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domingo, 9 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27404: Manuscrito(s) (Luís Graça) (278): "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara, pseudónimo literário de José António Bóia Paradela (1937-2023), ilhavense, urbanista, arquiteto e escritor - Parte III: A Cila Paciência


S/l > 1955 > Alguns dos bravos marinheiros e pescadores que embarcam no "Lousado" em abril de 1955. Na segunda fila, ao centro, o terceiro a contar da esquerda, assinalado a amarelo, é o nosso querido e saudoso Zé António Paradela...

Foto (e legenda):  © José António Paradela (2015). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


O Verde 

No dia em que, “verde”, me puseram entre tábuas
De um catafalco a que chamaram bote
E me disseram: "Salta, esquece as mágoas"…
Senti, looongo, na garganta um garrote!

Primaveril, meu coração bateu mais forte,
Ao cair na onda junto ao costado,
E remei, como quem enxota a morte,
De dentro do meu “fato oleado”.


“Senta-te, Zé, e rema enquanto a força durar!
Tens pão e peixe, e tens também café quente!
Segue-me quando o meu búzio roncar…”

Disse o “maduro”, comovido, ao ver-me imberbe,
Estendendo as linhas na corrente,
Junto à fria palidez do terrível icebergue.


In: Ábio de Lápara -"Santinhas de Apegar: Textos Poéticos" (2017, ed. de autor), pág. 75.

Nota de LG: "Verde" é o pescador ou marinheiro da frota branca, a frota bacalhoeiro, embarcado pela primeira vez; equivalente a "periquito" na tropa e na guerra da Guiné


 

Capa do livro "A Rua Suspensa dos Olhos" de Ábio de Lápara (edição de autor, José A. Paradela, Aveiro, 2015, 164 pp.) (*)...


Ábio de Lápara é o pseudónimo literário de José António Bóia Paradela (1937-2023), ilhavense, urbanista, arquiteto e escritor
 


Excertos de "A Rua Suspensa dos Olhos" - Parte III: A Cila Paciência


por Ábio de Lápara / José António Paradela
(1937-2023)



Chamo-me Ábio e sou uma criança de aspecto frágil e olhos grandes, com vontade de aspirar nuvens ou rasgar horizontes. Passo o tempo nas margens da água a correr atrás de arco-íris que nunca alcanço. Por isso gosto das tintas pastel e tenho uma maneira muito minha de olhar para as coisas.

Nasci gordinho, mas ultimamente o meu corpo afilou. Por aqui, os miasmas do vale atacam duro, com maleitas inomináveis. Dizem os sobreviventes:

Teria feito 88 anos no passado

dia 30 de outubro . Nasceu em
Ílhavo em 1937. Morreu no hospital,
em Aveiro, em 2023. Membro da
Tabanca Grande. Fez a tropa
na marinha de guerra e antes,
em 1955, pesca do
bacalhau, seguindo os passos
dos seus avoengos.



 — Foi um malzinho desconhecido que o atacou...

O fantasma da tísica perfila-se teimoso há muitos anos, matando músicos e poetas cujas obras tiveram o condão de transformar o bacilo em agente do romantismo. De si próprios e dos seus personagens.

Porém os pobres que cá moram não escrevem; e de música... só cantam de ouvido. Sendo assim, a tísica é para eles um modo natural de acabar os dias. Talvez à maneira curta, mas tão natural que continuam a conviver entre todos, no meio da tosse e das hemoptises:

— Coitadinho! Já não falta muito para entregar a alma ao criador... — dizem os que vão ficando.


E enquanto tarda a invenção dos remédios para esta secular maleita, alguns surtos de pestes estranhas transformam o cemitério em jardim, segundo o antigo costume deste povo, que para o efeito cultiva longos canteiros de sécias e crisântemos nas bermas dos seus quintais.

Por aqui, meus amigos, a morte está presente no quotidiano, na sala de cada um, onde os vizinhos e os amigos se vem despedir e carpir, até que o padre venha encomendar a alma e o caixão se feche para ser transportado à tumba húmida... Nada de trágico, pois a vida continua calmamente no dia seguinte.

Os que resistem, são o garante da continuidade do Beco e do Pátio dos Ressoeiros. Entre esses vai ficar este vosso amigo, para contar a estória ao fim de tantos anos.

Mas ficou sobretudo uma mulher. Uma mulher chamada Cila Paciência. De figura muito seca, vestida sempre de negro, com filhos de nomes medievais: Victor, Joaquim, Deolinda, António... Nada de Melissas nem de Vanessas.

Era casada nesse tempo com um homem e com um gato. Ambos amigos do alheio. Ele chamado José... José "Ressoeiro". O gato, de cor parda, tinha um nome que hoje nos parece óbvio: "Tareco".

José passou grande parte da vida na cadeia: entrava por um ano, saía por algum tempo, que dedicava à chincha (#) na Ria, e pouco depois já se tinha metido em zaragatas ou fizera mão baixa a umas ferramentas ou outras coisas de insignificante porte... E lá ia novamente para o chelindró, em Aveiro, nos calabouços do Governo Civil, que a guarda republicana não era meiga.

Aí carpinteirava brinquedos de madeira que mandava para os filhos ou para a mulher vender a troco de uns tostões. Pelo final dos anos quarenta, morreu tuberculoso.

O gato seguiu-lhe as pisadas! Aproveitava as distracções dos vizinhos para assaltar as parcas comidas sobrantes ou em vias de serem cozinhadas, apesar da Cila não lhe faltar com os restos de peixe que diariamente trazia da praça. Estava-lhe na massa do sangue. A sua fome parecia insaciável. Bastava que uma vizinha afiasse uma faca na soleira da porta, e aí estava ele, ofegante da corrida, bigodes expectantes, imaginando tripas do peixe amanhado voando da faca para o chão do Beco!

Um dia, um dos ilustres habitantes do pátio, o Ismael — outro nome de cheiro antigo  — que defendia vigorosamente o seu pecúlio alimentar dos ratos e das moscas que com ele cohabitavam, não lhe perdoou subtracções passadas. Vi eu com os meus olhos esbugalhados de criança, numa bela manhã de sol; lembro-me como se fosse hoje. Única testemunha, só agora vos conto, porque se o tivesse feito então, lá se ia a amizade do Ismael como se foi a do gato! E, para além disso, a sarrabulhada que não seria lá pelo Beco!

O "Tareco" foi por ele cruamente apedrejado. Uma só pedra de grande tamanho esmagou o pequeno crânio abigodado contra uma parede. O "Tareco", sem um gemido, correu num ziguezague estonteado na direcção das terras lavradas, para o ignoto sítio onde morrem os gatos vadios e nunca mais lhe pus a vista em cima.

Não sei quantas vidas teve depois, tal como não sei quantas terá tido antes porque os gatos têm direito a sete, mas sei que esta incerteza serviu para aliviar o meu luto. Eis,  pois,  o cenário limite onde todos os seres eram marginais, na fronteira entre a morte certa e a vida permanentemente ameaçada.

Era aí que a Cila se movia lançando pontes aos que estavam em risco de se afogar. A partir apenas da sua força congénita, do seu aço estrutural de rija têmpera, lutando sozinha para sustentar quatro filhos, mais dois sobrinhos órfãos e apoiar ainda vizinhos e animais necessitados.

Naquele pátio, embora fossem bens escassos, ou por isso mesmo, o pão era pão e o queijo era queijo. Não havia classes mais favorecidas nem menos favorecidas. Esses eufemismos foram inventados muito mais tarde porque ali ninguém era favorecido, fosse muito ou fosse pouco. As classes sociais já eram assim quando todos nasceram : ricos, pobres e remediados. E se um dia alguém mais ilustrado lhes dissesse que eram "lumpen", levava por certo uma carga de porrada.

As ideias políticas eram coisas de senhores importantes, como o Dr. Calisto, que morava ali ao lado e lhes pedia que lhe enchessem os pneus do automóvel com a bomba manual! Quando a Pide o levava preso,  ninguém se questionava, porque os céus do Beco estavam inundados de belos sons.

A sobrinha da Cila, cujo nome só por si valia um jardim, Rosa Cravo, cantava permanentemente e em sonora voz, os amalianos fados de então:

— Fado é sorte, desde o berço até à morte, ninguém foge por mais forte, ao destino que Deus dá!...

E o assunto ficava assim resolvido!

O Júlio, o outro sobrinho, envolvido em românticas paixões, morreu novo no meio de hemoptises, depois de ter regressado do sanatório do Caramulo. O mesmo acabou por acontecer mais tarde à Rosa cantora, gasta de amores como personagem de romance em que o real transcendeu a ficção.

Dos filhos recordo o som das vozes nas tardes de silêncio, e a luta pela sobrevivência, onde a escola era um estorvo porque não permitia que fossem ao mato buscar lenha para angariar algum sustento. Quando chegou a idade de verem o "homem das barbas brancas", lá foram.

O mais velho, para a pesca do bacalhau, o mais novo, que fora meu colega na escola primária, para a pesca costeira. Durante anos encontrava-o quando visitava os meus pais, sentado no meio do pátio, fogareiro aceso e garrafa do vinho ao lado:

— Senta-te aqui, Ábio, e come comigo. Peixe assado não tem dono...

O Joaquim, há muito que pesca carapau no Mar da Tranquilidade...

E o do meio? Bem, esse ... Chamava-se António mas era conhecido por "Guinho". Não o recordo brincando, nem sequer consigo imaginá-lo de pé. Uma tuberculose óssea atirou-o para uma cama do hospital e, quando regressou a casa com o corpo forrado de escaras, apenas mexia ligeiramente a cabeça e a mão direita, colocada perto do rosto para conseguir empurrar alguma comida para a boca.

Naquela posição, inerte como uma múmia, sempre envolvido em alvos lençóis  que a Cila nisso não facilitava — o seu catre estava colocado na área comum da casa , frente à porta sempre aberta para que pudesse pedir a ajuda dos vizinhos, e ver quem ia passando no Beco, enquanto ela fazia os leilões do peixe da Ria no antigo mercado da vila.

 — Eh, senhora Rosinha, pode dar-me um copinho de água?! — pedia ele à minha mãe.

O silêncio de então, agora difícil de imaginar, permitia que a sua voz atravessasse o Beco e o pátio e a sua sede fosse satisfeita. Quando chegou a sua hora, morreu. Eu já por ali não vivia.

Estas são estórias que compõem a história da Cila Paciência. Este não era o seu nome, mas era assim que a chamavam. Como no antigo Egito, um nome para responder perante os deuses.

Uma mulher de fraca estatura que carregou as desgraças de uma família inteira, a quem eu lia as cartas que recebia de familiares de Matosinhos, ou do filho ausente na pesca do bacalhau. E que transportava ao colo os filhos dos vizinhos quando a solidariedade se impunha à sua escufenada consciência.

Muito haveria ainda a contar, mas não os quero cansar com mais tristezas. O Rimifon e as Sulfamidas estavam prestes a chegar à farmácia do "Manéuzinho", e a tísica pouco a pouco desapareceu do Beco.

Não sei que idade tinha a Cila quando a atropelaram no regresso do mercado. Inválida, não resistiu à inacção por muito mais tempo.

Deixou uma filha e um filho. O mais velho e a mais nova. Provavelmente, alguns netos.

Soube disto pela minha mãe, há cerca de trinta anos.

Disseram-me há poucos dias, que Domingos Paciência, jogador e treinador de futebol, é neto do seu irmão que viveu em Matosinhos. Aquele de quem eu lhe lia as cartas!


Costa Nova, Novembro de 2011


Fonte: Excertos do manuscrito , em pdf, de "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara, que ajudei a rever em 2015, antes da execução gráfica do livro com o mesmo nome. Recorri de momento ao manuscrito por não ter aqui à mão um exemplar do livro em papel.

(Revisão / fixação de texto, negritos: LG) (**)
____________

Nota de LG:

(#) Pesca na ria de Aveiro com  rede de arrastar para a praia, chamada chincha ou chinchorro.


2. Nota do editor LG > Tuberculose pulmonar  (ou "tísica) em Portugal


Durante o século XX, a tuberculose pulmonar (vulgo,  "tísica") foi uma das principais causas de morbimortalidade em Portugal, refletindo condições sociais, económicas e sanitárias adversas, sobretudo nas primeiras décadas do século. 

Era uma doença associada à pobreza, às más condições de vida, de habitaçáo, de trabalho,  de higiene (pessoal e ambiental), e à subnutrição.E, claro, a um incipiente sistema de saúde.

Tal como a mortalidade infantil. O Zé António nasceu em 1937. E eu em 1947. Nessa altura, a tuberculose era endémica em Portugal, com altas taxas de incidência e mortalidade. Tal como a mort6alidade infantil: morriam 120 crianças, até a um ano, em cada mil, em 1945. 

No existiam tratamentos eficazes:  o isolamento em sanatórios (como o Sanatório do Caramulo, inaugurado em 1921) era a principal medida terapèutica.

Estima-se que, até aos anos 30/40 a tuberculose fosse responsável por cerca de 10% das mortes totais em Portugal.

Irá tornar-se na doença social por excelência, vitimando de preferência os mais jovens e os oriundos das classes trabalhadoras (pescadores e marinheiros incluídos). Chamavam-lhe o mal proletário, mas também peste branca, por analogia com a peste negra. Em meados do Séc. XIX, um em cada dez falecimentos ocorridos no Hospital de S. José era atribuído à tuberculose.

A tuberculose é uma doença infeciosa causada pelo Mycobacterium tuberculosis complex. A forma pulmonar é mais frequente e aquela mais temida pela saúde pública, já que o doente, com tuberculose da via aérea, pode mais facilmente contaminar as pessoas com quem interage, através dos bacilos que liberta através da tosse, da expetoração, da fala, etc,

Com o início da industrialização e o crescimento das cidades, no séc. XVIII, tornou-se epidémica, na Europa, atingindo não só a emergente classe trabalhadora,  assalariada, que veio do campo para a cidade, para trabalhar nas oficinas, manufaturas e fábricas, como também as camadas mais abastadas e as próprias elites.

A doença atingia sobretudo os jovens adultos, nomeadamente trabalhadores, mas não poupava nem príncipes nem princesas... Era  elevadíssima a mortalidade (entre 300 e 400 por 100 mil habitantes, e nalgumas cidades o dobro). Mas, enquanto noutros países, a taxa de mortalidade por tuberculose começou a baixar, lenta mas persistentemente, em Portugal mantinha-se alta nos finais do séc. XIX.

O total de mortes por tuberculose, nos finais do séc. XIX; era estimado em 15 a 20 mil (o equivalente a uma taxa de cerca de 300 a 400 por 100 mil habitantes). Era a segunda causa de morte em Portugal (e vai manter-se nessa posição até à II Guerra Mundial).

Só em 1882 foi identificado, pelo alemão Koch, o bacilo, causador da doença, mas só 65 anos depois, em 1947, é que surgirá um tratamento eficaz, a estreptomicina, isolada em 1943 pelos investigadores A. Schatz, E. Bugie e S.Waksman. A imunização (pela vacinação BCG) só passará, entretanto, a ser usada em grande escala a partir de 1954, ou seja, numa altura em que a mortalidade por tuberculose já estava reduzida a uma pequena parte do que fora cem anos antes (cerca de 400 por 100 mil). A nossa geração foi a primeira a beneficiar desta vacina, um passo enorme dado pela nossa saúde pública!

As primeiras seis ou sete décadas do séc. XX são dominadas pelo “movimento dos sanatórios” que foi em grande parte uma iniciativa alimentada pela filantropia privada, sendo justo destacar o papel da rainha Dona Amélia que soube mobilizar conhecimentos, competências, influências e recursos financeiros para prevenir e combater a tuberculose, criando-se logo em 1899 a ANT – Associação Nacional aos Tuberculosos, com o objetivo explícito de construir hospitais marítimos para crianças, sanatórios de altitude para tuberculosos curáveis, hospitais para internamento de doentes incuráveis e dispensários para diagnóstico prevenção, administração de cuidados ambulatórios e apoio médico-social.

O movimento teve inegável projeção política e social, inaugurando-se logo nos primeiros anos, cinco sanatórios: 2 marítimos como o do Outão (1900) e o de Carcavelos (1902), 1 de montanha (Guarda, 1907) e 2 de planície, o do Lumiar (1912) e do Portalegre. São também abertos os primeiros dispensários, não só em Lisboa (1901 e 1906), como em Bragança (1902), Porto, Faro e Braga (1903), Viana do Castelo (1905)…

O “regicídio” (1908), a implantação da República (1910) e o exílio da família real vão ter, necessariamente, um impacto negativo na ação da ANT, que ganha um novo fôlego nos anos 30. Surgem, entretanto, outras iniciativas, de privados e empresas (como a CP - Caminhos de Ferro de Portugal).

O problema da tuberculose agrava-se com o regresso do Corpo Expedicionário Português que participara na I Grande Guerra. Nesta segunda fase da luta antituberculosa, há uma instituição que merece especial destaque, a Estância Sanatorial do Caramulo, obra de um homem visionário, o médico e empresário Jerónimo de Lacerda (Coimbra, 1889 – Lisboa, 1945). Se,m esquecer, o seu diretor científico (a partir de 1938), Manuel Tapia (um médico catalão fugido a Guerra Civil Espanhola). 

Chegou a ser o maior da península ibérica, com 20 sanatórios, 1100 camas...

Em 1930, registavam-se 13010 mortes, uma cifra brutal!... Em 1939, existiam 34 sanatórios e 83 dispensários, para além de outros estabelecimentos, espalhados por todo país.

O Estado só chama a si a liderança da luta contra a tuberculose em 1945 com a criação do Instituto de Assistência Nacional aos Tuberculosos (IANT), mas já no ocaso do movimento. A partir de meados dos anos 50, os sanatórios começam a fechar, mas subsistem graves problemas de recuperação e de integração social, familiar e profissional. Os diversos equipamentos do imenso parque sanatorial construído ao longo de meio século, e alguns com risco de notáveis arquitetos (Cotineli Telo, Raul Lino, etc.) , tiveram destinos diferentes, uma parte tendo sido reconvertido e fazendo hoje parte do nosso parque de saúde.

No séc.  XXI registou-.se uma diminuição de cerca 40% da taxa de notificação e de incidência de tuberculose, com valores de incidência abaixo dos 20/100.000 habitantes desde 2015.



Capa do livro "Saúde", volume nº 29, da coleção "Memória de Portugal: 2 séculos de fotografia" (Lisboa, Atlântico Press, 2020, 64 pp).

O texto do livro "Saúde: o longo caminho do progresso",é da autoria do nosso editor Luís Graça, e foi escrito em plena pandemia, entre 15 de maio e 15 de junho do corrente, "em contrarrelógio". É ilustrado por cerca de meia centena de fotografias (também legendadas por ele).

Índice: Prefácio (de António Barros Veloso): heróis ignorados: pp. 5 | O longo caminho do progresso: pp. 6-7 | Tempo de pioneiros: o grande desafio da saúde pública; pp. 8- 25 | Nascer e morrer: epidemias e doenças da pobreza: pp. 26-43 | Direito universal: Século XX consagra a «saúde para todos»: pp. 44-67.

domingo, 8 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26898: Notas de leitura (1806): "Gil Eanes: o anjo do mar", de João David Batel Marques (Viana do Castelo: Fundação Gil Eanes, 2019, il, 132 pp.) - Parte III: O orgulho da ENVC (Estaleiros Navais de Viana do Castelo)




Capela no convés > O navio tinha 72 tripulantes, capacidade de internamento de 74 doentes e podia levar mais 5 passageiros. Dispunha de 2 médicos, equipa de enfermagem e 1 capelão (que também podia celebrar missa na enfermaria). 

Fonte: João David Batel Marques - Gil Eanes, o anjo do mar = Gil Eanes, the angel of the sea. Viana do Castelo : Fundação Gil Eanes, 2019, pág. 105






"Diário de Lisboa", 20 de março de 1955, pp. 1 e 2


Fonte: , "Diário
de Lisboa", nº 11598, Ano 34, Domingo, 20 de Março de 1955, Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_19336 (2025-6-7





"Diário de Lisboa", 26 de maio de 1955, pág. 8

Fonte:
(1955), "Diário de Lisboa", nº 11664, Ano 35, Quinta, 26 de Maio de 1955, Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_19256 (2025-6-7)



1. Estamos a publicar algumas notas de leitura do livro "Gil Eanes, o anjo do mar", da autoria de João David Batel Marques (Viana do Castelo : Fundação Gil Eanes, 2019, 132 pp,. ed. bilingue em português e inglês) (*)

O livro narra a vida, a morte e a ressurreição do último navio-hospital da frota bacalhoeira (1955-1984), depois de ter feito, no período de 1955 a 1984, 73 viagens (com ponto de partida em Lisboa e chegada também em Lisboa" (pág. 94).

O autor é o capitão ilhavense David João David Batel Marques (n. 1953).  autor e coautor de diversos livros sobre a pesca do bacalhau, os seus navios e as suas gentes, alguns deles publicados pela Fundação Gil Eanes.

 O novo "Gil Eanes" seria o orgulho da nossa indústria de construção naval. Foi projetado pelo capitão-de-mar-e-guerra (posto da Marinha equivalente a coronel do Exército e da Força Aérea), o engenheiro Vasco José Taborda Ferreira (não há  qualquer referência sobre ele na Net..), e foi construído nos ENVC (Estaleiros Navais de Viana do Castelo), segundo as especificações técnicas e legais da Direção da Marinha Mercante e as regras do Lloyd's Rergister Shipping (que supervisionaria a construção).

Diz o o autor, na pág. 39 que foi "a construção nº 15 da ENVC"... A encomenda era do Grémio dos Armadores de Navios de Pesca do Bacalhau. Preço final: 40 mil contos (!) (mais de 23 milhões de euros a preços atuais e não propriamemet 200 mil euros) (pãg. 39). 

A construção foi subsidiada pelo Plano Marshal, por intermédio do Plano de Fomento Nacional (1950).

Embora em dia de temporal, 20 de março de 1955, a cerimónia de flutuação foi realizada com pompa e circunstância em Viana do Castelo que na ocasião se engalanou a preceito . E dois meses depois já estava nos bancos da Terra Nova. (vd. recortes de jornais acima). (**)

Infelizmente, o novo navio-hospital "Gil Eanes" chegou já tarde à "frota branca": a "epopeia portuguesa" da pesca do bacalhau estava a chegar ao fim, os barcos de arrasto (autónomos, com enfermeiro a bordo) iriam substituir progressivamente  os "lugres" da pesca à linha com os dóris (uma "excentricidade folclórica" de Portugal, dizem os críticos...) e o "Gil Eanes" vai ter que fazer pela vida para sobreviver como navio da marinha mercante...Em 1975 já não há navios portugueses a pescar com dóris... Em 1973,  18 anos  depois de ter sido lançado ao mar,  o "Gil Eanes" realiza a sua última campanha de assistência à frota bacalhoeira, deixando de se justificar a sua presença (de resto, dispendiosa) nos bancos da Terra Nova... 

"Em 1974, escreve o autor, eram somente 3 os navios  da pesca à linha, tendo 2 naufragado e o terceiro, 'Novos Mares', regressou a Portugal com a tripulação em greve e o porão sem peixe, carregado de sal" (pág. 77).

Recorde-se que o nosso grão-tabanqueiro, illhavense, já falecido, Tibério Paradela,  capitão da marinha mercante (concluiu o curso de pilotagem da Escola Náutica, em Lisboa, em 1960), foi imediato no navio bacalhoeiro à linha 'Novos Mares', o último bacalhoeiro em madeira, construído na Gafanha da Nazaré (fez parte da Frota Branca até 1986, data em que foi abatido à frota por ordem do Secratário de Estado das Pescas; em 1991 foi oferecido para se transformar em museu, o que nunca se concretizou; por incúria ou desleixo acabando por se afundar no porto de Aveiro; enfim, mais um rime de lesa-património na nossa terra).

(Continua)

PS - É de lembrar que alguns dos nossos primeiros membros da Tabanca Grande trabalharam nos ENVC...De cor, recordo os seguintes camaradas que trabalharam nos ENVC:

  • António Manuel Sousa de Castro
  • Américo Marques
  • Manuel Castro.
  • Osvaldo Cruz

Não são, obviamente, do tempo  da construção do navio- hospital "Gil Eanes" (1952- 1956), mas devem estar lembrados do seu regresso a Viana para, a partir da sucata, se (re)fazer a obra-prima museológica que agora pode ser visitada na capital do Alto Minho.



 João David Batel Marques - Gil Eanes, o anjo do mar = Gil Eanes, the angel of the sea. Viana do Castelo : Fundação Gil Eanes, 2019. - 132, pp.  : il (Ed. bilingue em português e inglês | ISBN 978-989-99869-7-8)

___________

 Notas do editor LG: 

(*) Vd. postes de:

 26 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26847: Notas de leitura (1800): "Gil Eanes: o anjo do mar", de João David Batel Marques (Viana do Castelo: Fundação Gil Eanes, 2019, il, 132 pp.) - Parte I: A história do navio-hospital da frota bacalhoeira (Luís Graça)

29 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26860: Notas de leitura (1802): "Gil Eanes: o anjo do mar", de João David Batel Marques (Viana do Castelo: Fundação Gil Eanes, 2019, il, 132 pp.) - Parte II: A questão da assistência à frota branca, que atinge o seu auge com o Estado Novo, nos anos 40/50: em 1958 a "faina maior" tinha 77 unidades e 5736 homens (Luís Graça)


(**) Último poste da série > 6 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26893: Notas de leitura (1805): "Crepúsculo do Império, Portugal e as guerras de descolonização", coordenação de Pedro Aires Oliveira e João Vieira Borges; Bertrand, 2024 (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 29 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26860: Notas de leitura (1802): "Gil Eanes: o anjo do mar", de João David Batel Marques (Viana do Castelo: Fundação Gil Eanes, 2019, il, 132 pp.) - Parte II: A questão da assistência à frota branca, que atinge o seu auge com o Estado Novo, nos anos 40/50: em 1958 a "faina maior" tinha 77 unidades e 5736 homens (Luís Graça)




"Quanto de "sal, sol, sangue, suor e lágrimas" havia nos 8,8 kg quilos de bacalhau que cada portuguêw comia, em média, nos "anos de ouro" do Estado Novo ?", pergunto eu (LG),

Fotos do livro em recensão, e que ilustram as duras condições de trabalho dos pescadores (foto acima, nos dóris, pp. 18/19: "Os pescadotes afastam-se  do navio-mãe para iniciar um dia de pesca") e da restante tripulação (segunda foto, pág. 59: "O 'Gil Eanes' no meio de perigosos 'growlers' ").

(Reprodução com a devida vénia, ao autor e editor...)


1. Estamos a tirar algumas notas de leitura do livro "Gil Eanes, o anjo do mar", da autoria de João David Batel Marques (Viana do Castelo : Fundação Gil Eanes, 2019,  132 pp,. ed. bilingue em português e inglês) (*)


O livro narra a vida e a morte do último navio-hospital da frota bacalhoeira (1955-1984),  três décadas  em que fez  73 viagens (com ponto de partida em Lisboa e chegada também em Lisboa" (pág. 94).  

O autor é o capitão David João David Batel Marques, ilhavense, nascido em 1953, autor e coautor  de diversos livros sobre a pesca do bacalhau, os seus navios e as suas gentes, alguns deles publicados pela Fundação Gil Eanes (**).

Vida e morte ? Vida, morte e ressurreição, para sermos mais precisos. De facto, graças â Fundação SOS Gil Eanes, foi resgatado "in extremis", em 1997, quando estava atracado em Alhos Vedros à espera de ser desmantelado pelo sucateiro. 

Em 29 de janeiro de 1998, seria assinado o contrato de compra do navio entre a Comissão Pró-Gil Eanes e o sucateiro de Alhos Vedros. Por 50 mil contos (acrescidos do valor dos impostos àquela data.) (A preços de hoje, são c. de 430 mil euros, e não 250 mil, como escreveu o autor, pág. 96; para a conversão utilizámos o simulador de inflação da Pordata).

Para o resgaste do navio teve um papel importante, entre muitas outras personalidades, a par da mobilização do município e do povo de Viana do Castelo,  o prof doutor José Hermano Saraiva, que disse, na RTP (em 29/2/1997, num programa da sua série "Horizontes da Memória III"):

 "Portugal tem uma brilhante história marítima. Mas quem faz a história marítima são os navios. E eu pergunto: onde está o museu dos nossos navios?"

O valor do navio, construído nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ENVC), será,  em 1955,  de 40 mil contos ( o equivalente, a preços de hoje, a cerca de 23 milhões de euros, e não a 200 mil euros, como vem grosseiramente apontado na pág. 39).

2. Como é que se chega  á decisão de construir um navio-hospital, de apoio à frota da pesca do bacalhau, que fosse de desenho e tecnologia nacionais, construído em estaleiros nacionais ?

A frota branca, que se desenvolve a partir de finais do séc. XIX, começa a sentir a necessidade de ter um navio de apoio. A vida dos pescadores e marinheiros sempre foi muito dura.  Os pescadores passavam muitas horas nos dóris a pescar bacalhau à linha (!), em condições climatéricas, físicas e psíquicas de grande exigência. A sua remuneração dependia da qualidade e quantidade do pescado. 

Por outro lado, regressados ao navio-mãe, passavam o resto da jornada diária de trabalho a processar o peixe (escalagem e salga). Era um trabalho extenuante, sujeitos a acidentes e outros riscos (cortes, quedas, exaustão física e emocional, etc.). Para o pescador dos dóris, a jornada começava às 4h00 da manhã e podia terminar só 18 ou até 20 horas depois (!), nos  limites da fisiologia humana.

Até ao início dos anos 20 do século passado,  não havia assistência a bordo. Os franceses, por seu turno, já beneficiavam, desde se1896, de assistência médico-hospitalar nos bancos da Terra Nova.

Em 1922, os franceses dispunham do navio-hospital "Sainte Jeanne d'Arc", que também prestava cuidados às tripulações portuguesas. Era propriedade de uma associação humanitária, a "Societé des Oeuvres de Mer", que teve 7 navios-hospitais, de 1896 a 1939, cada navio com um médico e um capelão.  (A França chegou a ter   11 mil homens, na pesca do bacalhau, na Terra Nova e na Islândia, em finais do séc. XIX, e Portugal teria então uns 800, 40 em media por embarcação)

O médico a bordo no "Sainte Jeanne d' Arc", citado por  João David Batel Marques,  escreve, no seu relatório desse ano de 1922, que tinha hospitalizado 13 doentes portugueses (5 dos quais com  tuberculose pulmonar, doença infetocontagiosa perigosa; vários tinham  hemoptises; e 1 morreu). 

Havia homens, além  disso, com infeções graves, que deviam ser hospitalizados com urgência, mas que se recusavam a tal, ou eram impedidos pelos seus capitães (pág. 12).

Face a esta situação, o Ministério da Marinha é cada vez mais pressionado a mandar um navio-hospital para prestar assistência médica ao pessoal da frota (constituída ainda só por lugres).

O primeiro navio-hospital foi o cruzador "Carvalho Araújo" que levava como chefe dos serviços médicos o segundo-tenente Carlos Augusto Rodrigues Borges (pág, 14). (Nasceu no Porto, em 1897; morreu em 1970,  em Vila Nova de Gaia.)

Escreveu ele:

 "Nunca será possivel  bem ajuizar o que estes infelizes passam e sofrem nessa vida horrorosa de todos os dias, cheia de trabalhos  violentos e e de perigos variadíssimos e quase que permanentes" (pág. 14).

E acrescenta: (...) "A inesperada aparição do 'Carvalho Araújo' provocou,   nessa gente rude, muitas lágrimas de enternecimento e, por vezes,  o entusiasmo deveras significativo!".

Mas  um navio de guerra não podia cumprir as funções especializadas a desempenhar por um navio-hospital. O comandante e o médico do "Carvalho Araújo" deram ideias e sugestões para o desenho e construção desse futuro navio de assistência, que deveria também servir de intermediário no transporte de correio entre Saint John's e Portugal (pág. 20).

O médico, segundo-tenente, Carlos Borges assinala a prevalência, entre as tripulações da frota branca, de:

  • doenças infetocontagiosas;
  • problemas do estômago;
  • problemas pulmonares.

E não era raro haver mortes (que ficavam sepultados nas profundezas do mar).

Só em 1927 a frota bacalhoeira vai ter o seu primeiro "Gil Eanes", o ex-navio alemão "Lahneck", construído em 1914, e apresado pelas autoridades portuguesas no rio Tejo. Sofreu adaptações na Holanda para servir como navio-hospital. Operou como "Gil Eanes" entre 1916 e 1955.

Teve uma atividade irregular, como navio-hospital:

"Entre 1931 e 1936 a atividade do  navio  resumiu-se ao transporte de presos" (pág, 24).

Só em 1942 se faria a sua transferência, da Marinha de Guerra para a Marinha Mercante. A propriedade passou a ser do Grémio dos Armadores  de Navios da Pesca do Bacalhau (GANPB). Teve diversos capitães da marinha mercante e capitães de bandeira (que eram oficiais da Armada) (pág. 27).

A última viagem aos bancos bacalhoeiros foi em 1954. Em 1955 fez-se à agua o novo navio-hospital "Gil Eanes". (**)

O Estado Novo fazia questão, na época, de transformar a "epopeia do bacalhau" (sic) num verdadeiro estandarte do "ressurgimento económico do país" (pág. 30). Veja-se, por exemplo,  como a frota vai crescer de 1935 a 1961, para um total de 91 unidades e quase 6 mil  homens:

  • 22 lugres de madeira;
  • 4 lugres de aço;
  • 41 navios a motor (de madeira, 19; e de aço, 22);
  • 24 arrastões clássicos.

"Em 1958 , foi à pesca a melhor frota de sempre, composta por 77 navios e, e tripulada por 5736 homens" (pág, 30). 

Mas era já o princípio do fim.

(Continua)  (**)

3. Pedi ao assistente do Gemini IA / Google, que me apresentasse os principais factos e datas do génese e desenvolvimento da  nossa frota bacalhoeira. Aqui vão:


A frota bacalhoeira portuguesa tem uma história longa e complexa, com raízes na Idade Média e um desenvolvimento significativo a partir do século XIX, culminando no auge durante o Estado Novo.


Inícios e Primeiros Registos:

  • Século XIV:  há registos de acordos de pesca entre Portugal e Inglaterra (em 1353, entre D. Pedro I e Eduardo II), o que indica que a pesca do bacalhau já era uma atividade relevante para os portugueses; Portugal trocava sal por bacalhau com a Inglaterra.

  • Final do Século XV / Início do Século XVI: com os "Descobrimentos", a necessidade de alimentos não perecíveis para as longas viagens impulsionou a procura do bacalhau; a "descoberta" dos vastos bancos de pesca na Terra Nova (hoje Canadá), atribuída a navegadores como Gaspar Corte Real (cerca de 1500), abriu caminho para a pesca em larga escala no Atlântico Norte; 
  • D. Manuel I, em 1506, já cobrava dízimo sobre essa pesca;
  • No reinado de D. João III, a frota portuguesa de bacalhoeiros chegou a atingir as 150 embarcações, e em 1508, o bacalhau já correspondia a 10% do pescado comercializado em Portugal;
  • Os portugueses, ao contrário dos vikings que apenas secavam o peixe, desenvolveram a técnica de salgar e secar o bacalhau, o que lhe conferiu o sabor característico.

Século XIX e Início do Século XX: O Despertar da Frota Moderna:
  • Segunda metade do Século XIX: companhias como a Bensaude & C.ª (depois Parceria Geral de Pescas) e a Mariano & Irmãos, ambas de proprietários açorianos mas sediadas no continente devido ao clima mais propício à seca do bacalhau, investem na pesca do bacalhau;
  • 1870: Surgem os primeiros registos de pesca com dóris (pequenos botes de pesca utilizados pelos pescadores a partir do navio-mãe);
  • Início do Século XX (década de 1930): a frota bacalhoeira ainda era composta maioritariamente por veleiros (lugres em madeira):


O Auge: Estado Novo e a "Campanha do Bacalhau"

  • 1934: é  criada a Campanha de Bacalhau, com o objetivo principal de reduzir a importação de bacalhau e garantir o abastecimento alimentar do país, esta campanha marcou um período de grande investimento e desenvolvimento da frota, o Estado Novo via a pesca do bacalhau como um símbolo de autonomia e força nacional; e o pescador de bacalhau torna-se um "herói nacional";
  • 1935: é criado o Grémio dos Armadores dos Navios de Pesca do Bacalhau (GANPB), que reunia as entidades ligadas à indústria;1936: surge o primeiro arrastão em Portugal; a modernização da frota começa a ganhar ímpeto, com a substituição gradual dos veleiros por arrastões, em aço, a motor;
  • 1937: o lançamento do lugre-bacalhoeiro Creoula (10 de maio de 1937) é um marco; este navio, que realizou 37 campanhas até 1973, é hoje um navio de treino da Marinha Portuguesa e um símbolo lendário da pesca do bacalhau;
  • Anos 40-50: A frota atinge o seu apogeu em número de navios e volume de pesca; entre 1948 e 1953, há um grande impulso no número de arrastões bacalhoeiros; a vida a bordo era extremamente dura e perigosa, com os pescadores nos dóris a enfrentar condições adversas e o risco de colisão com icebergs; as jornadas de trabalho podiam chegam às 18 horas ou mais;
Declínio e Fim da Pesca Tradicional:
  • Pós-II Guerra Mundial: a frota portuguesa começa a sofrer com a falta de modernização e a implementação de legislação internacional que restringiu o acesso aos bancos de pesca (Terra Nova e Gronelândia);
  • 1966: embora já houvesse arrastões, ainda existiam 10 veleiros em funcionamento, demonstrando o atraso na modernização completa;

  • 1967: Fernando Alves Machado, Secretário do Comércio, vai abolir o regime protecionista do comércio do bacalhau, o que leva ao fim da tabela de preços e do condicionamento das importações: isso, juntamente com o atraso na modernização, contribuiu para o declínio;
  • 1974 (Revolução dos Cravos): a Revolução de 25 de Abril de 1974 marca o fim da pesca de bacalhau à linha (ou seja, com os dóris),  considerada heróica mas ineficiente e perigosa; muitos dos últimos grandes navios de pesca de bacalhau à linha fizeram a sua última campanha nesse ano;
  • Anos 80/90: a adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia (CEE, atual UE) em 1986 e à Política Comum das Pescas implicou a aceitação de restrições de acesso a pesqueiros;
  • 1992: o Canadá proíbe a pesca de fundo nos seus bancos, um duro golpe para a frota bacalhoeira portuguesa;
  • Entre 1990 e 1998: a frota portuguesa sofre uma redução drástica, perdendo mais de 30 navios e ficando reduzida em mais de 70%.

Atualmente, a frota portuguesa satisfaz apenas uma pequena percentagem do consumo nacional de bacalhau, que continua a ser um alimento central na gastronomia portuguesa. A maior parte do bacalhau consumido em Portugal é importada (Noruega, Islândia, Canadá).

 Os portugueses consomem cerca de 20% de todo o bacalhau pescado no mundo (consumo "per capita" andaria à volta dos 7 kg, antes da II Guerra Mundial; 8,8 kg, entre 1946 e 1967; 7,7 em 2020, com a pandemia; 5,5 / 6 kg, nos anos mais recentes); no auge da pesca do bacalhau, as capturas seriam da ordem das 60 mil toneladas anuais.

Acrescente-se, nos anos 60/70, a crescente dificuldade de recrutamento de pescadores e marinheiros, devido á emigração e á guerra colonial, a par das duríssimas condição de trabalho. 

A "Faina Maior" era considerada um verdadeiro "desígnio nacional", daí o Estado tê-la considerado  uma  alternativa ao serviço militar.  O Decreto n.º 13441, de 8 de abril de 1927,  estabelecia a dispensa do serviço militar aos pescadores e marinheiros que tivessem cumprido um mínimo de seis campanhas de pesca consecutivas (!) na frota nacional bacalhoeira. Também concedia adiamento ae aos 26 anos de idade... (Artº 24º).


Excerto: Decreto n.º 13441, de 8 de abril de 1927


 Fonte: Gemini IA / Google / LG


(Revisão / fixação de texto: LG)

__________________

Notas do editor:

(**) Mais bibliografia de João David Batel Marques (n. 1953): 

Viagem de fé : pescadores portugueses, homens de fé, de olhos postos na proteção da Virgem Maria / João David Batel Marques, Manuel Domingos, Salvador de Sousa / apresentação Luís Nobre. - Viana do Castelo : Fundação Gil Eannes, 2023. - 51, [5] p. : il. ; 22 cm. - ISBN 978-989-54795-2-8


O "Gil Eannes" de 1955 = The 1955 Gil Eannes / João David Batel Marques ; trad. Regina Bezerra. - Viana do Castelo : Câmara Municipal de Viana do Castelo, 2021. - 2 v. : il. ; 28 cm. - (Os navios de assistência à frota bacalhoeira = The assistance vessels to the cod fishing fleet ; 2, 3). - Ed. bilingue em português e inglês. - ISBN 978-972-588-346-4 (pt. 1). - ISBN 978-972-588-347-1 (pt. 2)

O "Carvalho Araujo" e o "Gil Eannes" ex Lahneck = The Carvalho Araújo and the Gil Eannes former Lahneck / João David Batel Marques ; trad. Regina Bezerra. - Viana do Castelo : Câmara Municipal de Viana do Castelo, 2021. - 303, [1] p. : il. ; 28 cm. - (Os navios de assistência à frota Bacalhoeira = The assistance vessels to the cod fishing fleet ; 1). - Ed. bilingue em português e inglês. - ISBN 978-972-588-340-2

A pesca do bacalhau : história, gentes e navios = Cod fishing : history, people and ships / João David Batel Marques ; sel., ed. e composição fot. Rui Bela ; consultoria e rev. técnica João David Batel Marques. - Viana do Castelo : Fundação Gil Eannes, 2018-2019. - 4 v. : il. ; 28 cm. - Ed. bilingue em português e inglês. - T. 1: A história e as gentes = History and people. - 319, [1] p. T. 2: Os lugres da pesca à linha = Handliner schooners. - 2018. - 415, [1] p. T. 3: Os navios-motor da pesca à linha = Handliner motor vessels. - 2019. - 284, [4] p. T. 4: Os arrastões = Trawlers. - 2019. - 367, [1] p. - ISBN 978-989-99869-3-0 (t. 1). - ISBN 978-989-99869-4-7 (t. 2). - ISBN 978-989-99869-5-4 (t. 3). - ISBN 978-989-99869-6-1 (t. 4)

Os navios de pesca à linha = The handliners / Jean Pierre Andrieux ; cons. e rev. técnica João David Marques ; trad. Tim Oswalda ; colab. Valdemar Aveiro... [et al.]. - Viana do Castelo : Fundação Gil Eannes, 2018. - 269, [3] p. : il. ; 28 cm. - Ed. bilingue em português e inglês. - ISBN 978-989-99869-2-3

Uma viagem no tempo : navios, equipamentos, instrumentos e palamenta / João David Batel Marques ; fot. Anna Soik... [et al.]. - Viana do Castelo : Fundação Gil Eannes, 2018. - 175, [1] p. : il. ; 22 cm. - (Manuel Mário Cravo Bola)


segunda-feira, 26 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26847: Notas de leitura (1800): "Gil Eanes: o anjo do mar", de João David Batel Marques (Viana do Castelo: Fundação Gil Eanes, 2019, il, 131pp.) - Parte I: A história do navio-hospital da frota bacalhoeira (Luís Graça)


Gil Eanes, o anjo do mar
 = Gil Eanes, the angel of the sea / João David Batel Marques. - Viana do Castelo : Fundação Gil Eanes, 2019. - 131, [1
] p. : il. ; 22 cm. - Ed. bilingue em português e inglês. - ISBN 978-989-99869-7-8


Foto da capa: "Campanha de 1955. O Comandante Tenreiro visita o lugre 'Argus'. Da esquerda para a direita:  Imediato José  Luís Nunes de Oliveira (Codim), Comandante Henriqie Tenreiro, Capitão Adolfo Simóes Paião Júnior e Piloto Francisco Teles Paião" (pág. 132)

Estes e outros livros  (mais de 4 dezenas de livros e redordações: medalhas, catálogos,. gravuras, t-shirts,  etc.) relacionados com a pesca de bacalhau e a indústria naval podem ser comprados "on line" na loja virtual da Fundação Gil Eanes

Os produtos são enviados à cobrança pelos CTT e apenas em Portugal Continental. (Incluindo livros do Valdemar Aveiro, que tem 13 referências no nosso blogue; do João David Batel Marques; do António Trabulo, que foi médico no Gil Eanes; do Ângelo Silva, que foi enfermeiro; do investigador Senos da Fonseca, que é cunhado do capitão Jorge Picado; e outros).


O Navio-Hospital Gil Eanes (pág. 82)~

1. Nunca fui marinheiro nem pescador... Mas nasci à beira-mar. E o mar está no meu ADN, pelo lado paterno (o dos "Maçaricos", de Ribamar, Lourinhã).  Tenho uma grande admiração pelos nossos antepassados que foram "empurrados" para o mar para sobreviverem e garantirem a independência do seu pequeno rectângulo. Foi o mar que nos salvou e e foi o mar que nos perdeu... Hoje estamos de costas virados para ele... Mas isso é outra história...

Tivemos uma grande frota bacalhoeira. Tivemos uma grande frota da marinha mercante... Nunca tivemos uma grande frota de guerra, pelo menos nos últimos dois séculos... 

E tivemos o "navio-hospital" Gil Eanes,  que eu já visitei duas vezes (a última muito recentemente), desde que foi colocado, em 1998,  em exposição na antiga doca comercial de Viana do Castelo, transformado em espaço museológico. 

É um motivo de orgulho para os vianenses e para todos nós, que já fomos uma grande potência marítima, mas temos um défice de memória nesta (com noutras matérias, incluindo a da guerra colonial / guerra do ultramar, que se desenrolou a milhares de quilómetrros da nossa casa paterna).

O Gil Eanes é também motivo de orgulho para as gentes do alto Minho porque foi justamente construído nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo. (Temos no blogue vários camaradas que trabalharam nos ENVC, a começar pelo Sousa de Castro,  o nosso  grão- tabanqueiro nº 2 (e que trouzxe com ele mais caamaradas de trabalho e da guerra da Guiné.)


O Gil Eanes iniciou a sua atividade como navio-hospital em 1955, apoiando durante décadas (até 1973), a frota bacalhoeira portuguesa que atuava nos bancos da Terra Nova e Gronelândia.  


Era um navio polivalente, tinha múltiplas funções, embora a principal fosse a assistência médico-hospitalar

  • estava equipado com bloco operatório;
  • inha enfermaria para 74 doentes;
  •  dispunha de 2 médicos e de um equipa de enfermagem permanente (pág. 47).


Do Gil Eanes diremos ainda que, para além da assistência médica,  exercia também outros tipos de assistência: 

  • religiosa (com capelão a bordo) (pág. 54);
  • afetiva (correio, comunicação por rádio/fonia entre as tripulações da frota e as famílias) (pág. 55);
  • material (transporte e fornecimento de isco,  de diversos aprestos e material de pesca, mantimentos, gasóleo, água doce, ferros, amarras, etc.) (pág.  56);
  • oficinal (reparação e manutenção de equipamentos) (pág. 57)...


Era também:

  • navio capitania (pág. 58);
  • navio quebra-gelos (pp. 58-64);
  • navio rebocador (pp. 65/67).

Desativada a frota bacalhoeira, o Gil Eanes ficou a apodrecer, criminosamente, nas docas de Lisboa, durante muitos anos. Até ser resgatado e devolvido â sua cidade... 


(,,,) Em 1998, a Fundação Gil Eanes (...) considerando-o património cultural e afetivo da cidade, resgatou-o da sucata por cerca de 250 mil euros, após uma inédita campanha que envolveu todos os estratos sociais vianenses.


Em 31 de Janeiro de 1998, foi recebido festivamente na Foz do Lima, onde, depois de limpo e restaurado, foi aberto ao público, assumindo-se como pólo de atratividade para Viana do Castelo.

A reconversão transformou-o num espaço museológico, integrando salas de exposição, sala de reuniões e loja de recordações." (...)


Mas isso é uma história para contar em próximo poste. 


Em 132 páginas, e profusamente ilistrado, este livro fala-nos  diretamente da epopeia do Gil Eanes que é também a da frota do bacalhau. Como se pode ler ma página da Fundação Gil Eanes, atual proprietária do navio:


(...) A história do Gil Eannes é, como a do Gonçalo da Ilustre Casa de Ramires, uma boa fatia da história de Portugal mas vista de Viana do Castelo.

Tudo começou com um povo de marinheiros que se habituou, desde que D. Dinis fez um tratado com o rei Inglaterra, a comer e a gostar de bacalhau. Ora, como o consumo crescia, houve um vianense que resolveu procurar noutras paragens o poiso do "fiel amigo". E, com a descoberta de Fagundes, que assim se chamava o ousado vianense, o "amigo" tornou a sua presença ainda mais "fiel" à nossa mesa. Mas os portugueses andavam agora ocupados com os açúcares, a Guerra da Restauração, o ouro e os diamantes, com as Índias, as Áfricas e os Brasis...

Quando isto falhou, passaram a vender vinho fino e madeira... E, se continuavam a comer bacalhau, era à "pérfida AIbion" que o compravam.

Até que, na reconstrução nacional por que em boa parte passou o fim do século XIX, surgiram capitalistas suficientemente empreendedores para armar navios destinados a pescar aquilo que se tomou um hábito alimentar insubstituível dos portugueses. O que também tornara o investimento por demais seguro: a mão de obra era barata e o consumo garantido.

Mas também as condições de trabalho eram péssimas (diríamos hoje desumanas). Pobres e mal alimentados, suportando um frio glacial a bordo dos lugres e dos dóris, os homens padeciam de doenças dos aparelhos digestivo e respiratório, furunculoses e reumatismo. 


Como a safra era de cinco meses, os homens, além da falta de carinho das famílias, suportavam a doença meses a fio. E, se sobrevinha uma apendicite ou um acidente cardio-vascular... Tantos lá ficaram no mar frio onde tinham ido grangear o sustento dos filhos! (...)

(Continua)



Para saber mais

Pagána do Facebook Navio-Hospital Gil Eanes


(Continua)
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Nota do editor:

domingo, 26 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24098: Tabanca Grande (545): Corrigindo um lamentável lapso nosso, o José António Paradela (1937-2023) fica connosco, no lugar nº 872... pelo seu contributo para a memória da "Faina Maior"... Parafraseando o capitão Valdemar Aveiro, podemos perguntar: "daqui a uma geração, quem se vai lembrar disto, a guerra do ultramar / guerra colonial e a outra guerra, a da pesca do bacalhau"?!

 

Ílhavo > Costa Nova > 21 de agosto de 2012 > Ao centro, eu e o Zé António Paradela, arquiteto; e à nossa esquerda, a Alice Carneiro e a Matilde Henriques (esposa do Zé António); à nossa direita, o Jorge Picado e o Jorge Paradela, o caçula do casal Zé António & Matilde. A foto foi tirada pelo filho mais velho, o Marco Henriques Paradela, que na altura andava na "tropa do bacalhau", sob as ordens do capitão Valdemar Aveiro, seu padrinho,  o "último dos lobos do mar", escritor, com dez livros sobre a frota branca e a pesca na Terra Nova. 

Foto (e legenda): © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



José António Paradela (Ílhavo, 1937 - Aveiro, 2023): arquitecto e escritor

Foto (e legenda): © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





Fotos do álbum de Ábio de Lápara (José Paradela), página pessoal no Facebook (com a devida vénia...)


Ábio de Lápara (pseudónimo literário de José António Boia Paradela): Biblioteca de Ílhavo, 26/11/ 2017. O autor a autografar o seu último livro, "Santinhas de Apegar: Textos Poéticos" (2017, ed. de autor, 125 pp. + II inumeradas). Foto de Etelvina Almeida, cortesia da página do Facebook do autor.

1. Por uma razão que não consigo descortinar, mas que só pode ser "por falha técnica ou erro humano" (como se diz quando cai um avião ou descarrila um comboio), o meu querido amigo José António Paradela (1937-2023) não foi formalmente registado como membro da Tabanca Grande, logo em 2007, como devia ter sido.  Sempre o considerei como tal, ao longo dos muitos anos de existência que já leva o nosso blogue, mas a verdade é  que o seu nome não conta(va) na lista alfabética dos membros da nossa tertúlia...   

O concelho de Ílhavo (com cerca de 25 mil habitantes, em 1960, tem hoje perto de 40 mil) teve 10 mortos na guerra do ultramar/ guerra colonial, três dos quais na Guiné, outros três em Angola e os restantes em Moçambique (segundo o portal UTW - Dos Veteranos da Guerra do Ultramar). 

Não era, em rigor, uma terra de "infantes", mas sim de marinheiros, pescadores e capitães (da frota de pesca e da marinha mercante). Mas há exceções, como o Jorge Picado, que lá foi parar à Guiné, aos 32 anos,  já como capitão miliciano de artilharia (*)... 

Não sabemos quantos mancebos de Ílhavo, aptos para o serviço militar, seguiram a opção da pesca do bacalhau ou se alistaram na marinha de guerra, no período em que decorreu a guerra do ultramar / guerra colonal (1961 / 74)..

O nosso Zé António andou embarcado, como "moço, na "frota branca" (**) e depois cumpriu o serviço militar na Marinha, sem ter passado pelo ultramar. A guerra em Angola começou em 1961 e ele ingressou logo n0 ano letivo de 1960/61, na Escola Superior de Belas Artes onde fez o seu curso de arquitetura (concluído em 1967, com um a bolsa de cinco anos da Fundação Calouste Gulbenkian).

Justifica-se a sua entrada na Tabanca Grande pela sua partilha de memórias da pesca do bacalhau que eu considero o "outro lado da guerra" (**)... Tenho pena de não dado conta do lapso, com ele ainda em vida, faço agora a  necessária correçao, dois dias depois do corpo do eu amigo descer à terra, no cemitério da sua terra natal... A título póstumo, fica na lugar nº 872, à sombra do nosso simbólico, fraterno e sagrado poilão (***).


2. O seu primeiro texto, publicado no nosso blogue, data de 2007 (***). Tratou-se da apresentação, em Aveiro, em setembro de 2007, do livro do capitão Valdemar Aveiro, “Histórias Desconhecidas dos  Grandes Trabalhadores do Mar" (imagem da capa acima,  4ª ed, Âncora Editora, 2016, 228 pp.)


Texto de José António Paradela, arquitecto

“…E dentro de uma geração quem é que se lembrará disto? A menos que fique escrito, tudo se perderá no nada.” (Valdemar Aveiro)

Li novamente o teu livro e gostei ainda mais.

Isto só me acontece com certos livros, mas nem sempre pelos mesmos motivos.
Estava a lê-lo e a recordar-me de Alain Gerbault (À la Porsuite du Soleil), e de Hemingway (O Velho e o Mar), mas sobretudo de Melville (Moby Dick).

O barco de que falas já não é de madeira, nem os cabos são de cânhamo, e a baleia tem agora a dimensão dos labirínticos campos de gelo flutuante.

Mas o alento que te atravessa a alma é da mesma natureza, agora consubstanciado na caça ao cardume viscoso e fugaz sob o gelo.

Contudo esse argumento é para ti um apelo, um desafio à aventura, à vitória da descoberta, granjeada num segundo fôlego, ou mesmo num terceiro, quando os outros já ficavam abaixo da linha do horizonte, confundidos com a névoa.

Descobriste e ensaiaste os mapas do comportamento da manta gelada para evitares o seu abraço fatal. Mobilizaste os marinheiros – os rapazes, como lhe chamas 
 , para o festim opulento corporizado na sacada de peixe de braço dado com o navio, esse saco-prenúncio do pão para os que em terra esperavam.

Não foste, e ainda bem, o capitão Ahab de Melville, ou o Santiago do Hemingway, mas a associação é inevitável. É a vontade em estado puro, de maratonas diariamente repetidas, no afã de levares à terra a mensagem da vitória: Ganhámos!

Como há 2500 anos na Grécia. Os homens mudam pouco!

Estamos perante um livro de prodigioso apelo à memória. À memória do tempo vivido por entre aventuras e histórias que por vezes assume um tom narrativo confessional, para reconstituir um passado feito de retratos minuciosos de seres que existiram (existem) e que marcaram o teu trajecto, quase sempre sobre as águas que do planeta são ainda a parte incógnita. Não falo dos peixes e da sua geografia, mas dos homens que as habitam, estes de quem tu falas.

São histórias assumidas conscientemente como um ajuste de contas contigo mesmo e com aqueles que contigo andaram ou te cruzaram a rota.

O que afirmas na singularidade e sinceridade da tua escrita, é o tempo em que viveste outro tempo, marcado pelos amigos, ou mesmo por aqueles que contigo se confrontaram, e a falta que isso agora te faz.

Paciência, meu amigo, isso é a vida, que faz de cada um de nós uma narrativa única, marcada pela força dos companheiros de aventura e que dentro de nós se arvoram ainda como cínicos que ficaram para nos invectivar e evocar esse tempo de esperanças, amores e desilusões. Um tempo de outrora, mas também de hoje, por dentro de nós.

Este livro é o livro que faltava… Falo do assunto que coloquei como frontispício deste texto.

A história com H grande tem sempre os seus sacerdotes, que vasculham bibliotecas e alinham factos inventando elos de ligação quando necessário. É útil mas insuficiente.

Walter Benjamim, desconfiado da historiografia oficial, incitava a “escovar a história a contra pelo”. Para ele o perigo estava no esquecimento, no silenciamento da memória: “Toda a imagem do passado… corre o risco de desaparecer com cada instante presente que nela não se reconheceu”.

O teu livro, os teus livros, que para mim podiam ser juntos num único, escovam a história a contra pelo.

Haverá quem faça a história oficial da Faina Maior, mas é necessário buscarmos o que nela foi esquecido ou abafado, isto é, o que não existe nos arquivos: Os vestígios que o tempo sufocou, as personagens e os episódios que foram ou não chegaram a ser mesmo colocados nas notas de rodapé dos historiadores oficiais.

O teu livro tem também esse mérito: não deixa silenciar, e regista de modo vivíssimo e rigoroso as ligações orgânicas dos homens – com nome e tudo, aos seus instrumentos e às suas palavras. (Podes acrescentar no glossário: “camisolinha interior = copo de bagaço”).

A compreensão histórica de determinados contextos sociais passa muito por aqui: Pelas ligações orgânicas, e pelos copos… Lembro-me de Pessoa, e sobretudo de Mussorsky, ardido no álcool, a legar-nos música imortal. Hoje, que a Internet comporta e transporta milhões de histórias, podemos ser levados a pensar que o problema não existe, esquecendo que alguém terá de as contar.

E é este acto de contar, que acompanha os humanos desde os primórdios, este incontornável filtro da inteligência e do coração, que constitui a pedra filosofal capaz de transformar uma narrativa banal numa obra de arte viva e perene como tu fizeste para nosso encanto.

Não contaste apenas histórias de uma vida, não personalizaste o navio como já vi, ou o peixe como Hemingway. Contextualizaste um mundo de relações humanas entre o povo flutuante e errático da pesca do Atlântico Norte, cuja aventura cairia minorada se a não contasses.

Ainda que esta seja apenas a tua versão dos factos, ela não deixa de ser menos verdade. Como dizia um combatente da guerra civil espanhola ao relatar a sua experiência:

“… no sé yo cuanto le puede importar a usted ésto que le estou diciendo, no sé si esto le puede importar a alguièn, porque estas cosas no las cuentan los libros, esto no sale nunca en la historia, pero sabe lo que lo digo? Esta es mi verdad”.

Um abraço do teu mano Zé

(Negritos: editor LG)

3. Comentário do editor LG:

Relembro aqui que o capitão Valdemar Aveiro (que eu voltei a abraçar anteontem, no funeral do nosso  "mano" comum) (****),  é um velho lobo do mar, natural de Ílhavo, terra que tem dado, a Portugal, ao longo da sua história, grandes marinheiros, pescadores e capitães... 

Nascido em 1934, passou 35 anos da sua vida na pesca do arrasto do bacalhau, a bordo, e capitaneando grandes lugres. Hoje (ainda hoje, vai fazer 90 no próximo ano!), está em terra, com funções de gestão em empresa do sector piscatório ao mesmo tempo que vai passando e repassando para o papel as suas memórias... e divulgando os seus livros, o meso é dizer partilhando memórias que pertencem ao nosso património imaterial.

Em 2004 saiu o seu primeiro livro, Figuras e Factos do Passado: Recordações da Pesca do Bacalhau, numa edição infelizmente nada profissional da Câmara Municipal de Aveiro. Quando o conheci, através do Zé António Paradela, ele teve a gentileza de me oferecer um exemplar desse seu primeiro livro, autografado.

Foi uma revelação, para mim, essas histórias - épicas, dramáticas, picarescas, burlescas, mas sempre humaníssimas - dos nossos marinheiros e pescadores da Terra Nova. Fiquei de lhe fazer uma recensão crítica que nunca chegou a aparecer, à luz do dia, no nosso  blogue, do que me penitencio... (mas ainda vamos a tempo).

Por outro lado, sempre me intrigou o facto de, durante a guerra colonial, se poder optar pela dura pesca do bacalhau como alternativa à tropa e à guerra... O capitão Aveiro, como é carinhosa e respeitosamente conhecido,  terá recebido - imagino eu -  alguns pedidos para aceitar a bordo mancebos que se queriam livrar da Guiné, Angola ou Moçambique, admitindo que a pesca  não fosse a sua prineira opção...

Ao repescar esta belíssima apresentação que o seu mano José António Paradela - e meu velho amigo - fez do seu livro, na altura (2007) em 2.ª edição, Histórias desconhecidas dos grandes trabalhadores do mar, estou a homenagear duplamente dois homens de eleição, dois "ílhavos" que muito honram a sua terra.

Pegando na inspiradíssima dica do Zé António, também eu direi que - à semelhança dos nossos velhos lobos do mar que hoje morrem em terra! - compete-nos também a nós, que fizemos a guerra colonial, "escovar a história a contra pêlo"... 

Temos tentado fazê-lo, ao longo destes anos t0d0s, fazendo jus ao lema do nosso blogue, "Camarada, não deixes que sejam os outros a contar a tua história!"... O mesmo é dizer:  é importante que se faça a História com H grande da guerra do ultramar / guerra colonial, mas não menos importante é escrever e salguardar as memórias de quem a fez, de um lado e do outro, afinal a história com h pequeno,,,

O capitão Valdemar Aveiro, como como todos os mareantes, é um execelente contador de histórias. Tem, além do talento, a grande vantagem da vivência e da autenticidade... Que ele e o Zé António  sejam também  exemplos inspiradores para todos nós, amigos e camaradas da Guiné, os antigos combatentes que, enquanto geração, estão a desaparecer todos os dias...  

(Negritos: editor LG)



Alguns dos bravos marinheiros e pescadores que embarcam no "Lousado" em abril de 1955. Na segunda fila, ao centro, o terceiro a contar da esquerda, é o nosso autor, com 17 anos...

Foto (e legenda): © José António Paradela (2015). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


4. Poema "O Verde" (equivalente ao nosso "periquito"):

O Verde (#)

No dia em que, “verde”, me puseram entre tábuas
De um catafalco a que chamaram bote
E me disseram: Salta, esquece as mágoas…
Senti, looongo, na garganta um garrote!

Primaveril, meu coração bateu mais forte,
Ao cair na onda junto ao costado,
E remei, como quem enxota a morte,
De dentro do meu “fato oleado”.

“Senta-te, Zé, e rema enquanto a força durar!
Tens pão e peixe, e tens também café quente!
Segue-me quando o meu búzio roncar…”

Disse o “maduro”, comovido, ao ver-me imberbe,
Estendendo as linhas na corrente,
Junto à fria palidez do terrível icebergue.

(#) Pescador bacalhoeiro embarcado pela primeira vez

In: Ábio de Lápara -"Santinhas de Apegar: Textos Poéticos"  (20127, ed. de autor), pág. 75.  
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Notas do editor:


(**) Vd. poste de 24 de novembro de  2007 > Guiné 63/74 - P2300: Bibliografia (12): Memórias de outra tropa, de outra guerra, a da pesca do bacalhau: escovar a história a contra pêlo (José António Boia Paradela)

(***) Último poste da série > 20 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24082: Tabanca Grande (544): Mário Arada Pinheiro, cor inf ref, que, além de 2º cmdt do BCAÇ 2930 (Catió, 1971/73), esteve na 2ª Rep, no QG/CCFAG, e foi comandante-geral de milícias, substituindo o major Carlos Fabião... Senta-se à sombra do nosso poilão, no lugar nº 871.

(****) Vd. poste de 24 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24093: In Memoriam (472): José António Paradela (Ílhavo, 1937 - Aveiro, 2023): pequena homenagem póstuma lida ontem, na igreja matriz de Ílhavo (Luís Graça)