O então tenente SGE em Bissau, no QG/CTIG, c. 1972/74
Albano Mendes de Matos:
(Viii) já em Angola, havia publicado, em 1973, o caderno de contos africanos «O Jangadeiro», dos quais foram apreendidos 300 exemplares pela PIDE/DGS;
(ix) é também licenciado em Antropologia Cultural e Social e mestre em Ciências Antropológicas;
(x) foi professor na Universidade Moderna;
Foi um momento emocionante o meu último dia na Guiné-Bissau, em 13 de outubro de 1974.
O pessoal que restava do meu serviço, Contabilidade, saiu para o aeroporto de Bissalanca, logo pela manhã, como quase todos os militares que ainda lá se encontravam. Levaram rações de combate para as refeições. Creio que com receio de algum acontecimento.
Quando, na estrada, me preparava para caminhar, surgiu um jipe com um militar do PAIGC, mulato, de meia-idade, que me disse:
Contei-lhe o sucedido e logo se prontificou levar-me à Amura, mas que lhe ensinasse o caminho, porque só tinha ido a Bissau, durante a guerrilha, uma vez, de noite, ao cinema na UDIB (União Desportiva Internacional de Bissau).
Lá encontrei o meu condutor com uma grande bebedeira, não podendo conduzir o jipe. Disse-lhe que não se embebedasse mais, porque às 11 horas da noite tinha que estar junto do jipe, em frente do restaurante do primo, para irmos para o aeroporto.
Almocei e jantei na casa do referido locutor [o Silvério Dias]. e andei pelas ruas e pelos bares de Bissau. Só encontrava guineenses que me cumprimentavam e desejavam boa viagem e muita sorte.
Dei por mim a olhar para as memórias portuguesas que ficavam por aquelas paragens: edifícios, estátuas, toponímia. E a recordar a história que me tinham ensinado, com navegadores, guerreiros, missionários e pacificadores. Imaginei os primeiros portugueses a chegar àquelas terras. E eu, agora, o último a passear pelas ruas de Bissau, no fim do Império.
Estavam lá mais portugueses, o Governador e alguns militares, mas não saíam à rua. Às 23 horas [do dia 13 de outubro de 1974, domingo ]. , foram sob escolta para o aeroporto.
Um pouco depois das 11 horas da noite, dirigi-me para o jipe. O condutor estava melhor da bebedeira. Com ele estava o primo. Alguns negros param a olhar para nós. Aproximaram-se. O jipe arrancou. Os guineenses ficaram a acenar, de braços levantados. Descemos pela avenida principal, subimos pelo lado do campo de futebol.
Sentia uma sensação estranha. Já na estrada do aeroporto, olhei para trás. Duas lágrimas saltaram-me dos olhos, recordando o sangue português derramado naquelas paragens. Era estrangeiro numa nova nação.
Já perto do aeroporto, o condutor perguntou-me:
− Meu tenente, onde deixo o jipe?
− Atira-o para uma barreira!
Parámos à entrada do parque do aeroporto. Desci com a pequena mala. O condutor colocou uma sacola no chão, subiu para o jipe e conduziu-o até uma pequena ladeira, ao lado da estrada, um pouco antes do aeroporto, para onde o encaminhou com um pequeno empurrão.
No aeroporto, para entrarem no último avião da Guiné, estavam o Governador, o Comandante Militar, alguns militares coadjuvantes, oficiais, sargentos e meia dúzia de soldados.
Para apresentarem cumprimentos de despedida, chegaram alguns chefes militares do Exército do PAIGC e o Presidente da Câmara Municipal de Bissau.
Era o fim da colónia ou província portuguesa da Guiné, já independente desde o mês de Agosto.
Albano Mendes de Matos
(*) Último poste da série > 2 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27277: Memórias dos últimos soldados do império (6): os "últimos moicanos" - Parte III: a viagem Bissau-Lisboa, a bordo do T/T Uíge, em 15 de outubro de 1974 (Eduardo Magalhães Ribeiro / Luís Graça)
(i) nasceu em Castelo Novo, Fundão, em 1932;
(ii) é tenente-coronel do Exército na reforma;
(iii) há muito que, infelizmente, não temos notícias dele;
(iv) é membro da Tabanca desde 2008 (nº 652, ao lado do Silvério Dias), tendo 25 referências no nosso blogue;
(v) fez 2 comissões em Angola como sargento (em 1961/63 e em 1965/68), tendo frequentado depois a antiga Escola Central de Sargentos, em Águeda;
(vi) esteve no CTIG, já como tenente SGE (GA 7 e QG/CTIG - Secção de Milicias e Chefe de Contabilidade, 1972/74);
(vii) na Guiné, a par das tarefas militares, organizou festivais de poesia e representações teatrais, bem como os «Cadernos de Poesias POILÃO», com autores guineenses, cabo -verdianos e portugueses da metrópole;
(Viii) já em Angola, havia publicado, em 1973, o caderno de contos africanos «O Jangadeiro», dos quais foram apreendidos 300 exemplares pela PIDE/DGS;
(ix) é também licenciado em Antropologia Cultural e Social e mestre em Ciências Antropológicas;
(x) foi professor na Universidade Moderna;
(xi) estreou-se no romance em 2008, com a obra «A Casa Grande» (Prémio Literário Aquilino Ribeiro);
(xii) tem página no Facebook
1. Os nossos "cronistas" do "fim do império", no nosso blogue, são:
Também não podemos esquecer o valioso contributo do nosso amigo Luís Gonçalves Vaz, membro da nossa Tabanca Grande (nº 530) e filho do cor cav CEM Henrique Gonçalves Vaz (último Chefe do Estado-Maior do CTIG - 1973/74) (que deixou Bissau, às 2h30 do dia 14 de outubro de 1974, tendo viajado nos TAM com o brigadeiro graduado Carlos Fabião e restantes militares
- o Eduardo Magalhães Ribeiro (nosso coeditor) (ex-fur mil OE, CCS / BCaç 4612/74, Cumeré, Mansoa e Brá; seguiu para a Guiné já depois do 25 de Abril, tendo regressado na última viagem, no T/T Uíge, em 15/10/74; de alcunha, "o pira de Mansoa);
- o Abílio Magro, ex-fur mil amanuense, Chefia do Serviço de Justiça e Disciplina (CSJD), QG/CTIG, março 1973/ setembro 1974);
- o Albano Mendes de Matos, entáo tenente SGE, GA/ e QG/CTIG - Secçáo de Milícias e Chefe de Contabilidade, 1972/74, hoje ren.cor ref; natural do Fundão, vive em Oeiras,.
Também não podemos esquecer o valioso contributo do nosso amigo Luís Gonçalves Vaz, membro da nossa Tabanca Grande (nº 530) e filho do cor cav CEM Henrique Gonçalves Vaz (último Chefe do Estado-Maior do CTIG - 1973/74) (que deixou Bissau, às 2h30 do dia 14 de outubro de 1974, tendo viajado nos TAM com o brigadeiro graduado Carlos Fabião e restantes militares
; tinha 13 anos e estava em Bissau quando se deu o 25 de Abril; teve acesso privilegiado a documentos classificados dessa época bem como ao diário do seu pai). Já não estva lá em 14 de outubro de 1974 (o pai recambiou a família para a metrópole, na devida altura...) mas traz-nos também , para o blogue, fotos e outras recordaões do seu primo Manuel Aurélio de Araújo Beleza Ferraz, ex-Marinheiro Radiotelegrafista 812/70, membroda guarnição da LFG "Lira", preciosa testemunha da Missão “Retirada Final” em 14/10/1974... Vamos ter oprotunidade de repubicar esse poste, P16461 (*).
A NRP "Lira" foi uma das unidades que fez a segurança de retaguarda, durante o embarque dos últimos militares portugueses na Guiné.
A qualquer deles, incluindo o Manuel Belexa Ferraz, se aplica a expressão " o último dos moicanos" (leia-se: soldados do império): o Abílio Mgro, rgressado a casa em fins de setembro, nos TAM; o Albano Mendes Matos, a 14, também de de avião; e o Eduardo, a 15, no T/T Uíge.
O texto que republicamos a seguir, agora nesta sérien (*), é um dos textos mais pungentes que eu já li sobre sobre a saída das NT. Escrito com rigor jornalístico, mas também grande sensibilidade, ou não fora o autor um escritor de talento.
Memórias dos últimos soldados do império (6): os "últimos moicanos" - Parte III: "Já na estrada do aeroporto, olhei para trás. Duas lágrimas saltaram-me dos olhos, recordando o sangue português derramado naquelas paragens. Era estrangeiro numa nova nação."
por Albano Mendes de Matos
Foi um momento emocionante o meu último dia na Guiné-Bissau, em 13 de outubro de 1974.
O pessoal que restava do meu serviço, Contabilidade, saiu para o aeroporto de Bissalanca, logo pela manhã, como quase todos os militares que ainda lá se encontravam. Levaram rações de combate para as refeições. Creio que com receio de algum acontecimento.
Permaneci no local do meu serviço, para entregar as instalações e materiais às tropas do PAIGC, com guias de entrega e tudo, como estava combinado.
Fiquei apenas com um jipe e um condutor, militar português, para me transportar do Quartel-General de Santa Luzia (QG/CTIG) para Bissau e, depois, para o aeroporto.
Cerca das 11 horas, chegaram 6 negros, escoltados por uma secção das tropas do PAIGC, a pedirem os vencimentos a que tinham direito, porque tinham sido soldados portugueses. Tinham direito aos vencimentos de abril a dezembro de 1974, como fora acordado.
Os ex-soldados portugueses tinham fugido para o Senegal após o 25 de Abril, porque tinham receio que os prendessem ou fuzilassem.
As famílias avisaram esses ex-soldados para se deslocarem a Bissau, para exigirem o pagamento. Eu tinha pedido à Emissora da Guiné para avisar todas as pessoas, militares e civis, e as empresas que tivessem a receber alguma coisa do Exército Português, que o comunicassem até, creio, ao dia 10 de outubro [de 1974].
Interessante foi o caso de uma Casa de Instrumentos Musicais pedir o pagamento de 6 clarins que tinham sido fornecidos ao Comando Militar da Guiné... em 1940.
Disse aos ex-soldados que já não havia dinheiro e o tesoureiro já se encontrava em Portugal.
As famílias avisaram esses ex-soldados para se deslocarem a Bissau, para exigirem o pagamento. Eu tinha pedido à Emissora da Guiné para avisar todas as pessoas, militares e civis, e as empresas que tivessem a receber alguma coisa do Exército Português, que o comunicassem até, creio, ao dia 10 de outubro [de 1974].
Interessante foi o caso de uma Casa de Instrumentos Musicais pedir o pagamento de 6 clarins que tinham sido fornecidos ao Comando Militar da Guiné... em 1940.
Disse aos ex-soldados que já não havia dinheiro e o tesoureiro já se encontrava em Portugal.
Responderam-me que eu queria era ir para Portugal gozar com o dinheiro deles. Levei-os à tesouraria e mostrei-lhes os cofres abertos, sem dinheiro.
Disse-lhes que poderia promover o envio do dinheiro, quando chegasse a Portugal, para a Embaixada na Guiné. Tomei nota dos números, nomes e da Unidade a que pertenceram. Entreguei-lhes uma declaração assinada por mim e pelo comandante da secção militar do PAIGC.
Em novembro/dezembro [de 1974] enviei o dinheiro devido ao 6 militares, não tendo conhecimento se o receberam.
Em novembro/dezembro [de 1974] enviei o dinheiro devido ao 6 militares, não tendo conhecimento se o receberam.
Chegadas as 13 horas, sem que tivesse aparecido qualquer elemento do PAIGC, nem o meu condutor, como lhe havia dito, para me conduzir a casa de um locutor da Emissora, português que ficou na Guiné, para almoçar. [Tratava-se do 1º srgt Silvério Dias, ex-locutor do PIFAS, nosso grão -tabanqueiro nº 651].
Com uma pequena mala, resolvi ir, a pé, para o forte da Amura, junto ao Cais do Pindjiguiti, onde tinha a minha bagagem.
Quando, na estrada, me preparava para caminhar, surgiu um jipe com um militar do PAIGC, mulato, de meia-idade, que me disse:
− Camarada, para onde vai?
Contei-lhe o sucedido e logo se prontificou levar-me à Amura, mas que lhe ensinasse o caminho, porque só tinha ido a Bissau, durante a guerrilha, uma vez, de noite, ao cinema na UDIB (União Desportiva Internacional de Bissau).
Perguntando-lhe quem era, respondeu que era um comandante do Exército do PAIGC, que fora ver as instalações do Comando do Quartel-General, onde se iria instalar, ainda nesse dia.
Conduziu-me no jipe, não à Amura, mas a um restaurante de um primo do meu condutor, português a quem o Governo da Guiné pediu para não sair, porque era o chefe da fábrica de descasque de arroz, situada numa ilhota, no rio Geba, em frente de Bissau [, o ilhéu do Rei ].
Conduziu-me no jipe, não à Amura, mas a um restaurante de um primo do meu condutor, português a quem o Governo da Guiné pediu para não sair, porque era o chefe da fábrica de descasque de arroz, situada numa ilhota, no rio Geba, em frente de Bissau [, o ilhéu do Rei ].
Lá encontrei o meu condutor com uma grande bebedeira, não podendo conduzir o jipe. Disse-lhe que não se embebedasse mais, porque às 11 horas da noite tinha que estar junto do jipe, em frente do restaurante do primo, para irmos para o aeroporto.
Almocei e jantei na casa do referido locutor [o Silvério Dias]. e andei pelas ruas e pelos bares de Bissau. Só encontrava guineenses que me cumprimentavam e desejavam boa viagem e muita sorte.
Dei por mim a olhar para as memórias portuguesas que ficavam por aquelas paragens: edifícios, estátuas, toponímia. E a recordar a história que me tinham ensinado, com navegadores, guerreiros, missionários e pacificadores. Imaginei os primeiros portugueses a chegar àquelas terras. E eu, agora, o último a passear pelas ruas de Bissau, no fim do Império.
Estavam lá mais portugueses, o Governador e alguns militares, mas não saíam à rua. Às 23 horas [do dia 13 de outubro de 1974, domingo ]. , foram sob escolta para o aeroporto.
Também estava um navio com um Batalhão nas proximidades do porto [aliás dois, o T/T Niassa e o T/T Uíge]. , para zarpar quando o último avião da Guiné estivesse no ar, para a última viagem aérea de uma parte do Império.
Um pouco depois das 11 horas da noite, dirigi-me para o jipe. O condutor estava melhor da bebedeira. Com ele estava o primo. Alguns negros param a olhar para nós. Aproximaram-se. O jipe arrancou. Os guineenses ficaram a acenar, de braços levantados. Descemos pela avenida principal, subimos pelo lado do campo de futebol.
Sentia uma sensação estranha. Já na estrada do aeroporto, olhei para trás. Duas lágrimas saltaram-me dos olhos, recordando o sangue português derramado naquelas paragens. Era estrangeiro numa nova nação.
Já perto do aeroporto, o condutor perguntou-me:
− Meu tenente, onde deixo o jipe?
− Atira-o para uma barreira!
Parámos à entrada do parque do aeroporto. Desci com a pequena mala. O condutor colocou uma sacola no chão, subiu para o jipe e conduziu-o até uma pequena ladeira, ao lado da estrada, um pouco antes do aeroporto, para onde o encaminhou com um pequeno empurrão.
No aeroporto, para entrarem no último avião da Guiné, estavam o Governador, o Comandante Militar, alguns militares coadjuvantes, oficiais, sargentos e meia dúzia de soldados.
Para apresentarem cumprimentos de despedida, chegaram alguns chefes militares do Exército do PAIGC e o Presidente da Câmara Municipal de Bissau.
Era o fim da colónia ou província portuguesa da Guiné, já independente desde o mês de Agosto.
Albano Mendes de Matos
(Revisao / fixação de texto, título: VB/LG)
__________
Notas do editor LG:
__________
Notas do editor LG:
(*) Vd. poste de 26 de fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9535: Os nossos últimos seis meses (de 25abr74 a 15out74) (3): A Retirada Final: os últimos militares portugueses a abandonar o TO da Guiné (Luís Gonçalves Vaz / Manuel Beleza Ferraz)
(*) Último poste da série > 2 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27277: Memórias dos últimos soldados do império (6): os "últimos moicanos" - Parte III: a viagem Bissau-Lisboa, a bordo do T/T Uíge, em 15 de outubro de 1974 (Eduardo Magalhães Ribeiro / Luís Graça)
Vd. postes anteriores:
18 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27227: Memórias dos últimos soldados do império (5): os "últimos moicanos" - Parte II (Abílio Magro, ex-fur mil amanuense, CSJD/QG/CTIG, Bissau, mar 1973/ set 74)
17 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27225: Memórias dos últimos soldados do império (4): os "últimos moicanos" - Parte I (Abílio Magro, ex-fur mil amanuense, CSJD/QG/CTIG, Bissau, mar 1973/ set 74)
Sem comentários:
Enviar um comentário