Ílhavo > Costa Nova > 21 de agosto de 2012 > Ao centro, eu e o Zé António Paradela, arquiteto; e à nossa esquerda, a Alice Carneiro e a Matilde Henriques (esposa do Zé António); à nossa direita, o Jorge Picado e o Jorge Paradela, o caçula do casal Zé António & Matilde. A foto foi tirada pelo filho mais velho, o Marco Henriques Paradela, que na altura andava na "tropa do bacalhau", sob as ordens do capitão Valdemar Aveiro, seu padrinho, o "último dos lobos do mar", escritor, com dez livros sobre a frota branca e a pesca na Terra Nova.
Foto (e legenda): © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Por uma razão que não consigo descortinar, mas que só pode ser "por falha técnica ou erro humano" (como se diz quando cai um avião ou descarrila um comboio), o meu querido amigo José António Paradela (1937-2023) não foi formalmente registado como membro da Tabanca Grande, logo em 2007, como devia ter sido. Sempre o considerei como tal, ao longo dos muitos anos de existência que já leva o nosso blogue, mas a verdade é que o seu nome não conta(va) na lista alfabética dos membros da nossa tertúlia...
O concelho de Ílhavo (com cerca de 25 mil habitantes, em 1960, tem hoje perto de 40 mil) teve 10 mortos na guerra do ultramar/ guerra colonial, três dos quais na Guiné, outros três em Angola e os restantes em Moçambique (segundo o portal UTW - Dos Veteranos da Guerra do Ultramar).
Não era, em rigor, uma terra de "infantes", mas sim de marinheiros, pescadores e capitães (da frota de pesca e da marinha mercante). Mas há exceções, como o Jorge Picado, que lá foi parar à Guiné, aos 32 anos, já como capitão miliciano de artilharia (*)...
Não sabemos quantos mancebos de Ílhavo, aptos para o serviço militar, seguiram a opção da pesca do bacalhau ou se alistaram na marinha de guerra, no período em que decorreu a guerra do ultramar / guerra colonal (1961 / 74)..
O nosso Zé António andou embarcado, como "moço, na "frota branca" (**) e depois cumpriu o serviço militar na Marinha, sem ter passado pelo ultramar. A guerra em Angola começou em 1961 e ele ingressou logo n0 ano letivo de 1960/61, na Escola Superior de Belas Artes onde fez o seu curso de arquitetura (concluído em 1967, com um a bolsa de cinco anos da Fundação Calouste Gulbenkian).
Justifica-se a sua entrada na Tabanca Grande pela sua partilha de memórias da pesca do bacalhau que eu considero o "outro lado da guerra" (**)... Tenho pena de não dado conta do lapso, com ele ainda em vida, faço agora a necessária correçao, dois dias depois do corpo do eu amigo descer à terra, no cemitério da sua terra natal... A título póstumo, fica na lugar nº 872, à sombra do nosso simbólico, fraterno e sagrado poilão (***).
Texto de José António Paradela, arquitecto
“…E dentro de uma geração quem é que se lembrará disto? A menos que fique escrito, tudo se perderá no nada.” (Valdemar Aveiro)
Li novamente o teu livro e gostei ainda mais.
Isto só me acontece com certos livros, mas nem sempre pelos mesmos motivos.
Estava a lê-lo e a recordar-me de Alain Gerbault (À la Porsuite du Soleil), e de Hemingway (O Velho e o Mar), mas sobretudo de Melville (Moby Dick).
O barco de que falas já não é de madeira, nem os cabos são de cânhamo, e a baleia tem agora a dimensão dos labirínticos campos de gelo flutuante.
Mas o alento que te atravessa a alma é da mesma natureza, agora consubstanciado na caça ao cardume viscoso e fugaz sob o gelo.
Contudo esse argumento é para ti um apelo, um desafio à aventura, à vitória da descoberta, granjeada num segundo fôlego, ou mesmo num terceiro, quando os outros já ficavam abaixo da linha do horizonte, confundidos com a névoa.
Descobriste e ensaiaste os mapas do comportamento da manta gelada para evitares o seu abraço fatal. Mobilizaste os marinheiros – os rapazes, como lhe chamas – , para o festim opulento corporizado na sacada de peixe de braço dado com o navio, esse saco-prenúncio do pão para os que em terra esperavam.
Não foste, e ainda bem, o capitão Ahab de Melville, ou o Santiago do Hemingway, mas a associação é inevitável. É a vontade em estado puro, de maratonas diariamente repetidas, no afã de levares à terra a mensagem da vitória: Ganhámos!
Como há 2500 anos na Grécia. Os homens mudam pouco!
Estamos perante um livro de prodigioso apelo à memória. À memória do tempo vivido por entre aventuras e histórias que por vezes assume um tom narrativo confessional, para reconstituir um passado feito de retratos minuciosos de seres que existiram (existem) e que marcaram o teu trajecto, quase sempre sobre as águas que do planeta são ainda a parte incógnita. Não falo dos peixes e da sua geografia, mas dos homens que as habitam, estes de quem tu falas.
São histórias assumidas conscientemente como um ajuste de contas contigo mesmo e com aqueles que contigo andaram ou te cruzaram a rota.
O que afirmas na singularidade e sinceridade da tua escrita, é o tempo em que viveste outro tempo, marcado pelos amigos, ou mesmo por aqueles que contigo se confrontaram, e a falta que isso agora te faz.
Paciência, meu amigo, isso é a vida, que faz de cada um de nós uma narrativa única, marcada pela força dos companheiros de aventura e que dentro de nós se arvoram ainda como cínicos que ficaram para nos invectivar e evocar esse tempo de esperanças, amores e desilusões. Um tempo de outrora, mas também de hoje, por dentro de nós.
Este livro é o livro que faltava… Falo do assunto que coloquei como frontispício deste texto.
A história com H grande tem sempre os seus sacerdotes, que vasculham bibliotecas e alinham factos inventando elos de ligação quando necessário. É útil mas insuficiente.
Walter Benjamim, desconfiado da historiografia oficial, incitava a “escovar a história a contra pelo”. Para ele o perigo estava no esquecimento, no silenciamento da memória: “Toda a imagem do passado… corre o risco de desaparecer com cada instante presente que nela não se reconheceu”.
O teu livro, os teus livros, que para mim podiam ser juntos num único, escovam a história a contra pelo.
Haverá quem faça a história oficial da Faina Maior, mas é necessário buscarmos o que nela foi esquecido ou abafado, isto é, o que não existe nos arquivos: Os vestígios que o tempo sufocou, as personagens e os episódios que foram ou não chegaram a ser mesmo colocados nas notas de rodapé dos historiadores oficiais.
O teu livro tem também esse mérito: não deixa silenciar, e regista de modo vivíssimo e rigoroso as ligações orgânicas dos homens – com nome e tudo, aos seus instrumentos e às suas palavras. (Podes acrescentar no glossário: “camisolinha interior = copo de bagaço”).
A compreensão histórica de determinados contextos sociais passa muito por aqui: Pelas ligações orgânicas, e pelos copos… Lembro-me de Pessoa, e sobretudo de Mussorsky, ardido no álcool, a legar-nos música imortal. Hoje, que a Internet comporta e transporta milhões de histórias, podemos ser levados a pensar que o problema não existe, esquecendo que alguém terá de as contar.
E é este acto de contar, que acompanha os humanos desde os primórdios, este incontornável filtro da inteligência e do coração, que constitui a pedra filosofal capaz de transformar uma narrativa banal numa obra de arte viva e perene como tu fizeste para nosso encanto.
Não contaste apenas histórias de uma vida, não personalizaste o navio como já vi, ou o peixe como Hemingway. Contextualizaste um mundo de relações humanas entre o povo flutuante e errático da pesca do Atlântico Norte, cuja aventura cairia minorada se a não contasses.
Ainda que esta seja apenas a tua versão dos factos, ela não deixa de ser menos verdade. Como dizia um combatente da guerra civil espanhola ao relatar a sua experiência:
“… no sé yo cuanto le puede importar a usted ésto que le estou diciendo, no sé si esto le puede importar a alguièn, porque estas cosas no las cuentan los libros, esto no sale nunca en la historia, pero sabe lo que lo digo? Esta es mi verdad”.
Um abraço do teu mano Zé
Em 2004 saiu o seu primeiro livro, Figuras e Factos do Passado: Recordações da Pesca do Bacalhau, numa edição infelizmente nada profissional da Câmara Municipal de Aveiro. Quando o conheci, através do Zé António Paradela, ele teve a gentileza de me oferecer um exemplar desse seu primeiro livro, autografado.
Foi uma revelação, para mim, essas histórias - épicas, dramáticas, picarescas, burlescas, mas sempre humaníssimas - dos nossos marinheiros e pescadores da Terra Nova. Fiquei de lhe fazer uma recensão crítica que nunca chegou a aparecer, à luz do dia, no nosso blogue, do que me penitencio... (mas ainda vamos a tempo).
Por outro lado, sempre me intrigou o facto de, durante a guerra colonial, se poder optar pela dura pesca do bacalhau como alternativa à tropa e à guerra... O capitão Aveiro, como é carinhosa e respeitosamente conhecido, terá recebido - imagino eu - alguns pedidos para aceitar a bordo mancebos que se queriam livrar da Guiné, Angola ou Moçambique, admitindo que a pesca não fosse a sua prineira opção...
Ao repescar esta belíssima apresentação que o seu mano José António Paradela - e meu velho amigo - fez do seu livro, na altura (2007) em 2.ª edição, Histórias desconhecidas dos grandes trabalhadores do mar, estou a homenagear duplamente dois homens de eleição, dois "ílhavos" que muito honram a sua terra.
O capitão Valdemar Aveiro, como como todos os mareantes, é um execelente contador de histórias. Tem, além do talento, a grande vantagem da vivência e da autenticidade... Que ele e o Zé António sejam também exemplos inspiradores para todos nós, amigos e camaradas da Guiné, os antigos combatentes que, enquanto geração, estão a desaparecer todos os dias...
O Verde (#)
No dia em que, “verde”, me puseram entre tábuas
De um catafalco a que chamaram bote
E me disseram: Salta, esquece as mágoas…
Senti, looongo, na garganta um garrote!
Primaveril, meu coração bateu mais forte,
Ao cair na onda junto ao costado,
E remei, como quem enxota a morte,
De dentro do meu “fato oleado”.
Tens pão e peixe, e tens também café quente!
Segue-me quando o meu búzio roncar…”
Disse o “maduro”, comovido, ao ver-me imberbe,
Estendendo as linhas na corrente,
Junto à fria palidez do terrível icebergue.
(***) Último poste da série > 20 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24082: Tabanca Grande (544): Mário Arada Pinheiro, cor inf ref, que, além de 2º cmdt do BCAÇ 2930 (Catió, 1971/73), esteve na 2ª Rep, no QG/CCFAG, e foi comandante-geral de milícias, substituindo o major Carlos Fabião... Senta-se à sombra do nosso poilão, no lugar nº 871.
(****) Vd. poste de 24 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24093: In Memoriam (472): José António Paradela (Ílhavo, 1937 - Aveiro, 2023): pequena homenagem póstuma lida ontem, na igreja matriz de Ílhavo (Luís Graça)