quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Guiné 61/74 - P16920: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XV Parte: Cap VII: Guerra 2: aos quatro meses a CCAÇ 763 é louvada pelo brigadeiro, comandante militar, pelo "ronco" da Op Saturno, em Cabolol


Lisboa > 1970 > O cap comando graduado, cmdt da 1ª CCmds Africanos João Bacar Jaló como o nosso veteraníssimo João Sacôto (ex-alf mil,  CCAÇ 617/BCAÇ 619, Catió, Ilha do Como e Cachil, 1964/66), hoje comandante da TAP reformado, membro da nossa Tabanca Grande desde 20/12/2011.

Foto: © João Sacôto (2011). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Capa do livro (inédito) "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra", da autoria de Mário Vicente [Fitas Ralhete], mais conhecido por Mário Fitas, ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67.

Mário Fitas foi cofundador e é "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô. [Foto  abaixo à esquerda, março de 2016, Tabanca da Linha, Oitavos, Guincho, Cascais.]





Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > XV Parte > Cap VII - Guerra 2 (pp. 48-51)

por Mário Vicente

Sinopse:

(i) Depois de Tavira (CISMI) e de Elvas (BC 8),

(ii) o "Vagabundo" faz o curso de "ranger" em Lamego;

(iii) é mobilizado para a Guiné;

(iv) unidade mobilizadora: RI 1, Amadora, Oeiras. Companhia: CCÇ 763 ("Nobres na Paz e na Guerra");
(v) parte para Bissau no T/T Timor, em 11 de fevereiro de 1965, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa.;

(vi) chegada a Bissau a 17:

(vii) partida para Cufar, no sul, na região de Tombali, em 2 de março de 1965;

(viii) experiência, inédita, com cães de guerra;

(ix) início da atividade, o primeiro prisioneiro;

(x) primeira grande operação: 15 de maio de 1965: conquista de Cufar Nalu (Op Razia):

(xi) a malta da CCAÇ 763 passa a ser conhecida por "Lassas", alcunha pejorativa dada pelo IN;

(xii) aos quatro meses a CCAÇ 763 é louvada pelo brigadeiro, comandandante  militar, pelo "ronco" da Op Saturno.





Guiné >  Região de Tombali > Mapa de Bedanda (1956) > Escala 1/50 mil > Posição relativa da mata de Cobolol, a norted e Cufar e a oeste de Bedanda.  

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2017)


Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > XV Parte > Cap VIII - Guerra 2: aos quatro meses a CCAÇ 763 é louvada pelo brigadeiro, comandasmte militar,. pelo "ronco" da Op Saturno.
(pp.48-51)


Continua-se a patrulhar Cufar Nalu e agora Boche Mende também. Faz-se nomadização e temos informações que o IN está a obrigar as populações a dirigirem-se para a região de Cabolol, mais a norte. Solicita-se uma equipa administrativa de Catió para proceder ao recenseamento das tabancas controla­das. Este recenseamento é útil pois, através dele, conseguimos a identificação de alguns cooperantes e guerrilheiros pertencentes ao ex-bando de Cufar Nalu. É imperioso não largarmos este controlo, já que sabemos haver gente infiltrada na população. Em Iusse, o chefe de tabanca desaparece, fuga ou rapto? Na mesma tabanca Suza na Mone, dado como desertor do PAIGC, é abatido ao fugir à aproximação de um grupo de combate que fazia a tentativa da sua recuperação. Num golpe de mão a Fantone, é feita prisioneira Dite na Baque, a mulher chefe do Partido. O PAIGC sabe que não facilitamos e isso é muito importante.

Nesta altura o moral é de tal ordem que nos deslocamos às tabancas controladas de jeep com apenas dois ou três ele­mentos e vamos a Catió sem descer das viaturas e sem seguran­ça. É necessário todavia, não entrar em euforia, a guerrilha não é para brincar e deve ter-se mais cuidado para não haver surpre­sas.

No princípio de Junho, consegue-se um guia que diz levar-nos ao acampamento de Cabolol. Vamos lá! A 10 de Junho, os Lassas a três grupos de combate com o João Bacar Djaló e a sua milícia, vão a Cabolol. Saímos direitos a Camaiu­pa e daí à estrada de Bedanda. Aqui divergimos e começamos a entrar na mata de Cabolol. A floresta em termos de natureza não difere das restantes matas, umas vezes um pouco aberta mas, na generalidade cerrada. Quem a cruzou é que lhe conhece a dife­rença. Não tem pontos de referência, apenas o cheiro a morte emanado em cada carreiro e os mosquitos tentando entrar por tudo quanto é buraco: boca, nariz, olhos, ouvidos. As formigas gigantes, cujo ferrão é tão doloroso como uma picada de vespa e que se agarram à carne e à roupa como carraças. A formiga cadáver exalando o seu horrível cheiro pestilento. Tudo isto faz da mata uma armadilha constante. Sente-se o companheiro de trás, o da frente e o dos lados, conforme a progressão se faz. Sente-se a angústia do pensamento que voa neste silêncio de morte. Sofre-se o stress de não se saber qual o momento em que as Kalashnikov ou as PPSH começam a crepitar. Sentimo-nos vigiados por olhos invisíveis que esprei­tam o melhor momento para nos tentarem abater e estudam como predadores, qual será a primeira vítima. Este indício obri­gou Vagabundo a largar a sua boina preta em operações, quando um dia, lhe caiu sobre o nariz um ramo da árvore depois de ouvir uma detonação. Verificação efectuada, dois palmos acima da sua cabeça estava o buraco de um projéctil. Nunca mais a boina galega saiu para a festa. Porra, porra!...

Mais tarde aqui, nesta mata e próximo dela, saldaremos todas as contas. Quando se fizer o encontro dessas contas, saberemos que a guerrilha nunca perdoou os nossos Roncos. O saldo será sempre a favor da CCAÇ. mas, daqui sairão sete Lassas de sobretudo de madeira e mais cinquenta e três sentirão o ferro em brasa queimar-lhe a carne. Centena e meia ficarão com este nome inscrito no subconsciente e só quando a esclerosada memória se apagar, eles se esquecerão desta mata de Cabolol.

Voltemos à operação, Saturno de seu nome. O guia foi de facto impecável. Levou-nos precisamente à sentinela avançada do acampamento IN. Dali para a frente o problema a resolver era por nossa conta. Como em Cufar Nalu, os Lassas entraram no zig-zag, indício que a progressão deveria ser extremamente cuidadosa e que o contacto estava eminente. O carreiro tomou-se estreito e escorregadio. O pessoal lá da frente caminhava com todos os cuidados. Vagabundo e o seu pessoal, desta vez no meio da coluna, não despreocupavam a progressão. A madrugada clareava, quando surgiu o cantar da primeira costureira. Cá estava a primeira sentinela e a sua PPSH a dar o alarme. Daqui ao acampamento seriam uns quatrocentos metros em linha recta. Carlos manda desfazer a "fila em pirilau" e põe a Companhia em linha ligeiramente em cunha para afrontar o acampa­mento. O 2º. grupo de combate fica junto à milícia do João Bacar e uns metros à frente do grupo de comando. Progride-se e começa o contacto intermitente. Passada uma hora tínhamos andado à volta de duzentos metros. Não é mau em contacto, e numa mata daquelas, o foguetório é agora mais intenso, mas a mata é tão densa que é só gastar munições de um lado e do outro. Há que ter cuidado com os atiradores de tocaia isolados no cimo das árvores. Um milícia do João faz uma rajada e um monte de carne cai duma árvore e fica desfeito no chão. Cuida­dos redobrados, pois não deve ser o único, mas aquele já não vai fazer mal a ninguém. Temos de lhe apanhar a arma. Continua­mos a progredir. É bastante difícil mas, passo a passo, poilão a poilão, baga-baga a baga-baga, vamos andando devagar.

Carlos ria perdidamente, sabendo o significado, quando Vagabundo dizia que, enquanto houvesse baga-bagas, era tudo nosso. O sol começa a ficar alto, e sufoca-se dentro da mata com o calor e uma humidade terrível. Respiramos apenas vapor de água, pois o oxigénio é pouco. Como já estamos muito próxi­mo do acampamento, alternamos agora: quando eles fazem fogo amochamos, e quando se calam, fazemos nós fogo. Entra-se em contacto com a própria voz. Uma fase nova da guerra, que é a provocação pelas palavras. Bem colocados e entrincheirados, os guerrilheiros oferecem uma resistência fortíssima, e os militares da 763 começam a ser massacrados, com provocações em perfeito português:
–- Salazaristas de merda, vão-se embora, isto não é vosso!

Vagabundo ouviu e não o afectou nada, podia até aplaudir, pois ele também não gostava do Salazar e ir embora era o que mais desejava. Mas a provocação continuava:
–- Filho da puta, vai para a tua terra!”

Vagabundo até gostava de estar na sua terra, mas essa do "filho da puta" não é bem assim, isso já é ofensivo. O tempo passa e estamos num impasse. Carlos chama João Bacar, Almeida, Cerqueira e António Pedro que comandavam os grupos de combate. Há que dar volta à situação. Não podemos ficar assim. Daqui a pouco temos o pessoal extenuado e sem munições. Al­meida regressa e fala com Chico Zé, Tambinha e Vagabundo:
–-Vamos tentar dar volta a isto, vamos correr o risco do assalto mesmo em pleno dia, vamos acompanhar o João Bacar e dar-lhe apoio. Conforme a situação do acampamento, assim se fará a rotação. Vagabundo, tu com a bazuca e a MG42, cola ao João com a tua gente e procura ângulos bons para a bazuca que vai ser a safa disto. Quem puder ou quiser acompanhar o João, deixem-nos ir! O.K.?
–-Entendido!

Entretanto, do outro lado, continuavam as provocações:
–- Filhos da puta; andam aqui a dar com os cornos e as vossas mulheres a foder lá com os outros. 

Era demais!. ..Vagabundo ficou com cara de leão enraivecido. Ele não era ca­sado, mas fazia mossa nos outros e a cabeça começou a ferver­-lhe. Sentiu como que urticária em todo o corpo. Gritou:
–-Nãããão!

Urro de leão na selva, na mata., ao lado João Bacar olhou para os seus homens e gritou:
–- Caralha! Parece a mim qui bó tem medo!?                                                   

Ó homens ou o diabo! Levantam-se todos instantaneamente. Vagabundo ficará com este quadro gravado eternamente. G3 na mão direita fazendo rajadas de quatro, cinco tiros, com a mão esquerda, sacavam do bolso ou do bornal granadas ofensivas que eram descavilhadas com os dentes e atiradas para a frente. De pé, sempre andando, máquinas de guerra autênticas a funcionar!... Vagabundo gritou para o cabo Cigarra e para o Ferreira:
–- Acompanhem o João com a MG42 e façam um quarto de fila de cada vez.

Chama Lindo e Sesimbra:
–- Vamos bazucar os pontos livres à frente que dêem para meter ameixas lá dentro. Pessoal que tem granadas de bazuca, todas já para aqui.
–-  Ninguém pára, vamos todos a eles!

Os  Lassas saltaram em cima da provocação, a adrena­lina atingiu o pico, toda gente gritava, até quem medo tinha. Ao entrarem no acampamento a resistência era nu­la. Organização imediata de autodefesa, não fosse haver contra ataque, e começa a vistoria ao acampamento, destruição não, porque estava tudo completamente arrasado. As bazucas tinham feito grandes estragos. No primeiro abrigo, completamente des­feito, estavam quatro corpos carbonizados. Mais à frente, num espaldar, dois corpos também desfeitos, tinham o bipé do mor­teiro 82 e uma pistola. Já à saída do acampamento, mais um corpo com uma pistola metralhadora ainda na mão, devia ter sido o desgraçado que ficou a fazer a cobertura enquanto os restantes fugiam.

Os Lassas tiveram quatro feridos sendo um grave, o que levou a fazer a sua evacuação o mais rápido possível, pelo que houve de procurar sair da mata e encontrar um local para o heli poder aterrar. Safou-se, mesmo assim, e não era brinca­deira, pois tinha uma bala alojada mesmo junto ao coração.

Cufar Nalu, agora Cabolol, e a cotação vai subindo mas o ódio que nos nutrem não deve ter classificação. Quando pode­rem e nós menos esperarmos, vão-nos fazer a vida negra. É as­sim que funciona a guerrilha.

O pessoal transfere-se, finalmente, para a parte nova do aquartelamento, praticamente pronta, ficando cada secção com o seu abrigo. Rescaldo da operação Saturno: estamos a voar alto, mas, é necessário precaver, quando não maior será o tombo.

Transcrição:


“Louvo a CCaç 763 porque, encontrando-se em sector há cerca de quatro meses, tem vindo a manifestar extraordinário espírito ofensivo nomeadamente nas operações Razia e Rolo e recentemente na operação Saturno em que obteve óptimos resultados.



De elevado moral e aguerrida, apesar da forte resistência oposta na operação Saturno, assaltou à viva força o acampamento IN com tal ímpeto que, na precipitação da fuga, o adversário abandonou os mortos, armas, munições peças de equipamento e diverso outro material.


O êxito alcançado ficou a dever-se a todos os que, intervenientes, cônscios dos seus deveres de cidadão não hesitaram, sequer, por momentos, no cego cumprimento das obrigações que assumiram perante a Nação, não apenas na qualidade de militares mas de Portugueses de boa fibra e da melhor ética.

O Brigadeiro Comandante Militar".

C
omeçaram a ser norma os louvores colectivos e individuais, as menções honrosas e as condecorações, algumas das quais, como veremos, serão a título póstumo.


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