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segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26165: Notas de leitura (1745): À descoberta do passado de África, por Basil Davidson (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Julho de 2023:

Queridos amigos,
Aqui se versa a história do comércio de escravos, a era colonial e o quadro das independências no continente africano. A par de dados inequivocamente rigorosos, é nítido o desconforto de Basil Davidson a analisar o pacto estabelecido ao longo de séculos pelas chefaturas africanas e os comerciantes de escravos. É fidedigno o relato deste crescendo comercial polarizado para as Américas, tocou o Brasil, o Caríbe e a América Central e uma boa parte do que é hoje os Estados Unidos da América, prende-se com o açúcar, o tabaco, o algodão, a prata e o ouro e os diamantes, o trabalho do engenho, das plantações, das minas, até mesmo como na África do Sul o negro era escravizado ou induzido ao trabalho forçado. Houve escravos que resistiram, foi o caso do Haiti, revoltaram-se e foram massacrados pelos exércitos franceses.. Estes escravos africanos foram pioneiros do Novo Mundo,na Virgínia, Carolinas, na Geórgia, reformularam a estrutura do Brasil. A era colonial que despontou no século XIX entrará no ocaso no fim da Segunda Guerra, dos anos 1960 em diante o quadro político irá transfigurar-se. Desgraçadamente, ainda se pode utilizar o título de uma obra de René Dumont, "A África negra começou mal", este mesmo agrónomo escreverá mais tarde sobre a África estrangulada e o drama dos africanos nordestinos, em particular na região do Sahel.

Um abraço do
Mário



À descoberta do passado de África, por Basil Davidson (3)

Mário Beja Santos

A edição original é de 1978 e a tradução portuguesa de 1981, Sá da Costa Editora, que também produziu uma edição para o Ministério da Educação da República Popular da Angola. Basil Davidson, jornalista e escritor, tem vasto currículo ligado aos movimentos independentistas de língua portuguesa, recordo que foi ele que propiciou a ida de Amílcar Cabral a Londres em 1960, o líder do PAIGC (então PAI) apresentou um significativo documento sobre as colónias portuguesas, deu conferências e conversou com parlamentares, estabeleceu apoios. Este livro é uma introdução à história dos africanos, decorre às vezes numa atmosfera de intenso elogio ao contributo dos africanos para o progresso do Mundo Antigo, enfatizará a ascensão e esplendor de civilizações famosas do vale do Nilo, e iremos ver referências a mercadores e impérios, o Gana, o Mali e o Songai; haverá uma exposição quanto à importância da África Oriental e Central, como é óbvio procuraremos relevar o que ele escreve sobre a África Ocidental. Em tom francamente divulgativo, seguem-se exposições quanto ao modo de vida dos africanos, uma exposição sobre o comércio de escravos e, por fim, um capítulo dedicado ao colonialismo e independência.

Chegou o momento de nos centramos no comércio de escravos, em devido tempo já se observou que Davidson é francamente omisso quanto à natureza do comércio de escravos que se fazia dentro do continente, do Norte de África na bacia do Mediterrâneo e através do Norte de África para a Península Arábica e arredores. Dirá, de raspão, que o comércio de escravos remontava à época romana e que fazia parte importante da vida quotidiana da Europa, fala em escravos europeus, e dirá em dado passo:
“Estados cristãos, especialmente as cidades-Estados da Itália, tais como Génova e Veneza, vendiam muitos escravos europeus para os reis do Egito e Ásia Ocidental. E quando o fornecimento de não-cristãos baixava, eles compravam cristãos e vendiam-nos também.”
Suaviza a vida destes escravos, dizendo que eram muito bem tratados porque eram caros e acrescenta:
“Enquanto o comércio de escravos se confinou à Europa e África pouco mais foi do que um comércio de cervos domésticos e artífices, dado que as condições de vida dos escravos eram muito semelhantes às da maioria da gente pobre desses tempos.”

Há algo de muito cor-de-rosa nesta narrativa, para contrastar com a brutalidade do tráfico negreiro que se processará por europeus de África para as Américas, tráfico que envolveu portugueses, espanhóis, franceses, ingleses, holandeses e dinamarqueses, sobretudo. Tornara-se vital encontra mão de obra para a indústria açucareira, seguir-se-á o cultivo de algodão e a pesquisa de ouro e pedras preciosas. Os chefes africanos entraram no comércio de escravos, fizeram acordos amigáveis, aceitaram auxílio militar ocasional de piratas, ficaram satisfeitos por comprar produtos europeus, venderam ouro, marfim, pimenta e as provisões alimentares às tripulações dos navios europeus. Estes reis, ávidos de riquezas, lançaram-se em guerras para ter mais prisioneiros que seriam feitos escravos. Davidson encontra uma explicação para este comportamento dos chefes africanos: sentiam a atração por possuir esses produtos longínquos e queriam comprar armas, medida que irá merecer a reprovação de muitos, há mesmo testemunhos de quem protestava dizendo que aquela venda de armas era como entregar aos africanos uma faca para cortar os nossos próprios pescoços. Davidson elenca o funcionamento do comércio e depois o seu termo, e as consequências futuras destes africanos que passaram a integrar o destino dos povos americanos. Releva igualmente a importância dos escravos na fase pioneira do Novo Mundo trabalhando como mineiros, agricultores e criadores de gado.

E assim chegámos ao último capítulo da obra, caminha-se para a África moderna, entre a era colonial e a África de Estados independentes. Enumeram-se as razões que conduziram povos europeus ao colonialismo africano e não se esconde que os africanos pagaram um preço extra pelo envolvimento dos seus reis e mercadores no comércio de escravos. Este processo colonialista fez-se acompanhar, obviamente, de uma lógica de extração de riqueza, depois da Conferência de Berlim as potências coloniais foram implicadas na ocupação efetiva do território e Davidson faz uma súmula de quatro períodos principais:
“Como funcionou o sistema colonial? Qual o seu significado para a África? As respostas a estas perguntam podem achar-se se observarmos o que aconteceu entre cerca de 1880 e 1960. Podemos distinguir quatro períodos principais.
Primeiro, o período de invasão e conquista anterior e posterior à Conferência de Berlim de 1884-1885. Durou até cerca de 1900
Segundo, o período de montagem do sistema colonial e de destruição dos últimos remanescentes da resistência armada africana. Este prolongou-se até 1920, ou mais tarde em algumas colónias.
Terceiro, o período central do domínio colonial. Na maioria dos casos, este estendeu-se de cerca de 1920 até cerca de 1950, embora também com exceções.
Quarto, o período em que uma nova e sempre bem-sucedida forma de resistência política africana contra o domínio estrangeiro ocupou o centro do palco. Isto começou a acontecer cerca de 1950. A nova forma de resistência política chamou-se nacionalismo. Era um nacionalismo orientado, não para a conquista de outros, mas para a recuperação da independência africana adentro das fronteiras coloniais, que os africanos agora aceitavam como sendo as fronteiras das novas nações independentes que queriam construir.”

Conhecemos bem as guerras que ocorreram dentro deste quarto de período. O autor procura fazer uma reflexão sobre os insucessos africanos, é o caso do baixo nível tecnológico, a desunião no interior dos Estados africanos, a propagação de tribalismo, as debilidades da educação colonial (que refletiam atitudes das classes dominantes da Europa). Conta-se sumariamente a história das vias de resistência africana, a importância que teve a Segunda Guerra Mundial na desarticulação dos ideais imperiais, a alvorada da liberdade política e os casos de luta armada.

Os graves problemas não desapareceram com as independências, é o caso das fronteiras. “A ideia europeia de Estado, legado aos africanos, é que ele deve consistir numa única nação, com uma fronteira a limitá-lo. Para além da fronteira ficam outras nações diferentes. Contudo, esta asseada ideia de que devia ser um Estado não foi a ideia que os europeus efetivamente aplicaram em África. Eles retalharam a África em cinquenta colónias, ao sabor dos puxões e empurrões dos interesses e rivalidades europeus, e de maneira nenhuma de acordo com os interesses dos povos cujos países invadiram.
Muitas vezes os europeus limitaram-se a traçar linhas em mapas, mesmo quando tinham apenas uma vaga noção acerca dos povos e dos países através dos quais as linhas passavam. O resultado foi que poucas das fronteiras coloniais faziam qualquer sentido para a gente que vivia lá dentro.”

O Congo é um exemplo flagrante.

Subsistem os perigos da herança colonial e de um nacionalismo estreito. O fim da Guerra Fria parecia anunciar a retoma da via democrática, em muitos casos estes países imobilizaram-se e aguardam vias para o desenvolvimento, isto a despeito da ajuda da cooperação internacional se fazer com inegáveis benefícios, como é flagrante a gradual descida da mortalidade infantil e de doenças devastadoras.

Basil Davidson (1914-2010)
Mercado de escravos na região do atual Senegal
Aguarela sobre papel "Engenho manual que faz caldo de cana", Jean-Baptiste Debret, 1822
Divisão de África, finais do século XIX
Grupo ligado à Casa de Estudantes do Império, Amílcar Cabral é o segundo de pé à direita
Nelson Mandela
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Notas do editor

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Último post da série de 15 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26158: Notas de leitura (1744): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26141: Notas de leitura (1743): À descoberta do passado de África, por Basil Davidson (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Julho de 2023:

Queridos amigos,
Desta edição em português se fez outra destinada ao Ministério da Educação da República Popular de Angola, em 1981. A este país recentemente independente interessava um relato que não se cingisse à visão colonial ou mesmo à história monumental da UNESCO. Confiou-se no poder divulgador de Davidson que pesquisou em diferentes livros o passado africano, e há que reconhecer que fez um levantamento corretamente cingido a investigações de referência. Mas ao abordar a questão ainda hoje muito tensa do comércio de escravos tudo se irá polarizar no negócio europeu, passa-se uma esponja sobre o tráfego praticado entre a Arábia e o Norte de África, a vida destes impérios do norte, centro e sul do continente onde se praticava o comércio negreiro e onde ninguém possuía direitos. Ora o que ele vai enfatizar é o comércio negreiro praticado pelos europeus, o outro, praticado durante séculos entre gente da mesma cor, não conta. Assim se pretendia fazer lavrar o mito de que tinham sido os colonialistas europeus a definhar África através do comércio mais ignóbil do mundo. Mas Davidson era um homem comprometido com estes movimentos de libertação e fez parte fraca. O passado de África teve os seus momentos de glória e as múltiplas fraquezas e ações ignóbeis que encontramos nos outros impérios.

Um abraço do
Mário


À descoberta do passado de África, por Basil Davidson (2)

Mário Beja Santos

A edição original é de 1978 e a tradução portuguesa de 1981, Sá da Costa Editora, que também produziu uma edição para o Ministério da Educação da República Popular da Angola. Basil Davidson, jornalista e escritor, tem vasto currículo ligado aos movimentos independentistas de língua portuguesa, recordo que foi ele que propiciou a ida de Amílcar Cabral a Londres em 1960, o líder do PAIGC (então PAI) apresentou um significativo documento sobre as colónias portuguesas, deu conferências e conversou com parlamentares, estabeleceu apoios. Este livro é uma introdução à história dos africanos, decorre às vezes numa atmosfera de intenso elogio ao contributo dos africanos para o progresso do Mundo Antigo, enfatizará a ascensão e esplendor de civilizações famosas do vale do Nilo, e iremos ver referências a mercadores e impérios, o Gana, o Mali e o Songai; haverá uma exposição quanto à importância da África Oriental e Central, como é óbvio procuraremos relevar o que ele escreve sobre a África Ocidental. Em tom francamente divulgativo, seguem-se exposições quanto ao modo de vida dos africanos, uma exposição sobre o comércio de escravos e, por fim, um capítulo dedicado ao colonialismo e independência.

Já viajámos por impérios do passado, Gana, Mali e Songai, seguidamente o autor transporta-nos para a África Oriental e Central, dá-nos uma descrição da cultura Suaíli, o viajante árabe Ibn Battuta, que referenciou Tombuctu e as cidades do Mali e Songai, rumou para o sul, esteve onde é hoje a capital a Somália, Mogadíscio, e depois Quíloa, o principal centro do comércio do ouro e do marfim da África Oriental, situada numa pequena ilha junto da costa da parte sul da Tanzânia. Tudo vai mudar em 1498, com a viagem de Vasco da Gama, ele não encontrou Quíloa na sua primeira viagem, esteve em Mombaça e depois Melinde. Davidson refere os reinos Xonas, foram visitados por portugueses que partiam de Sofala e que avançaram para esta região entre os rios Zambeze e Limpopo. No século XV, quando os Xonas se lançaram num importante período de expansão política, eles já tinham criado importantes Estados e haviam completado as altas muralhas do Grande Zimbabué, residência dos seus governantes mais poderosos, cerca de 1400.

Impõe-se uma referência ao reino de Angola, há a considerar o reino do Congo e o dos Quimbundos, a sul, na atual parte ocidental e central de Angola, chamava-se Ndongo e o rei tinha o título de Ngola. Em 1500, os portugueses do Congo confundiram o título do rei com o nome do país, entrou em uso o nome de Angola. O autor recorda a correspondência entre os reis de Portugal e os do Congo. E voltamos à África Ocidental, fora a região mais densamente povoada do continente, sabe-se que tudo mudara com a avassaladora extensão do deserto, foi aqui que se deu o impacto do comércio de escravos do Atlântico, levaram para a América as artes, as técnicas e o trabalho da gente negra. O autor dá-nos o quadro do passado recente antes da vinda dos europeus:
“Os africanos ocidentais comerciavam com o Norte e o Leste. Vendiam os produtos das suas florestas, o ouro e a noz de mascar aos mercadores viajantes do Sudão, do Mali e a gente do território dos Haússas. Toda a África Ocidental era atravessada por uma rede de rotas comerciais ligadas às cidades mercantis, tais como Djenne, Tombuctu e Kano. Os africanos ocidentais ao sul do Sudão também comerciavam muito entre eles próprios.” O autor fará referência aos reinos Iorubas, ao império do Oyo, ao império do Benim, que manteve boas relações com os portugueses. “O povo de Benim viu que os europeus estavam desejosos de comprar a pimenta que eles cultivavam em quantidade, pois a pimenta era então um produto valioso na Europa. Descobriram também que os europeus tinham grande admiração pelos excelentes algodões tingidos e queriam comprá-los. Em contrapartida, o povo do Benim achou que os europeus possuíam coisas úteis para lhes vender, nomeadamente artigos de linho e de metal.” As obras de arte produzidas deste intercâmbio são hoje altamente disputadas pelos museus e grandes colecionadores.

Uma palavra agora para o reino do Achanti, que englobava a maior parte do que é agora a República do Gana. Depois de 1700, os Achantis dominaram um vasto território durante quase 200 anos. E depois de uma descrição feita deste reino de Achanti, Davidson descreve o sistema político africano, a governação, as linhagens, as sociedades secretas, mas também a religião, o encontro entre o cristianismo e o Islão, a feitiçaria, a tecnologia prática, o tratamento dos metais, a fiação, tintura e tecelagem; e igualmente pormenoriza a arte de viver, a literatura, a música, o teatro. E assim chegamos à história do comércio de escravos entre África e o Mundo Ocidental.

Chama-se a atenção do leitor que Davidson, não se sabe bem porquê, não tem uma palavra sobre o comércio de escravos antes da chegada dos portugueses e outros, ora a escravatura vem desde os tempos antigos, em qualquer conquista entre povos africanos se escravizava população e esta era comerciada pelo continente. A sua narrativa começa exclusivamente com a chegada dos portugueses, mas antes, porém, socorre-se de uma descrição mirabolante, truncada do que fora a escravatura no passado. Vale a pena reproduzi-la para se ver a onde nos leva a manipulação e a ignorância:
“As primeiras incursões em busca de cativos negros que pudessem ser vendidos na Europa têm de ser encaradas no contexto da época. Em 1441, quando Antão Gonçalves zarpou da costa portuguesa, o comércio de escravos já era muito antigo na Europa. Remontava à época romana e, mais atrás ainda, à Grécia antiga. Continuou parte importante da vida quotidiana na Europa até ao fim da Idade Média e mesmo posteriormente. Tratava-se sobretudo de comércio de escravos europeus. Estes vinham, normalmente, dos países eslavos da Europa Oriental, porque os povos eslavos converteram-se ao cristianismo mais tarde que os outros europeus; e os cristãos, como os muçulmanos, não viam nada de errado em escravizar os não-crentes. Este comércio não se confinava à Europa. Estados cristãos, especialmente as cidades-estados da Itália, tais como Génova e Veneza, vendiam muitos escravos europeus para os reis do Egito e da Ásia Ocidental e quando o fornecimento de não-cristãos baixava, eles compravam cristãos e vendiam-nos também. Os genoveses eram tão ativos na venda de cristãos que o Papa Martinho V, em 1425, emitiu uma ordem de excomunhão contra eles. Mas o destino destes cativos era muito diferente do dos escravos transatlânticos de épocas posteriores. Tal como em África, eles tornavam-se pessoas sem direitos que podiam ser compradas e vendidas, ou oferecidas de presente, para servirem como pessoal doméstico ou artífices especializados. Podiam ascender a postos de autoridade, casar no seio das famílias dos amos, trabalhar para reaverem a liberdade. Eram muito bem tratados, porque eram caros. Apenas os ricos podiam tê-los. Por conseguinte, Gonçalves e os seus colegas capitães, trazendo prisioneiros africanos para Lisboa, não viam crime no que faziam e sabiam que a carga era valiosa.”

Assim se passa uma esponja sobre a história do comércio negreiro africano que antecede o comércio negreiro europeu em África…

(continua)

Basil Davidson (1914-2010)
Bronzes do Benim, coleção do Museu das Belas Artes de Boston
A Grande Mesquita, Djenne, Mali
Gao e o rio Niger
Mapa do império Mali, cerca de 1337
Saleiro de Marfim, arte cingalo-português, séc. XVI, império do Benim, peça do Museu Britânico
Saleiro, séc. XVI, arte cingalo-portuguesa, peça do Museu Nacional de Arte Antiga
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Notas do editor

Vd. post de 4 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26114: Notas de leitura (1741): À descoberta do passado de África, por Basil Davidson (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 8 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26128: Notas de leitura (1742): "A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar 1878-1926", por Armando Tavares da Silva; Caminhos Romanos, 2016 (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26114: Notas de leitura (1741): À descoberta do passado de África, por Basil Davidson (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Julho de 2023:

Queridos amigos,
A obra de Basil Davidson não esconde os objetivos subjacentes: mostrar como houve civilizações e culturas prodigiosas antes da chegada do europeu, é uma escrita com o seu poder elegíaco, e se assim não fosse não tinha havido uma edição a pedido do Ministério da Educação da República Popular da Angola. Tendo sido um ativista fervoroso pelas causas dos movimentos independentistas (PAIGC, MPLA e FRELIMO), também aqui deixa a sua marca da água, veremos adiante que trata a questão da escravatura na África pré-colonial como cão por vinha vindimada, era quase tudo compra de gente que ficava em família, segue-se então o comércio ignóbil dos europeus, que deixou os seus filhos e filhas povoarem vastas regiões das Américas e das Caraíbas, e que deram um contributo vital para o desenvolvimento do Novo Mundo. A despeito de óbvia parcialidade no tratamento das chamadas "questões quentes", Davidson é um excelente escritor e o seu livro uma lição de divulgação, uma boa obra de consulta para certos investigadores e universitários que queiram procurar aprender a escrever para o grande público.

Um abraço do
Mário



À descoberta do passado de África, por Basil Davidson (1)

Mário Beja Santos

A edição original é de 1978 e a tradução portuguesa de 1981, Sá da Costa Editora, que também produziu uma edição para o Ministério da Educação da República Popular da Angola. Basil Davidson, jornalista e escritor, tem vasto currículo ligado aos movimentos independentistas de língua portuguesa, recordo que foi ele que propiciou a ida de Amílcar Cabral a Londres em 1960, o líder do PAIGC (então PAI) apresentou um significativo documento sobre as colónias portuguesas, deu conferências e conversou com parlamentares, estabeleceu apoios. Este livro é uma introdução à história dos africanos, decorre às vezes numa atmosfera de intenso elogio ao contributo dos africanos para o progresso do Mundo Antigo, enfatizará a ascensão e esplendor de civilizações famosas do vale do Nilo, e iremos ver referências a mercadores e impérios, o Gana, o Mali e o Songai; haverá uma exposição quanto à importância da África Oriental e Central, como é óbvio procuraremos relevar o que ele escreve sobre a África Ocidental. Em tom francamente divulgativo, seguem-se exposições quanto ao modo de vida dos africanos, uma exposição sobre o comércio de escravos e, por fim, um capítulo dedicado ao colonialismo e independência.

Tudo começa com a descoberta em 1888 das ruínas de grandes edifícios de pedra na região do Zimbabué, quem teria construído aquelas grandiosas muralhas de pedra e sabido fazer elegantes pulseiras de ouro batido? Os primeiros arqueólogos não encontravam resposta. Hoje sabe-se que estas paredes do Zimbabué terão cerca de mil anos. Como se sabe que houve povos africanos pioneiros no último período da Idade da Pedra e a paleontologia dá como certo e seguro de que o homem, tal como o conhecemos, tem aqui a sua origem.

O povo mais bem-sucedido foi aquele que vivia nas margens do rio Nilo, no território que depois foi o Egito. Davidson dá-nos um quadro de tão portentosa civilização e a sua cronologia. Ali perto nasceu outra civilização, o reino de Kush, construído em duas fases, a primeira sobre a influência egípcia e a fase em que a capital era Méroe, a cerca de 140 km a Norte da moderna Kartum, a capital do Sudão, o poder e a influência de Méroe durou aproximadamente oito séculos. Estes kushitas eram grandes viajantes e comerciantes, inventaram um alfabeto novo com signos para 23 letras (os cientistas ainda trabalham na sua decifração); hábeis agricultores, mas também fortes na guerra, utilizavam a cavalaria, domesticaram o elefante africano; no auge do seu poderio, entre aproximadamente 300 a.C. e 200 d.C., os kushitas dominavam a parte das parcelas do Norte e do centro do Sudão Oriental.

O autor volta-se agora para os povos berberes; antes do ano 2000 a.C., uma grande parte do que é atualmente o deserto do Saara consistia em pradarias bem irrigadas onde viviam e labutavam muitos grupos africanos da Idade da Pedra; as alterações climáticas reconfiguraram estes povos saarianos, deram-se impressionantes migrações; os Tuaregues estão entre os descendentes destes primeiros saarianos; aqueles que viviam no Norte de África aprenderam a metalurgia com os vizinhos do outro lado do Mediterrânio, na Hispânia. O autor refere Cartago e Roma em África e dá um enfoque aos primeiros reinos cristãos de África. O Egito chegou a ser terra cristã; mas a comunidade mais original é a Igreja Copta, criou elegantes igrejas, belas bibliotecas, muitas pinturas e esculturas religiosas; tiveram diferendos com Bizâncio, mas ficaram independentes; há também a registar o cristianismo núbio.

África foi sempre um continente difícil, se bem que possuidor de territórios aprazíveis, ao longo de alguns dos grandes rios, ou nas margens dos lagos, ou nas férteis terras altas orientais que constituem atualmente o Quénia, a Uganda, o Norte da Tanzânia, o Ruanda e o Burundi; mas a maioria dos africanos só pode sobreviver e prosperar respondendo a severos desafios de clima e solo.

“Por vezes foram ajudados pela exuberância da natureza de África, pelas suas altas florestas ou grandes manadas de animais de boa carne, tais como antílopes e búfalos; mas estas mesmas vantagens também acarretavam desvantagens. As florestas eram de difícil penetração; com frequência era difícil viver nelas. Os animais incluíam perigosas feras. A maioria dos africanos teve também de resistir às doenças peculiares das regiões tropicais. Estas incluíam a malária, transmitida pelos mosquitos; certas outras doenças, tais como a bilharzíase, transmitida por caracóis aquáticos ou a debilitação provocada pelos ancilóstomos (infeção parasitária); e, entre as piores, a doença transmitida pela mosca tsé-tsé.”

A despeito destas adversidades, a população fixou-se, desenvolveu a sua agricultura, utilizou o ferro, gerou civilizações. Podemos falar do mundo africano dedicado ao comércio, em duas regiões distintas. A primeira foi o império de Monomotapa, ligado ao comércio mundial pelos mercadores suaílis que, das cidades da costa oriental, penetravam no interior; a segunda, foi a África Ocidental a sul do Sudão, dotou-se de mercadores sudaneses e berberes do Saara do Norte de África. Os africanos produziram e exportaram muitas centenas de toneladas de ouro.

É a vez de ser referenciado o Andaluz, em inícios do século VIII muçulmanos do Norte de África ergueram uma civilização nas regiões meridional e central de Espanha que durou até 1492, quando os Reis Católicos conquistaram Granada. É descrita esta brilhante civilização andaluza, a sua arte e os seus eruditos.

A sul do Saara temos os impérios das savanas. Estes povos centravam-se principalmente em ricas cidades-mercados onde os seus reis e mercadores viviam, eram povoados como forte atrativo para outros negociantes. E fala-se do Gana, teve o auge do seu poder cerca do ano 1000, os seus reis controlavam as rotas que levavam para o Sul, do Gana para o país que ficava à volta das nascentes do rio Níger, tinha o domínio da exportação do ouro, produziam moedas que circularam em dois continentes. A ascensão do Mali foi em grande parte obra do povo Mandinga de Wangara. Depois de 1250, o Mali expandiu-se até se transformar num dos maiores Estados do seu tempo. São desconhecidas as datas dos reinados dos primeiros monarcas do Mali. Sabe-se mais do bem-sucedido Kankan Mussa, que tomou o poder cerca de 1312, reinou até 1337. Dele sabemos mais através de um viajante árabe Ibn Batuta que nos deixou um relato palpitante do rei e da sua civilização. Este Kankan Mussa ficou na história por uma famosa peregrinação a Meca. “Diz-se que Mussa levou com ele cerca de 80 carregamentos de ouro do Mali, 500 dos seus servos traziam um bastão de ouro com o peso de 2 quilos. O imperador deu a maior parte deste ouro no Cairo, enquanto os cortesões também se serviam do ouro para fazerem compras nos mercados elegantes da capital egípcia.” O autor faz uma descrição deste império e depois fala-nos dos Songhai do Sudão Central que se impuseram depois da derrocada do Gana.

Deles iremos falar adiante, bem como de Tombuctu, haverá uma curta referência às cidades da costa Oriental e voltaremos à África Ocidental.


Mário Pinto de Andrade, Ana Maria Cabral, Pedro Pires e Basil Davidson, Cidade da Praia. 1980. FMSMB - Arquivo Mário Pinto de Andrade
Basil Davidson (1914-2010)
Ruínas localizadas a 20 km de Masvingo, sul de Zimbabwe. Era o centro de uma poderosa civilização conhecida como Império Monomotapa, cobrindo áreas do Zimbabwe e Moçambique.
Um pormenor do que foi o reino de Kush
Igreja de São Jorge em Lalibela, Etiópia

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 3 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26111: Notas de leitura (1740): "Poemas de Han Shan" (China, séc. VIII), organização, tradução e apresentação de António Graça de Abreu, no Centro Científico e Cultural de Macau, Lisboa, 26/9/2024

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22989: Notas de leitura (1418A): A teoria e a prática de Amílcar Cabral por Ronald H. Chilcote (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Março 2019:

Queridos amigos,
Não é a primeira vez que aqui se faz referência à investigação deste universitário norte-americano. Este seu trabalho está datado de 1991, contempla uma gama de entrevistas que ele efetuou em 1975 na Guiné-Bissau e recomenda-se vivamente, para quem pretenda estudar aprofundadamente este período da luta armada, os comentários que apresenta na sua bibliografia, extensíssima, ao tempo. Há factos apresentados que investigação posterior, é essa uma das grandes dívidas que temos ao trabalho de Julião Soares Sousa, demonstradamente mitificados: a fundação do PAI em 1956 (quando a sua primeira referência em público surge no início de 1960), a ligação direta entre o PAIGC e o massacre do Pidjiquiti, nunca se provou que os Manjacos sublevados tivessem recebido qualquer influência deste partido. É notório que ainda existe uma forte mitologia, a despeito do trabalho de investigação que põe a nu acontecimentos e situações que foram forjadas ao serviço da hagiografia. Acontece assim em muitos atos fundadores.

Um abraço do
Mário



A teoria e a prática de Amílcar Cabral por Ronald H. Chilcote (1)

Beja Santos

“Amílcar Cabral’s, Revolutionary Theory and Practice, A Critical Guide”, por Ronald H. Chilcote, Lynne Rienner Publishers, 1991, é, indiscutivelmente, um dos estudos mais detalhados e bem organizados sobre o pensamento de Amílcar Cabral feito por um investigador estrangeiro. É um documento de referência, Ronald Chilcote é um académico norte-americano detentor de uma apreciável obra de investigação, desde cedo que se interessou pelo império colonial português, já aqui se fez referência a uma outra obra também de consulta obrigatória, a documentação que ele e a sua equipa organizaram sobre as posições assumidas perante a descolonização portuguesa, é um histórico muito bem elaborado para qualquer consultor à escala internacional.

Chilcote trata sempre Amílcar Cabral como um dos mais importantes pensadores do terceiro mundo, resume o seu percurso curricular (Cabral e o contexto histórico), socorre-se das impressões de outros biógrafos como Patrick Chabal, Gérard Chaliand, Basil Davidson, Mário de Andrade ou Joshua Forrest, o mundo universitário de Lisboa, os seus trabalhos como agrónomo e podólogo, a formação da teoria revolucionária, o diplomata, o seu legado; dedica um capítulo à teoria do colonialismo e imperialismo, disseca as considerações de Cabral sobre a situação colonial da Guiné Portuguesa, o estado de desenvolvimento das forças produtivas; a teoria do nacionalismo revolucionário e da libertação nacional, segundo Chilcote, é original em Cabral, este era conhecedor das teses marxistas-leninistas, estava plenamente informado das diferentes correntes do nacionalismo revolucionário emergentes dos anos 1950 para os anos 1960, o seu pensamento levou-o a desenvolver a cultura popular como acompanhante obrigatório da luta de libertação nacional, é nessa observação que ele vai intuir uma teoria de libertação nacional com dados inovadores, num território sem proletariado, a chamada luta de classes forjada pelas correntes marxistas, pertenceria a vanguarda da libertação a uma pequena burguesia que em determinada fase do processo revolucionário teria que decidir um suicídio de classe, optando pela doutrina revolucionária, ou resignando-se a ser um apêndice do neocolonialismo; daí outra vertente do seu pensamento, o que ele considerava ser uma teoria de classe e luta de classes.

Partindo do conceito consagrado de que classe e luta de classes eram em si o resultado do desenvolvimento das forças produtivas em conjugação com o sistema de propriedade dos meios de produção, Cabral questionou se a imensíssima massa humana dependente da agricultura estaria habilitada a tomar como eixo mobilizador a luta de classes quando, como no caso específico da Guiné, o colonizador não possuía terra, nem indústria, era um instrumento dentro de uma colónia-feitoria, assim havia que repensar a conceção de classe e luta de classes, e de novo o líder do PAIGC enfatizava o caráter marginal dessa pequena burguesia e da sua decisão histórica de se mobilizar, ou não, para as transformações revolucionárias; também nesse contexto, Cabral tomava como objeto de estudo as divisões e contradições existentes na sociedade guineense, os grupos étnicos, a essência religiosa, as chefaturas, as alianças ou hostilidades ao poder colonial, as formas primitivas das forças produtivas, a apropriação dos meios de produção e a ausência da luta de classes, daí passando para a importância da agricultura comunitária em oposição aos processos agrários feudais, considerando, no topo de todas estas reflexões a instituição de um modelo socialista que teria como sigla libertadora do jugo colonial “a unidade e a luta”, uma unidade étnica, conjugando os povos guineense e cabo-verdiano; neste processo de análise, Chilcote procede a uma curta síntese, convocando um conjunto de autores que estudaram a realidade socioeconómica da Guiné sobre as alianças que Cabral pôde instituir e o processo ideológico em que organizou a vanguarda revolucionária.

Assim se chega à explanação de como Cabral forjou uma teoria de Estado e desenvolvimento, Chilcote destaca que Cabral não deixou uma teoria consumada, ia-se formando por etapas, nas áreas libertadas foram erguidas escolas, infraestruturas de saúde, armazéns do povo, tudo numa lógica de desenvolvimento autocentrado, montou-se um sistema de justiça popular e esquemas de participação na vida comunitária, logo através da figura dos comités de tabanca. Para solidificar a emergência do Estado, dotou-o de estruturas políticas, caso do Conselho Superior de Luta, em determinada fase considerou que estavam criadas as condições para abalar a presença portuguesa através de uma consulta popular para chegar à independência e aprovação de uma constituição. Observa Chilcote que Cabral dava grande importância à tríade dirigente, à organização militar com as FARP à frente mas custodiadas por comissários políticos. Cabral considerava que o órgão supremo do povo seria a Assembleia Nacional Popular, esta seria a trave-mestra do novo Estado.

Chilcote analisa seguidamente a transição da luta de libertação para a construção do Estado e os problemas postos quanto ao modelo de desenvolvimento, optar pela agricultura, pela descentralização política ou, pelo contrário, enveredar pelo desenvolvimento industrial, concentrar o poder em Bissau, confiar em pleno nos projetos dos doadores. Sabe-se qual o modelo de desenvolvimento centralizador seguido pelos dirigentes do PAIGC e o seu falhanço, as tensões entre guineenses e cabo-verdianos que tiveram o seu desfecho no golpe de 14 de novembro de 1980.

Em jeito de conclusão, o investigador norte-americano resume os tópicos para futuras discussões sobre o pensamento e obra de Cabral, tópicos esses que ele considera os cinco principais em análise: o líder do PAIGC entendia que a luta pela independência da Guiné-Bissau ajudaria a suprimir a História interrompida do país, essa luta contra o colonialismo era o dínamo da História contemporânea, a matriz da identidade do Estado emergente; Cabral tinha uma visão singular de um socialismo, a sua teoria de nacionalismo revolucionário e libertação nacional fazia o entrosamento entre a cultura e a condição económica, acreditava que todo aquele sacrifício e dedicação pela causa da independência induziriam uma nova consciência em todas as linhas do progresso; a teoria da luta de classes das correntes do marxismo ortodoxo não eram por ele consideradas aceitáveis, ele identificou várias classes sociais, refletiu sobre as divisões e contradições existentes na sociedade guineense e nunca se iludiu com a noção de proletariado, reservou o papel de vanguarda para uma pequena burguesia sobre a qual teceu uma terrível consideração: ou se “suicidaria” ou aderiria ao nacionalismo revolucionário, deixou em muitos escritos uma organização de participação e confiava plenamente que o Estado independente iria absorver ou assimilar as novas estruturas das zonas libertadas.

Ronald Chilcote considera que tudo quanto se vier a estudar sobre o pensamento e a ação de Cabral não pode pôr de parte dois factos históricos: ele foi, acima de toda a luta pela libertação na Guiné, o pensador que dotou o novo país de um quadro organizativo e acreditava plenamente que mesmo com a modéstia de recursos a Guiné pudesse caminhar, também com a ajuda internacional, para novas sendas do progresso, com grandes transformações da economia agrícola; Cabral manejou, graças a uma análise independente do marxismo por uma fórmula nova que pretendia imprimir à situação revolucionária que ele sonhava para a Guiné-Bissau, a despeito de certas cedências ao marxismo ortodoxo.

O estudo de Chilcote inclui um importante apêndice e uma bibliografia anotada que merecem ser verificados, o que se fará seguidamente.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22977: Notas de leitura (1418): "O Povo de Santa Maria, seu falar e suas vivências", 2ª edição revista e acrescentada (2021), por Arsénio Chaves Puim, um caso de grande sensibilidade sociocultural e de amor às suas raízes (Luís Graça ) - Parte III: a influência dos "calafonas"

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20567: Notas de leitura (1256): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (41) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Agosto de 2019:

Queridos amigos,
Depois da tempestade veio a bonança para o BCAV 490, atividades em Bissau, o bardo descreve-as álacre, até se faziam ações policiais com a detestada PM, imagine-se. Com o caminhar para o fim desta épica, não se pode descurar o que de um lado e de outro se dizia sobre aquela luta armada que tinha largos antecedentes para os acontecimentos de 1963. Por isso entrou em cena Basil Davidson, reputado jornalista britânico que durante a II Guerra calcorreara a Jugoslávia em guerrilha e que não esconde a profunda admiração pelo pensamento e ação do líder do PAIGC.
Vários repórteres portugueses foram à Guiné em tempo de guerra, recorde-se Amândio César, Horácio Caio e mais tarde José Manuel Pintassilgo. Mas não se pode esquecer que o primeiro de todos se chamou Dutra Faria, ele irá publicar no início de 1964 um conjunto de textos que serão publicados no inequívoco jornal do regime, o "Diário da Manhã". E, como o leitor constatará, dirá coisas do arco da velha, sem tirar nem pôr, a reportagem será intitulada "Na Guiné Portuguesa, junto da Cortina-de-Ferro". Dutra Faria ainda nos irá fazer companhia, a par de outro importante admirador de Cabral, Gérard Chaliand.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (41)

Beja Santos

“Como irmãos todos se dão,
na Polícia Militar
os doentes do Batalhão
estão sempre a alinhar.

Os cozinheiros a dividir o comer
não fazem de nós excepção.
O nosso capitão
nisso tem muito prazer.
Pelo Natal e Ano Novo nos quis ver
juntos no mesmo serão.
Houve uma reunião
onde o Entretela tudo orienta,
pois a PM e o quatro noventa
como irmãos todos se dão.

Na rua somos encontrados
mas não nos podem ralhar,
porque gostamos sempre de andar
com os botões apertados.
Andamos sempre asseados
vendo as raparigas passear
elas só querem namorar
oficiais e não soldados.
Mas há algumas praças desenrascados
na Polícia Militar.

O Borba e o 1.º Fortunato
em Bissau vão continuando
e para o Dakota vão mandando
para quem está capaz de mato.
O Primeiro torna-se chato
mas é essa a sua missão.
Faz muita opinião
em os cabelos mandar cortar
e está sempre a engatar
os doentes do Batalhão.

Albino e Joaquim, condutores,
Mário e Andrade, barbeiros,
Paulo e Vidinhas, enfermeiros,
são muito trabalhadores.
Nos quartos dos superiores
temos o Gomes a labutar.
O Mendes farta-se de trabalhar
e Artur guiando todos os dias
e os inutilizados das companhias
estão sempre a alinhar.”


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A Comissão do BCAV 490 aproxima-se do seu termo, o bardo aqui fala de rotinas e ocorre-nos trazer para a liça documentação a servir a causa do PAIGC e mais outra, bem nacionalista, uma reportagem publicada no Diário da Manhã, alguém que aterrou em Bissalanca em janeiro de 1964, o Governador era Vasco Rodrigues e o Comandante-Chefe Louro de Sousa.

Basil Davidson conheceu Amílcar Cabral e apoiou-o em Londres quando o líder do PAIGC visitou a capital do Reino Unido pela primeira vez. Sentir-se-á companheiro da causa de Amílcar Cabral, não esconde a admiração que por ele tem, visita a guerrilha e publicará em 1969 “A Libertação da Guiné, aspectos de uma revolução africana”, a edição portuguesa aparecerá em 1975. Como é evidente, narra a luta armada de forma encomiástica, é uma escrita com bastantes testemunhos e elogios rasgados. E traz elementos que podem abrir luz para o contexto histórico que precede e acompanha a vivência do bardo. Davidson ouve António Bana, um combatente com responsabilidades, e dá-nos o seu testemunho por escrito: “Éramos então sete, em 1961, Chico Mendes, Osvaldo Vieira, Nino, Domingos Ramos, Constantino Teixeira. Tínhamos acabado de regressar de um ano de instrução militar na Academia Militar de Nanquim, onde fomos muito bem treinados. Cabral fez-nos um curso intenso de política, depois explicou as tarefas que cabem a cada um de nós e como nos havíamos de desempenhar”. Um outro guerrilheiro, de nome Armando Ramos diz ao jornalista britânico: “Chamamos zona libertada a uma área em que temos controlo quotidiano, em que apenas excepcionalmente temos de usar o nosso exército para neutralizar uma possível surtida portuguesa a partir de uma dessas guarnições e em que a população está mobilizada para o nosso lado tanto no sentido político como no sentido militar da palavra”. É neste quadro de considerações que Davidson definirá o PAIGC como um movimento revolucionário que se baseia numa análise marxista da realidade social: “O ponto importante é que o PAIGC é um movimento baseado na análise da realidade social na Guiné”.

Basil Davidson
Acrescente-se que toda esta laude não invoca minimamente o contraditório. Se é verdade que foi capturado em 22 de maio de 1963 o então Sargento António Lobato, é descarada mentira dizer que os guerrilheiros deitaram dois aviões abaixo, o que acontecera foi que tinham tocado nas asas, um despenhou-se e o piloto morreu, o Sargento Lobato conseguiu manobrar e aterrar numa bolanha onde foi capturado. Alguém diz ao jornalista que as tropas portuguesas tinham sido desbaratadas no porto de Cachil pelas forças nacionalistas sob o comando de Agostinho de Sá, em 1 de junho de 1963, na ilha do Como, as forças portuguesas tinham sido forçadas a retirar-se e a refugiar-se em Bolama, uma outra mentira descarada. Falando mais adiante da batalha do Como, que durou mais de 70 dias, em 1964, o jornalista, sem titubear, informa que as forças portuguesas tinham sofrido pesadas baixas, fora a pior derrota de sempre em toda a história do colonialismo português. Alguém diz e ele escreve, sem qualquer hesitação: “Calculamos as baixas do inimigo em 650 homens”.

O jornalista Dutra Faria, diretor da ANI – Agência de Notícias de Informação vai à Guiné e publica no Diário da Manhã entre janeiro e fevereiro de 1964 um conjunto de crónicas intituladas “Na Guiné Portuguesa, junto da ‘Cortina de Ferro’”. Descreve o território, a sua complexidade, os heróis portugueses que por ali passaram, dirá que Amílcar Cabral, em Bissau, quando estudante, era um rapazinho que ia à missa todos os Domingos. Cabral deixou-se empolgar pelo marxismo no Instituto Superior de Agronomia onde conheceu a jovem com quem viria a casar-se. E escreve: “Pela fotografia que alguém nos mostra, é uma linda rapariga de olhos claros e cabelos talvez aloirados. Branquíssima. Ambos, concluído o curso, viveram e trabalharam em Bissau, onde, afirma-nos alguém – um chefe de Serviço, pelas suas gafes monumentais e por um estúpido racismo de última hora, completou no jovem agrónomo de cor a obra iniciada em Lisboa, no Instituto, pelos seus colegas comunistas e continuada, depois, pela esposa – revolucionária exaltada”. Dutra sabia pouco da história do PAIGC, mas adianta que tinha andado em digressão com outros revolucionários numa longa viagem entre a Cortina de Ferro e a Cortina de Bambu, alguns dos seus companheiros tinham frequentado escolas de agitação política e sabotagem, os quadros da guerrilha guineense estavam longe da improvisação dos ministros e generais de Holden Roberto, “criaturas que eram, ontem ainda, alfaiates e barbeiros; quando é Moscovo que organiza o terrorismo, tudo se faz a tempo e horas, sem pressas, sem precipitações, meticulosamente”.

Assombra tal elogio mas logo a seguir percebe-se porquê, Dutra está a picar nos EUA, a política norte-americana confiara declaradamente em Holden Roberto: “O lamentável é que sejamos nós a pagar as custas da aprendizagem. Nós, portugueses, que na batalha dos dois imperialismos pela posse de África nos encontramos entre dois fogos”. Dirá noutro texto que o PAIGC estava a ter relativo sucesso junto dos Balantas, pudera, era uma etnia onde o roubo se assumia como instituição…

O que se passava na atividade do PAIGC era infiltração, “os terroristas de Amílcar Cabral nunca conseguiram desalojar os nossos soldados de qualquer ponto por estes ocupado”. Dutra escreve muito com base no diz-se e consta, como adianta: “Ao que parece, cada grupo de terroristas – e, segundo me afirmam, não haverá, em toda a Guiné, mais do que uns oito – é constituído por um número de homens variável entre os trezentos e os quinhentos”. E ainda neste clima do diz-se e do consta, adianta que os guerrilheiros faziam patrulhas de dois e três homens, que tinham oficiais e comandantes, que o camarada oficial estava encarregado das operações de guerra, que havia um encarregado da distribuição das munições e conservação das armas. Eram mulheres afetas que vinham fazer compras às povoações e que tinham por missão espiar os movimentos das Forças Armadas Portuguesas e conclui drasticamente: “Não será de admirar que em Bissau e noutros centros algumas delas expressamente se prostituam… por amor ao partido”. Logo a seguir, informa que há duas grandes florestas na Guiné, a do Cantanhez, entre os rios Cacine e Cumbijã, e na parte central a Mata do Oio. Amílcar Cabral, proclama o jornalista, alimentava-se do exagero, a Rádio Conacri emitia os seus comunicados, no final do ano de 1963 afirmava que a guerrilha tinha abatido quinze aviões militares portugueses, Cabral chegara mesmo a proclamar que antes do fim de 1963 os nacionalistas entrariam em Bissau.


Mas havia mais vida para além do PAIGC, como ele escreve na edição do “Diário da Manhã” de 31 de janeiro de 1964. Em meados do ano anterior reunira-se em Dar-es-Salam a chamada “Comissão Coordenadora dos Movimentos de Libertação da África” que decidira enviar a Conacri e a Dacar uma missão para verificar qual era o mais representativo dos vários partidos que proclamavam os seus propósitos de emancipar a Guiné e o Arquipélago de Cabo Verde. Tudo correra a favor do PAIGC, o representante da FLING enterrara-se e desacreditara-se, ao chegar a Dacar já estava demitido. Fala-se em François Mendy e Henri Labéry, Dutra não chega a nenhuma conclusão sobre a importância dos movimentos de que eles fazem parte. Num outro texto vem dizer que há muita gente em fuga da Guiné Conacri, a ditadura de Sékou Touré é verdadeiramente insuportável. E no texto seguinte vai surpreender o leitor (atenda-se que o “Diário da Manhã” era o jornal dos indefetíveis do Estado Novo): “Portugal está em guerra: em Lisboa ainda talvez seja possível a alguns esquecer essa realidade que nos foi imposta – a que não podíamos fugir sem devolver à anarquia esta África que descobrimos um dia e que pacificámos ao longo dos séculos”.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 10 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20545: Notas de leitura (1254): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (40) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 13 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20555: Notas de leitura (1255): Um relato que se vai aprimorando de edição para edição: Liberdade ou Evasão, por António Lobato (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20145: Notas de leitura (1217): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (23) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Maio de 2019:

Queridos amigos,
Fica-se com a convicção de que o bardo foi profundamente tocado pela sorte dos seus camaradas que experimentaram toda a casta de dificuldades naqueles 71 dias do Como. Reserva-nos ainda mais estrofes, deixará a contabilidade em dia antes de regressar ao continente. Aqui se destaca um linguajar propagandístico do PAIGC, uma torrente demencial de mentiras, propagou centenas de mortos, forças portuguesas a fugir, em debandada, nem uma só palavra sobre as enrascadas de Nino, as suas muitas baixas, foi um delírio propagandístico que ainda, mesmo episodicamente, vejo escrito. E aqui se volta a prestar homenagem a Armor Pires Mota, o BCAV 490 andara por Mansabá e vai sediar-se em Farim, há muito ainda para contar, ao homenageado, aqui se destacam alguns parágrafos da sua obra-prima "Estranha Noiva de Guerra".

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (23)

Beja Santos

“Para Curcô reforçar
Hermenegildo e Ribeira.
Granadas de morteiro rebentaram
ao pé de Jacinto Pereira.

Um grande ataque se dava
um dia já à noitinha.
O pelotão do amigo Farinha
muito fogo atirava,
e granadas de morteiro jogava
algumas de incendiar.
O 467, a falar,
homens em socorro pedia
para seguirem no outro dia
para Curcô reforçar.

O pelotão que calhou
foi o de Manuel Sobral,
a 1 de Março, às 5 e tal,
para o mato ele avançou.
O sr. Alf. Saraiva os acompanhou
com os seus homens em fileira
houve um ataque de uma maneira,
que o fogo não aguentaram
e juntos a todos recuaram
Hermenegildo e Ribeira.

Nestes arredores patrulhou
o pelotão do sr. Alf. Segura
que mostrando a sua bravura
um letreiro no mato deixou:
os bandidos desafiou
e eles pouco demoraram.
Logo nessa noite atacaram
e a coisa esteve bem torta,
a um metro de José Horta
granadas de morteiro rebentaram.

Quando o ataque principiou,
foi logo com as granadas.
Em seguida houve rajadas
que o pessoal desorientou.
O Fernando Paulino pensou
em salvar-se, de qualquer maneira,
e jogou-se ao rio mais o Teixeira
onde perigo não havia.
E no abrigo Joaquim Maria
ao pé de Jacinto Pereira.”

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Neste aceso de avanços e contactos brutais na batalha do Como, ocorre bater à porta do contraditório, ver o tratamento que Basil Davidson, com os préstimos de Amílcar Cabral, deu aos acontecimentos do Como. O jornalista britânico nunca escondeu que estava ali em missão propagandística, a dar vencimento às proezas independentistas a desbaratar colonialistas. Afirma perentoriamente que em 1 de junho de 1963 a ilha do Como estava libertada depois de ter sido bombardeada e atacada pelas forças coloniais.
Vejamos o que ele escreve:
“As tropas portuguesas foram desbaratadas no porto de Cachil pelas forças nacionalistas sob o comando de Agostinho de Sá. Este foi ferido, mas as tropas inimigas foram forçadas a retirar-se e refugiar-se em Bolama”.

Davidson recolheu do próprio Cabral um relato circunstanciado dos factos desta batalha do Como e diz que se limita aqui a fazer um simples esboço de uma batalha que para o PAIGC teve importância histórica:
“Como foi a primeira porção de território nacional a ser libertada pelas nossas forças, a reconquista de Como tornou-se para os portugueses, nesses primeiros dias de 1964, uma questão de necessidade básica, e mesmo vital, para a sua estratégia militar e política. Isto porque, se os portugueses queriam controlar eficazmente as zonas que libertámos no Sul, Como constituía uma plataforma estratégica indispensável; e ainda por causa das consequências políticas que para eles poderiam advir da reconquista da ilha, já que o povo de Como é bem conhecido em todo o país pela sua entrega feroz à nossa luta e pelo apoio leal que sempre deu ao nosso Partido.
Usando todos os meios militares à sua disposição, com um efectivo total de 3000 homens bem equipados, incluindo 2000 soldados e oficiais escolhidos transferidos de Angola, os portugueses lançaram a sua ofensiva sobre o Como em Janeiro de 1964 com a firme decisão de arrancar a ilha das nossas mãos. Oficiais do Estado-Maior foram transferidos de Lisboa para Bissau para daí seguirem mais de perto as operações.

Depois de uma batalha que durou 75 dias, as nossas forças empurraram o inimigo para a linha de costa, infligindo-lhe pesadas baixas – foi a pior derrota de sempre em toda a história do colonialismo português. Calculamos as baixas do inimigo em cerca de 650 homens. Desertores portugueses, incluindo alguns que tomaram parte nessa batalha, viriam a dizer-nos que pelo menos 900 colegas seus tinham sido mortos nessa batalha ou teriam morrido depois em consequência de ferimentos ali recebidos.
A batalha do Como foi um teste para os portugueses, mas foi-o ainda mais para nós. Na verdade, ajudou-nos a formar um juízo mais rigoroso acerca das nossas próprias forças. Aprendemos ali a verdadeira capacidade dos nossos combatentes e do nosso povo quando confrontado com as situações mais difíceis; apercebemo-nos do moral e por conseguinte da fraqueza do nosso inimigo; verificámos o alto grau de consciência política e a feroz determinação da população civil das zonas libertadas – agora definitivamente libertadas – não voltarem a cair sobre a dominação portuguesa”.

Ao que se sabe, jamais em tempo algum a mentira foi tão descarada, acrescendo que, conforme observa Carlos Matos Gomes e Aniceto Afonso, rapidamente a ocupação do Como passou para nível secundário, o PAIGC conquistou posições na região Sul estrategicamente mais influentes, Como tornava-se um símbolo, uma bandeira. E para as forças portuguesas aprendia-se que um objetivo de guerrilha carece de uma resposta de contraguerrilha, deu-se como desproporcionado o efetivo e o tempo que demorou a ocupação da ilha. Em breve, Salazar iria tomar uma medida radical, substituiu Vasco Rodrigues e Louro de Sousa, militares em permanente contencioso, por Arnaldo Schulz, foi logo em maio de 1964.

Aqui se inicia uma transição, o bardo ainda tem umas estrofes para contar o que se passou no Como, mas é bom não esquecer que vai haver mudança de itinerário, o batalhão irá sediar-se em Farim, ver-se-á envolvido em muita atividade operacional. É justo aqui trazermos à colação quem fez páginas de diário na ilha de Como e muitos anos mais tarde, em meados da década de 1990, dará à estampa uma obra-prima do romance com o título “Estranha Noiva de Guerra”, falamos obviamente de Armor Pires Mota.
Oiçamos o que ele nos diz sobre essa atividade que prossegue a que viveram no Como:
“Muito antes de Cai, ainda a companhia completa, o resmalhar do capim começou a acordar os bichos, as aves. Sobretudo, os macacos. Isso inquietava. Feria o cérebro. Quando, aqui e ali, as palmeiras novas entrechocavam os seus ramos, havia um estremecimento súbito, um medo geral. Os menos afoitos aguçavam o ouvido. Seria mentira até se não se dissesse que se pressentia um silencioso ranger de dentes e de pragas escorrendo do território inconquistável. Muitos dos nossos começavam a acariciar as patilhas da G3. Ou o coração áspero das granadas. Arrepiados de dúvidas e talvez tocados de maus presságios, seguíamos, atentos e pressurosos, na árdua tarefa que nos coubera. (…) Às 22 horas estoirou uma granada do lado sul, prova de que o IN se acercava da posição que era vulnerável. O silêncio era a única voz a gritar alto naquela escuridão aventesma. Só quem, um dia, andou de canhota no mato. Todos apalpavam as armas, as granadas, quase sempre o coração, às vezes a alma.

Esfregavam os olhos até doer. Dormir era um risco. Ninguém queria entrar na eternidade de olhos fechados, por um tiro no coração, esborrachado por uma granada. (…) As balas, assobiando, constituíam uma perigosa muralha de aço, difícil de transpor. A luta não deixava ninguém de fora. Depois, do outro lado, os gritos começavam a dizer que o sangue havia rebentado como um vulcão em chamas. Era uma onda quente inundando o capim, metendo medo ao anúncio da madrugada. O IN tentava, a todo o transe, evitar a aproximação da tropa do santuário de Malimorés. Ainda ouvi o alferes Costa a gritar: vamos a eles! A seguir devo ter perdido os sentidos, porque não me lembrava de mais nada”.

Vale a pena insistir que este romance é de uma enorme expressão metafórica, trata-se de uma via-sacra, o herói é José Joaquim Bravo Elias, ali bem perto de si morre um extremoso camarada (“Júlio Perdiz tinha na cabeça um arrepio intranquilo de sangue e nenhum relincho era capaz de acordá-lo”), vai começar uma viagem delirante, Bravo Elias arrasta o corpo do camarada Perdiz, experimentará todas as provações, assaltarão a sua memória as mais insólitas e aparentemente despropositadas recordações, haverá uma noiva de guerra, encontros insólitos, haverá uma flagelação cataclísmica sobre Mansabá, quem vinha da via-sacra presenceia um mundo de destroços.
Um belo romance, mas Armor Pires Mota vai-nos contar ainda mais coisas depois da batalha do Como.

(continua)

Página do jornal do BCAV 490, gentilmente cedida pelo confrade Carlos Silva, um investigador infatigável a quem devo muitas atenções.
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Notas do editor

Poste anterior de 6 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20127: Notas de leitura (1215): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (22) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 9 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20137: Notas de leitura (1216): “Por uma reinvenção da governabilidade e do equilíbrio do poder na Guiné-Bissau”, por Luís Barbosa Vicente; Edições Corubal, 2014 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Guiné 61/74 - P16924: Notas de leitura (917): A Libertação da Guiné, de Basil Davidson, Penguin Books, 1969 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Outubro de 2015:

Queridos amigos,
As pesquisas continuam e, surpreendentemente, verifico que naqueles primeiros anos da revolução pós 25 de Abril, Amílcar Cabral e o PAIGC mereceram elevada procura dos editores, é óbvio que havia mercado, queria-se saber o que estava por detrás daquela luta tenaz e quais os fundamentos ideológicos daquele líder revolucionário que, sobretudo nos anos 1971 e 1972, andava nas bocas dos mundo. Basil Davidson era um incondicional admirador de Cabral mas cometeu o erro crasso, a partir do momento em que não se sopesou os dados que lhe foram apresentados pelo PAIGC, toda a encenação de objetividade caiu por terra. Para o leigo, esta leitura tem alguns aspetos positivos dado que a apresenta sequencialmente a génese e evolução do PAIGC. Nunca se fala da unidade Guiné Cabo Verde, o que causa estranheza, Cabral tinha a preocupação junto dos seus epígonos de pôr ênfase nesta equação.

Um abraço do
Mário


A libertação da Guiné, por Basil Davidson

Beja Santos

A Libertação da Guiné teve a sua primeira edição na Grã-Bretanha, na conceituada Penguin Books, em 1969. Davidson era um jornalista com créditos firmados, acompanhara os movimentos de libertação da Jugoslávia no decurso da II Guerra Mundial, quando Amílcar Cabral chegou a Londres, em 1960, com o nome suposto de Abel Djassi, foi Davidson que lhe abriu as portas no mundo político e jornalístico. É desse período que data uma peça relevante de Cabral sobre os factos do colonialismo português. Davidson acompanhou Cabral em viagens ao interior da Guiné Portuguesa. A edição britânica, bem como a tradução portuguesa que surgiu na Sá da Costa Editora, em 1975, é prefaciada por Cabral. Este refere que Davidson era objetivo, infelizmente não é verdade, propala dados e situações que eram exclusivamente da responsabilidade da propaganda do PAIGC, usa a terminologia do PAIGC, do tipo campos fortificados, mas do que conheço da documentação de Cabral dessa época e até ao fim da sua vida, jamais vi uns parágrafos tão líricos que saíram do seu punho, como estes que prefaciam o trabalho de Davidson:
“Houve realidades objetivas que não chegou a ver. Por exemplo, as flores de Quitáfine. Porque também há flores, só não tivemos tempo de tas ir mostrar. Flores azuis-amarelas-lilases, flores cor de arco-íris, flores vermelhas como o Sol poente, e também brancas, brancas e puras como a pomba de Picasso. E Lebete Na N’Kanha – desta vez não a militante do Partido, mas a mulher, a jovem rebelde, fina como uma gazela, a mãe de família, a mulher cuja opinião é escutada pelo marido, a cultivadora de arroz. Mas, mais uma vez, não tivemos tempo para isso; não chegaste a falar com Lebete, a mulher. Mas apercebeste-te da cor dos seus olhos, da pureza do seu sorriso, da graça dos seus gestos? Poderá uma luta, mesmo a mais justa, como é a nossa, arrogar-se o direito de monopolizar o tempo a tal ponto que chega silenciar a voz de Lebete, a mulher? Querido hóspede, quantas mulheres tens tu? Só uma? Bem sei, e dizem-me que é bela inteligente. Por isso não olhes para os meus pés, tornados tão grosseiros pela água salgada dos nossos pântanos; nem para as minhas mãos, que estão cheias de cicatrizes da colheita do arroz. Mas olha só para os meus olhos, que neles verás o passado, o presente e o futuro das mulheres do meu país.
E as crianças também. Não só aquelas que viste, bem vestidas, bem perfiladas a cantar com vozes cheias de esperança. Mas crianças sem roupas, crianças deformadas pela subalimentação, crianças que não têm brinquedos mas têm estômagos entumecidos habitados por vermes, crianças-balões.
Viste também os nossos anciãos, simples militantes ou funcionários do Partido. Barbichas brancas na rocha negra dos seus rostos: faz lembrar a neve nos cumes das suas montanhas? Se assim foi, nada mau: porque é a neve da experiência que nenhum sol poderá derreter, e que nós respeitamos mesmo quando a dialética da lógica não está sempre do seu lado”.

Começa a viagem no interior da Guiné, serão longas caminhadas onde se irá falar de napalm, dos acampamentos do Quitáfine, da história da fundação do PAIGC como da história da Guiné Portuguesa a que o autor sequencia os aspetos mais dinâmicos da colonização africana depois da conferência de Berlim. É nessa introdução que Davidson fala dos princípios que nortearam o plano de ação para o PAIGC após os acontecimentos de 3 de Agosto de 1959 e como, depois de receberem formação ideológica e militar, um corpo de exército de guerrilha entrou em movimento a partir de Janeiro de 1963. São ouvidos muitos depoimentos de combatentes do PAIGC, mas é o pensamento de Cabral que subjaz a toda esta escritura quando fala do campesinato e da necessidade de dispor de uma vanguarda revolucionária. A viagem prossegue para o Nordeste, vão para a região do Boé, fala-se de Beli e de Madina, constantemente flageladas, da recusa dos Fulas em aderirem ao movimento de libertação.

Outros interlocutores vão referindo a Davidson a implantação do terreno a partir de 1964. Deslizando para a propaganda do PAIGC, Davidson refere que em 1968 o contingente português rondaria os 35 mil homens mais 3 mil “mercenários africanos”. Depois de visitar Beli, o autor dispersa-se em considerações sobre a natureza de todos os movimentos de emancipação africanos, vai citando a preceito Cabral e detém-se sobre a evolução do partido-vanguarda e como é conduzida militarmente a guerra. Cita Cabral e esquece-se que há citações que exigem o contraditório, Cabral diz que em 1963 houve mil baixas nas tropas portuguesas e ele escreve como se fosse inteiramente verdade. Falando da batalha do Como, esta é tratada como uma pesada derrota, a pior derrota de sempre do colonialismo português com baixas em cerca de 650 militares. E põe na boca de um combatente: “Desertores portugueses, incluindo alguns que tomaram parte nesta batalha, viriam a dizer-nos que pelo menos 900 colegas seus tinham sido mortos nessa batalha ou teriam morrido depois em consequência de ferimentos ali recebidos". Como é evidente há factos expostos que coincidem com o que efetivamente aconteceu: ninguém contesta a importância do Congresso de Cassacá, da chegada das antiaéreas, de minas mais poderosas, e da melhoria do posicionamento na região Sul e uma melhor implantação na região Centro-Norte. De vez em quando surgem informações delirantes, suficientemente persuasivas para cair bem num livro totalmente favorável ao PAIGC: “Em Abril de 1965 houve uma tentativa de sublevação armada da Força Aérea e mais de uma centena de soldados foram presos, incluindo um oficial superior que foi condenado a 28 anos de prisão […] por motivos óbvios a deserção aqui permanece insignificante – durante os últimos seis meses apenas três soldados portugueses se passaram para o nosso lado”. Um dos interlocutores de Davidson refere mesmo que a partir de 1966 os portugueses resignaram-se a uma “guerra de posição”, as tropas portuguesas acantonaram-se em aproximadamente 60 campos fortificados e cidades. Davidson teve acesso a todos os dados propagandísticos, limita-se a escrevê-los, ano após ano, até 1968. Aqui e acolá fala-se em carência de quadros devidamente treinados, falta de médicos e de outros profissionais de saúde e dá-se como certo e seguro que no território nacional controlado fora abolido o sistema de exploração colonial. Por último, Davidson volta a espraiar-se sobre a situação africana e dá-nos uma curiosa versão entre a conexão da guerra da Guiné e o resto de África para dizer que os reformistas da descolonização tinham falhado da solução dos problemas básicos de desenvolvimento: “No estado em que as coisas se encontram, grande parte da África independente está num grande estado de confusão. Só novas atitudes, novas políticas, novas lideranças poderão, com algumas exceções ter esperança de encontrar a resposta de massas que se impõe”.

O tempo se encarregou de repor certas verdades, e confirma-se neste texto encomiástico que é a personalidade de Cabral a alma da revolução.
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P16907: Notas de leitura (916): “Guiné, Crónicas de Guerra e Amor”, da autoria de Paulo Salgado, Lema d’Origem Editora, 2016 (2) (Mário Beja Santos)