamos cessar as patrulhas na zona operacional, mas que queríamos manter contacto com a população que vivia fora de Caboxanque e pedimos que disso dessem infomação a essas populações. Cerca de duas semanas após o 25 de Abril, fomos visitados por um comissário do PAIGC, vinha fardado e naturalmente desarmado. Apresentou-se em Cufar e depois, a seu pedido, transportado em escolta até Caboxanque. O encontro foi muito cordial. Primeiro, pediu autorização para visitar a família que vivia em Caboxanque e que não via há bastante tempo. Depois dessa visita realizámos uma longa conversa, partilharam das dificuldades vividas. Concordámos que não haveria lugar a emboscadas, ataques ou minhas em toda a zona operacional. Para nós, a guerra tinha terminado. Na despedida, demos um abraço”.
A companhia é transferida para Bissau em junho, Rui Pedro Silva fica a trabalhar no secretariado do MFA.

O anexo inclui imagens da Voz da Guiné, de encontros entre as nossas tropas e as do PAIGC.

Obra de referência para o estudo das relações entre os oficiais do quadro permanente e milicianos na génese, organização do MFA Guiné e das ações posteriormente desenvolvidas em conjunto.


Gadamael, maio de 1974. A primeira visita do PAIGC à tabanca e aquartelamento de Gadamael: Em primeiro plano, ao centro, o Comandante do COP5 (Cap Ten Fuzo Patrício); do seu lado direito está o comissário político do PAIGC, de cigarro russo na boca. Imagem retirada do nosso blogue
Pirada, primeiros contactos com o PAIGC, junto à fronteira do Senegal com o fim de combinar a "passagem de testemunho", dirigido pelo Comandante Jorge Matias, do BCAV 8323. Fotografia de António Rodrigues, com a devida vénia
China, Amílcar Cabral e o PAIGC: um namoro em três tempos Delegação do MPLA e do PAIGC na China, em Agosto de 1960, a convite do Comité Chinês de Solidariedade com África e Ásia. Imagem da Associação Tchiweka de Documentação
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Notas do editor

Vd. post de 23 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26950: Notas de leitura (1812): Guiné - Os Oficiais Milicianos e o 25 de Abril; Âncora Editora, 2024 (2) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 27 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26962: Notas de leitura (1814): O fotógrafo Alfredo Cunha, a Guiné, o 25 de Abril no mais antigo museu português (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 6 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26893: Notas de leitura (1805): "Crepúsculo do Império, Portugal e as guerras de descolonização", coordenação de Pedro Aires Oliveira e João Vieira Borges; Bertrand, 2024 (Mário Beja Santos)



Obra de referência sobre os últimos anos do colonialismo português

Mário Beja Santos

Publicado em novembro de 2024, pela Bertrand, "Crepúsculo do Império, Portugal e as guerras de descolonização", coordenado por Pedro Aires Oliveira e João Vieira Borges, este volume de quase oitocentas páginas, que reúne a colaboração de mais de três dezenas de autores, destina-se a familiarizar o público com algumas das investigações mais inovadoras acerca das guerras coloniais de Portugal. Beneficia, naturalmente de avanços historiográficos facilitados pela abertura dos arquivos portugueses.

“Instituições como o Arquivo Histórico Militar e o Arquivo da Defesa Nacional têm recebido, nos últimos anos, significativas incorporações, e funcionam segundo normas que, em geral, se alinham com as políticas de acesso arquivístico mais abertas no plano internacional. 

Como a história das guerras coloniais não se cinge apenas à sua dimensão militar e operacional, outros arquivos têm sido procurados pelos investigadores, com destaque para os acervos depositados nos Arquivos Nacionais Torre do Tombo e nos Arquivos Histórico-Diplomático e Histórico-Ultramarino. 

A isto teremos também de acrescentar toda uma pletora de arquivos internacionais, que tanto inclui os antigos aliados ocidentais de Portugal como os de vários ex-satélites da URSS que a partir de 1990 adotaram regras mais abertas no tocante aos acervos dos seus serviços diplomáticos e de inteligência (como a República Checa), ou a constelação de países do agora chamado Sul Global que desempenharam papel de relevo na solidariedade e apoio aos movimentos independentistas das colónias portuguesas”.

Vejamos, em síntese, a estrutura da obra:

A primeira parte intitula-se “Enquadramento”, aqui se procura estabelecer um quando contextual das guerras coloniais portuguesas em termos políticos, estratégicos e militares; 

a segunda parte denomina-se “Economia e Sociedade”, aqui explora-se a dimensão económica das guerras e os seus impactos sociais; 

a terceira parte obedece ao mote “Mobilização, Luta e Propaganda”, procura familiarizar os leitores com diversos aspetos da conduta do conflito, numa visão que procura conciliar uma abordagem analítica e algum sentido cronológico;

 “Dor e Sofrimento” é a quarta parte, aqui se enunciam os aspetos mais dolorosos do conflito, aqueles que resultam das baixas em operações militares, atrocidades, situações de cativeiro. 

A quinta e última parte é “Fim do Império”, são duas sínteses sobre as vicissitudes deste processo, primeiro na metrópole e em África, e depois nos territórios onde o nível de empenhamento militar português foi comparativamente menor do que em África, mas nem por isso menos gerador de consequências dramáticas, basta recordar Timor.

Sendo totalmente inviável alargar comentários a todos os diferentes comentários, vejamos, a título meramente ilustrativo o modo como os investigadores abordaram certos temas:

“Insistir na tese da vitória traída pode ser politicamente conveniente ainda hoje, mas é insistir em não querer perceber que uma guerrilha não ter por objetivo uma vitória convencional. Ela aposta na atrição prolongada da vontade de combater de um inimigo à partida muito mais forte. As guerrilhas independentistas sabiam não ser realista, nem tiveram como objetivo marchar sobre Lisboa, Paris ou Londres, pois não precisavam disso para atingir o seu objetivo estratégico: transformar o colonialismo num ativo tóxico na política internacional e demasiado custoso em vidas e despesas para ser viável a prazo na política interna das potências colonizadoras.”

“Ponto determinante foi a incapacidade de o poder político transmitir às suas Forças Armadas o que pretendia delas, isto é, o que considerava uma vitória e qual o seu objetivo. Esta incapacidade está plasmada nas cartas de comando entregues pelo Governo aos generais quando os nomeava comandantes-chefes. São todas elas idênticas e do tipo de ordens gerais: manter a ordem no território, colaborar com as autoridades civis e assegurar a relação pacífica entre os habitantes. Com esta latitude de objetivos cada general deduziu a sua missão. E daí cada um ter agido de acordo com a sua análise.

A perda da vontade de combater é uma das condições para o fim de uma guerra. Os capitães preferiram derrubar o regime, antes que o regime fizesse deles os bodes expiatórios da sua incapacidade, como acontecera na Índia. Preferiram defender o seu povo antes que o regime levasse o povo à exaustão.

O 25 de Abril de 1974 também resulta do sentimento de desconfiança dos militares relativamente ao poder político da ditadura do Estado Novo e dos seus dirigentes.”


No ensaio dedicado à estratégia e liderança do Conselho Superior de Defesa Nacional, abordando-se a situação na Guiné no período que vai de novembro de 1969 a maio de 1973, escreve-se:

“A situação na Guiné era a mais crítica. Na reunião de maio de 1971, Spínola deixou claro não ser possível vencer militarmente, levantando forte oposição dos ministros da Defesa e do Ultramar, que preconizavam a possível solução política teria de ter uma vitória no campo militar. Para Spínola, a solução ultrapassava largamente a possibilidade de uma vitória militar, e apenas no quadro de uma plataforma diplomática e política era possível encontrar uma solução de fundo para a Guiné. Qualquer solução que fosse orientada para a vitória militar tinha apenas como consequência e exaustão de recursos humanos, materiais e financeiros. Sem demonstrar aberta concordância com Spínola, Caetano considerava que o esforço financeiro suportado era muito elevado e não tinha a certeza de que a economia do país pudesse continuar a suportá-lo por muito mais tempo.”

Abordando a condição em que ficaram os combatentes africanos que tinham sido leais a Portugal, vejamos o que se escreve sobre a Guiné:

“O elevado número de guineenses ao serviço de Portugal, a sua reconhecida destreza militar, e a própria notoriedade alcançada por muitos deles num território com aquelas dimensões, tornava o PAIGC particularmente receoso quanto à desmobilização daqueles elementos. O seu desarmamento começou a ser feito a partir de 19 de agosto, imediatamente após o acordo de independência, sob a supervisão do Brigadeiro Carlos Fabião. Esse processo deveria ter lugar contra o pagamento de seis meses de salário e uma guia de marcha que habilitaria os antigos combatentes a apresentarem-se ao serviço nas Forças Armadas do Novo Estado, a partir de janeiro de 1975.

A possibilidade de os militares guineenses das Forças Armadas portuguesas, na qualidade de cidadãos da República da Guiné-Bissau, serem elegíveis para o pagamento de pensões de sangue, invalidez e reforma por parte do Estado português estava previsto no Acordo de Argel, mas nos anos seguintes nenhum programa completo para concretizar essa promessa seria implementado. 

A queda em desgraça do setor spinolista da Revolução, na sequência dos acontecimentos do 11 de março de 1975 em Lisboa, trouxe graves consequências para estes elementos, particularmente para os que se tinham distinguido em unidades de operações especiais.

 Os serviços de segurança do novo Estado, organizados por elementos formados na URSS, RDA e Checoslováquia, terão sido instrumentais na identificação e eliminação de vários ex-comandos. Dados revelados em 1980, mencionam 53 fuzilamentos ocorridos em 1965, mas as matanças conheceriam um novo pico em 1978, a propósito de rumores que apontavam para o envolvimento de antigos elementos do Exército colonial num alegado golpe de Estado liderado por Malam Sanhá, um ex-comando.”

Livro essencial, portanto.

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Nota do editor

Último post da série de 2 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26875: Notas de leitura (1804): "A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa", por António Duarte Silva; Afrontamento, 1997 (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 11 de abril de 2025

Guiné 61/74 - P26677: Humor de caserna (198): Carlos Fabião, um oficial duplamente superior, grandalhão e brincalhão (António Novais, ex-fur mil trms, Cmd Agr 2951, Cmd Agr 2952 e Combis, Mansoa e Bissau, 1968/70)

 

Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Bambadinca >  CIM >  c. 1971/73 > A nova força africana... O major inf Carlos Fabião, na altura,  comandante do Comando Geral de Milícias, e o gen Spínola, passando revista a uma formatura de novos milícias.

Fonte:  Autor da foto: desconhecido. In: Afonso, A., e Matos Gomes, C. - Guerra colonial: Angol,a Guiné, Moçambique. Lisboa: Diário de Notícias, s/d. , pp. 332 e 335.. (Reproduzidas com a devida vénia).



1. O António Novais Ribeiro, engenheiro técnico (ISEP), reformado, morador na Senhora da Hora, Matosinhos, amigo da Quinta de Candoz, e agora maestro de um grupo coral e outro de cavaquinhos, contou-me, há um ano atrás,  várias histórias  divertidas do então major de operações Carlos Fabião com quem trabalhou no âmbito do Comando de Agrupamento 2952, em Mansoa, entre março e julho de 1968.

 São pequenas histórias que revelam muito do seu  caráter, sentido de humor, ar brincalhão, afabilidade, mas também da sua postura como homem, cidadão e  militar...  Merecem ser reproduzidas aqui na série "Humor de caserna" (*).

Parafraseando um conhecido provérbio popular ("Os homens conhecem-se pelas palavras e os bois pelos cornos"), poderíamos dizer que a um bom militar também não fica mal a boa disposição e o bom humor, qualidades que não têm que ser  incompatíveis com o exercício da liderança.

2. O Carlos Fabião apresentou-se no Cmd Agr  2952, em Mansoa, no dia 25mar68, com a patente de major, para ocupar o lugar de Of Op Inf (**). O António Novais era fur mil trms, trabalhando sob a dependência do alf mil trms, Luís Reis Torgal, hoje conhecido historiador e professor da Universidade de Coimbra, reformado.


Um dia chamou o fur mll Novais (era assim que o António era tratado) e entregou-lhe um "aviãozinho de papel" , pintado a cores e tudo:

− Novais, guarde-me aí na sua gaveta este aviãozinho.

− Para quê, meu major?

− Quando você tiver 53 aviões, avise-me para eu ir de férias!...

... E todos os dias lhe confiava um aviãozinho de papel, pintado às cores, até à véspera da sua ida de férias à metrópole...

3. Também era brincalhão, e gostava de pregar partidas aos seus subordinados, incluindo alferes e furriéis.
 
A sala de operações do Com Agr, em Mansoa, tinha um postigo de ligação ao gabinete onde estavam o Torgal e o Novais.

A secretária do Torgal estava encostada à parede que tinha o postigo, o qual, por sua vez, estava tapado com uma tampa do lado da sala de operações e com uma placa de platex perfurado, do lado do gabinete de transmissões.

O Fabião abeirou-se do postigo e disse ao Torgal:

− Torgal, chegue-se aqui ao postigo, pois que lhe quero dar uma informação.

O Torgal respondeu:

 − Diga, meu major!  

Ao que o Fabião lhe disse do outro lado:

− Encoste-se mais ao postigo…

O Torgal encostou a cabeça ao postigo e, do outro lado, o Fabião, que tinha preparado uma seringa com água, logo borrifou a cara do Torgal…

4. O Carlos Fabião costumava mandar aprontar uma viatura, aos sábados, e convidava alguns elementos do Agrupamento  para o acompanharem em visitas às tabancas de Mansoa para conviver com a população, em ações de psicossocial.  (O Novais disse-me que nunca foi.)

Nessas viagens, o Carlos Fabião, com a sua lendária coragem e empatia, costumava levar garrafas de aguardente de cana, para distribuir pelos balantas, os quais se manifestavam alegremente com exclamações de “Olha o nosso Fabião!", enquanto iam beberricando a aguardente…

5. Também desenhava muito bem... Um dia fez um "boneco" com a chegada do Nuno Tristão à costa da Guiné, em 1446... 

O navegador português morreria pouco depois com uma flecha, possivelmente envenenada. Antes de morrer, o Nino Tristão ainda tem tempo, no "cartoon" do Carlos Fabião, de exclamar:

−   Oh! Nem me deram tempo para fundar a Casa Gouveia…

6. Outro “cartoon” que fez, mostrava um quarto, uma mulher de joelhos na cama e com um lençol a tapar-lhe parte do corpo, bem como o seu amante a enfiar um punhal no buraco da fechadura do quarto, sendo que, do outro lado,  estava o Camões a espreitar. 

A legenda dizia: 

− Como Luiz Vaz perdeu um olho…

7.  Outra do Fabião:

O Cmd Agrup 2952 recebe uma mensagem Zulu ("Relâmpago"), secreta... O 1º cabo cripto decifrou-a, imediatamente, e logo a entrega, descodificada e em envelope fechado, ao furriel de transmissões, para ser entregue ao oficial de operações, major Fabião.

O Novais procura, a correr, o Fabião. Em vão, vasculhou tudo o que era sítio no quartel de Mansoa....

Esbaforido, já desesperado, acaba finalmente por o localizar na Secretaria do Agrupamento, onde não seria suposto estar.

Exclamou o Novais, à beira de um ataque de nervos:

− Porra, meu major, onde é que o senhor se meteu? Tenho aqui uma mensagem relâmpago para si, ando há duas horas à sua procura....

Ao que o Fabião responde:

− Novais, você sabe que a mensagem relâmpago tem o grau máximo de procedência, mas isso é para o cripto, e lá na tropa... Agora, aqui na Guiné, você tem 24 horas para ma entregar... Como só lá vão duas, ainda tem 22 horas de avanço...

Após a entrega da msg e,  quando o Novais chegava à porta de saída da Secretaria, o Fabião chamou:

− Novais!

Quando este se virou para atender à sua chamada, estava o Fabião com um mata-borrão, tipo bola de rugby que, chutando, disse: 

− Apanhe!...

A propósitos das mensagens... Recorde-se que a Z,  de ZULU (= Relâmpago) no centro cripto passava à frente de todas as outras: grau máximo de urgência.

 9.  Outra ainda que me contou o António Novais Ribeiro, membro da Tabanca de Candoz (e próximo grão-tabanqueiro)...  

Grandalhão de corpo e espírito, bem humorado  (ou já "apanhado do clima", como todos nós...), o major Fabião chamou o alferes Torgal, comandante do pelotão de transmissões do Agrupamento,  dizendo-lhe:

 − Torgal, quero o pelotão de transmissões todo formado, mas o Novais forma ao lado.

 Meu major, então porque é que o Novais forma ao lado, se eu é que sou o comandante do pelotão?

−  Porque eu quero correr-vos todos à chapada, mas o Novais forma ao lado porque não tem cara para aguentar duas chapadas!

[Texto: recolha, revisão e fixação: LG]

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Notas do editor:

(*) Último poste da série : 28 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26624: Humor de caserna (108): dicas da "medicina do viajante"...(Do blogue "Africanidades", do nossso amigo e histórico da Tabanca Grande, Jorge Rosmaninho Neto, desaparecido do nosso radar)

(**) Último poste da série > 30 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18965: (De)Caras (115): O Carlos Fabião que eu conheci (António Novais Ribeiro, ex-Fur Mil Trms, Cmd Agr 2951, Cmd. Agr 2952 e Combis, Mansoa e Bissau, 1968/70)

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26480: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (167): De Bissau a Nhacra e depois Mansoa, de jipe: a última aventura no CTIG, que acabou mal, e que passou pelo Café Bento



Guiné- Bissau _ Região do Cacheu > Barro > 1998 > O A. Marques Lopes (1944-2024), atravessando de piroga o Rio Cacheu, no decurso da sua primeira viagem à Guiné, depois do regresso a casa  em 1969. Voltaria lá ainda em abril de 2006.


Foto (e legenda): © A. Marques Lopes (2005). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Da autobiografia (ficcionada)  do A. Marques Lopes, "Cabra Cega" (Lisboa, Chiado Editora, 2015,  578 pp.), reproduzimos as pp. 564/572) a partir do ficheiro em pdf que ele disponibilizou na sua página do Facebook, para os seus amigos e camaradas poderem ler e lembrar-se dele quando chegasse a sua hora de se despedir da Terra da Alegria.

É uma homenagem a um dos 111 históricos do nosso blogue, falecido ainda recentemente (em 4 de julho de 2024) e um grande operacional (que passou por duas subunidades, a CART 1690 e a CCAÇ 3, entre 1967 e 1969)... DFA, foi reintegrado no exército: faleceu, aos 80 anos,  com o posto de coronel de infantaria, na situação de reforma.  Conheci-o, pessoalmente, na vésperad e Natal de 2005, na casa dos meus cunhados, na Madalena, Vila Nova de Gaia. Tem mais de 290 referências no nosso blogue.


 De Bissau a Nhacra e depois Mansoa, de jipe: a última aventura no CTIG, que acabou mal, e que passou pelo Café Bento
 

por A. Marques Lopes (1944 - 2024)



(...) Passara dez meses ali ao pé do Senegal. Ao fim desse tempo mandaram-no ir para Bissau, era para regressar à metrópole. Estava livre, até que enfim, pensou. Mas, afinal, não esteve.

Tinha chegado há poucos dias e disseram-lhe que tinha de ir montar uma emboscada em Bissalanca, perto do aeroporto, pois suspeitavam de um ataque lá. Deram-lhe um pelotão de uma companhia que não soube se tinha acabado de chegar ou se era das que já lá estavam. Nem quis saber, porque ficou é lixado.

Antes, decidiu ir ao Bar de Oficiais do QG beber uma cerveja. Foi ao balcão, pediu uma e foi sentar-se com ela num dos sofás que lá havia. Tentava acalmar-se, pois não lhe agradara nada ter de ir para o aeroporto armar uma emboscada. Estava em Bissau para curtir antes de embarcar, não para isso, já lhe chegara no mato. No meio destas reflexões chega-se à frente dele um tenente-coronel. Já lhe tinham dito que ele era o gerente da Messe de Oficiais, chamavam-lhe “O lavrador” porque gostava muito de tratar de uma horta que havia na zona da Messe.

Não pode estar aí, nosso alferes   lança-lhe ele.

Ficou mesmo espantado. Não estava a ver porquê.

 – Não posso porquê, meu tenente-coronel? perguntou-lhe, sem se levantar.

 – Porque o seu camuflado está a sujar o sofá.

De facto, era tudo gente fina que estava ali naquele bar. Camisas de manga curta e calças limpinhas e passadinhas a ferro, impecáveis, sapatos pretos brilhantes. E ele com o seu querido camuflado, pele da sua carne em muitos dias e noites de mato, com as suas botas calcorreadoras de zonas de capim e de bolanhas. O camuflado estava já muito amarelado e debotado pelo uso, tinha até um buraco ou outro, ali destoava um bocado, é verdade, mas estava limpo, tinha sido lavado. As botas eram de lona mas estavam limpas da lama do tarrafe. Levantou-se para ver se havia de facto alguma sujidade. O grupo que estava ao balcão observava.

Olhou para as pernas, levantou os braços e mirou para cada um, deu meia volta à esquerda e à direita e observou os flancos.

–  Não vejo nada sujo.

–  Não interessa, assim fardado não pode estar aí.

Tinham-no mandado para uma emboscada e vinha agora este com estas merdas. Foi a bebida, foi a raiva, foi o desprezo?, ficou com vontade de lhe dar um murro. Todo ele estava para isso. Um major que estava ao balcão topou e chegou-se ao pé deles.

– Tenha calma, nosso alferes. Meu tenente-coronel, deixe o homem beber a cerveja. Ele vai-se já embora, não é?

Aiveca não disse nada, bebeu o resto da cerveja, pôs a garrafa em cima da mesinha com força e saiu. Alguém lhe disse mais tarde que o major se chamava Carlos Fabião.

Atrás dele veio um alferes que conhecera lá no bar, trabalhava no Gabinete de Justiça do QG. Era magro, moreno, e tinha uma barbicha à passa-piolho.

 – É pá, se quiseres fazer queixa do gajo o Spínola dá-lhe uma porrada com certeza.

 Não faço nada. Quero que o tipo se foda e o Spínola também - e foi-se embora.

Já com o pelotão em viaturas, a caminho do aeroporto, chegaram ao pé do palácio do Governador. Ao lado estava o edifício da Associação Comercial. Havia lá grande festa, janelas iluminadas, ouvia-se música de dança. Mandou parar.

  Porque é que paramos, meu alferes? –  pergunta-lhe um furriel ao pé dele.

   Estou com vontade de ir ali e dar cabo daquela merda toda. A gente aqui e eles a gozar.

O furriel abriu os olhos.

   Mas isso não pode ser. Levávamos uma porrada das grandes. Era mau. Sobretudo para o meu alferes que está prestes a ir embora.

   Está bem, tens razão. Mas daqui a uns meses vais perceber este sentimento. Vamos embora.

E foram para o aeroporto. Não houve nada e lá para as cinco da madrugada regressaram.

Foi para os anexos à Messe de Oficiais onde dormia e onde dormiam também vários alferes que estavam de passagem ou à espera do embarque de regresso. Apeteceu-lhe fazer qualquer coisa para acalmar a fúria. Viu um bidão que estava ali com garrafas de cerveja. É isto. Agarrou em várias garrafas e começou a atirá-las para cima dos telhados do anexo. Que gozo! Bum, bum! Em cima dos telhados de zinco, bum, bum! Riu-se à brava a vê-los sair das portas todos alarmados e em cuecas.

  Que merda é esta?!   gritavam.

Viram que era ele a atirar garrafas e ficaram mais descansados, mas chamaram-lhe todos os nomes antes de voltarem para as camas. Aiveca foi também. Estava mais satisfeito, tinha desopilado.

De manhã, o Almeida Campos, um alferes que andava por lá, convidou-o para ir com ele ao Bento. Era onde se sabia de tudo, porque por lá passavam quase todos os que vinham ou ainda estavam no mato e contavam coisas, tudo, operações, ataques, mortos. Era o sítio das informações, por isso lhe chamavam a 5ªREP, que era a Repartição de Informações do QG. Todos ficavam a saber coisas, todos e também os miúdos e miúdas que entre eles andavam a vender camarão, caju e mancarra ou a engraxar as botas dos mais aprumados. Muita coisa o PAIGC devia saber também através deles.

Comeram uns camarões e beberam umas canecas. O Almeida Campos tinha sido apontador de obus lá para o sul e estava também à espera de embarque para ir embora.

  É pá, e se a gente fosse dar uma volta?    perguntou a Aiveca, que estava de má cara, ainda lixado com o “Lavrador”.

  Uma volta aonde?

   Para fora de Bissau.

Não lhe desagradava.

   Mas precisamos de um jipe para isso   disse Aiveca.

   Eu requisito um jipe ao QG.

   E vão dar-to?...   Aiveca duvidou.

  Está descansado que eu conheço lá um sargento.

E o Almeida Campos conseguiu-o. Saíram de Bissau não sem antes meterem uns whiskys no bar da Messe de Oficiais. Chegaram a Nhacra eram horas de almoçar. Pararam numa tasca á beira da estrada para comer. Foi frango de chabéu regado a muito vinho fresquinho. Era o preferido de Aiveca.

–  A gente podia ir mais longe  –  opinou Aiveca.

Estavam bem aviados e ele já estava por tudo.

 
– Claro  – disse o Almeida Campos . – Metemos pela estrada sempre em frente e logo se vê.

Grande homem, era dos dele!

Foram pela estrada cerca de uma hora. Nada, não viram nada pelo caminho, só mato dum lado e doutro, até que chegaram a uma povoação. Muita gente os olhou, admirada, quando entraram.

–  Eu acho que isto é Mansoa  – pareceu a Aiveca.

Era. Um grupo de militares veio ao encontro deles. Cumprimentos, interrogações.

–  Que vieram cá fazer?

–  Nada. Só passear.

–  São doidos. De Bissau aqui só em coluna militar.

Havia um jogo de futebol e foram até lá para ver. No fim do jogo houve festa com muita cerveja e eles entraram nela.

–  Ó Almeida Campos, é melhor irmos embora que está a fazer-se tarde.

Já tinha passado muito tempo.

 
– Tá bem. Mas antes vamos pedir aqui umas cervejas para o caminho.

Eles deram-lhas, e um fuzileiro, nunca soube porque é que ele lá estava, pediu-lhes boleia. Foi com eles.

Uma viagem de regresso muito alegre. O Almeida Campos ia a conduzir e Aiveca ao pé dele, de pé, sempre a cantar. O fuzileiro ia no banco de trás. Iam bebendo as cervejas ofertadas e a cantar.

Já tinha começado a escurecer quando viram ao longe as luzes do aeroporto. Aiveca ia de pé, agarrado ao para brisas e sempre a cantar. Às tantas o Almeida Campos sai da estrada. O jipe andou uns metros e espetou-se contra uma árvore.

Foi uma sensação já vivida quando fora projectado pelo rebentamento da mina. Foram uns segundos, ou minutos?... Não deu para saber, porque é um tempo de nada. Há o choque, ou o rebentamento, e a seguir é o vazio completo, sem ah! nem oh!, só se sabe quando se bate no chão. Foi o que sucedeu. Deu por si no meio do capim. Levantou a cabeça e viu o jipe a arder, ao seu lado o fuzileiro gemia. Olhou melhor e viu o Almeida Campos estendido sem dizer nada. Chegou-se ao pé dele e pegou-lhe na cabeça. Ficou alarmado pois a mão ficou-lhe cheia de sangue.

–  O fuzileiro ainda mexe mas este não.

Viu umas casas não muito longe. Levantou-se e foi bater às portas mas ninguém lhe respondeu. Estava preocupado com o Almeida Campos. Umas luzes aproximavam-se vindo do lado do aeroporto.

Era uma patrulha que vira as chamas do jipe e queria saber o que se passava. Foram eles que os levaram para o hospital.

O Almeida Campos e o fuzileiro ficaram lá. Este tinha uma costela partida, vinha atrás e batera no banco da frente. O alferes tinha um lanho na cabeça e uma ferida profunda na perna direita. Aiveca não tinha nada, só a farda chamuscada, e regressou ao anexo da Messe de Oficiais.

No dia seguinte foi ao hospital. O fuzileiro tinha sido transferido para a enfermaria da Marinha. O Almeida Campos estava na cama com uma perna engessada, a cabeça ligada e uma cerveja na boca. Riu-se para Aiveca e perguntou-lhe:

–  Estás bom, pá?

–  Eu estou, mas tu não pareces.

 – Estou, sim senhor. Cervejas não faltam.

Dois dias depois, um major, encarregado da peritagem chamou Aiveca para ir com ele reconstituir o acidente.

–  Ó meu major, nós íamos devagar. Houve qualquer problema com a direcção do jipe.

Ele riu-se e mostrou-lhe o sulco dos pneus fora da estrada. Eram uns vinte metros na berma capinada, antes da árvore em que tinham batido.

Aiveca foi apenas testemunha. O Almeida Campos, que requisitou o jipe e o ia a conduzir, e era mais antigo, levou uma porrada de prisão disciplinar, teve de pagar o jipe e ficou mais uns tempos na Guiné.

Foi curta a estadia em Bissau, porque de alguns dias apenas lá passados antes de embarcar para o puto, mas foi intensa, porque aproveitada como oportunidade para dar largas à loucura que se apossara dele durante todo o tempo em que estivera no mato. Ali não necessitou de cautelas e precauções para garantir a sobrevivência, dele e dos outros. E aquelas do “lavrador” e do aeroporto até o incentivaram para isso.

Muito boas recordações dos restaurantes, onde fez grandes tainadas e apanhou grandes bebedeiras com outros camaradas tão necessitados disso como ele. Óptimas lembranças da Fátima, uma fula do Pilão, em cuja casa, um quarto apenas, dormiu algumas noites, numa cama onde dormia também o bebé de um ano. Boa rapariga, que fazia pela vida e que, por isso, numa das noites lhe fez a proposta de ele trazer umas quantas cervejas do QG para ela vender aos seus visitantes.

 – Estou doido, filha, mas não tanto. Nem penses nisso.

Boas noites lá passou. Uma ou outra com emoção, quando os comandos ou os fuzos batiam à porta e ela respondia:

–  Está ocupado.

E ele a ajudá-la dizendo:

–  Estou eu, vão pra outra.

Houve uma noite, não nenhuma destas nem a da proposta dela, que teve de sair a meio. É que o bebé borrou-se todo. Enquanto ela tirava água do pote para lavar o filho e os lençóis, teve de lhe dizer:

 – Fatinha, já não dá. Assim não. Vou-me embora.

Nesta ordem de lembranças, havia também, junto ao estádio do UDIB, um branco que tinha umas filhas mulatas. A sua casa era um local aberto à frequência dos militares, com muitas bebidas, e as filhas lá estavam para o que desse e viesse. Foi lá uma ou outra vez, só para beber porque, perante aquela situação, sentia que o raio da consciência ainda lhe zurzia e não quis mais nada..

Quanto ao QG, poucas coisas agradáveis. Mas houve uma que até lhe deu muito gozo. Tinham-no encarregado da elaboração do processo a um cabo que fora apanhado a tomar banho na piscina da messe de oficiais do QG, onde só estes e as suas respeitáveis e limpas senhoras é que podiam tomar banho. Fora escandaloso, inadmissível porque pegajoso. Na véspera do seu embarque de regresso olhou para o processo e achou que não lhe devia dar futuro. Rasgou-o aos bocadinhos e meteu-o num caixote de lixo. Ninguém lhe perguntou por ele. (...)

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, título : LG)

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Nota do editor:

Último poste da série > 2 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26106: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (15): Uma ida, algo dramático-burlesca, da CCAÇ 3, ao Senegal