Foto (e legenda): © José Saúde (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar; Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
1.
O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova
Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.
Camaradas,
Tenho
lido textos no nosso blogue – Luís Graça & Camaradas da Guiné - de
camaradas que visam literalmente a antiga Nova Lamego, atual Gabu. Digo-o, sem
o mínimo de uma dúvida que porventura me suscitava hesitações, pois eles são
tão claros que não retiro uma vírgula aos escritos aqui lançados pelos seus
signatários, que Gabu tem, naturalmente, a sua própria história existencial.
Quando
lancei o livro – “UM RANGER NA GUERRA COLONIAL – GUINÉ-BISSAU 2973/1974 –
MEMÓRIAS DE GABU” – ocorreu-me em procurar a razão de como tudo terá
acontecido. Ou seja, a razão da sua existência e de que como tudo terá evoluído
até ao presente.
É óbvio que pelo meio ficou a nossa presença aquando da guerra colonial, mas ficarão também imagens que jamais esqueceremos. Por isso, aqui vos deixo a história de Gabu e dos então peiriquitos que ousaram explorar os recantos da então Nova Lamego.
Habitações
palacianas de Gabu
Denominada
como Nova Lamego, sobretudo ao longo da guerra colonial, Gabu é uma região
cujas fronteiras confinam a norte com o Senegal, a Leste e a Sul com as regiões
de Tombali e a Oeste com Bafatá.
Recorrendo
a dados históricos contemplados na Wikipédia, enciclopédia livre, Gabu foi a
capital do Império Kaabu, um reino Mandinga que existiu entre os anos de 1537 e
1867 e que se chamava Senegâmbia. Antes, tinha sido uma província do Império
Mali. No século XIX a etnia fula impôs a sua supremacia na região e colocou
ponto final no domínio de Kaabu.
Gabu
é, igualmente, a pátria do chão fula (79,6%), existindo ainda a etnia mandiga
(14,2%) que se espalha por toda a zona, mas numa menor escala. Foi-me dado a
oportunidade em conhecer alguns dos princípios éticos de uma população que
prima pela honra de uma herança que assumem como um indeclinável direito.
No
plano territorial Gabu possui uma área de 9.150 kms2 e tinha no ano de 2004 uma
população que se estimava em 178.318 almas, sendo, por isso, considerada uma
das maiores, senão a maior, das regiões do país.
Introduzo
como credível uma nota de rodapé que após a independência do país Gabu
recuperou o seu nome tradicional existindo, atualmente, um pequeno núcleo
urbano de inspiração colonial.
Detentora
de clima tropical, quente e húmido, a região de Gabu é composta por uma
população em que a doutrina praticada aponta como alvo principal a religião
muçulmana (77,1%).
As
temperaturas rondam, normalmente, os 30/33 graus durante o dia e os 18/23 à
noite. As estações anuais definem-se como as das chuvas que vai de maio a
novembro e a de seca de dezembro a abril. Dezembro e janeiro são considerados
os mais frescos. Por outro lado, a economia assenta no comércio, agricultura e
pecuária.
Os
usos e costumes das gentes de Gabu derrapam para primórdios éticos onde é
visível uma hierarquia humana que não abdica do erário tribal transmitido de
gerações para gerações.
Redijo
este tema sobre um “estágio” obrigatório nessa zona e na qual me foi
proporcionado observar algo mais ao longo da minha comissão em solo guineense,
embora encurtada devido à Revolução de Abril de 1974, uma vez que fui um dos
cerca de 45 mil militares dos três ramos das Forças Armadas – Exército, Força
Aérea e Marinha – quando por lá prestava serviço. Conheci, portanto, a guerra e
a paz e um pouco das vivências tradicionais das suas gentes.
Uma
rua
Aliás,
num trivial conhecimento com os nativos que muito me estimulou, pessoas simples
que viviam no interior de um adensado mato e entre as duas frentes da guerra,
usufrui da possibilidade em conhecer alguns dos seus expeditos hábitos, assim
como as memórias que nós combatentes incessantemente recordaremos.
Vamos,
pois, ao encontro de conteúdos passados em pleno palco da guerrilha.
A
população em movimento
Passeio
na “5.ª Avenida”
Suavizavam
o ar com o odor de uma “penugem” que os então pe9riquitos, nome usado pela tropa
mais velha para identificar os recém-chegados a solo guineense, lançavam para o
infinito de um horizonte inimaginável e onde surgiam quadros pesarosos pintados
pelo negro de uma incerteza. Porém, a incubação nos ovos chegava ao fim.
Tínhamos avezinhas. Um esticão de asas, um apalpar no escuro, uma vertigem dos
mais fracos, o vociferar dos conteúdos da guerra, o trocar opiniões sobre os
estratagemas do inimigo, as emboscadas, as minas, os ataques noturnos aos
quartéis, entre tantos outros motes aflorados, davam azo a uma conversa sempre
indeterminada entre o grupo acabado de chegar ao Leste da Guiné.
Cenário:
a “5.ª Avenida” de Nova Lamego, quais turistas a passearem-se pelas ruas chiques
das grandes metrópoles americanas! Ao fundo da dita cuja (“5ª Avenida”), eis o
grupo a abancar no bar da Pensão Mar e a refrescar-se com as aprazíveis sagres.
Era o princípio de uma jornada por terras de além-mar. Outras fainas se
seguiriam!
A Guiné parecia apenas um sonho. Aliás, jamais
me tinha ocorrido à ideia de que o meu futuro militar me reservasse, como
virtual conjetura, conhecer um dia a realidade da guerrilha no terreno
guineense e as suas famosas bolanhas.
Falava-se
da Guiné como o diabo foge da cruz. A guerra naquela província do Ultramar era
terrível. Traçavam-se cenários mórbidos. A rapaziada comentava e a mensagem
passava de boca em boca. Mas o destino contemplou-me e eu, tal como grande
parte dos rapazes desses tempos, não fugi a esse fim. Fui e voltei tal como
parti, restando resquícios de histórias que contemporizam o meu calendário de
vida.
Camaradas
houve, e foram muitos, que já não usufruem, infelizmente, do prazer de
partilhar momentos de convívio e narrar as suas histórias de vida. Uns,
morreram em combate na densidade de um mato cerrado; outros, faleceram numa
emboscada; outros, encontraram a morte em ataques aos quartéis; outros,
fecharam definitivamente os olhos em famigerados rebentamentos de minas
anticarro e antipessoal e, ainda, há aqueles que morreram em momentos de pura
infelicidade. Desastres com viaturas militares ou armas de fogo, carimbaram o
seu derradeiro fim.
Convivi
com situações que me deixavam apreensivo quando em causa esteve a razão do
último adeus. Momentos fatídicos, mórbidos, de camaradas que ousaram abusar do
facilitismo e se deixaram cair, inadvertidamente, em fatídicos fins proibidos.
Exemplifico o infeliz que encontrou a morte a limpar a arma esquecendo,
entretanto, que tinha deixado uma bala na câmara e outros em estúpidos
acidentes com viaturas militares, todos, ou quase todos, temos histórias desta
estirpe para contar.
Olho,
atentamente, para duas fotos do meu álbum – Guiné - e revejo um passeio pela
“avenida” principal de Nova Lamego, nos primeiros dias em que ali “ancorámos”.
O clique foi justamente dado em frente a uma casa onde residiam duas irmãs
cabo-verdianas que eram professoras primárias na escola local.
Vivendo
momentos de uma juventude no seu auge, alguns furriéis e alferes, andavam
doidos com as meninas que, por sinal, eram boas como o milho. Recordo que a
malta andava mesmo vidrada com aquele duo de airosas donzelas mestiças.
Parceiros? Não lhes conheci. Passemos à frente…
O
grupo de turistas, todos janotas, embevecidos com a beleza natural que os
rodeava e o cheiro a África a inalar as nossas narinas, eis o grupo de
periquitos, à civil, sentados a uma mesa do bar da Pensão Mar. Um nome que nada
tinha a ver com a realidade deparada. O mais indicado, na nossa conceção, seria
substituir Mar por Bolanha. O mar, lá longe, nem vê-lo. A bolanha era, isso
sim, o afrodisíaco mosaico constatado em terrenos circundantes, bem como em
quase todo o território guineense. Mas aceitava-se a decisão do seu mentor.
África
é sumptuosa no consumo de bebidas, principalmente cerveja. O calor afirma-se
como um aditivo determinante pelo prazer de consulares gargantas ressarcidas.
Num convívio saudável ficou uma tarde de passeio na apelidada “5ª Avenida”, o
alforge recheado de cervejas bebidas e um conhecimento mais profícuo de uma
urbe onde as bajudas passeavam os seus corpos embrulhados em pedaços de panos
garridos que torneavam a preceito os seus joviais e esbeltos físicos. O militar
– periquito – apreciava e… imaginava cenários quiçá inexequíveis de alcançar.
Coisas de uma juventude irreverente.
Refastelados
à volta de uma mesa o grupo de furriéis ressarciam-se com as cervejolas
fresquinhas
Periquitos desbravavam o ambiente da “avenida”. Da esquerda para a direita: o Cardoso, Operações Especiais/Ranger, Eu, o Santos, Minas e Armadilhas, Freitas e o Rui, Operações Especiais/Ranger
Abraços camaradas e um até breve.
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
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Nota de
M.R.:
Vd.
últimos postes desta série em:
20 de
abril de 2024 > Guiné
61/74 – P25415: Os 50 anos do 25 de Abril (10): Até sempre, Nova Lamego! (José
Saúde, ex-fur mil op esp/ranger, CCS / BART 6523, 1973/74)
Abril em Nova Lamego
por José Saúde
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António José Pereira da Costa Nosso grão-tabanqueiro desde 12/12/2007, coronel art ref, ex-alf art, CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-cap art, cmdt da Btr AAA 3434, Bissau; CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo; e CART 3567, Mansabá, 1971/74; autor da série e do livro com o mesmo n0me, "A Minha Guerra a Petróleo"; um dos mais ativos membros do nosso blogue, onde tem 195 de referências. |
1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.
Camaradas,
Os tempos de vida, os nossos, lá vão caminhando por
uma estrada cada vez mais apertada. Ambicionamos, e sempre, um presente
ajustado às nossas capacidades físicas e intelectuais, assim como um amanhã
onde suplicamos um bem-estar para a nossa presença neste planeta chamado Terra.
A idade não perdoa. Sim, é verdade que tempo voa. Ainda assim, lá vamos remexendo em histórias que nos enviam, em particular, para a nossa estadia forçada na guerra colonial da Guiné, ou aquando um dia partimos de Lisboa rumo ao conflito guineense, mas com a curiosidade a suscitar dúvidas em relação à futurologia que nos esperaria. Neste contexto, deixo-vos camaradas imagens por todos certamente relembradas.
Angola, Moçambique e Guiné, hoje países
independentes, foram outrora palcos de guerrilha que marcaram uma juventude que
vivia em plenos anos de autêntica exaltação. Nesses tempos, os clamores
evocados pelos jovens desembocavam numa encruzilhada de cavaqueiras cujo
destino se fixava amiudadamente com a guerra do Ultramar.
A tropa assumia-se, para todos nós, como um beco
sem saída. A necessidade premente ao recurso de seres humanos que engrossavam
as fileiras do exército, impunham colaterais apuramentos dos mancebos. Não
olhassem ao aspeto físico da criatura e nem tão-pouco a pequenos defeitos
congénitos que o rapaz, com 20 anos, apresentava. O apuramento da rapaziada era
transversal. Os livres foram chãos que já tinham dado uvas.
Aportei em solo guineense cerca das 14 horas
locais no dia 2 de agosto de 1973. Ao descer do avião deparei-me, de
imediato, com um bafo deveras incomodativo. Faltava-me o ar e o suor
escorria-me pelo rosto abaixo. A minha respiração parecia ávida dos ares
lusitanos. O cheiro a África era-me uma realidade completamente desconhecida. O
clima parecia de todo adverso. Confesso que o calor sempre me fascinou,
todavia, este apresentava-se com contornos adversos e literalmente sufocante,
assim sendo o meu ego de pronto interiorizou o que lhe ia na alma: “eis-me num
território agreste onde a guerra se apresentava como uma irreversível
realidade”.
Os primeiros contactos com os nativos
transmitiam odores natos de gentes que se predispunham a contemplar aqueles
tímidos jovens que chegavam. Na pista do aeroporto de Bissalanca, e com o
Boeing 727 que nos transportara a preparar-se para efetuar a viagem de regresso
a Lisboa, deparei-me com uma verdade diametralmente diferente daquela que
dantes havia idealizado.
Lembro de sobrevoar o deserto do Saara e olhar as
dunas lá do alto, os oásis e as pequenas aldeias isoladas num extenso areal.
Tudo observado a uma distância que minusculamente não contemporizava uma visão
autêntica com o espaço visualizado. Ficava a imaginação de um jovem que cruzava
fronteiras aéreas a caminho da guerra.
Todas as histórias têm um vínculo que nos
transporta a vidas dispersas ao cimo deste imenso globo universal chamado
Terra. Nesta obra relato factos verídicos por mim vividos enquanto prestei
serviço militar obrigatório, sendo o fim uma comissão numa fase em que a luta
atormentava o mais incauto comum dos mortais. Felizmente tive, aliás, tivemos a
sorte que nos instantes finais do conflito nos deparássemos com dois tempos
diametralmente oposto: a guerra e a paz.
A guerrilha na Guiné tinha contornos buliçosos.
As condições do terreno, o clima e a forma como o PAIGC atuava, formava um
tridente que não dava tréguas ao mais astuto militar da metrópole. É verdade
que o exército português jamais se apresentou como uma arma maleável para o IN
(inimigo). Comprovámos, sempre, que as nossas capacidades de reação foram
evidentes nos campos de batalhas.
Do conflito da Guiné há retratos que ao longo
dos anos têm chegado ao nosso conhecimento, com testemunhos verídicos, que
relatam de como foi dura a peleja guerrilheira. Sabendo nós, principalmente
aqueles que conviveram o dia-a-dia com os problemas da escaramuça, que o
contingente luso na Guiné registava cerca de 45 mil efetivos nos três ramos das
Forças Armadas – Marinha, Força Aérea e Exército -, enquanto o PAIGC dispunha,
nos tempos finais, perto de 10 mil, logo, numa análise feita à pressuposta quantidade
de operacionais que cada exército dispunha, o cenário parecia favorável às
forças lusitanas.
Teoricamente seria essa a intenção dos homens de
Comando, indivíduos que instalados nos seus gabinetes estudavam o conflito,
mas… ao longe. Examinavam os mapas de cada região ao pormenor e idealizavam
ações no palanque operacional, mas no interior de quatro paredes. Era, quiçá, a
guerra operacional dos galões amarelos.
Porém, a prática dizia-nos uma verdade oposta.
As condições deparadas na frente de batalha, essencialmente a forma como a
guerrilha atuava a que acresce a maneira como o IN conhecia o palco real e a
forma como os seus movimentos no mato se desenhavam, deixavam a nossa tropa
perplexa diante a imprevisibilidade de um eventual contacto direto.
Hoje, e com a distância do tempo a prevalecer,
faço uma visita aos corredores da minha já apertada memória e vergo-me perante
a coragem de antigos companheiros que, de uma ou de outra forma, conseguiram
dissuadir as intenções do IN no momento em que o ziguezague das balas se
cruzavam no infinito do horizonte. Neste contexto, é justo enaltecer o valor
individual de cada combatente no instante em que o confronto se pautava pela
dureza.
Sabe-se que foram muitos os que morreram no
palco da peleja, outros que ficaram estropiados e outros que regressaram,
felizmente, sem nenhuma beliscadura. Há, igualmente, aqueles que ainda hoje
padecem de distúrbios mentais que o conflito lhes proporcionou.
O stress de guerra é há muito uma patologia aguda que tem levado muitos dos ex-combatentes a um pasmo de dificuldades que conduzem o potencial portador da doença a situações variadas. Conflitos a nível do emprego e familiares, designadamente, traduzem que os valores herdados da guerra têm transformado intelectos que evidenciam quebras memoriais, resultantes de hostis ensejos deparados perante ocasionais instantes de autêntico desespero.
Abraço, camaradas11 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25158: Blogpoesia (797): "Mãos de hoje que foram de sempre", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)