sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Guiné 61/74 - P16924: Notas de leitura (917): A Libertação da Guiné, de Basil Davidson, Penguin Books, 1969 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Outubro de 2015:

Queridos amigos,
As pesquisas continuam e, surpreendentemente, verifico que naqueles primeiros anos da revolução pós 25 de Abril, Amílcar Cabral e o PAIGC mereceram elevada procura dos editores, é óbvio que havia mercado, queria-se saber o que estava por detrás daquela luta tenaz e quais os fundamentos ideológicos daquele líder revolucionário que, sobretudo nos anos 1971 e 1972, andava nas bocas dos mundo. Basil Davidson era um incondicional admirador de Cabral mas cometeu o erro crasso, a partir do momento em que não se sopesou os dados que lhe foram apresentados pelo PAIGC, toda a encenação de objetividade caiu por terra. Para o leigo, esta leitura tem alguns aspetos positivos dado que a apresenta sequencialmente a génese e evolução do PAIGC. Nunca se fala da unidade Guiné Cabo Verde, o que causa estranheza, Cabral tinha a preocupação junto dos seus epígonos de pôr ênfase nesta equação.

Um abraço do
Mário


A libertação da Guiné, por Basil Davidson

Beja Santos

A Libertação da Guiné teve a sua primeira edição na Grã-Bretanha, na conceituada Penguin Books, em 1969. Davidson era um jornalista com créditos firmados, acompanhara os movimentos de libertação da Jugoslávia no decurso da II Guerra Mundial, quando Amílcar Cabral chegou a Londres, em 1960, com o nome suposto de Abel Djassi, foi Davidson que lhe abriu as portas no mundo político e jornalístico. É desse período que data uma peça relevante de Cabral sobre os factos do colonialismo português. Davidson acompanhou Cabral em viagens ao interior da Guiné Portuguesa. A edição britânica, bem como a tradução portuguesa que surgiu na Sá da Costa Editora, em 1975, é prefaciada por Cabral. Este refere que Davidson era objetivo, infelizmente não é verdade, propala dados e situações que eram exclusivamente da responsabilidade da propaganda do PAIGC, usa a terminologia do PAIGC, do tipo campos fortificados, mas do que conheço da documentação de Cabral dessa época e até ao fim da sua vida, jamais vi uns parágrafos tão líricos que saíram do seu punho, como estes que prefaciam o trabalho de Davidson:
“Houve realidades objetivas que não chegou a ver. Por exemplo, as flores de Quitáfine. Porque também há flores, só não tivemos tempo de tas ir mostrar. Flores azuis-amarelas-lilases, flores cor de arco-íris, flores vermelhas como o Sol poente, e também brancas, brancas e puras como a pomba de Picasso. E Lebete Na N’Kanha – desta vez não a militante do Partido, mas a mulher, a jovem rebelde, fina como uma gazela, a mãe de família, a mulher cuja opinião é escutada pelo marido, a cultivadora de arroz. Mas, mais uma vez, não tivemos tempo para isso; não chegaste a falar com Lebete, a mulher. Mas apercebeste-te da cor dos seus olhos, da pureza do seu sorriso, da graça dos seus gestos? Poderá uma luta, mesmo a mais justa, como é a nossa, arrogar-se o direito de monopolizar o tempo a tal ponto que chega silenciar a voz de Lebete, a mulher? Querido hóspede, quantas mulheres tens tu? Só uma? Bem sei, e dizem-me que é bela inteligente. Por isso não olhes para os meus pés, tornados tão grosseiros pela água salgada dos nossos pântanos; nem para as minhas mãos, que estão cheias de cicatrizes da colheita do arroz. Mas olha só para os meus olhos, que neles verás o passado, o presente e o futuro das mulheres do meu país.
E as crianças também. Não só aquelas que viste, bem vestidas, bem perfiladas a cantar com vozes cheias de esperança. Mas crianças sem roupas, crianças deformadas pela subalimentação, crianças que não têm brinquedos mas têm estômagos entumecidos habitados por vermes, crianças-balões.
Viste também os nossos anciãos, simples militantes ou funcionários do Partido. Barbichas brancas na rocha negra dos seus rostos: faz lembrar a neve nos cumes das suas montanhas? Se assim foi, nada mau: porque é a neve da experiência que nenhum sol poderá derreter, e que nós respeitamos mesmo quando a dialética da lógica não está sempre do seu lado”.

Começa a viagem no interior da Guiné, serão longas caminhadas onde se irá falar de napalm, dos acampamentos do Quitáfine, da história da fundação do PAIGC como da história da Guiné Portuguesa a que o autor sequencia os aspetos mais dinâmicos da colonização africana depois da conferência de Berlim. É nessa introdução que Davidson fala dos princípios que nortearam o plano de ação para o PAIGC após os acontecimentos de 3 de Agosto de 1959 e como, depois de receberem formação ideológica e militar, um corpo de exército de guerrilha entrou em movimento a partir de Janeiro de 1963. São ouvidos muitos depoimentos de combatentes do PAIGC, mas é o pensamento de Cabral que subjaz a toda esta escritura quando fala do campesinato e da necessidade de dispor de uma vanguarda revolucionária. A viagem prossegue para o Nordeste, vão para a região do Boé, fala-se de Beli e de Madina, constantemente flageladas, da recusa dos Fulas em aderirem ao movimento de libertação.

Outros interlocutores vão referindo a Davidson a implantação do terreno a partir de 1964. Deslizando para a propaganda do PAIGC, Davidson refere que em 1968 o contingente português rondaria os 35 mil homens mais 3 mil “mercenários africanos”. Depois de visitar Beli, o autor dispersa-se em considerações sobre a natureza de todos os movimentos de emancipação africanos, vai citando a preceito Cabral e detém-se sobre a evolução do partido-vanguarda e como é conduzida militarmente a guerra. Cita Cabral e esquece-se que há citações que exigem o contraditório, Cabral diz que em 1963 houve mil baixas nas tropas portuguesas e ele escreve como se fosse inteiramente verdade. Falando da batalha do Como, esta é tratada como uma pesada derrota, a pior derrota de sempre do colonialismo português com baixas em cerca de 650 militares. E põe na boca de um combatente: “Desertores portugueses, incluindo alguns que tomaram parte nesta batalha, viriam a dizer-nos que pelo menos 900 colegas seus tinham sido mortos nessa batalha ou teriam morrido depois em consequência de ferimentos ali recebidos". Como é evidente há factos expostos que coincidem com o que efetivamente aconteceu: ninguém contesta a importância do Congresso de Cassacá, da chegada das antiaéreas, de minas mais poderosas, e da melhoria do posicionamento na região Sul e uma melhor implantação na região Centro-Norte. De vez em quando surgem informações delirantes, suficientemente persuasivas para cair bem num livro totalmente favorável ao PAIGC: “Em Abril de 1965 houve uma tentativa de sublevação armada da Força Aérea e mais de uma centena de soldados foram presos, incluindo um oficial superior que foi condenado a 28 anos de prisão […] por motivos óbvios a deserção aqui permanece insignificante – durante os últimos seis meses apenas três soldados portugueses se passaram para o nosso lado”. Um dos interlocutores de Davidson refere mesmo que a partir de 1966 os portugueses resignaram-se a uma “guerra de posição”, as tropas portuguesas acantonaram-se em aproximadamente 60 campos fortificados e cidades. Davidson teve acesso a todos os dados propagandísticos, limita-se a escrevê-los, ano após ano, até 1968. Aqui e acolá fala-se em carência de quadros devidamente treinados, falta de médicos e de outros profissionais de saúde e dá-se como certo e seguro que no território nacional controlado fora abolido o sistema de exploração colonial. Por último, Davidson volta a espraiar-se sobre a situação africana e dá-nos uma curiosa versão entre a conexão da guerra da Guiné e o resto de África para dizer que os reformistas da descolonização tinham falhado da solução dos problemas básicos de desenvolvimento: “No estado em que as coisas se encontram, grande parte da África independente está num grande estado de confusão. Só novas atitudes, novas políticas, novas lideranças poderão, com algumas exceções ter esperança de encontrar a resposta de massas que se impõe”.

O tempo se encarregou de repor certas verdades, e confirma-se neste texto encomiástico que é a personalidade de Cabral a alma da revolução.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 2 de janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P16907: Notas de leitura (916): “Guiné, Crónicas de Guerra e Amor”, da autoria de Paulo Salgado, Lema d’Origem Editora, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

Sem comentários: