1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do
BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.
Dos matagais da Guiné aos fados no Faia, Bairro Alto, em Lisboa: Assimetrias de um tempo sempre infinito
Exclamo pelo tempo passado, preenchido por imagens que as nossas infindáveis memórias nunca esquecerão, mesmo sabendo que o dobrar da próxima esquina force corpos já vergados pelo peso da idade, sendo, contudo, a curiosidade dos homens um condão indeterminadamente inflexível neste imenso planeta terrestre.
Existem, porém, assimetrias onde a nossa juventude de outrora parecia alongar-se num tempo sempre infinito, mas, por outro lado, existia em nós a consciência de que afinal as nossas vidas têm um princípio, um meio e um fim. Claro que, obviamente, centralizo este texto inserido na vertente do meio, dado que o princípio fora naturalmente assumido feliz, creio, e o fim, sim esse fim, nunca o vamos adivinhar, ou a forma como acabará a nossa presença terrena.
Camaradas, conhecemos os tempos de tropa, as mobilizações que caíam em catadupa sobre jovens militares, sendo o nosso caso a vivência de uma guerra na Guiné, mas os tempos atuais não se apresentam minimamente fáceis. Obedece a cautelas previamente aconselhadas.
Em solo guineense lutámos contra um inimigo com rosto, ouviam-se e sentiam-se os distúrbios que as armas causavam naquele recanto africano “superlotado” por cerca de 40 mil soldados distribuídos pelos três ramos as Forças Armadas – Exército, Marinha e Força Aérea -. Hoje, pressagiamos esse repisar de um restolho imbuído em infindáveis incertezas, restando as imagens contidas nas nossas mentes, mas que lentamente se vão apagando. É a lei da vida.
Acontece, que o tempo que nos sobram deixam antever cuidados redobrados. A covid-19 é uma pandemia universal e cujo inimigo é invisível. As nossas gerações somam irreversíveis conhecimentos de uma evolução descomunal do homem, ou da natureza na sua essência e assistimos a alterações quer do meio urbano, quer rural, que climático. O homem foi à lua, o universo expandiu-se velozmente, assistiu-se a mutuações constantes, o racional progrediu e chegámos a um mundo onde a tecnologia impera.
O homem, sempre ganancioso, vê-se, agora, manietado à evolução de um inimigo que não escolhe a estirpe do seu portador. E é em momentos de solidão que viajo pelos recantos de uma memória, que permanece, por ora, crente das suas capacidades, e toca a desafiar um passado que jamais olvidaremos.
Numa destas tardes recorri aos meus álbuns fotográficos e eis que me deparo com duas imagens que refletem, somente, uma amizade entre dois velhos camaradas da Guiné: Eu, Zé Saúde, e o Manel Pereira.
O Manel foi furriel miliciano na CCAÇ 3547/BCAÇ 3884 (Contubuel 1972/1974), e cruzou, também, solo de Gabu, onde esteve com o seu grupo em Madina Mandiga, local onde se encontrava uma companhia do meu BART 6523, sendo, porém, verdade que o nosso encontro na Guiné nunca ocorreu.
Após o 25 de Abril, Revolução dos Cravos, ambos concorremos para a Caixa de Previdência e Abono de Família dos Serviços Médicos Socias do Distrito de Lisboa, onde fomos admitidos.
A nossa entrada para a Instituição ocorreu a 25 de junho de 1975 e lá fomos enviados para a mesma secção. Aí nasceu a nossa amizade. Uma amizade que se reforçou no tempo, sendo o meu Morris 1000 o meio de transporte numa Lisboa onde se podia passear mesmo a qualquer hora da noite.
Numa das fotos que exponho foi a ouvir fados no Faia, Bairro Alto, Lisboa, onde está à esquerda a Lurdes, mulher do Manel Pereira, de fronte, a minha mulher, eu e o nosso amigo comum Freitas também acompanhado pela sua companheira. A outra foto foi o nosso reencontro em Monte Real no convívio anual promovida pelo nosso blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.
Longe vão os tempos dos matagais da Guiné, dos tempos da guerra, da nossa juventude, de uma noite a ouvir os fados no velho Bairro Alto, de uma “Lisboa menina e moça” então calma, de ver os filhos nascer, do seu crescimento, vê-los adultos, educa-los, e de tudo o que a vida nos proporcionou, enfim, um amontoar de emoções que nos trouxe aos tempos atuais, onde o tal inimigo silencioso (covid-19) nos remete para um isolamento forçado em que a falta de um abraço, ou de um convívio, de um beijo, sobretudo aos netos, ou de um momento em que a amizade dogmatiza estímulos, tudo isto são agora componentes de um passado que nos fora, de grosso modo, tranquilizantes. Agora, prevalece a intranquilidade.
Cuidem-se camaradas, porque os tempos que se aproximam não se apresentam nada fáceis.
José Saúde e Manuel Oliveira Pereira
Um abraço, camaradas,
José Saúde
Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523
Mini-guião de colecção particular: ©
Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
19 DE DEZEMBRO DE 2020 > Guiné 61/74 – P21659: (Ex)citações (380): Mensagens Natalícias de antigos combatentes. Realidades de guerra. (José Saúde)