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quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

Guiné 61/74 - P27514: Casos: a verdade sobre... (60): Não se faz a guerra sem álcool (nem tabaco)



Guiné < Região do Cacbeu > Jolmete > CCAÇ 3306/BCAÇ 3833 (Pelundo, Có e Jolmete, 1971/73)> . outubro / novembro de 1972 > O álcool é euforizante e socializante... O tabaco, ansiolítico... Foto do álbum do ex-fur mil Augusto Silva Santos (vive em Almada).


Foto (e legenda): © Augusto Silva Santos (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Quínara > Nova Sintra CCAV 2483 (1969/80) : Num mês, talvez atípico, com o de junho de 1970, a escassos, dois ou três meses de mudarem para Tite (sede do sector S1) onde foram acabar a comissão (setembro/dezembro de 1970), os camaradas desta subunidade gastaram 89,4 contos, na cantina (que era comum a oficiais, sargentos e praças). 46% desse valor foi em cerveja e uísque. 89,4 contos (=30,7 mil euros, a valores de hoje) era bastante dinheiro: a dividir por 160 militares, dava 560 escudos "per capita"  (=192 euros, a valores de hoje). (*)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradasa da Guiné (2025)




I. Temos falado aqui aberta, desinibida e francamente sobre o consumo de cerveja, uísque, vinho  e outras bebidas alcoólicas pelos militares portugueses durante a guerra colonial na Guiné, entre 1961 e 1974...

 Tínhamos acesso a bebidas nacionais (cerveja, vinho, brandy, porto...) e importadas (uísque, gin, vodca, conhaque...). Claro que não havia bar aberto...

É difícil, se não impossível,  definir padrões e níveis de consumo, na ausência de estudos sobre o tema (que não os  há, ou são escassos, ou sofrem de limitações metodológicas). 

Quando muito , podemos socorrer-nos de alguns indicadores indiretos: compras nas cantinas, por exemplo. Ou testemunhos de antigos combatentes. Mas nem todas as compras são consumos imediatos de álcool: a maior parte das garrafas de uísque, sobretudo do uísque velho, bem como de conhaque, era para guardar e levar para a metrópole.E em muitos sítios, as cantinas estavam separadas; os oficiais e sargentos tinham as suas messes e o seus bares. Por outro lado, são  raros os registos dos consumos (ou das compras) nas cantinas (*).

Mas também reconhecemos que, do lado dos combatentes do PAIGC, essa prática está ainda pior  documentada. Ou é de todo ignorada. A maior parte parte dos historiógrafos, de um lado e do outro, não valoriza aspetos da vida quotidiana dos combatentes como os "comes & bebes".
 
Ora, o que sabemos da História é que nunca se fez a guerra sem álcool (ou outras drogas). Matar e morrer é a experiência-limite do ser humano. Não imagino o Inocêncio Cani (que eu não sabia que tinha sido catequista!) a matar o Amílcar Cabral, à porta de casa, a sangue frio. Tinha que estar com a "cabeça grande", sob o efeito do álcool. O mesmo para os matadores do Pelundo, os carrascos dos 3 majores e seus acompanhantes  em abril de 1970.

O consumo de álcool, de um e do outro lado da "barricada", na guerra da Guiné (1961/74) está mal documentado. Pelo menos do outro lado, do lado do PAIGC.

 A documentação é desigual, mas o padrão geral é claro: o álcool (e o tabaco)  fazia parte do quotidiano da guerra, com implicações sociais, psicológicas e logísticas. (**)

1. Militares portugueses na Guiné (1961–1974)

(i) Disponibilidade e tipos de bebidas

Cerveja era comum nas unidades portuguesas, especialmente marcas nacionais enviadas pela Manutenção Militar (Sagres e Cristal).  À Guiné não chegava a cerveja angolana nem moçambicana, nem convinha aos cervejeiros metropolitanos.

Aliás, a mobilização de centenas de milhares de homens ao longo do conflito (1961/75) nos 3 teatros de operações (mais o resto do império, de Cabo Verde a Timor), foi uma oportunidade de ouro para a indústria cervejeira nacional.

Uísque, aguardente, vinho e licores eram consumidos sobretudo por oficiais e sargentos, bem aqueles que tinham melhores possibilidades logísticas ou económicas. Por exemplo, bebi-se melhor em Bissau, Bambadinca e Bafatá. A Marinha, por sua vez, bebia (e comia) muito melhor que o Exército...E  também não ouvimos queixas da Força Aérea.

No que diz respeito à tropa do recrutamento local, grosso modo podemos dividi-la em muçulmanos, animistas e cristãos ou assimilados. 

 Regra geral, os nossos militares muçulmanos (nomeadamente fulas) eram "abstémios" por imperativo religioso. Mas o contacto com os "tugas", levou-os a apreciar a "água de Lisboa"... Não bebiam cerveja nem vinho à frente dos "homens grandes", até por que muitos (CCaç 12, CART 11, por exemplo, a quem demos instrução em Contuboel) ainda eram "meninos de sua mãe"!... A guerra fê-los crescer mais depressa, a eles e a nós. (De resto, o argumento para serem desarranchados era não poderem comer  carne de porco nem beber álcool.)

Os restantes (animistas, cristãos, e sobretudo os mais urbanos, de Bissau...) tanto consumiam as bebidas locais (como a aguardente de cana e o vinho de palma) como não desgostavam da "água de Lisboa". E faziam-no publicamente, confraternizando connosco.

(ii)  Funções do álcool
  • Lazer e coesão: beber em grupo ajudava a criar um sentimento de companheirismo (à mesa) e camaradagem (na caserna, no mato...)  em situações difíceis; bebia-se em grupo, os bebedores solitários seriam a exceção à regra.
  • Socialização, ritual social: celebrações, aniversários, outras efemérides (data da chegada à Guiné, por exemplo),  momentos de descompressão entre operações, e até o ritual do “comes & bebes" nos dias de folga, ou ao fim da tarde; ou nas idas a Bafatá...(a "civilização", o "oásis", para a malta do Leste).
  • Claustrofobia, mecanismo de escape: muitos ex-combatentes relatam que o álcool servia para "esquecer" (a guerra, a solidão, as saudades de casa...):  certamente para aliviar a exaustão física, o stress, o medo, as insónias e até o trauma, o que hoje se reconheceria como sintomas de stress pós-traumático; o ambiente nos aquartelamentos e destacamentos, cercados de arame farpado e com o perímetro exterior armadilhado, e vivendo muitos militares em "bunkers", e por vezes sem população,  era claustrofóbicos; um ambiente propenso à depressão, ao conflito, à violência interpessoal, e ao consumo de álcool; já relatámos aqui alguns  acidentes mortais com "arma de fogo", associados ao ao álcool.
  • Ambiente de caserna: o consumo era normalizado e raramente reprimido, exceto em casos de indisciplina evidente; cada uma das 3 "classes" em presença (nobreza, clero e povo,  com eu chamava aos oficiais, sargentos e praças) tinham os seus locais próprios de "libação": messes, bares, caserna, refeitório, escapes citadinos como Luanda, Bafatá, Safim, Nhacra, etc.

(Iv) Problemas derivados

Há relatos de alcoolismo em certas unidades, embora geralmente omitidos nos relatórios oficiais. Pode haver referências nos autos por acidentes de viação ou acidentes com   arma de fogo (suicídios, homicídios, automutilação, ameaças, e outras formas de violência). Mas todas estas situações são tratadas com pinças...

Alguns comandantes tentavam limitar o consumo antes de operações, mas o controlo era difícil e desigual. Aqui funcionava mais o autocontrolo e o controlo pelos pares ( a nível de secção e pelotão). Obviamente, ninguém podia ir "alcoolizado" para o mato ou para uma coluna. 

A verdade é que não havia ainda testes de alcoolémia na guerra, para nenhuma das 3 armas (Exército, Marinha e Força Aérea). Nem sequer os condutores ou  os pilotos sopravam no balão (uma invenção tardia).

O clima tropical, o desgaste físico, o cansaço agravavam os efeitos do álcool. Ao fim de alguns meses, dizia-que o militar "estava apanhado do clima" ou "cacimbado",

2.A tropa do PAIGC

A documentação sobre o consumo de álcool nas hostes do PAIGC é mais escassa. Não há números. A guerrilha valorizava a disciplina, e o controlo disciplinar e ideológico seria mais rígido. Ainda assim, há elementos que surgem por fontes orais e memórias.

(i) Consumo existia, mas era vigiado

Em várias regiões da Guiné era comum o fabrico e consumo de vinho de palma, aguardente de cana e outras bebidas tradicionais. Os "chefes" chegavam ter  os seus  "tiradores" privativos!

Guerrilheiros jovens, longe das aldeias, das famílias e em longas marchas, emboscadas, operações, etc., podiam recorrer,  ao álcool em momentos de pausa. (Isso também acontecia no nosso lado, era a ocasião em que se apanhavam os "pifos de caixão às cova").

Grande parte dos guerrilheiros do PAIGC eram balantas e de outras etnias animistas, grandes consumidores de álcool (aguardente de cana, vinho de palma...). Tal como não largaram os amuletos, também não romperam com os seus hábitos, a sua cultura, os seus rituais. Podia era haver era menos oferta de álcool, no mato.

(ii) Disciplina política

O PAIGC (ou  o seu  ideólogo, e comandante-chefe, Amílcar Cabral) desencorajava fortemente o consumo excessivo, associando-o à “fraqueza revolucionária”.

Alguns veteranos referem punições internas ou advertências para quem bebesse antes de ações militares. Mas não sabemos como funcionava o autocontrolo e o controlo  por pares. Rui Djassi, Osvaldo Vieira e outros "comandantes" tinham problemas de álcool..

(iii) Funções do álcool (semelhantes às das tropas portuguesas)

Alívio do stress, convivência, e momentos de pausa nos acampamentos. Afinal éramos todos de carne e osso, pesem embora as diferenças culturais.

Em certas áreas, o álcool fazia parte de cerimónias tradicionais que se mantiveram mesmo durante a luta armada ("choro", etc.)

(iv)  Subregisto histórico

A imagem oficial do PAIGC como movimento altamente disciplinado (cultivado por Amílcar Cabral, para efeitos  de "marketing político")  levou a que estes aspetos da vida quotidiana nas "áreas libertadas" ficassem menos documentados ou na obscuridade, 

Os santos não têm pecados. Os gajos eram moralmente superiores aos tugas, Durante algum tempo vendeu-se essa falsa imagem.

Investigadores da história social da guerra admitem que a dimensão humana e informal da guerrilha está ainda pouco estudada, incluindo "comportamentos desviantes" como  consumo de álcool, rituais, amuletos,  sexo, violência (contra crianças, bajudas, mulheres e velhos...), indisciplina, conflitos,  drogas locais,  relações tribais, etc.


3. Inquérito "on line"

Recorde-se aqui os resultados do inquérito "on line" que realizámos em 2016: "Nunca apanhei nenhum pifo de caixão à cova na tropa ou no TO da Guiné"

Votos apurados: 102
Sondagem fechada em 15/3/2016 | 18h04



(i) Nunca > 31 (30,4%)


(ii) Uma vez, por acaso > 25 (24,5%)


(iii) Duas vezes > 10 (9,8%)


(iv) Três vezes > 4 (3,9%)


(v) Mais vezes > 26 (25,5%)


(vi) Não me lembro > 5 (4,9%)


(vii) Não aplicável: não bebia > 1 (1,0%)


Total > 102 > (100,0%)


Em 102 respondentes só um  disse que não bebia.   Mais de 60% (n=65) respondeu que sim, que apanhou um pifo de caixão à cova, uma, duas, três ou mais vezes.  Só 5% respondeu que não se lembrava.

Tal como hoje,  teríamos basicamente três  perfis: (i) abstémios / não-bebedores  (subrepresentados na nossa amostra) (são hoje cerca de 1/4 da população, dos 15 aos 74 anos); (ii) os 3/4 já consumiram álcool na vida; 1/4 bebe diariamente e outros tantos serão bebedores sociais; (iii) bebedores excessivos ou de risco serão uns 3,5%... Claro que os homens bebem mais do que as mulheres...

Enfim,  não dá para comparar com a nossa pequena amostra de conveniência...





Marca de cigarros, de fabrico soviético, que eram distribuídos aos guerrilheiros do PAIGC, durante a guerra colonial / luta de libertação. "Nô pintcha", em crioulo, quer dizer "Avante!"... 


Foto (e legenda): © Eduardo Magalhães Ribeiro (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



4. “Nunca se fez guerra sem álcool (nem tabaco)"

Esta frase, frequentemente citada por veteranos de ambos os lados, é bastante precisa. Não se faz a guerra, sem álcool nem tabaco... nem com o estômago vazio!

De facto, em praticamente todos os conflitos, o álcool ( e o tabaco) é um ansiolítico não oficial, uma espécie de  "lubrificante psicossocial" para a "máquina de guerra",  uma forma acessível de lidar com o medo, a violência, o risco, a morte...



O fornecimento de tabaco está mais bem documentado (no caso do PAIGC, à sua "tropa" era distribuido o maço de cigarros "Nô Pintcha", fornecido pelos "amigos soviéticos"; não sabemos em que quantidades nem com que frequência).

Na Guiné, com isolamento, clima adverso e desgaste físico e psicológico constante, tornava-se ainda mais evidente a importância do álcool e do cigarro, as duas "drogas legais".

 De um lado e do outro. Muitos de nós começaram a beber e a fumar na Guiné. Por outro lado, tínhamos acesso (generoso) a muito tipo de bebibas, que  não eram correntes na metrópole, incluindo a coca-cola. E o tabaco, não sendo de borla, era relativamente acessível. (O Porto era uma das marcas que mais se fumava, custava 3$00 cada maço.)

(Pesquisa: LG  + Net + IA (Gemini, ChaGPT)

(Condensação, revisão / fixação de texto: LG)

___________________

Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 6 de dezembro de 2025 Guiné 61/74 - P27499: A nossa guerra em números (47): mais de 2/3 do consumo, do valor de vendas em junho de 1970 (n=89 contos), na cantina, da CCAV 2483, em Nova Sintra, foi em álcool e tabaco (Aníbal Silva / Luís Graça)

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27343: S(C)em Comentários (79): Das "Vinhas da Ira" às "sopas de cavalo cansado", passando pelos verdes que me faziam azia... Tudo isto para dizer que prefiro...os maduros (Virgílio Teixeira, Vila do Conde)


O vinho verde branco "Camperlo" que também se
bebia em Bissau (passe a pblicidade...). 
Foto: Vt (2025)


1. Comentário (e fotos) do Virgílio Teixeira, ao poste P27280 (*)



As Vinhas da Ira. Romance de John Steinbeck, Escrito em 1939. A sua obra-prima. Adaptado ao cinema, surge o filme em 1940, dirigido por John Ford, com Henry Fonda como principal protagonista. Vi este filme ainda com 10 a 12 anos. Nunca o esqueci.

Dei este titulo ao comentário por me fazer lembrar as vinhas,  os vinhos e as bebedeiras....

O Luis fala e elenca uma série de vinhos que se bebiam no CTIG, eu conhecia todos, exceto o "Casal Mendes", que não me lembro de ver no meu tempo.

E naturalmente os Alvarinhos que já eram e são artigos de luxo, bebo quando mos oferecem, mas
não compro, até porque não sou apreciador de vinhos verdes, parece que me fazem azia, não os troco por maduros nrancos de qualidade, com graduação acentuada, e tintos obviamente.

O mais consumido por mim era o "Casal Garcia", que, ainda pós-desmobilização, bebia nos
dias muito quentes, mas tudo passa.

Na sequência no excelente trabalho inserto no Poste 27280, resolvi intervir com algo para mais conversa, senão a IA escreve tudo por nós e eu não sei defender-me!

Desde ainda criança começou a minha iniciação dos vinhos como tantos outros conhecem.
 
Estamos ainda em plena 2a guerra mundial, os bens escacionavam, o pequeno almoço eram as celebres "sopas de cavalo cansado": malga com broa desfeita ou casqueiro militar aos bocados; rega-se com vinho tinto, verde de pipa ou garrafão, adicionamos muito açúcar amarelo e depois é só comer.

 Não sei se fez bem ou mal, era o que havia!

E sempre bebia vinho às refeições, era de garrafão de vidro encestado.
 
Lembro me por exemplo, uma despedida de ano, talvez 59 ou 60, e num autocarro dos STCP, em plena Baixa Portuense, foi festejada a efeméride com garrafas de champanhe da conceituada marca  "Magos", uma garrafinha de 0,25

Sem direito a copo, que se abria com as cápsulas tipo cerveja e de águas do "Sameiro". Por isso nós, quando se falava dessa cápsula chamávamos de "Sameira".

Nas brincadeiras de jogar com elas, com enchimento de casca de laranja, e com os dedos fazer as corridas nas bermas dos passeios, sem sair das linhas até chegar o primeiro.

"Casal Mendes"
(passe a publicidade)
que eu náo conheci.
Foto: Vt (2025)

Que raio de brincadeiras que nem os Fulas ou Felupes as adoptaram. Não havia passeios, nem saneiras nem cascas de laranja, talvez.

O vinho que aqui se fala, o "Campelo", verde tinto e verde branco, faziam parte das bebidas de café. Encontrei 2 garrafas com rótulo original numa prateleira. A versão tinto e a versão branco que também a bebi na Guiné.
 

 O "Casal Mendes" não conheci, temos uma garrafa actual em foto, na prateleira de garrafeira. Nunca provei.

O vinho verde branco, bebe se fresco ou geladinho e não se nota defeitos. Nada como alguns vinhos Alvarinho, que são uma selecção à parte. "Palácio da Brejoeiro"  e outros.
 
Afinal não sou cliente de verdes!
 
Nunca vi uma vindima [excepto as que fazia por conta própria nos meus 10 anos nas videiras dos vizinhos]. Depois uma grande dor de barriga!
 
Abraços fraternos.(**)
 
Virgílio Teixeira
Em 2025 10 04

 PS - Nesta hora, ano 67,  já tinha feito o trajecto nos "barcos turra", e por estrda em coluna a caminho de Nova Lamego]. Já passaram 58 anos...




Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Dmingos, 1967 /69);  natural do Porto, vive em Vila do Conde.


______________

Notas do editor LG:


Vd. também postes de:

26 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27255: Felizmente ainda há verão em 2025 (39): Quem se lembra do vinho verde branco, "Gatão, em garrafa de cantil com argola, que depois servia para fazer candeeiros de mesa de cabeceira nos nossos "resorts" turísticos ?

20 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27232: Felizmente ainda há verão em 2025 (35): os vinhos verdes que aprendemos a gostar na guerra: Casal Garcia, Aveleda, Gatão, Três Marias, Lagosta, Palácio da Brejoeira (...sem esquecer o Mateus Rosé, da Sogrape)

11 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14598: A bianda nossa de cada dia (5): Se a vida era boa em Lisboa, em Bissau nem tudo era mau... Do arroz de todas cores ao vinho verde alvarinho "Palácio da Brejoeira"... (Hélder Sousa)

11 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14595: A bianda nossa de cada dia (4): Os nossos "chefs gourmet", lá no mato.. A fome aguçava o engenho... (Jorge Rosales / Manuel Serôdio / Vasco Pires)

9 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14589: A bianda nossa de cada dia (3): o melhor casqueiro da zona leste, amassado e cozido em forno a lenha pelo Jacinto Cristina e pelo Manuel Sobral, no destacamento da ponte Caium... Mas nem só de pão viviam os homens do 3º Gr Comb, os "fantasmas do leste", da CCAÇ 3546 (Piche, 1972/74)

7 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14584: A bianda nossa de cada dia (2): homenagem ao nosso cozinheiro Manuel, hoje empresário de restauração (Abílio Duarte, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Nova Lamego, Paunca, 1969/1970)

5 de maio de 2015 Guiné 63/74 - P14574: A bianda nossa de cada dia (1): histórias do pão e do vinho... precisam-se!


(**) Último poste da série > 1 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27273: S(C)em Comentários (78): Na Guerra (tal como na Política) Não Vale Tudo... (António Rosinha / Cherno Baldé / Luís Graça)

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27323: O vinho... pró branco de 2ª e pró tinto de 1ª (1): o "vinho para o preto" em Lourenço Marques, a "água de Lisboa" em Bissau e a "cerveja Cuca" em Luanda...



Capa do livro do José Capela, "O vinho para o preto: notas e textos sobre a exportação do vinho para África". Porto: Afrontamento, 1973, 170 pp.




Esta é uma variante popular, pícara (e sem ofensa para os crentes...), da oração tradicional, rezada pelos nossos avós, há 100 anos, para pedir a benção de Deus ao deitar e ao acordar: "Com Deus me deito, com Deus me levanto, na graça de Deus e do Divino Espírito Santo"-


1. Fui desencantar este livrinho arrumado no sótão mas felizmente ainda sem estar  roído  pela traça. Lembro-me de o ter comprado, na feira do livro da Lourinhã, que eu próprio organizei, com outros jovens da terra, na "praça do coreto"... Em 1973 ! 

Não estava propriamente proibido, mas vendia-se por baixo do balcão como outros livros que corriam o risco de ser apreendidos, arbitrariamente, pela PIDE/DGS, dando um rombo nas "finanças" da organização... (Havia uma delegação a 18 km dali, em Peniche. E alguns dos pides eram mesmo burros: eram capazes de implicar com uma "bíblia protestante", como fizeram ao meu amigo Bernardino Anastácio, o meu barbeiro, que um dia foi dentro por ser "fala-barato" e do "reviralho". Revistada a barbearia e  a casa, só lhe levaram uma "bíblia protestante"...Acabou por ser solto, por falta de provas  ou indícios de ser um "perigoso comunista".)

É reconhecido hoje que este livrinho do José Capela dava já, na época, surpreendentes pistas para a compreensão das dinâmicas económicas e sociais da "nossa" África, particularmente de Moçambique.

 A guerra colonial estava ao rubro e tudo o que se escrevesse sobre as colónias (ou "províncias ultramarinas") , a sua história, a economia, a sua sociedade..., era lido com avidez. Só não se podia falar da guerra, essa, sim, tabu. Para mais, vindo de autores   "desalinhados" com o regime, como o José Capela.

Eu sabia, em 1973,  que o José Capela era  padre ou ex-padre. Mas pouco mais. Afinal é o pseudónimo de José Soares Martins (Feira, 1932–Porto, 2014), um historiador e jornalista português cuja vida e obra estão profundamente ligadas a Moçambique e à análise crítica do colonialismo português. 

Natural de Arrifana, concelho da Feira, concluiu aos 22 anos o curso de Teologia no seminário do Porto em 1954. Chegou a Moçambique  anos depois, como padre. Mas enveredou rapidamente para o jornalismo.  Foi chefe de redação e diretor-adjunto do "Diário de Moçambique", com sede na Beira, o  jornal fundado pelo primeiro bispo daquela Diocese, D. Sebastião Soares de Resende (1906-1967), e de resto seu tio. Sim, o  famoso Bispo da Beira que entrou em  rota de colisão com Salazar e o seu regime (tem mais  400  páginas o seu processo no arquivo da PIDE/DGS).

Em 1962 o José Capela  relançou naquela cidade moçambicana o semanário "Voz Africana", que dirigiu, de facto, até 1968. Este jornal teve nesse período um papel importantíssimo na consciencialização dos moçambicanos,  negros, sobretudo no que respeitava à exploração económica de que eram vítimas.

Com a morte prematura do bispo da Beira,  ficam praticamente  inviabilizados  aqueles dois projectos jornalísticos.  Por outro lado, com as crescentes pressões que as autoridades portuguesas  iam fazendo sobre vozes incómodas como a dele,  o José Capela teve de abandonar bruscamente Moçambique. Contudo, vai levar primeiro para o Brasil e depois para a Bélgica, documentação importante,  nomeadamente os escritos inéditos de D. Sebastião e a volumosa correspondência que reuniu, enviada pelos moçambicanos, negros,  para a "Voz Africana" sob a forma de "cartas ao diretor". 

Essa documentação ajudou-o a  fazer  retrato da situação social que então ali se vivia, e de que ele foi também testemunha direta. Com a censura em vigor,  não puderam ser publicadas na altura. Mas dessa correspondência, ele vai reunir uma amostra significativa  no livro "Moçambique pelo Seu Povo" (1971). Não conheço a obra (nem outras do autor sobre a história colonial de Moçambique), pelo que não vou falar dela.

 De regresso a Portugal, em 1970, fundará no Porto  o  prestigiado jornal "Voz Portucalense" . Tornou-se editor (ajudou a fundar as editoras Confronto e Afrontamento), e participou também nos "Cadernos Anticoloniais". Depois da independência de Moçambique,  serviu entre 1978 e 1996 como Adido Cultural na Embaixada de Portugal em Maputo. 

O seu livrinho  "O Vinho para o Preto" (1973)  (disponível aqui, íntegra,em formato pdf) é, pois, o único que eu conheço do José Capela. Tem como  subtítulo: "Notas e textos sobre a exportação do vinho para África".  

As notas são sucintas (c. de 30 pp.): introdução, bebidas cafreais, vinho para o ultramar. Os textos preenchem o resto do livro, são cerca de 130 páginas, constituídos por  documentação diversa dos finais do séc. XIX e princípios do séc. XX,  nomeadamente  recortes de imprensa sobre a exportação de vinho, relatórios administrativos,  regulamentos, mapas estatísticos, etc.  Seria fastidioso ver tudo isto em detalhe.
 
Do livro para já, interessa-me reter o título e fazer aqui um brincadeira, um trocadilho, para inaugurar uma nova série, onde fundamentalmente se fale dos vinhos que consumíamos na Guiné, o da Intendência  (a famosa "água de Lisboa" ) e os vinhos comerciais, de marca,  que chegavam à cantina, à messes e as restaurantes de Bissau, Bafatá e pouco mais.

Era conhecido, esse vinho que era exportado para África, pela designação pejorativa de "vinho para o preto" (termo que, de resto, já vinha de finais do séc. XIX). Tinha uma clara conotação racista.  Mas também era bebido pelo branco, a que chamávamos de segunda. Na época os colonos de África não eram propriamente a "fina flor da Nação"... 

O ponto central da argumentação do José Capela é que o "vinho para o preto" não era apenas um produto de exportação; ele tipificava e espelhava toda uma situação global de relações económicas coloniais, tendo  servido como um mecanismo de exploração e controlo da população africana.

A exportação deste vinho, muitas vezes de qualidade inferior (quando não mesmo uma "mixórdia") era crucial para absorver o excedente da produção vinícola portuguesa (então em crise), beneficiando com isso sobretudo a burguesia mercantil do Porto e a economia metropolitana. 

O livro enquadra esta prática nas transformações por que estava a passar a economia  portuguesa, com o desenvolvimento do capitalismo industrial.

O vinho colonial tornou-se um dos principais mecanismos de extração indireta de riqueza da população africana. O dinheiro que os trabalhadores africanos, nomeadamente os mineiros que iam para a África do Sul, obtinham com o seu trabalho,  era depois absorvido pelo comércio colonial através da venda deste vinho nas cantinas e tascas.

O José Capela aprofunda as consequências sociais e morais deste comércio, nomeadamente em Moçambique:

(i) degradação e alcoolismo: a imposição e o consumo massivo deste vinho teriam contribuído para a degradação física e moral da população local; o  autor liga o abuso do álcool introduzido pela Europa a problemas sociais graves, um tema já debatido em conferências internacionais como a de Berlim (1885);

(ii) supressão das bebidas locais (ou "cafreais"): o sistema colonial, para garantir o mercado para o vinho importado, frequentemente recorria a medidas repressivas, como a taxação das bebidas destiladas e fermentadas indígenas, a proibição e a destruição sistemática de alambiques familiares e artesanais, etc.,  de modo a tornar  praticamente obrigatório o consumo do vinho português;

(iii) contexto suburbano: o consumo deste vinho nos subúrbios das cidades africanas em expansão, em condições de insalubridade, é descrito como um reflexo das péssimas condições de vida e de trabalho impostas pelo sistema colonial.

Em resumo, "O Vinho para o Preto" é um pequeno ensaio de  análise histórica, mais próximo do "estudo de caso", que utiliza o comércio do vinho para ilustrar a perversão do sistema  económico colonial. Que no essencial se baseava na exportação de produtos manufaturados na Europa, com alto valor acrescentado, e a importação de matérias-primas, extraídas  pelos indígenas a baixo custo.

2. Num artigo do jornal "O Século", de 15 de janeiro de 1899, sobre a "exportação de vinhos", pode ler-se:

(...) Em vista da baixa geral que tem havido nos preços dos vinhos dos mercados brasileiros muitos viticultores nos têm pedido informações referentes à exportação  para Lourenço Marques.

Devidamente esclarecidos  podemos aconselhar que os vinhos tintos devem ir em barris de quinto ou décimo (*), ou engarrafados, quando bem límpidos, sem exagerada força alcoólica, 12 graus em média, não carregados de cor nem maduros.

Os vinhos verdes, os  de Colares e os claretes têm fácil colocação  em Lourenço  Marques e no Transval. 

Em quanto a vinhos brancos, os de mesa melhor é que vão engarrafados, assim como os vinhos generosos.

O vinho branco, denominado "para preto". tem larguíssimo consumo, e pena é que a escala alcoólica ou limites para tais vinhos ainda não esteja  resolvida, o que tem causado gravíssimos  prejuízos aos exportadores e, assim, aos viticultores. (...).

In: José Capela, "O vinho para o preto: notas e textos sobre a exportação do vinho para África". Porto: Afrontamento, 1973, pág. 61

Num outro recorte do jornal "O Século", de 21 de janeiro de 1899, lê-se:

(...) Uma casa comercial  de Lisboa, com sucursal  em Lourenço Marques, lembrou-se de aguardentar muito os vinhos brancos, elevando a graduação a 17 e 18 por cento de álcool, na esperança de que o preto preferisse este vinho à aguardente, sua bebida habitual.

Generalizou-se  tão bem entre a raça negra o vinho assim preparado de preferência à aguardente,  que, começando a exportação do vinho chamado "vinho para o preto" por algumas dezenas de barris,  já se eleva a milhares de barris por mês  (....) 

In: José Capela, "O vinho para o preto: notas e textos sobre a exportação do vinho para África". Porto: Afrontamento, 1973, pág. 64

3. A questão que se pode pôr, num blogue de antigos combatentes, que partilham memórias (e afetos), é a seguinte: afinal, o vinho que nos chegava à mesa, no mato, era ou não uma variante do "vinho pró preto", uma espécie de "vinho pró branco de 2ª.", os expedicionários e a pequena comunidade de colonos brancos e assimilados  ?

O mercado ultramarino continuou a ter  um papel importante no escoamento da nossa produção vinícola, até à descolonização. Recorde-se que havia, ao tempo da guerra colonial, um problema de excesso de produção (e falta de qualidade)...

Dizia-se que Salazar dizia que "beber vinho era dar de comer a um milhão de portugueses"... O que em parte era verdade: antes do êxodo rural nos anos 60, a vitivinicultura dava trabalho a um exército de mão de obra barata nas aldeias... Em 1940, a vinha ocupava mais de 320 mil hectares e havia cerca de 337 mil produtores!... (Em termos de exportação de produtos agrícolas, só a cortiça ultrapassava o vinho; recorde-se que a superfície de vinha atualmente é pouco mais de metade da existente em 1940, c. 175 mil hectares.)

De facto, o trabalho na vinha, até ao fim de meados de 1960,  ainda ocupava muitos trabalhadores ao longo do ano... A mordernização da agricultura comneça tarde no nosso país.  Recordo-me quando era puto, em meados dos anos 50, de assistir à vinda de enormes ranchos de trabalhadores sazonais, homens e mulheres, para a minha zona (Lourinhã, Estremadura), na altura das vindimas... Eram os "ratinhos", vinham da Beira!... Recordo-me de ver, nos anos 60,os primeiros motocultivadores...

Em resumo, seria interessante saber mais sobre o vinho que a "metrópole" (Lisboa) nos mandava... A tropa era um segmento de mercado precioso, a partir do início da guerra em Angola... 

O que é que a malta sabe mais sobre isto ?

Em boa verdade, a generalidade dos nossos camaradas, no TO da Guiné, não se podia dar ao luxo de dizer o provérbio popular: "pão que sobre, carne que baste e vinho que farte"... Muitas vezes, faltava o pão, a carne e o vinho... Em quantidade e qualidade... 

Mas também se diz que "a fome é a melhor cozinheira"... Passou-se fome e sede na Guiné, todos estamos de acordo...Mas ninguém morreu de fome... Já de sede, desidratação, houve seguramente casos,,,

Que fique claro: não estão aqui em causa os nossos camaradas da Intendência que deram o seu melhor (e alguns morreram) no cumprimento da missão que lhes cabia no TO da Guiné...


4. O 'colon' António Rosinha, que foi para Angola nos idos de 50 do séc. XX,  e que foi depois  "retornado" à força, pode ser apresentado, sem ofensa, como  "branco de 2ª"  (...e eu como preto de 1ª na nossa "Guiné... zinha"). Já levantou aqui uma questão engraçada sobre o vinhinho que ia para as nossas Áfricas, o tal "vinho para o preto", de que nos fala o José Capela, e que dá o mote para esta nova série. De qualquer modo, em vez da "água de Lisboa", ele já preferia a "Cuca" (como bom angolano que era e que queria continuar a ser em 1975):


Angola bebe Cuca desde 1947...
(Imagem: BUS Creative Agency,
com a devida  vénia...)

(...) O único vinho verde possível de encontrar nas colónias, nos anos 50, antes do grito" Para Angola rapidamente e em força",  era apenas o Casal Garcia, caríssimo, e só em alguns restaurantes mais para o fino.

Com a ida dos militares para a guerra, começou a aparecer o Gatão e outras marcas engarrafadas, porque até ali foi sempre vinho "embarrilado", barris de 100 litros, nunca azedava, milhões de litros, desaparecia todo.

Ninguém distinguia se era martelado ou não, ninguém se queixava à ASAE (devia ter outro nome).

Embora, no caso de Angola,  a bebida nacional fosse a cerveja. A CUCA promovia 
frequentes mini Oktoberfest memoráveis para quem tomava parte. (...)  (**)


A história da Cuca remonta a1947, o ano dea fundação da Companhia União de Cervejas de Angola (CUCA), uma filial da Central de Cervejas, dona da marca Sagres. A Cuca foi a primeira cerveja produzida industrialmente em Angola. O nome seria uma homenagem à serpente Cuca, presente em tradições africanas, O  logotipo da marca  é um pássaro, simboliza a paz. A Cuca  tornou-se um "ícone cultural angolano (sic),  mas agora nas mãos da multinacional francesa Castel...  Todavia,   é paradoxal:  é mais barata a uma garrafa de cerveja (200 kwanzas) do que uma garrafa de água.. 

Curioso: uma marca colonial que os "tugas" lá deixaram... Outras duas cervejas de origem angolana são a Eka e Nocal.

Em suma,  o assunto parece que dá "pano para mangas", neste caso, garrafas e garrafas de vinho e cerveja, pires de tremoços  e muito paleio... Esperemos que  os leitores nos mandem os seus  contributos para esta nova série, que é uma variante da série "Comes & Bebes"... e do "Humor de caserna".  Que não nos falte, ao menos, o vinho, a cerveja e os tremoços.. E o humor. Sobretudo o humor.

_______________

Notas do editor LG:

(*) Um barril de quinto ou décimo era 1/5 ou 1/10 de uma pipa. Um recipiente mais pequeno que facilitava  o manuseio, o transporte em navio, a descarga, etc., nomeadamente com destino para o Brasil e África.  A pipa-padrão, na época, era a da Norte  do País (Porto, Douro), equivalente a 525/550 litros. Um barril de quinto ou décimo  seria, pois, c. 100 litros ou 50 litros, respetivamente.

(**) Vd. comentário ao poste de 3 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27280: Manuscrito(s) (Luís Graça) (274): Vindimas, ainda são o que eram ? - Em Candoz, sim, no essencial - II (e última) Parte

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27255: Felizmente ainda há verão em 2025 (39): Quem se lembra do vinho verde branco, "Gatão, em garrafa de cantil com argola, que depois servia para fazer candeeiros de mesa de cabeceira nos nossos "resorts" turísticos ?



Foto nº 1 > Vinho verde Gatão, da Sociedade Portuguesa dos Vinhos Borges & Irmão Lda (passe a publicidade): a garrafa em forma de cantil, com uma argola, foi lançada em 1950. Foi esta garrafa e este rótulo que conhecemos nos nossos bares, messes e cantinas na Guiné...


Foto nº 2 > Vinho verde Gatão, da Sociedade Portuguesa dos Vinhos Borges & Irmão Lda.. Um rótulo histórico.

Fonte: Cortesia de sítio oficial da marca Gatão


1. Felizmente que ainda há verão em 2025 (*)... Ou vai havendo. Até ao São Martinho, se Deus quiser.  Ou até quando a gente... puder!

Não conhecia a história do vinho verde Gatão (**)... Lembrava-me que se vendia e bebia em Bambadinca, no meu tempo, no bar e messe de sargentos (1969/71).  Já não me lembro do preço: mas devia andar à volta dos 20, 25 "pesos", como as outras marcas mais populares (Casal Garcia, Três Marias, Gazela, etc.). Mais caro nos restaurantes (Bafatá, Bissau...), c. 30/35 "pesos" (o "patacão" da Guiné).

A garrafa e o rótulo eram originais: a garrafa era (e continua a ser) "em cantil, com argola"; o rótulo, um gato, um gatão, felpudo, de  botas e pingalim na mão esquerda, segura com a mão direita uma garrafa... (Depois, por volta de 1990, estilizaram o gato: eu gostava mais do rótulo original e da garrafa; havia quem fizesse candeeiros de mesa de cabeceira com a garrafa, nas nossas casernas de mato).

 Já não me lembrava que a marca era comercializada pela Borges & Irmão. Nem sabia que a Sociedade Portuguesa dos Vinhos Borges & Irmão Lda  era, originalmente,  de dois irmãos tripeiros que fundaram o Banco Borges & Irmão. E que hoje já não existem, nem a empresa de vinhos nem o banco... Ou melhor: continua a existir a Sociedade Portuguesa dos Vinhos Borges & Irmão Lda, embora integrada desde 1998 no Grupo JMV - José Maria Vieira SA (passe a publicidade...).

Num caso e o noutro, seja vinho, seja banca, são ativos de outras empresas... De qualquer modo as marcas vivem sempre mais do que as empresas... As marcas são como as almas, dizem que sobrevivem aos corpos...

 Enfim, outras histórias. Como diria o Teixeira de Pasdoaes,  as coisas são como são, são possibilidades realizadas contendo inúmeras possibilidades realizáveis...

A marca Gatão e a marca Borges... continuam no mercado. Eu é que nunca mais bebi Gatão.  Desde 1969/71, quando estive na Guiné a cumprir o meu dever cívico, o serviço militar obrigatório (quase 3 anos, de meados de 1968 a março de 1971). 

Agora, tenho, na Quinta de Candoz, as mesmas castas, Pedernã, Azal, Trajadura, Avesso, Loureiro... Candoz pertence à subregião de Amarante, da Região Demarcada dos Vinhos Verdes...Estamos ali a 30 km de distância... Em suma, somos vizinhos.

Há dias lembrei-me desta marca, Gatão, quando, em Amarante, fui visitar uma exposição sobre o espólio, a vida e a obra do escritor amarantino Teixeira de Pascoaes (1877-1952).


Amarante, Gatão > Casa de Pascoaes.
Cortesia de Wikimmedia Commons.


Sabia que existia a Casa-Museu Teixeira de Pascoais, nos arredores de Amarante, sito na  Casa de Pascoaes , da família Teixeira Vasconcelos (o topónimo Pascoaes vai o escritor adotá-lo como pseudónimo literário, juntando-o ao apelido Teixeira). 

Ora essa casa, onde o autor viveu a maior da vida e onde morreu, aos 75 anos, fica na antiga freguesia de Gatão, ali mesmo, nos arredores de Amarante.

Nunca fui a Gatão,  que tem uma bela igreja, dos séc. XIII/XIV, monumento nacional desde 1940, e que faz parte da Rota do Românico. 

Bolas, nunca fui a Gatão, ali mesmo ao lado de Amarante, embora conheça uma boa parte da Rota do Românico (um projeto turístico-cultural, que reúne, atualmente, 58 monumentos e dois centros de interpretação, distribuídos por 12 municípios dos vales do Sousa, Douro e Tâmega: Amarante, Baião, Castelo de Paiva, Celorico de Basto, Cinfães, Felgueiras, Lousada, Marco de Canaveses, Paços de Ferreira, Paredes, Penafiel e Resende).

Tenho, portanto, que ir a Gatão, ainda em vida. Há um motivo acrescido para lá ir: no cemitério local, repousam os restos mortais do poeta, que mandou inscrever como epitáfio o seguinte aforismo (ele adorava aforismos): "Apagado de tanta luz que deu, frio que tanto calor que derramou».
 
Mas já desfiz a minha  dúvida (que nada tinha de existencial): o vinho verde branco Gatão que eu bebia em Bambadinca na messe de sargentos (eu,  o Humberto Reis, o Tony Levezinho, o Roda, o Branquinho e outros), em garrafa em forma de cantil com argola (foto nº 1), não tem nada a ver  com a Casa de Pascoaes, em Gatão, Amarante,  mesmo que o Pascoaes tivesse vinhas herdadas do pai. 

Refira-se, a propósito, que deveria ser, para ele, uma cruz,  a vitivinicultura. Uma cruz que ele comparava à coroa do Rei Dom Carlos que, por ter nascido filho de rei, teve que ser rei... (Mas, justiça se lhe faça: além de grande  poeta de corpo e alma, Pascoaes parece que também não era mau podador...).



Amarante > 5 de setembro de 2025 > Casa da Cadeia, agora “Lugar Saudade – Teixeira de Pascoaes” > Exposição temporária “Teixeira de Pascoaes" (...) > Excerto de Drama Junqueiriano. Dom Carlos teria sido visita do Solar de Pascoaes...


Foto (e legenda): © Luís Graça (2025). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



História do Gatão

O Gatão é uma marca portuguesa de vinho verde pertencente ao grupo Borges.   No sítio oficial da marca, consta que a história do Gatão começou a ser construída em 1895, altura em que a Borges usou pela primeira vez a imagem de um gato num rótulo (foto nº 2).

Recorde-se que a Região Demarcada dos vinhos Verdes foi criada em 1908.

Em 1935 foi lançado oficialmente o vinho Gatão, inicialmente como um vinho verde tinto.  A marca foi amplamente exportada, e hoje tem  presença em cerca de 50 países nos cinco continentes. O vinho verde (sobretudo branco) é um produto de que nos devemos orgulhar.

Nos anos 90, foi lançada nova imagem e a garrafa de tipo bordalesa. Enfim, mudam-se os tempos, os gostos, as modas, etc,

Pergunta-se: qual a possível origem do nome Gatão na marca de vinho  Gatão (Borges) ?

Num sítio de vendas (Casa Portuguesa, Áustria, citado pelo sítio oficial da marca Gatão) há uma explicação, curiosa,  que nos parece verosímil:

“A designação Gatão deve-se  uma aldeia com o mesmo nome, de onde provinham as uvas que serviam de base à sua produção. 

"Fruto do aumento das vendas,  a proveniência das uvas diversificou-se. À medida que se criou uma lei que obrigava que o nome de uma marca que coincidisse com nome de uma região produtora, só pudesse usar uvas dessa região, levou os responsáveis a encontrar outra justificação para o nome.

"Dado tratar-se de uma marca já bem implantada no mercado, o Gatão passou a ser, não a designação da origem das uvas, mas um 'gato grande' "...

Em Gatão continua a existir a  Casa de Pascoaes, agora alojamento local (rés do chão) e casa-museu Teixeira de Pascoaes (1º andar). Casa que, ao que parece, também produz excelentes vinhos verdes de quinta. (Declaração de interesse: nunca os provei, nem os vi ainda no mercado.)

Também não encontrei, na Net, dados sobre a exportação ou o consumo de vinho verde branco no Ultramar Português, e muito menos na Guiné, ao tempo da guerra colonial (1971/74). Que foi um excelente mercado para os nossos vinhos, isso foi. O mercado militar e o civil.  Mas também tenho ideia de que muito vinho branco leve da Região de Estremadura foi parar ao Ultramar, gazeificado e com rótulo de vinho verde. Nos anos 60 a Região produzia muito mais vinho verde tinto do que branco (numa proporção talvez 9 para 1).

As marcas que eu conheci (comprei, provei ou vi) na Guiné, em 1969/71, continuam a existir no mercado: Palácio da Brejoeira, Aveleda, Casal Garcia, Gatão, Lagosta, Gazela, Três Marias, Campelo, Casal Mendes, etc. 

Atenção: o vinho verde era só para os "dias de festa"... Chegava caro a África, em parte também pelos custos de transporte. A preços de hoje, uma garrafa de vinho verde branco, para o militares, em oito euros.

Hoje, o Vinho Verde permanece como o DOC não licoroso mais exportado entre os vinhos portugueses ( historicamente, Alemanha, Estados Unidos, França, Angola, Canadá, Brasil, Suíça e Reino Unido representam mais de 80% das exportações do nosso Berdinho).

  Bibó o Binho Berde!  (Declaração de interesse: tenho mais de 18 anos,  não sou produtor de vinho verde, é a "chef" Alice...).
 
 ________________________
 
Notas do editor LG:

(*) Último poste da série > 23 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27246: Felizmente ainda há verão em 2025 (38): "Poema de Outono", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

(**) Vd. 20 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27232: Felizmente ainda há verão em 2025 (35): os vinhos verdes que aprendemos a gostar na guerra: Casal Garcia, Aveleda, Gatão, Três Marias, Lagosta, Palácio da Brejoeira (...sem esquecer o Mateus Rosé, da Sogrape)

segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27240: No céu não há disto: Comes & bebes; sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (49): Peixinhos fritos, no Douro Bar Petiscaria, junto à Barragem do Carrapatelo; à mesa, os fantasmas do Zé do Telhado e do Serpa Pinto


Foto nº 1 > Cinfães > São Cristóvão da Nogueira > Barragem do Carrapatelo > Douro Bar Petiscaria > 18 de setembro de 2025 > Entrada: fritada de peixe-rei e diversos ciprinídeos, apresentada com limão e salsa. 



Foto nº 2 > Cinfães > São Cristóvão da Nogueira > Barragem do Carrapatelo > Douro Bar Petiscaria > 18 de setembro de 2025 > Entrada: enguias fritas... (durante muito tempo a enguia andou desaparecida do rio Douro, devido às barragens, tal como a lampreia e o sável)


Foto nº 3 > Cinfães > São Cristóvão da Nogueira > Barragem do Carrapatelo > Douro Bar Petiscaria > 18 de setembro de 2025 > Prato principal: peixe frito (boga, lúcio e outros), acompanhado com arroz de tomate e feijão.




Foto nº 4 e 4A > Cinfães > São Cristóvão da Nogueira > Barragem do Carrapatelo > Douro Bar Petiscaria > 18 de setembro de 2025 > Vinho de autor, "Terras de  Serpa Pinto" (*)... Um agradável surpresa.

Fotos (e  legendas): © Luís Graça  (2025). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Cinfães, em matéria de viticultura, pertence à subregião de Baião, Região Demarcada dos Vinhos Verdes... enquanto a nossa Quinta de Candoz pertence à subregião de Amarante...  Em São Cristóvão de Nogueira, na margem esquerda do rio Douro, junto à Barragem do Carrapatelo, fui lá descobrir duas coisas que não há no céu:

(i) peixinho do rio Douro (!), frito, incluindo como entrada umas "enguias fritas" que estavam simplesmente  "divinais" (parece que a enguia-.europeia já estava  a voltar ao Carrapatelo em 2022, diz a EDP!)

(ii) um vinho branco, de autor (!), "Terras de Serpa Pinto"...

Éramos seis (cinco mulheres, incluindo a "chef" Alice, mais eu)... As entradinhas foram uma travessa de peixinhos fritos, juvenis, só com molho de limão e salsa, e mais um prato de enguias fritas; "peixe-rei", disse-me a simpática jovem senhora que nos serviu à mesa, cá fora, sob um toldo, em dia de calor, com vista para a albufeira e a Casa do Carrapatelo (na outra margem).

 E quem diz Casa do Carrapatelo diz logo ( ou pensa no) Zé do Telhado, cujo fantasma continua a povoar a serra de Montedeiras e estas terras das bacias do Douro, Tâmega e Sousa (**).

O prato principal foi uma travessona de peixe frito do rio (lúcio, boga e outros), acompanhada de um tacho de arroz de tomate e feijão... 

Bebemos duas... garrafas do "Terras de Serpa Pinto". Mais o pão,  a salada e os cafés. No final, pagámos 110 euros, com gorjeta.

 Seguramente que no céu, condomínio de luxo, será mais caro (***)...

Aqui fica o nome e o endereço deste achado: 

Douro Bar Petiscaria,
São Cristovão da Nogueira, Cinfães,  
Telemóvel: + 351 916 093 515


Tem página no Facebook. Diz que está sempre aberto. Mas não: fecha á terça.

2. Os nossos "vagomestres" deviam ser  especialistas em peixe de rio (e de... bolanha). Mas infelizmente não o são...

Aqui vão então algumas dicas para suprir essa falha. Com a ajuda do assistente de IA / Perplexity.

O melhor peixe do rio Douro, especificamente na albufeira da Barragem do Carrapatelo, para fritar, é a boga.  É de pequeno porte e sabor delicado. É tradicionalmente servida frita em casas ribeirinhas da região que deviam abundar, em tempos, mas hoje não. 

Hoje em dia  aqui apanham-se várias espécies de peixe, tanto autóctones como exóticas.  As principais espécies invasoras são o lúcio-perca, o achigã e o lúcio. A sua introdução nas nossas albufeiras teve um impacto muito negativo.

Peixinhos bons  par fritar: 

  • a boga (Pseudochondrostoma polylepis) é muito apreciada frita, crocante por fora, é tradicional nas margens do Douro;
  • barbo (Barbus bocagei) também pode ser preparado frito ou em caldeiradas, sendo consistente e saboroso; 
  • enguia (Anguilla anguilla), embora menos comum, também é servida; 
  • peixinhos do rio (vários ciprinídeos, da família da Carpa,  de pequeno tamanho), usados para frituras rápidas, apresentados, com limão e salsa, e normalmente acompanhados com arroz de tomate ou migas.

Espécies que se apanham hoje (mas um crescente número são espécies exóticas):

Os peixes nativos de maior destaque são o barbo, a boga e a enguia:
  • Barbos (Barbus spp.);
  • Boga (Pseudochondrostoma polylepis);
  • Enguia (Anguilla anguilla).

A carpa (Cyprinus carpio) não é nativa.  Entre os peixes exóticos capturados, nomeadamente na pesca desportiva e artesanal, estão: achigã, lúcio-perca, carpa e pimpão, sobretudo nas zonas profundas da albufeira:
  • o siluro (Silurus glanis), o grande peixe-gato europeu, predador de topo, pode chegar a medir mais de 2 metros e pesar até 100 kg: é uma ameaça crescente para o rio Douro;
  • o achigã (Micropterus salmoides) é outra "praga", sendo originário da América do Norte: é um predador voraz de ovos e juvenis de peixes nativos; 
  • o lúcio (Esox lucius): espécie da Europa Central e Norte da Ásia, foi introduzida para a pesca desportiva.
Todos estes peixes têm valor algum comercial e são apreciados na gastronomia local. E inclusive já aparece nas bancas de peixe dos nossos hipermercados.

Outras espécies exóticas que representam ameaça ao ecossistem
a: 
  • Lúcio-perca (Sander lucioperca)
  • Ruivaco (Rutilus rutilus)
  • Alburno (Alburnus alburnus)
  • Pimpão (Carassius carassius)

3. A  EDP  diz que está a fazer a  monitorização das eclusas de peixes no Douro (esperemos que não seja "show-off"). É  um mecanismo que facilita a migração de peixes no rio; os resultados recentes são positivos e mostram que há espécies nativas a transpor as barragens; o projeto da EDP esteve em destaque na celebração do "World Fish Migration Day",  em 2022.


Num artigo publicado há mais de 3 anos, a EDP Global disse:

(...) Criadas para facilitar a passagem de peixes, as eclusas são um mecanismo essencial para garantir a biodiversidade e a proteção das espécies fluviais. 

A monitorização da ictiofauna que utiliza as eclusas de peixes está atualmente em operação em cinco barragens: Crestuma-Lever, Carrapatelo, Régua, Valeira e Pocinho.

Os resultados deste projeto demonstram, por exemplo, que uma espécie migradora em risco de desaparecimento, como é o caso da enguia-europeia, tem utilizado as eclusas para chegar à albufeira da Valeira, a 145 quilómetros da foz do rio Douro. 

É nas áreas a montante que crescem e se preparam para voltar ao mar, onde se reproduzem – no espaço de ano e meio, foram contabilizadas quase 25 mil enguias na barragem de Carrapatelo.

 Também já se observou o aparecimento de outras espécies nativas, como a solha das pedras, a truta marisca, o peixe-rei ou o robalo-legítimo.(...)

O investimento que foi feito para modernizar o funcionamento das eclusas, espera-se que venha a contribuir para que "outras espécies migradoras, como a lampreia e o sável, possam também transpor as barragens do Douro num número expressivo". 

Oxalá assim seja, senhores da EDP, de quem eu sou fidelíssimo cliente até agora!

 O projeto também permite detectar a presença de espécies invasoras (como a achigã ou o peixe-gato-negro).

(...) A presença do lúcio, lúcio-perca e achigã na bacia do Douro representa um dos principais desafios ecológicos contemporâneos da região. 

Proteger as espécies autóctones exige um esforço coordenado entre cientistas, autoridades locais e a sociedade civil. (...)

(Pesquisa: LG + Assistente de IA / Perplexity)

(Condensação, revisão / fixação de texto, negritos: LG)

________________

Notas do editor LG:

(*) Alexandre Alberto da Rocha de Serpa Pinto,(1846-1900),  militar, explorador e administrador colonial, é filho de Cinfães.

(**) Vd. poste de 21 de setembro de 2025 Guiné 61/74 - P27238 : As nossas geografias emocionais (58): Rio Douro: Nos caminhos do Zé do Telhado: Barragem e Casa do Carrapatelo

(***) Último poste da série : 7 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27193: No céu não há disto: Comes & bebes; sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (48): Jaquinzinhos da "arte xávega" da Praia da Vieira, azeitonas, arrozinho de tomate, pão, e vinho... Um home mata a sua fome e a sua sede..

domingo, 21 de setembro de 2025

Guiné 61/74 – P27239: (Ex)citações (438): Noite de petisco: cabrito assado no forno (José Saúde, ex-fur mil op esp / ranger, CCS / BART 6523, Nova Lamego, 1973/74)

 




Nova Lamego >c. 1973/74 >Noite de petisco: cabrito assado no forno > Os furriéis Godinho, o Santos, um camarada de Coimbra, o outro Santos, o Rui Álvares e eu. 

Foto de José Saúde (2025)





1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.



Noite de petisco Cabrito assado no forno: momentos inesquecíveis


por José Saúde


Camaradas,

A linha do tempo vai, vagarosamente, alimentando uma infinidade de prazeres onde a nossa juvenilidade proporcionava um mar de gigantescas emoções aquando da comissão militar por terras da Guiné. Eramos jovens, com as mentes a enviarem-nos para sensatos sonhos, mas para muitos dos nossos camaradas esses mundos dos sonhos quedaram-se em maquiavélicas crueldades que a guerrilha proporcionava.

Porém, existiram momentos inesquecíveis que nos embalavam para uma imensidão de alegrias quando a hora passava pelo refrescar as gargantas e alimentar estômagos já fatigados de refeições servidos em “pratos de loiças cuja criação tinha a marca de Bordalo Pinheiro e de talheres prateados”. Claro que estes utensílios que aqui menciono, entre ásperas, são meras ficções, dado que o nosso 2º sargento Martins, o homem que orientava a nossa messe, servia a rapaziada com pompa e circunstância, quer na qualidade de refeições, quer no conjunto de vasilhames que colocava nas mesas. O sargento Martins, um homem de Elvas, fazia jus em colocar-nos na mesa bons repastos, atendendo à circunstância então deparada. O pessoal não reclamava e toca a encher o “bandulho”.

Hoje, recorrendo às muitas fotografias que armazenei, lá vou puxando pelas imagens que arrumo, com paixão, no meu baú, recordando, com saudade, os tempos em que a nossa camaradagem se fixava num elo comum onde amizade obviamente proliferava.

Sabemos, pois é irreversível, que um dia viajaremos para uma outra plenitude, mas dessa antiga expedição, forçada, transportaremos connosco vivências que o tempo jamais ousará apagar. Guiné, sim a Guiné, aquela terra vermelha por nós calcorreada, foi palco das mais dispares crueldades. Mas, por outro lado, fica a razão que aqui vos deixo, sobrando o afirmar que o petisco fora feito pelos cozinheiros do rancho geral.

Estava divinal! O jovem animal foi comprado na tabanca e não recordo quantos pesos terá custado. O banquete teve lugar na cantina dos soldados e assado no forno com o saber do mestre padeiro da unidade. O rapaz nunca se refutou a pedidos desta estirpe. Estava sempre disponível! A sua presença no repasto assumia-se como imprescindível e o seu trabalho reconhecido.

Uma mesa comprida, bancos alongados, uns sentados, outros em pé e com a inevitável presença das velhas sagres, a rapaziada comeu e bebeu que se fartou registando-se cenas hilariantes durante o beberete. O Santos, com um sorriso fechado, assemelhava-se a um emigrante desconhecido que parecia não entender o motivo da festança. O seu pensamento levava-o, talvez, a meditar num levantamento de uma mina anticarro que poderia, eventualmente, ser o seu próximo destino. O Rui, vagomestre da Companhia, mostrava os seus dotes de comediante. O ranger Rui, ao meu lado, desfazia-se com as brincadeiras. O Godinho, em frente, ria que nem um doido. Eu, já toldado, apontava a cara do homem de Coimbra e ele presenteava-me com caretas que faziam rir todo o grupo em período de dar ao dente.

A noite de petisco - cabrito assado no forno com batatas - foi sobejamente regada. Uma festança que conheceu outros capítulos. A guerra naquela noitada foi outra: comida e bebida que chegou, sobrou e regalou os jovens combatentes.

Aquele pessoal da cantina dos soldados era formidável. Um pedido nosso – furriéis – era logo timbrado com um profundo SIM. 

Ao sair da guerra do comestível, e já um pouco desequilibrado com excesso de álcool, cai num buraco feito à entrada da cantina que, não obstante o seu aviso de alerta, me deixou sequelas numa perna.

Aquilo a que chamávamos buraco era um abrigo feito propositadamente por antigos camaradas que por ali tinham passado e que se abrigavam dos ataques noturnos do IN. Um símbolo que a rapaziada fazia jus em preservar. O local era conhecido, mas naquela noite surpreendeu-me. Fui arrastado pelo devaneio de umas cervejas a mais e de um inoportuno ziguezaguear que me levou a calcorrear por um trilho referenciado, mas atempadamente esquecido.

Sobrou a maravilhosa noite de convívio de homens que viviam em pleno palco de guerra!

Abraços, camaradas

José Saúde

Fur Mil OpEsp/RANGER, CCS / BART 6523

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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: 

30 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 – P27169: (Ex)citações (437): Por aí, ouvindo, vendo, lendo, analisando e concluindo. (José Saúde)